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PN EY ANSEIM JAPPE = “A capacidade de Guy Debord de combater o espetaculo sem entrar na arena espetaculo permaneceu Unica” GABRIEL FERREIRA ZACARIAS nselm Japp fildsofo de origem alema, é professor da Accademia di Belle Arti de Sassari, na Italia, e ensina ate. almente no College International de Philosophie, em Paris. Em 1993, publicou Guy Debord (lancado no Brasil pela edi tora Vozes, em 1999), livro escrito originalmente em italiano e tradu: ido em seis linguas, que é referencia indispensavel sobre o tema. Na Franca, publicou também uma coletanea de textos sobre Guy Debord, ea Internacional Situacionista, Liavant-garde inacceptable (2004), tra- duzida em portugués sob o titulo Uma conspiracao permanente contra (0 mundo (Lisboa: Antigona, 2014). F também autor ligado a critica do valor, tendo publicado As aventuras da mercadoria (Lisboa: Antigona, 2006) e Crédito é morte (S40 Paulo: Hedra, 2013). Na entrevista a seguir, ele destaca as particularidades do pensamento de Guy Debord e as, relaciona a grandes quest0es teGricas que atravessaram 0 século 20 € chegaram aos dias attais, so IG N-212 [EN Em seu ensaio, Guy Debord, de 1993, voct tentou apreender as fontes do pensamento do autor de A sociedade do espetdiculo, revelando a importincia de Marx eda tradigao marxis- ta paraa elaboracao da teoria do espeticulo € sublinhando, ao mesmo tempo, 0 carter heterodoxo do pensamento de Debord. Em que consiste a particularidade desse pensa- mento e qual é a posicio dele em relacao & tradigto marxista? ANSELM Japee Em seu inicio, nos anos 1950, Debord se situava, sobretudo, por via do letris- ‘mo, na continuagao do surrealismo original de seu projeto de reinventar a vida, unindo a revolta ea poesia. Mas cle concluiu rapida- ‘mente que era necessaio buscar a unido com forcas capazes de abalar a sociedade capitalis- ta, com esse propdsito furddoua Internacional Situacionista. Ele operou entao uma profunda releitura da teoria de Marx, que teve como principal fruto A soctedade do espetdiculo (1967). A interpretagio leninista de Marx perdia ter- reno nessa época, e grupos como Socfalisme (ou Barbarie haviam sublinhado o papel nefas to das burocracias tanto nas sociedades capi- {alistas quanto nas pretensamente “comunis- tas", Disso, tiravam como conclusio que os “Conselhos operarios” deveriam substituir os partidos e sindicatos para se chegar a uma ver- dadeira revolugao contra o Estado e contra o capitalismo, Debord subscreve essa ideia, Mas cle retoma igualmente a critica marxiana da ‘mercadoria eafirma que o espeticulo éa forma contemporanea da mercadoria. Comecando set livro com a mesma frase com a qual se inicia O Capital de Marx, mas substituindo a palavra “mercadoria” por “espetaculo”, Debord dé a entender que pretende apresentar uma versio contemporanea da critica de Marx. Ao ‘mesmo tempo em que conserva a importincia dada i “luta de classes”, Debord da um grande peso a “alienagdo”, alargando esse conceito a dominios como a vida cotidiana, 0 urbanismo ea cultura, Assim, 0 proletariado nao & mais somente 0 operdrio explorado, mas todos aqueles que perderam o controle de stas vidas ce que estao cientes disso, Na dtica de Debord, isso permite encarar a revolucio sob um Ao mesmo tempo em que conserva a importancia dada a ‘luta de classes’, Debord da um grande peso A ‘alienacao’, alargando esse conceito a dominios como a vida quotidiana, 0 urbanismo eacultura Angulo novo, eele considera a revolta de maio de 68 na Franga como a confirmagao de sua teoria. Mas 0 que hoje parece mais inovador na teoria de Debord é 0 fato de ter colocado o fetichismo da mercadoria no centro da critica do capitalismo, mostrando que ele comporta ser- pre uma passividade generalizada ¢ um exilio das potencialidades hu- ‘manas em tim além — que ndo é mais religioso, mas que tomou a forma ‘de uma economia autonomizada face aos homens que a criaram, an Nesse contexto, a teoria do espeticulo dificilmente poderia ser ‘confundida com uma simples teoria da midia. Que sentido podemos dar, entao, as nogbes de imagem ¢ de espetaculo? sasre Como nota Debord, as midias, ea televisdo em particular, si0 apenas a manifestagdo mais visivel - e “mats esmagadora” - do meca- nismo espetacular, mas nao constituem seu centro. No espetaculo, en- quanto estado recente do desenvolvimento da sociedade capitalista, a ‘contemplecao passiva da vida possivel substitul a vida real. Os indivi ‘duos assistem dquilo que Ihes falta na vida cotidiana. Sob a forma de imagens no sentido estrito ~ por exemplo, a vida brilhante que vemos no cinema consola os espectadores da pobreza de sua existencia, sub- metida as exigéncias rotineiras do trabalho e da vida burguesa ~ mas também no sentido amplo ~ cada mercadoria, quer seja um carro, uma ‘viagem ou uma visita ao museu, promete uma vida feliz e substitul a experiéncia direta da realidade. E por isso que ela 6 consumida, e no por seu valor de uso. Os paises ditos “socialistas” nao sio menos espe- taculares: mas aqui éa contemplacio da ideologia e das agdes do chete ue suibstitui o consumo de mercadorias. Trata-se, entdo, do “espetacular concentrado” que Debord opde ao “espetacular difuso” que domina nas sociedades ocidentais “democraticas”. Anos depots, Debord afirmou ‘que os dois tipos estavam em vias de se fundir no “espetacular integra- do” mundial. Mesmo 0s movimentos de contestagao caem na logica espetacular quando simples adeptos se limitam a sustentar a agao de alguns herbis, e ainda mais quando burocracias se instalam no interior dessas organizagoes. A arte também é um espetaculo para Debord: nela, a representacao das paixdes substitu’ a vida direta. A existéncia do => Ne212 BG 53 Dossié) GUY DEBORD espetéculo nao é, porém, uma fatalidade ou ‘uma simples consequéncia da “modernidade” espeticulo ¢ uma técnica de dominagao que permite manter a maioria da populagao em um. estado de passividade. Ele se baseia na distin [a0 estrutural entre espectadores eatores, im- pedindo os individuos de exercer um controle sobre stias vidas que, nao obstante, teria se tornado possivel gracas ao desenvolvimento das forgas produtivas. Mesmo tendo raizes an- tigas, 0 espetaculo se desenvolveu, sobretudo, apés a Primeira Guerra Mundial. Fle é a ex- pressao da economia autonomizada e seus agentes s30 menos os proprietarios juridicos do capital do que as novas camadas de buro- cratas, teenocratas e dirigentes. IN Estudando os arquivos de Guy Debord, pode-se constatar que, antes de escrever A so- ciedade do espetaculo, ele quase nao tomara conhecimento dos autores da Escola de Frankfurt, pouco traduzidos na Franca, ex cegao de Herbert Marcuse, cujo Eros eciviliza (a0 Debord apreciara. Nao obstante, em mais de um escrito, voce colocot em relevo pontos de contato entre as reflexdes de Debord e aque- las de Theodor Adorno, notadamente sobre a indistria cultural. Que relagoes podemos es- tabelecer entre esses dois tedricos? arPe Os filsofos alemaes Theodor W. Adorno e Max Horkheimer elaboraram o conceito de “indistria cultural” durante seu exilio na Califirnia no inicio dos anos 1940, tornando- 0 piblico no livro Dialética do esclarecimento (1947). Fles dentunciavam, sobretudo, a redu- G40 da cultura a uma mercadoria ea perda de set potencial critico e ut6pico, o que ia de par com um empobrecimento geral da vida e da sensibilidade. Essa critica s6 encontrou um. pablico mais amplo vinte anos mais tarde, e era provavelmente desconhecida de Debord quando ele redigit seu livro. Estamos, portan- to, diante de uma convergéncia “objetiva” de Ideias. Apesar das diferencas evidentes entre Debord, que se concebia como subversive € revolucionario, ¢ 0s académicos da Escola de Frankfurt, em sua maioria bastante pacatos, vemos que eles se colocavam os mesmos sa IG Ne212 problemas: o fim da miséria material do proletariado significa real- mente que o capitalismo ocidental, chamado doravante de “sociedade de consumo”, criow uma sociedade harmoniosa? Ou existem novas formas de alienacao que tornam o individuo tao impotente quanto antes, mesmo quando as forcas produtivas poderiam permitir que o homem dominasse suas condigdes de vida? A resposta é sempre uma critica radical da sociedade do “milagre econdmico”, com termos que utilizam a teoria de Marx a0 mesmo tempo em que se distinguem. ‘marcadamente do marxismo tradicional. O que diferem sio as conse- quéncias: Adorno nao parece mais acreditar na possibilidade de uma transformagao social radical, sendo em tima espécie de ima mudanca de mentalidade que passa, sobretudo, pela arte. Marcuse, a0 contrario, admite a possibilidade de uma ruptura com as condigOes dominantes, © aposta nos estudantes. Ja Debord e os situacionistas veem aparecer, nessa época, uma contestacao total da “vida permitida” por um “pro- letariado” que €, em parte, identificado ao velho proletariado das f- bricas e, em parte, i massa de todos aqueles que sentem o vazio causado pela abundancia de mercadorias. Mas, diferentemente de Adorno ede Marcuse, Debord sustenta que o potencial critico da arte ~ que fora ‘muito real no passado - teria se esgotado, e que a realizagio da arte ~ «que € ao mesmo tempo sua superacao enquanto realizagao daquilo que arte ndo fizera mais que prometer — seria uma parte essencial das nnovas formas de contestagao. (aa Por diversas vezes vocé procurou mostrar também que existem pontos de contato entre o pensamento de Debord e de autores estra- inhos tradicao marxista. E 0 caso, por exemplo, de Hannah Arendt, notadamente em 4 condigdo humana (1958), cuja concepeao de agir e cuja nogao de tempo historico voce julga proximas das concepdes de Debord. Vocé poderia comentar brevemente essa questao? sawpe O pensamento de Hannah Arendt, aluna de Martin Heidegger, parece estranho 20 marxismo ¢ a tradicao revolucionaria em geral. Contudo, com a distancia do tempo, algtins paralelos aparecem, como acontece frequentemente na historia das ideias. A sociedade do espetd- culo contém uma parte menos conhecida na qual Debord analisa 0 “tempo hist6rico”. Ao longo da historia, grupos humanos comegaram. se libertar do tempo ciclico e a dar uma direcao e um sentido a suas agdes, tornando-as tinicas e dignas de serem transmitidas — 0 que, para Debord, se assemelha a um jogo. existéncia de um excedente material — que se torn um excedente temporal - e sua apropriagdo por uma classe social foram suas condigoes. A Grécia antiga conheceu assim ‘uma “democracia de senhores da sociedade”. ‘A economia mercantil, com sua correlata ex- pansio das forgas produtivas, teria, em pris i, tornado possivel a integralidade da po- pulacio uma extensio dessa liberdade e do jogo com o tempo. Masa sociedade de classes, sobrettdo em sta forma espetacular, bloqueot essa possibilidade, submetendo a maior parte dos homens a novas formas de repeticao - es- peclalmente com a obrigagdo de trabalhar. Desta forma, o “tempo espetacular” é 0 con- trario da historia realmente vivida sob forma de “situagoes construidas’. Arendt, por stia ver, analisa em A condicao humana a vida da Grécia antiga como um espago onde cada um pode desempenhar seu proprio papel historico através de atos e palavras. Ademais, ela des creve trabalho como tma forma de alienacio destinada a simples perpetuagao da vida bio- Logica, oposta a obra. Por mais diferente que seja sua concepgdo daquela de Debord, nos encontramos uma aspiragio comum de indi- car uma temporalidade auténtica - 0 que de- veria permitir aos individuos jogar até fim o Jogo de sua passagem pela terra, se disso forem capazes. Emerge dai certa concepcao heroica da vida que é frequentemente subestimada pelos comentadores. ‘Sin Depois de ter estudado a obra de Debord, voce colaborou com as revistas Krisis ¢ Ex trabalhando ao lado de Robert Kurz. Voce se tornon desde entio uma das principais vozes (senao a principal voz) da critica do valor na Europa. Isso nos autorizaria a acre ditar que existe um lago de continuidade entre a teoria de Debord ea wertkritik. Nao obstante, também é facil perceber que exis- tem pontos divergentes entre ambos, por exemplo, com relagao a questio da luta de classes. Quais sao 0s pontos de convergéncia ede ruptura entre o pensamento de Debord ea teoria da critica do valor? 1a9¢ A principal voz da critica do valor fol, sem diivida, Robert Kurz, até sua morte brutal [por erro médico] em 2012. Com efeit, entrei em contato com os tebricos da critica do valor, ela- borada inicialmente na Alemanha, apés a publicagdo de meu livro sobre Guy Debord, em 1993, Eles praticamente 1ndo conheciam as ideias situacionistas. Nao existe, portanto, filiaga0 direta, nem influéncia de Debord sobre a critica do valor em seu inicio, Mas ew encontrei na wertkritik um pensamento com 0 mesmo grau de radicalismo, além de diversos outros pontos comuns como: a centrali- dade de nogoes como “alienacao’, “fetichismo da mercadoria” ou “rei- ficagdo”; a critica da propria existéncia da mercadoria e do trabalho, e no apenas de sua gestao e distribuigao; a desconfianga para com uma grande parte do marxismo em prol de uma retomada das categorias centrais de Marx; a atengio & dimensto do cotidiano. E a wertkritik, assim como os situacionistas,situava-se fora do campo universitio & midiatico, evitando toda forma de institucionalizacao e se impondo ‘pracas fala — uma fala que sabia, por vezes, ser bastante polémica, sem ‘emer 0 conflito com a esquerda radical existente. Ao mesmo tempo, ndo faltavam diferengas. De certa forma, os situacionistas pararam no meio do caminho em seu questionamento do marxismo clissico, conservando nnotadamente a centralidade da “luta de classes” e da “subjetividade re- volucionéria” em geral. A wertkritk insistiu muito mais sobre o carster Inelutivel da crise do capitalismo e sobre seu caréter objetivo. Como apareceu vinte anos mais tarde, a critica do valor soube tirar proveito das criticas do sujelto, e notadamente da dimensao do género, que foram elaboradas nesse meio tempo. Por outro lado, 0s situacionistas, e Debord em particular tinham um estilo, uma atitude que ninguém soube reto- mar e que vinha, sobretudo, da tradigdo artisticaeliterdria francesa & qual se referiam. Sua capacidade de combater o espetaculo sem entrar na arena do espeticulo permaneceu tnica.1@ tRaou¢AO cz 66 Diferentemente de Adorno de Marcuse, Debord sustenta que 0 potencial critico da arte — que fora muito real no passado - teria se esgotado, e que a realizagao da arte — que é ao mesmo tempo sua superagio enquanto realizagao daquilo que a arte nao fizera mais que prometer — seria uma parte essencial das novas formas de contestagio Ne212 BG 5

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