Professional Documents
Culture Documents
Poesia Heterónimos
Poesia Heterónimos
Foi Pessoa, de todos os nossos escritores, indiscutivelmente, o que mais se aproximou de Pirandello…Pela
genial concepção do “drama em gente em vez de atos” que é a invenção dos heterónimos, as várias
individualidades em que se desdobrou a sua multímoda personalidade e que ele avisou dever ser “
considerada como distintas do autor deles”, fazendo cada uma “espécie de drama” tal como afinal as
“máscaras nuas” de Pirandello.
in Teatro Simbolista e Modernista, Biblioteca Breve, Lisboa
Essas “várias figuras irreais”, a que Pessoa confere realidade, assumem, através da imaginação do poeta,
uma identidade construída com padrões de verosimilhança.
Alberto Caeiro nasce, em Lisboa, em 1889 e morre tuberculoso em 1915, vivendo a maior parte da sua vida
no campo. Apresenta estatura média e um aspecto frágil, louro sem cor, cara rapada e olhos azuis. Não tem
profissão, apenas fez a instrução primária; fica órfão de pais muito jovem e vive com uma velha tia-avó, de
pequenos rendimentos.
Álvaro de Campos nasce em Tavira, a 15 de Outubro de 1890, à 1:30 da tarde. Branco e moreno, de cara
rapada e cabelo liso com risca ao lado, usa monóculo e faz lembrar um judeu português. É alto (1, 75 m),
magro, um pouco curvado. Forma-se em Engenharia Naval, em Glasgow, tem um percurso cosmopolita –
Londres, Escócia, Oriente – frequenta os melhores hotéis e conduz um chevrolet.
Ricardo Reis nasce em 1887, no Porto, é educado num colégio de jesuítas, recebendo uma educação
latinista e tornando-se, por autodidatismo, um amante da cultura helénica. É mais baixo, mais forte e mais
seco que Caeiro, e, tal como ele, de cara rapada. Forma-se em Medicina e exila-se voluntariamente no
Brasil, a partir de 1919, por ser monárquico.
Paralelamente a estas diferenças de índole física e psicossocial, os heterónimos pessoanos distinguem-se
ainda por uma cosmovisão e uma linguagem poética próprias, embora a figura de Caeiro se imponha como
referência recorrente para Ricardo Reis e Álvaro de Campos, na mesma linha de pensamento de Pessoa
ortónimo que o apresentara como o “mestre”.
Os textos de Ricardo Reis mantêm o equilíbrio próprio do espírito clássico, conseguido por uma engenhosa
harmonia entre o epicurismo e o estoicismo. Diferente de Caeiro, embora o considere seu Mestre e lhe
“inveje” a sua serenidade, a sua poesia é toda ela cerebral – com ele aprendemos a viver como se cada
instante fosse o último, recusando compromissos afetivos e sociais, para que nada perturbe a nossa
serenidade e possamos viver sem dor. É a adoção da filosofia epicurista que não renuncia ao prazer, mas
que aconselha serenidade, uma certa indiferença, aproximando-se de um estado de ataraxia.
Reis aprende com os antigos que a nossa vida não é nada, porque nada fazemos que sempre dure. Tudo é
efémero e a própria vida é um momentâneo adiar da morte. Trata-se de uma visão niilista do mundo e do
homem, mas que não gera revolta, nem angústia. Reis aceita pacificamente esta condição humana,
reconhecendo o que ela tem de limitador e de fatalista – Porque só na ilusão da liberdade/ A liberdade existe.
Só resta, pois, abdicar, “não ter nada nas mãos”, chegar à morte de mãos vazias, para se possuir a si
próprio. A vida é, pois para Reis, uma viagem. São várias as incursões na mitologia clássica que denunciam
que a vida é um constante caminhar, um fluir inevitável para um fim também ele inevitável: as Parcas, o rio
Estige, o barqueiro Caronte, o Averno são referências constantes nos seus versos. Paralelamente, metáforas
como “rio”, “decurso”, “fuga” são frequentes e traduzem esse inevitável fluir da vida até ao “encontro fatal”.
Os textos de Campos reconstituem o percurso poético do engenheiro seduzido, sucessivamente, pelo ópio
(fase decadentista), pelo delírio futurista (fase futurista) para, por fim, soçobrar no tédio e no desânimo (fase
abúlica / intimista). Afirmando-se, inicialmente entediado da vida, muito próximo de Sá-Carneiro, a quem
dedica “Opiário” (poema decadente, no dizer de Jacinto do Prado Coelho), recorrendo ao ópio como a um
remédio, transforma-se num profeta da era industrial, da violência da vida moderna. Curiosamente este
segundo Campos surge antes do primeiro. É o próprio Pessoa que confessa a Adolfo Casais Monteiro ter
sentido necessidade de criar um Campos anterior ao das odes, um Campos que ainda não conhecera
Caeiro. O Campos da era industrial quer viver de forma extremista, de modo a “ sentir tudo de todas as
maneiras”, sendo essa “a melhor maneira de viajar”. Todos os seus poemas contêm experiências itinerantes,
não fosse Campos um engenheiro naval. É o mais vanguardista dos heterónimos, o mais indisciplinado
também. Os seus poemas excessivamente longos exprimem de forma torrencial e desordenada um turbilhão
de emoções variadas. Por isso, o que Pessoa ortónimo não grita, não exprime, fá-lo Campos, numa explosão
de injúrias, gritos, invetivas e exclamações que ecoam nas suas odes – Triunfal e Marítima, publicadas na
revista Orpheu.
A Ode Triunfal é o elogio explosivo e excessivo da civilização tecnológica. E o mais paradoxal desta
transformação é que, segundo Pessoa, Campos passa da fase decadentista para a futurista, por influência
de Caeiro e pelo fascínio da sensação. Só que enquanto Caeiro sente de forma plácida e serena, Campos
sente de forma excessiva e conturbada.
A última etapa do percurso de Campos torna-o “irmão gémeo” de Pessoa. Em poemas como Lisbon
Revisited ou Aniversário, Campos é aquele, que dominado pelo pensamento, é incapaz de sentir;
experimenta o tédio existencial e olha a infância como tempo de felicidade e paraíso para sempre perdidos –
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, / Eu era feliz e ninguém estava morto. Mas o poema mais
emblemático é Tabacaria, ao revelar o fracasso existencial de um “eu” dividido, a quem falta energia para
concretizar o sonho, experimentando um pungente sentimento de estranheza que “pesa como uma
condenação”. É impossível não reconhecer afinidades entre o ortónimo e este Álvaro de Campos: as
experiências de viagem e de educação no estrangeiro, nomeadamente. Foram experiências intensas,
difíceis, abafadas, para um Fernando Pessoa menino que, arrancado da sua Pátria, se vê fazer parte de uma
nova família, num novo país, com uma cultura e língua igualmente novas.
Campos expressa então o que Pessoa não conseguiu confessar, mas indo muito mais além, tornando-se
excessivamente alguém que está sempre a partir e a chegar, a ficar, quer no real, quer no imaginário, e
afirmando-se “Estrangeiro aqui e em toda a parte” (Lisbon Revisited II).
Auxília Ramos e Zaida Braga, in “Poesias – Ortónimo”, Coleção Mundo das Letras, Porto Editora
2
SÍNTESES
ALBERTO CAEIRO
RICARDO REIS
3
ÁLVARO DE CAMPOS
Coleção Resumos, Porto Editora – Criação intelectual, Auxília Ramos e Zaida Braga