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Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

APONTAMENTOS SEMANAIS DE DIREITO PENAL


Aula 08.11
Manhã
Teoria Geral do Crime
Pretende decompor analiticamente o conceito material de crime; pretende enunciar os
requisitos e pressupostos que tem de se enunciar em qualquer caso, para estarmos perante
uma conduta humana violadora de uma norma de determinação.
Em todos os crimes, tem de estar presente o conceito material do crime e a Teoria Geral
do crime.
è O conceito material permite esmiuçar os conceitos que se inserem no crime.
è A teoria Geral permite esmiuçar esse conceito material e os conceitos que se
inserem no mesmo.
O que é o caminho de realização de um direito penal?

• A TGDCrime dá resposta a isto


Para um juiz perceber se está perante um crime vai percorrer os passos da TGDCrime:

® Ação
® Típica
® Ilícita
® Culposa
® Punível
Ou seja, vai verificar se preenche estes requisitos.
Virtualidade da teoria geral do crime:

• Esmiuçar os vários aspetos que intervém no conceito de crime


A generalidade dos cursos de direito penal e os seus tratados seguem estas matérias – é
um esquema pedagógico porque permite aprofundar o conceito material de crime e tornar
claro os elementos integradores do crime.

• Proposta metodológica - caminho de realização do DP – o juiz perante os casos


concretos, segue os passos (ação, típica, ilícita, culposa e, para alguns autores,
punível) da teoria geral do crime. Contribui para a segurança jurídica.
Em sede de recurso, para o tribunal verificar a justiça da decisão vai usar os mesmos
passos que a 1ª instância, o que permite assegurar a segurança jurídica.
Pode-se falar da teoria geral do crime em vários espaços da história, mas atenderemos à
dogmática moderna, do século XX à atualidade.

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Pode-se então destacar três grandes construções da teoria geral do crime:

® Teoria clássica: inspirado pelo positivismo naturalista (século XIX-XX)


® Sistema neoclássico/normativista
® Sistema finalista: ligado a um grande nome do direito penal, Hans Kelsen
Sistema que resulta de uma grande luta entre escolas, neste período:

® Sistema teleológico-racional: combina elementos dos três sistemas

Sistema Clássico
Influenciado pelo positivismo naturalista do século XIX-XX.
Há dois vetores que influenciaram este sistema:
1. Positivismo naturalista: o universo da razão prática, para estes autores, era uma
aparência. A conduta humana era condicionada (tal como qualquer fenómeno
natural) por condições endógenas e exógenas. E por aí, cria-se a crença de que
todas as ciências humanas deviam funcionar do mesmo modo das naturais,
fazendo-se revestir de conceitos formalistas e descritivos desprovidos de valor
axiológico – reportando-se a realidades empíricas (factos empíricos, que se
deveriam traduzir em conceitos descritivos e axiologicamente neutrais).
o Positivismo jurídico: na base do princípio da divisão de poderes caberia ao
legislador/parlamento e ao juiz caberia apenas uma aplicação automática dessa
mesma lei. Funcionava pelo silogismo judiciário; defendia-se o carácter descritivo
e formal dos conceitos jurídicos, pois só eles permitiam controlar a liberdade do
juiz e assegurar a “segurança dos particulares” – defesa do caráter descritivo e
formal dos conceitos jurídicos.
Foi daqui que resultou a conformação deste sistema clássico, que dominou a
literatura/doutrina alemã até aos anos 20.
O sistema clássico não teve adeptos nem defensores, mas é importante estudá-la porque
a sua construção viria a condicionar todo o desenvolvimento posterior da teoria geral do
crime.
A dogmática alemã entra na doutrina portuguesa por volta de 1940, já com outro sistema,
o neoclássico/normativista.

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Para termos um crime tínhamos de ter:

® Ação causal: uma ação, que era definida em termos causais; este conceito era
estritamente objetivo e descritivo (axiologicamente neutro). O que releva não é a
descrição fáctico-exterior da conduta. Esta ação casual não pretendia explicar o
crime omissivo (quando alguém está vinculado ao dever jurídico de proteger x e
não o faz; omissão de auxílio por exemplo). Se todo o crime tinha de ser uma ação
casual, uma omissão não cabe aqui, porque este não interveio/não modificou o
mundo exterior.
Em suma:
O crime era toda a modificação do mundo exterior, causalmente ligada a uma
vontade e cega de valores.
Ø estritamente objetiva
Ø vontade como motor do processo causal
Ø descritivo/axiologicamente neutra
Ø não se atende a aspetos valorativos

® Tipicidade/tipo: era descrição de um concreto delito - tipo do furto, da burla, das


ofensas à integridade física. Limitava-se a descrever as ações causais penalmente
relevantes. (objetivo e descritivo/axiologicamente neutral). Importante para saber
o que relevava para o direito penal.
A conduta humana é uma objetivação de uma subjetividade, não é subjetiva.

Exemplo:
O senhor A dá um empurrão no senhor B. O que é isto?

è Depende.
Se quiser matar é tentativa de homicídio; se quiser violar, é tentativa de violação,
etc.
A conduta humana é uma objetificação de uma subjetividade, não é objetiva por si só.

Na mera observação exterior, esquecendo a subjetividade, no plano causal as coisas


(tentativas de) podem ser idênticas.

® Ilícita ou anti juridicidade (usavam como sinónimos): significa a contrariedade


à ordem jurídica, quando considerada na sua totalidade. Carece de considerar a
legítima defesa, Estado de necessidade, etc. (objetivo).
É necessário um desvalor, aparente elemento valorativo. Estes autores
consideravam a ilicitude como um enunciado de contratipos – saber se o facto era
subsumível a um tipo justificador.
A valoração não era real, o legislador era convocado por mero procedimento
silogístico (silogismo judiciário) – era um procedimento automático.

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Os seus contratipos:
- Descritivos
- Estritamente objetivos (não se atende à vontade do agente)

Exemplo:
Arrufo entre senhor A e senhor B, vizinhos. Por vingança, o senhor A parte a janela e o
caixilho do senhor B. Porém, existia uma fuga de gás na casa de B e aquele acabou por
salvar este da morte.
A intenção desta conduta era causar o dano, não era salvar a vida de B, por isso o ato não
é justificável. A conduta humana não é objetiva, a subjetividade e intenção relevam no
direito penal e, ainda que pudessem existir atenuantes, a conduta não seria ignorada ou
valorada positivamente só por ter, no fim, um resultado positivo.
Contudo, alguns autores defendem que a pena do senhor A deveria ser atenuada para
tentativa; numa ideia de “está tudo bem, quando tudo acaba bem”.

® Culpa: conceito psicológico de culpa, considerando-se a subjetividade do agente.


Nexo psicológico que liga o agente ao seu facto.
- Dolo
- Negligência – violação de um dever objetivo de cuidar

Esta distinção entre dolo e negligência resumia-se à contraposição de dois


diferentes nexos psicológicos, não intervindo quaisquer nexos valorativos,
quando na realidade, o que deve estar subjacente a esta distinção é uma hierarquia
de desvalor. Se a culpa se reduz ao nexo psicológico entre o agente e o seu facto,
deixa de se fazer distinção entre imputável e inimputável. Isto porque os
inimputáveis também agem dolosamente ou em negligência, mas não há culpa –
a definição de culpa é, neste sistema, erróneo.
Ainda há que considerar a inexigibilidade que descarta uma situação de culpa (também
não é tomada em conta neste sistema), por fatores exógenos ao sujeito – ex.: matar alguém
para salvar a própria vida. Diga-se, ainda, que enquanto esta descarta a culpa por fatores
exógenos, a inimputabilidade descarta com base em fatores endógenos.
O conceito de nexo psicológico também não atende à negligência consciente: na
neglicência o agente, por descuido, não cumpre os seus deveres de cuidado.

Distinção

Inimputabilidade: exclusão de culpa por fatores endógenos, internos do agente.


Exigibilidade: exclusão de culpa, fatores exógenos, exteriores ao agente –
exemplo dos náufragos.

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Existem ainda dois tipos de negligência:

• Negligência consciente: está consciente dos riscos, mas decide avançar com o ato,
crente de que conseguirá evitar o perigo.
• Negligência inconsciente: não representa o caráter perigoso da conduta e o agente
nem sequer antecipa o perigo.
Este sistema centra-se numa perspetiva causalista e objetiva, não exprimindo o
sentido valorativo das condutas jurídico-criminais.
Assim, o sistema clássico, pela sua construção, deixa de fora muitos conceitos:
è O conceito de ação causal, deixa de fora o crime de omissão.
è O conceito de culpa deixa de fora a distinção entre imputável e inimputável e a
impossibilidade de admitir a negligência consciente.
è A subjetividade da conduta humana, por assentar na causalidade e em aspetos
estritamente objetivos, passa ao lado deste sistema.

Tarde
Em toda e qualquer situação para haver crime é preciso percorrer os vários conceitos do
conceito material de crime (que reconduzem à teoria geral do crime).
Teoria geral do crime – os elementos constitutivos têm de estar presentes em todo e
qualquer crime. É o caminho que se oferece a um juiz a nível de aplicação de casos
concretos; para saber como agir numa situação concreta.
Começamos a analisar a primeira das grandes construções da doutrina moderna:
Sistema clássico ou positivista
Esquematização do sistema clássico:

Sistema
Clássico

Culpa
Ilícita ou
Ação Causal Tipicidade Conceito
antijurídica
Psicológico de culpa

Descritiva/
Objetiva Axiologicamente Objetiva Descritiva Objetiva Objetiva
neutral

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è Durou até 1920, mas não teve relevância no universo português.


A dogmática alemã penetrou no sistema português já na doutrina que se seguiu.

Sistema neoclássico ou normativista


É de grande influência alemã, sendo que nos anos 30 e 40 ela vem influenciar a doutrina
portuguesa.
Os seus defensores, em Portugal: Eduardo Correia, Cavaleiro Ferreira e Beleza dos
Santos.

É uma importante dogmática do direito penal.


Teve uma importância enorme porque marcou a separação dos postulados do positivismo
naturalista.
Este sistema partia da radical oposição dos universos da natureza e do universo social e
humano; a realidade da vida prática. Universo de realidade de valorações, de normas –
universo da conduta humana.
Enquanto os fenómenos naturais se explicavam pela regra da causalidade; a conduta
humana tinha subjacente o fenómeno da valoração – a valoração é o nosso critério de
ação.
Podemos falar de valores éticos, estéticos, pragmáticos e jurídicos.
Devido à indeterminação do nosso comportamento – todas as nossas escolhas assentam
em valorações; o critério do nosso juízo são os valores.
Se penso em ir para casa e tenho 3 caminhos:
- Escolho 1 porque é mais curto – valor pragmático.
- Escolho 1 porque tem paisagens bonitas – valor estético.
- Escolho 1 porque passo por uma associação de caridade e posso fazer uma contribuição
– valor ético.
Isto leva a que necessariamente o método de construção conceitual tenha de ser diferente
dos das ciências da natureza, é o método referencial.
è Método concetual de referencial de valores
Parte da base kantiana; filosofia neo-kantiana:

• Realidade em si é inatingível ao conhecimento humano.


• Descontínuo heterogéneo – caos, desordem, pluralidade de coisas sem qualquer
conexão entre elas.

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Este descontínuo não é compreensível pela mente humana e deve convertê-lo num
contínuo homogéneo.
• Este descontínuo heterogéneo não atende a diferenças qualitativas – é a perspetiva
das ciências naturais.
Para os neo-kantianos não é suficiente para compreender toda a realidade, por isso surge
uma segunda forma:

• Discreto heterogéneo – privilegia as qualidades; está à procura do sentido, do seu


valor. Aqui atende-se aos valores e valoriza-se a individualidade (não procura a
relação entre as coisas). É, assim, a perspetiva das ciências humanas.
Quer as ciências naturais quer as humanas acabam por criar a própria realidade ou uma
representação da mesma, assim como o discreto heterogéneo. É uma forma de
decomposição para compreender a realidade.
A autonomia ôntica entre a natureza e a vida social (reino da cultura) também se traduz
noutras ciências.

Esta perspetiva referencial a valores, quando transportada para a dogmática:

® Ação referencial a valores ou ação social: a ação refletiria um acontecimento


exterior, positivo ou negativo, valor ou desvalor. Ultrapassam a dificuldade do
sistema clássico existente na ação causal; se toda a ação é afirmadora ou negadora
de valores, eu posso negar um valor jurídico através de uma ação positiva para o
danificar, ou através da não atuação quando esta deve existir (abrange, então, o
crime por omissão).
A ação e a omissão deixam de valer pela sua configuração externa, passando a
valer pelo seu valor e desvalor.
A ação é um processo de lesão de um bem jurídico, comandado pela vontade, que
pode ser uma ação ou omissão, um ato positivo ou negativo (predomina o aspeto
objetivo; a vontade é apenas o motor, mas não se atende à mesma, mas sim à
manifestação exterior).
® Ilicitude: entendida em termos objetivos, que se foca no desvalor de resultado. O
juízo material de ilicitude, que determina quais os bens e valores importantes e
daí as condutas relevantes para o DP, deve ser feita da forma mais precisa
possível. Essa precisão é conseguida através do tipo.
® Tipo/tipicidade: deixa de uma categoria autónoma e une-se à ilicitude, gerando
o ilícito-típico ou o tipo de ilícito.
O ilícito típico esgota-se no desvalor de resultado, sendo estritamente objetivo
(não atende a padrões subjetivos).

Como se explica a tentativa (em que não há resultado); como se distinguem os crimes de
dano e os crimes de perigo?

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Teoria dos elementos subjetivos do tipo:


O ilícito é estritamente objetivo, não se atende à subjetividade do agente.
Excecionalmente e por força do princípio da legalidade, podíamos atender a alguns
elementos subjetivos.

® Culpa: contributo quase definitivo; abandono do conceito psicológico de culpa


dos positivistas, substituindo-o pelo conceito normativo de culpa.
A culpa é juízo de valor/censura, que tem como pressuposto a liberdade humana.
O direito não faz concorrência com a psicologia, logo, a culpa é um juízo de
valor/censura.
Dolo e negligência deixam de se reconduzir a um único conceito: culpa, passando
a ser graus de culpa/censura, sendo a negligência menos censurável e, por isso,
menos punível.
Na base deste conceito podem distinguir-se os imputáveis dos inimputáveis – estes podem
praticar atos dolosos ou negligentes, mas por força de fatores endógenos/internos diz-se
que não podem ser constituídos perante um juízo de culpa. Ou seja, um inimputável
também tem dolo e negligência, mas não é passível de juízo de censura.
Também se é assim capaz de distinguir a imputabilidade das situações de exigibilidade /
não exigibilidade.
Sumário do sistema:
Prometeu uma total rotura com os quadros anteriores;
Prometeu um método referencial.
Porém ficou aquém das suas promessas, não se desprendendo da causalidade e do
desvalor do ato.
Então, o que o sistema neoclássico fez foi recuperar, na medida do possível, os quadros
do sistema clássico, continuando a não dar resposta à tentativa e aos crimes de perigo.
Onde este sistema deu um contributo quase definitivo foi no conceito normativo de culpa
(autores principais: Frank e Freudenthal); a culpa não é um facto psicológico (como foi
outrora), não se esgotando num facto empírico.
Este sistema foi muito importante, porém ficou aquém do que devia. O facto de continuar
apegado à causalidade leva a que não abranja o sentido de crime na totalidade.
Esquematização do sistema neoclássico:

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Sistema
Neoclássico

Culpa
Ação social Ilicitude + tipicidade
Objetiva Conceito Psicológico
(referencial a valores) ilícito típico
de culpa

Objetiva Objetiva Objetiva

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