You are on page 1of 1130

Nana Simons

2º Edição – 2020

Copyright © 2020 Nana Simons


Todos os direitos reservados.

SOLDADO DE GELO
Revisão: Lidiane Mastello
Capa: Murilo Guerra
Diagramação: April Kroes

CAVALHEIRO DAS SOMBRAS


Revisão: Lidiane Mastello
Capa: Ellen Scofield
Diagramação: April Kroes
SOLDADO DE GELO - LIVRO 1
Dedicatória
Nota da autora
Aviso
Mini glossário
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Bônus
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Epílogo
Agradecimentos
CAVALHEIRO DAS SOMBRAS - LIVRO 2

Nota da autora
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Epílogo
Agradecimentos
Para todos que tem uma alma sombria, que meu Demeron quebre seu coração
e que Onira te faça ver através dos pesadelos; Nem os piores sonhos devem
nos impedir de continuar respirando.
Olá, leitora e leitor.
Obrigada por dar uma chance a esse livro, mas antes de começar a ler,
eu recomendo fortemente que você leia os avisos com muita atenção e sem
pular nenhuma palavra. Se decidir seguir em frente, aproveite a leitura e
sinta-se livre para deixar sua avaliação, seja 1 ou 5 estrelas, eu gosto de ler
todas elas.
Se esse livro te causar revolta, indignação, lágrimas e no fim... suspiros
com a redenção, então minha missão estará cumprida.
Grande beijo, Nana Simons
Lucca DeRossi (O Monstro em Mim – Série no Berço da máfia Livro 1)
Luigi DeRossi (O Monstro Rendido – Série no Berço da máfia Livro 2)
Dante DeRossi (O Monstro em Guerra – Série no Berço da máfia Livro 3)
Juan Carlo Herrera (O Governador – Livro único)
Aya Maria Herrera (O Governador)
Este romance é uma ficção. Porém assuntos e temas abordados existem
e foram estudados para a construção do livro.
Romance dark;gótico;sombrio: subgênero literário do romantismo,
associado a temas polêmicos e aborda temas pesados. Está ligado não apenas
ao romance romântico, mas também a fascinação com o irracional, o
demoníaco e o grotesco.
Neste livro, é equivocado procurar mocinhos perfeitos, românticos e de
arrancar suspiros de amor. Neste livro, você encontrará um antagonista. Ele é
um anti-herói.
O livro contém uma linguagem adulta e apropriada para maiores de 18
anos, contém descrições de sexo. Situações de abusos físicos e psicológicos.
Torturas e descrições de rituais. Essas situações não são romantizadas.
A autora não apoia nenhuma das práticas descritas. A opinião da autora
sobre as religiões citadas não está presente no livro.
Leia com a mente aberta.
Kambarys – Rede de tráfico de pessoas, usadas como igrejas onde a
seita realiza rituais de sacrifício e fazem uso das escravas sexuais.
Mestre – Denominação dos homens que compram mulheres, ou ganham
o direito de criar os filhos de suas escravas para treiná-los a servir.
Quarto Reich – Termo utilizado para descrever um futuro teórico da
história alemã - um sucessor do Terceiro Reich. Nas teorias da conspiração, o
quarto Reich seria levantado como sucessor de Adolf Hitler na Alemanha
nazista.
Kings — Chefes do crime de países que se reúnem para tomar decisões
a respeito de atividades que operam juntos. Itália, Alemanha, Rússia e
México.
High wizzard – Na tradução “Sumo-sacerdote” é o título dado aos
homens de alta posição dentro das seitas, eles realizam magia negra para o
grupo.
Frigga – Deusa-Mãe na mitologia nórdica. Esposa de Odin e madrasta
de Thor e mãe adotiva de Loki é a deusa da fertilidade, do amor e da união. É
também a protetora da família, das mães e das donas-de-casa, e símbolo da
doçura.
Freya – Freya é a Deusa do amor na mitologia nórdica, mas também
está associada ao sexo, luxúria, beleza, feitiçaria, fertilidade, ouro, guerra e
morte.
Simbologia da LIGA: Pedras preciosas que determinam a hierarquia
dentro da organização. Sendo Esmeralda, Cristal, Safira, Rubi e a mais alta,
Diamante.
“O momento em que você terá que se erguer
Acima dos melhores e provar a si mesmo
Que seu espírito nunca morre”
IMAGINE DRAGONS, WARRIORS
TRÊS ANOS ANTES

Havia dois tipos de homens que eu gostava de completar minhas


missões levando a óbito:
Homens que cometiam crimes contra a humanidade;
Homens que cometiam crimes contra o meu país.
Mudié Abramsen era um homem que eu queria matar, mas ele não se
encaixava em nenhuma dessas duas espécies. Eu, na verdade, não sabia
como classificá-lo até então.
— É pelo bem maior — disse ele, sorrindo como se eu fosse seu amigo.
Eu assenti a cada uma de suas palavras, concordando como um
robô. Mudié era um dos gerentes do lugar, com quem eu vinha “trabalhando”
pelos últimos cinco meses. Permaneci em silêncio após concordar com sua
explicação sobre o porquê fazíamos o que fazíamos. Bebendo
minha vodka Iordanov russa, enquanto observava a cena a minha frente. A
grande sala subterrânea ficava a vários metros abaixo da água, numa ilha
paradisíaca em Oslo, Noruega. A fila de meninas nuas ajoelhadas parecia não
ter fim, e enquanto cada uma implorava por sua dose da heroína mais pura do
Afeganistão, as que recebiam iam sendo distribuídas para os homens bebendo
e falando ao redor.
— É claro, tudo pelo o bem maior — respondi. — De onde elas vêm?
Ele riu e cruzou os braços, orgulhoso em proporcionar aquele tipo de
diversão doente para os homens ricos que pagavam pela privacidade de seus
jogos de horror.
— De todos os lugares do mundo. O chefe gosta de manter a variedade.
— Ele parece um homem inteligente — falei. — Estou ansioso para
conhecê-lo.
— E você vai. Tem se mostrado fiel e muito rentável tanto aqui, quanto
nas unidades mundiais da Kambarys. Ele virá hoje e você vai ser apresentado
como um dos noviços.
— E é só isso? — perguntei, brincando com a bebida no copo.
— Passará pelo ritual, é claro.
— Ritual? — Style Tieko, meu parceiro em diversas missões, perguntou
ao meu lado. Eu quis jogar meu cotovelo em sua costela a fim de avisá-lo
para prestar atenção em cada palavra que saía de sua boca, mas os olhos
atentos de Mudié estavam em nós a todo o momento.
— É claro. Você vai escolher uma dessas meninas e fodê-la enquanto
entoa os cantos lituanos Illuminati. Deve tirar sangue delas com qualquer
objeto de sua escolha enquanto faz isso, e quando derramar seu sêmen, deve
tirar a vida dela.
Eu já tinha ouvido sobre os rituais que a Kambarys realizava, por isso,
não estava chocado. Não mais. A repulsa passou por mim interiormente
apenas por pensar no que cada um daqueles homens fazia, incluindo esse
ritual, mas mantive minha feição neutra, sem demonstrar nada. Fui treinado
para não reagir, não sentir e não mostrar quando estava em missão.
Tieko ficou tenso ao meu lado, mas não expressou nada além
disso. Mudié o encarou por mais alguns segundos, como se quisesse ter
certeza de nosso sangue frio, e voltou sua atenção às meninas a nossa frente.
— Vocês vão escolher uma garota? Talvez duas ou três?
— Eu gosto das minhas mulheres cientes quando estou dentro delas.
— Tieko murmurou.
Mudié o encarou com olhos estreitos.
— Nossos irmãos não gostam de julgamentos de noviços.
Eu bati no peito de Tieko e ri. Aos olhos de Mudié, deveria parecer uma
camaradagem, mas meu parceiro sabia que era um aviso claro para manter a
boca fechada e guardar suas opiniões para si mesmo.
— O que meu amigo quer dizer — falei a Mudié. — É que o melhor
jeito de aplicar a dor é quando nossas vítimas estão sentindo cada gota do
sangue tirado de seus corpos. Eu vou escolher uma garota mais tarde. Gosto
de observar primeiro.
Os olhos de Mudié brilharam de satisfação e um sorriso perverso cruzou
seus lábios. Ele me estendeu a mão e deu um tapa nas costas.
— Você será um acréscimo valioso para nossa Sociedade.
Eu assenti e sorri minimamente antes de ele sair.
— Porra, vamos simplesmente parar isso! — disse Tieko, e sua voz
demonstrava toda a repulsa pelas cenas a nossa frente.
— Cale a boca e foque na missão.
— Konstantinova, isso aqui é o inferno na Terra! Você não vai foder a
porra de uma menina drogada e matá-la, certo?
— A Liga enviará alguém para ajudá-las. Esse não é nosso trabalho.
— Você está me fodendo? Quem sabe se essas meninas vão sobreviver
até lá. Eu vou meter um tiro na cabeça desse cara e dar o fora daqui levando
todas elas comigo.
Perdendo a paciência, mas não o controle, o arrastei discretamente para
um corredor escuro em direção à saída do salão e ergui minha mão ao seu
pescoço, o empurrando contra a parede, então o prendi com meus olhos, sem
demonstrar qualquer emoção.
— Você acha que é o único que tem uma arma aqui? Esses homens têm
dinheiro, muito dinheiro. Há políticos, aristocratas e homens de sangue da
realeza aqui dentro. Você acha que querem deixar vazar o que fazem no
tempo livre?
— Eu não me importo com quem eles sejam. Essas garotas estão
chapadas até a última fibra do cérebro e mal podem ficar de pé!
— Eu sei, porra. Esse não é o primeiro círculo de tráfico humano que eu
entro e não será o último, mas a nossa missão aqui é apenas uma: seguir o
chefe e dar um tiro limpo, sem rastros, sem suspeitas, então saímos. Se você
sair do foco da missão e der um tiro, será um banho de sangue. Essas garotas
vão pagar com suas vidas e as chances de nós sairmos vivos daqui viram
nulas.
Ele me encarou por longos minutos, então fechou os olhos e assentiu.
Quando o soltei, ele deu um suspiro quebrado.
— Essa merda é fodida, porra. Tão fodida!
— Sim, é. — Dei dois passos para voltar ao salão, mas ele ainda
continuava escorado na parede, encarando o chão. — Agente Tieko,
concentre-se na missão.
— Você tem certeza de que a Liga enviará alguém?
— Protocolo 3.
— Sim, sim. — Ele suspirou. — Eu sei. Foco na missão. Eu saudei
Hitler como cada um aqui dentro, quero justiça sobre essa merda.
Fechei o botão do meu terno e dei um pequeno aceno para voltarmos
para lá. Eu odiava estar preso àquelas roupas de três peças que impediam
meus movimentos. Aquilo era com meu irmão, eu preferia algo mais rústico.
Mas, para me infiltrar na rede, precisava parecer como um deles.
— A Liga sabe o que acontece aqui, temos que pensar que a ajuda está
vindo. Até onde sabemos, nada impede que haja agora mesmo alguma equipe
em missão de resgate.
Eu dizia a verdade. Os protocolos de segurança impediam que uma
equipe ficasse ciente de outras missões, toda a confidencialidade garantia que
tivéssemos sucesso sem interferir em qualquer outro trabalho. Por isso, não
importava o que acontecia ao nosso redor, nosso objetivo era assassinar o
chefe de Oslo, então até que outra cabeça assumisse o lugar, aquelas garotas
podiam ser resgatadas.
— Certo. — Ele concordou e voltamos para o centro.
Eu já tinha estado em lugares fodidos, mas Kambarys era um dos que
mais me surpreendeu. Meninas penduradas no teto, jogadas no chão,
compartilhamentos macabros entre vários homens, cenas que me faziam
querer vomitar. Eu não podia fazer justiça com as próprias mãos. Eram mais
de 100 homens contra 2, nós não tínhamos nenhuma chance.
O cheiro de medo, desespero e sexo, inflamava meu nariz, me dava dor
de cabeça, me fazia querer acelerar as coisas e cumprir a missão para estar
logo longe dali. Longe dos gritos de dor daquelas garotas e da felicidade dos
homens do diabo de ter prazer no sofrimento delas.
As atividades sexuais duraram mais duas horas. Tieko e eu nos
mantivemos de pé num canto bebendo e observando tudo como se
estivéssemos apreciando, ansiosos para começar nossa vez.
Foi quando eu percebi que algo mudou, a energia do lugar se tornou
mais pesada e os ânimos dos presentes ficaram mais sombrios. Eles tinham
sede de sangue inocente. E foi só olhar para a entrada do salão que percebi o
porquê.
Kazel Maraba havia acabado de chegar. Um dos chefes
das Kambarys mundiais e cabeça do tráfico humano que o FBI, a CIA e nem
a NSA conseguiram uma puta foto. Mas, a diferença entre eles e a Liga, é que
nós nunca seguíamos as regras e não tínhamos medo de burlar leis para
cumprir nossos propósitos.
Era o que fazíamos. O que éramos.
Recrutados para sermos espiões e assassinos profissionais.
No momento em que a missão foi dada para mim, Kazel Maraba deixou
de ter uma chance.
Os homens estavam praticamente urrando, extasiados com a presença
de Kazel. Eu só queria meter uma bala no cérebro dele de uma vez. Passaram
vários minutos de assovios, gritos e palmas, até que Mudié veio à frente e
levantou as mãos, sinalizando a todos para fazer silêncio. Eu sabia o que
vinha a seguir e não havia uma única parte de mim que não se sentia enjoada
ao saber que eu tinha que fazer o gesto.
Kazel levantou o braço direito e todos seguiram.
— Heil, Heil, Heil! — Sua voz ecoou pelas paredes antigas como um
cântico, e todos repetimos as três chamadas.
— Heil, Heil, Heil!
Eu tinha sangue alemão. Nasci na minha amada Frankfurt, e não havia
nada que eu odiasse mais do que a mancha que o nazismo deixou em nossa
nação. Mas, alguns daqueles homens eram seguidores férreos dos
pensamentos de Hitler, o que fazia de mim, ali dentro, um adorador dele
também.
— Meus irmãos! — Continuou ele. — Hoje celebramos a vida, e para
isso celebramos com sangue!
Os homens gritaram, erguendo os braços em comemoração.
Kazel gargalhou, feliz pela posição em que se encontrava. Para aqueles
homens ele era um rei.
Eu era um caçador sem compaixão, e para mim ele era apenas a Branca
de Neve. Minha mão alcançou a arma no coldre e senti os dedos de Tieko em
meu pulso, sinal de que da mesma forma que eu estava atento a ele, ele estava
em mim.
As palavras de Kazel começaram a soar como borrões, eu começava a
perder o foco, tamanha minha fúria. Foi quando ele olhou para trás e estendeu
a mão, alcançando de um de seus homens uma figura pequena e delicada,
vestida numa túnica branca.
A mulher tinha longos cabelos escuros que passavam de sua cintura e
manteve os olhos baixos, o queixo quase encostado no peito. Ela era pequena,
mas pelas curvas do corpo, percebi que não deveria ser tão jovem como as
outras garotas ao redor, e a forma como Kazel a mantinha perto, segurando-a
firmemente e não deixando os olhos muito afastados dela, eu sabia que ele
devia tê-la há algum tempo. Me perguntei desde quando a pequena mulher
frágil estaria sob as algemas de Kazel.
— Irmãos, eu trouxe minha mistress para, em celebração dessa data
única, dividi-la com vocês. — Os homens os saudaram em êxtase e alguns
gritavam sua excitação.
A mulher ergueu a cabeça como se as palavras do homem tivessem
disparado algum botão dentro dela, e quando pude vê-la me impressionei
com a beleza de seu rosto. Não havia surpresas do motivo pelo qual Kazel a
mantinha tão perto. O pequeno nariz arrebitado combinava com o queixo fino
e os lábios cheios, que tinham, inclusive, um corte no canto superior direito.
Mas o que me impressionou foram os olhos. Eles tinham uma cor âmbar,
quase amarelo. Mas, as olheiras profundas destacavam quão maltratada ela
era, e a falta de brilho nos olhos bonitos deixava claro que não importava
quanto tempo esteve com Kazel, foi o suficiente para tirar qualquer esperança
daquele olhar.
Ela parecia horrorizada, mas ao mesmo tempo, conformada. Como se
tivesse aceitado que aquela era sua vida e destino.
Eu queria chegar até ela e dizer que aquilo acabaria em breve, que a
tortura ia parar, que os braços do monstro não a envolveriam nunca mais.
— Mistress, ajoelhe-se e me dê prazer com sua boca. — Ele disse num
tom calmo, mas eu conhecia a ameaça por trás de uma voz, e aquela
definitivamente era uma.
Condicionada através do medo, assustada demais para fazer algo além
do que lhe foi ordenado, a mulher de olhos amarelos abaixou a cabeça
novamente.
— Sim, mestre.
Eu não tive forças para assistir. Quando ela se ajoelhou à frente do
homem e levou as mãos para a calça dele, olhei para Tieko e dei um aceno
simples, deixando-o saber que mesmo que o sinal ainda não tivesse sido
dado, eu estava prestes a completar a missão.
O sangue fervia em minhas veias, pulsava com a adrenalina e a
satisfação de ser aquele que colocaria uma bala na cabeça do filho da puta.
Comecei a caminhar para trás devagar e desviei de todos que poderiam me
chamar ou causar algum problema que poderia me impedir de chegar até a
bolsa onde meu rifle estava esperando. Subi as escadas do corredor sul e fiz
meu caminho até o ponto estratégico para completar a missão: assassinar o
ditador que controlava a Kambarys de Oslo.
Vi a mala preta e ajoelhei, pegando-a e tirando meu precioso, separado
apenas para as melhores missões. Aquelas que me dariam mais gosto de
realizar.
Essa era a minha vida. Isso é o que eu fazia. Um espião alemão
destinado a seguir toda e qualquer ordem que A Liga mandasse. Fossem
serviços do Governo ou missões de ameaça à humanidade, como a que eu
e Tieko estávamos naquele momento.
Um sorriso lento se espalhou pelos meus lábios assim que Kazel estava
na mira. Um único tiro que faria um buraco fatal em sua cabeça. Mas, quando
tomei a segunda respiração de alívio, um barulho apitou no meu ouvido. Eu
sabia o que aquilo significava e não havia nenhuma maneira de obedecer ao
comando. A base da Liga estava chamando. Eles tinham acesso a uma câmera
que eu instalei no grande salão e podiam me ver sair, podiam ver cada
movimento que fiz, desde que não havia me escondido nas sombras. Então,
se estavam chamando, era um sinal ruim.
Fechando os olhos, pedi silenciosamente que as ordens não fossem o
que eu temia.
— Agente Konstantinova, abortar missão. Repetindo, abortar missão.
— O quê? — perguntei em choque, meu temor se confirmando.
— Protocolo 1, abortar missão.
— Não se atreva, porra! — rosnei, meu dedo quase pressionando o
gatilho.
“É pelo bem maior.”
As palavras rodopiavam em minha mente como um mantra. Um mantra
que o fodido filho da puta colocou lá. O bem maior nunca poderia ser a
tortura de meninas jovens e inocentes, roubando-as de suas vidas e as
colocando numa escuridão de drogas e dor. Kazel Maraba tinha que pagar.
Assim como Mudié, assim como todos os que escondiam e habitavam por
vontade própria as Kambarys ao redor do mundo.
— Agente, suas ações serão tomadas como um ato rebelde e implicará
consequências.
— Foda-se — sussurrei. — Ele é a missão. Por que diabos devo
abortar?
— Siga as ordens. Abortar missão. — A transmissão foi encerrada e eu
olhei através da minha mira, para o homem que merecia, mais do que
ninguém no mundo, a bala que atravessaria sua cabeça.
Tieko estava no meio da multidão, olhava ansiosamente na mesma
direção que eu, aguardando para ver a queda do monstro. Porra.
Porra. Porra.
Não deixe suas emoções dominarem seu juízo.
A voz do meu pai soou na minha cabeça como se ele estivesse ao meu
lado, e como se fossem suas mãos guiando-me a seguir as ordens. Eu me
afastei do rifle, tirando o dedo do gatilho e deixando que Kazel continuasse a
viver. Olhei horrorizado quando ele continuou se afundando no corpo da
pequena mulher a sua frente, passando então a açoitá-la nas costas, rasgando
o pano de seu longo vestido de seda branca com cada batida e marcando a
pele clara.
Provavelmente contabilizando o tempo, Tieko olhou para cima, direto
para mim. Eu não podia acreditar naquela porra.
Me aproximei de Tieko sem ter coragem de olhar em seus olhos e acenei
para a saída do salão.
— Vamos.
— O quê? — Franziu a testa. — Nós não terminamos. — Ele olhou para
seu relógio de pulso discretamente e se aproximou mais de mim. — Você
está atrasado. Qual o problema?
— Protocolo 1. Missão cancelada. Nós temos que sair.
Os olhos concentrados de Tieko arregalaram em choque, engolindo em
seco ele olhou ao redor e pela sua expressão, eu sabia que suas emoções
estavam prestes a vir à tona.
Eu rapidamente o tirei de lá, tremendo, odiando cada minuto que fiz
meu caminho para a superfície.
Quando emergimos para a costa da ilha, tiramos nossos equipamentos e
comecei a caminhar para a areia, em direção ao nosso transporte. Não havia
nenhum segurança na praia ou alojado em algum lugar para guardar
a Kambarys de Oslo. Jogada inteligente, afinal, para que guardar algo que
supostamente não existe? Quem imaginaria que abaixo daquela ilha onde as
pessoas iam para se divertir e relaxar, existia um subterrâneo de escravidão
sexual?
— Eu vou fazer a chamada para informar que a missão foi cumprida.
— Certo. Use o telefone à leste da costa. Eu vou para o ponto de
encontro.
— Certo. — Ele confirmou e começamos a nos separar, depois de
alguns passos ele me chamou e virei para encará-lo. — Você acha que
podemos perguntar sobre o resgate das garotas?
Quando fui responder, um estrondo soou atrás de nós, cortando minhas
palavras no ar e nos arremessando vários metros à frente. Uma onda nos
cobriu antes de se afastar. Quando abri os olhos, com uma tontura infernal,
vários pontos do meu corpo doíam e gotas de sangue pingaram pelos meus
olhos. Uma pedra do lado da minha cabeça me mostrava que provavelmente
bati com a queda.
Com meus ouvidos ainda zumbindo, ergui a cabeça e olhei para a água,
a fumaça que subia sem parar e o fogo aumentando não deixavam dúvidas
sobre o que havia acabado de acontecer.
Apertei o transmissor em meu ouvido, ligando para chamar a base, mas
meus olhos estavam fixos na água. Se fechasse os olhos, podia ver as mais de
cinquenta meninas inocentes boiando lado a lado, suas camisolas brancas
idênticas soltas no mar e os cabelos igualmente compridos nadando em meio
àquela imensidão azul. Uma dor como eu não sentia há muito tempo
ameaçou crescer no meu peito, fazendo-me esfregar a carne numa tentativa
inútil de afastá-la.
Mas eu sabia que nada mudaria aquilo. O tempo era fixo e não havia
volta para o que havia acabado de acontecer. Eu me segurei, levantando e
sabendo que precisava conferir Style, ainda deitado na areia, enquanto meus
olhos ainda estavam presos no fogo que a explosão do subterrâneo causou.
Mas eu não podia me mover. Não podia tirar meus olhos do assassinato
em massa que aconteceu diante de mim naquele paraíso tropical. Eu sabia
que tinha acabado de deixar mais uma parte de mim para trás. Com o mar, o
céu azul que de repente não parecia mais tão bonito, e com a minha recusa
em salvá-las mais cedo.
Todas as garotas mortas. Todas que eu deixei para trás.
A mulher dos olhos amarelos.
Tudo pelas malditas ordens.
— Porra, porra, porra. — Soltei um murmúrio quebrado, me arrastando
até Style.
O virei, batendo em seu rosto e chamando-o sem cansar. Olhei para o
mar novamente, sabendo que mesmo a região sendo parada, em breve a
fumaça chamaria atenção.
Quando voltei meus olhos para Style, não tive tempo de reagir. Seus
olhos puxados estavam fixos em mim, frios como eu nunca vi meu parceiro
antes, e no segundo seguinte uma seringa foi enfiada em meu pescoço, suas
últimas palavras levando embora o último resquício de humanidade que havia
em mim.
— Sinto muito, Demeron.
“O que você quer de mim?
Por que não foge de mim?
O que está querendo saber?
O que você já sabe?
Por que não está com medo de mim?
Por que você se importa?”
BILLIE EILISH, BURY A FRIEND
DIAS ATUAIS - BERLIM, ALEMANHA

— Style? — Eu o chamei. Minha voz tremia assim como minhas mãos. A


parede e o chão estavam frios contra minhas pernas e costas, mas eu
precisava ficar segura até meu irmão mais velho decidir o que fazer.
— Tudo bem. — Seus olhos calmos desviaram de mim para o lado, para
onde ele não queria que eu olhasse. — Eu estou com você, Oni. Sempre. Mas,
continue olhando para mim, irmãzinha. Pode fazer isso? Pode olhar para
mim não importa o que aconteça?
— Tudo bem — sussurrei, minha testa franzida.
— Não olhe para o chão, Oni. Não olhe para o lado. Apenas para mim.
Suas mãos seguravam meu rosto, certificando-se de que eu faria o que
ele pediu e olharia só para ele.
— Eu posso me limpar agora?
Ele segurou minha mão e tirou a grande peça de metal que meus dedos
pequenos mal aguentavam segurar. O peso fez um baque no chão quando ele
jogou longe. Eu queria ver, mas fiz o que pediu e continuei olhando para
ele.
Eu nunca ia deixar de olhar para ele.
— Pronto, agora você vai fechar os olhos e se segurar em mim. Nós
estaremos fora daqui em um minuto. Tudo bem? — Eu não respondi,
começando a ficar assustada com o molhado em minhas mãos e meus pés.
Style me chacoalhou — Oni!
— Style? — perguntei baixinho, mas ele ouviu. Ele sempre me ouvia. —
De quem é todo esse sangue?
Acordei ofegante, suando e assustada. Olhando ao redor do quarto,
deixei meus olhos se acostumarem a ausência de luz antes de sair da cama,
respirando profundamente a cada passo dado. Sempre que esquecia meu
calmante acontecia isso. Os malditos pesadelos me pegavam. Memórias ou
lembranças de algo que eu nem sabia o que significava.
Cambaleando até o banheiro, liguei o chuveiro no máximo e deixei a
água refrescar meu corpo, limpando o suor e acalmando meus pensamentos.
A luz do banheiro permanecia apagada, só a lâmpada fraca do corredor
iluminava meu caminho.
Eu preferia assim. O dia poderia ser noite todas as horas. Eu me entendia
melhor com a escuridão.
Colocando um roupão, constatei que ainda não passava das quatro, então
voltei para a cama e coloquei o despertador para tocar a cada dez minutos.
Me impedir de dormir, me impediria de sonhar outra vez.

— Vou a uma filial da Calvin Klein e não estou sabendo? — Eu


perguntei a minha assistente enquanto ela pendurava as fotos no quadro do
escritório.
— Quase isso. Eu juro que todas as vezes que pus meus olhos nesses
homens, eles estavam perto de caras ainda mais gatos. Se meu irmão não
fosse um psicopata total, eu sairia com todos. — Ela respondeu, pendurando
a última.
Eu tinha que concordar com seu comentário ácido sobre Kurton, mas
mudei de assunto, não querendo azedar meu humor ao falar dele.
— Certo. Então temos o pai — apontei para o mais velho. — E os
filhos?
— Dois filhos e um sobrinho.
— Ok — murmurei. — Conte-me sobre eles.
Enquanto Slom me apresentava aos nossos novos clientes, eu tentava
guardar o máximo de informação e decorava itens importantes. Como os
nomes e coisas significativas que já tivessem feito. Não eram os primeiros
magnatas por quem eu era contratada e a primeira coisa que aprendi sobre
eles, foi que o ego precisava ser massageado. Não me preocupava em fazer
isso, mas da forma como eles geralmente elogiavam meu trabalho, eu gostava
de poder dizer algo bom sobre o deles também.
Os Konstantinovas eram meus primeiros clientes alemães, e
inicialmente, quando a secretária de Stark, o dono da Konstantine Business,
me ligou para marcar uma reunião, eu não imaginava o porquê. Eu conhecia
alguns dos mais renomados artistas plásticos mundiais e aos poucos, me
inseri na lista dos melhores artistas plásticos. Eu amava pintar, mas havia
quem dissesse que minhas esculturas eram como poemas. As vezes pareciam
mais uma sensação do que um objeto. Por isso eles me queriam. Mesmo que
em uma breve pesquisa, descobri que nunca foram até um artista
pessoalmente para encomendar um trabalho.
Na minha posição, eu estava honrada.
— Stark e os filhos, Regnar e Demeron, são de Frankfurt. Siriu, o
sobrinho, é de Berlim.
— Ah, Berlim... — suspirei sonhadoramente e Slom me imitou.
Compartilhávamos a maioria das mesmas paixões.
Capitais da arte sendo uma delas.
— Stark é um magnata, empresário, e investe pesado em filantropia.
Tem três bacharelados, licenciatura... Caramba! — Ela pausou. — Ele
tem até doutorado, mas não consegui mais informações sobre o que. É um ex-
agente do governo, mas também não sei o que ele fez e tem várias...
— Slom. — A cortei — Acelere e vá para os pontos importantes, não
vou interrogar o homem.
— Sim, certo, me empolguei. Resumindo, ele é bom em tudo o que faz.
Costuma comprar arte em leilões, você é de fato, a primeira que ele contrata
para um trabalho exclusivo.
— Isso é tão incrível. — Dei um pulinho, batendo palmas — Parece que
estou na faculdade prestes a apresentar minha conclusão do curso outra vez.
Vamos lá, Regnar agora.
— Regnar é um dos maiores especialistas em joias do mundo, o
conhecimento e o alto QI faz dele um cara constantemente envolvido na
mídia. Ele está sempre em entrevistas, programas de empreendedorismo e até
mesmo de fofocas. Ele tem carisma, a mídia gosta dele. É o único que achei
fotos variadas, inclusive. É também o único com uma aliança no dedo, e pelo
que eu saiba, sua esposa não compartilha da mesma simpatia que ele.
— O que sabe sobre ela?
— Kaladia, bem, eu a encontrei uma vez num evento que fui com Kurt.
— Slom sentou-se na beira da mesa. — Hm... deixe-me ver por onde
começar. — Slom levantou as duas mãos e começou a levantar dedo por
dedo, a cada palavra. — Arrogante, mal humorada, se acha a dona do espaço
que está, foi mal educada com cada garçom que a atendeu, e parece meio
obsessiva, não tirava os olhos do marido.
— E ele?
— Parecia um louco apaixonado. E muito educado. Sinceramente, não
sei como os dois funcionam juntos.
— E Siriu? É um belo nome.
— Não é só o nome. Se eu cometesse um crime, não me importaria de
ser julgada por ele. Ele é chamado de Senhor X nos tribunais. O consideram
um dos juízes mais implacáveis do país. Claro que isso o torna respeitado e
temido, eu já tinha ouvido falar muito dele, inclusive já o tinha visto em
alguns eventos, mas nunca houve oportunidade ou motivo para nos
apresentar. Porém, quero, muito. — Ela me olhou e juntou as mãos, como se
implorasse. — Me leve junto. Esse pode ser meu momento de olhar nos olhos
dele e conquistá-lo.
— Slom. — Repreendi, porém não segurei o riso. — E sobre Demeron?
— Sim, sobre ele. — Ela levantou um papel em branco. — Não achei
nada.
— Como não achou nada?
— Fora a foto dele com os outros e aquela de cabeça baixa, boné e
óculos escuro, o nome dele aparece associado com o de Stark, mas não
consegui nenhuma informação, nem mesmo uma data de nascimento.
— Isso é tão esquisito. Ele não tem nem Instagram?
Slom bufou.
— Não. Deve ter uma deformação no rosto e o pai usou dinheiro para
apagá-lo da rede. Vai entender os ricos.
Lhe dei um olhar cético.
— Você é rica.
— Sim — disse ela — Mas tenho Instagram e tento colocar o máximo
de mim na rede possível. Sou uma rica fácil de entender.
— Deus! Você fala tanta bobagem. — Dei risada, balançando a cabeça.
— Não consigo ter uma boa visão dele. — Eu disse, me aproximando para
tentar vê-lo melhor. Mas a única foto em que estavam todos juntos parecia
mais um retrato da monarquia. Estavam de pé, lado a lado, e a foto foi tirada
de longe. — Você não consegue nem uma foto dele sozinho?
— Tentei, mas por incrível que pareça só achei essa. É meio estranho.
— Talvez ele seja tímido.
— É, talvez. Mas acho que você vai descobrir. — Ela deu uma risadinha
e me cutucou com a ponta da caneta.
Revirando os olhos, apontei para a porta.
— Vá trabalhar. Eu tenho uma reunião para me preparar.
— Sim, chefa. — Com um sorriso, ela saiu.
Eu voltei meu olhar para a foto e a tirei do quadro, observando os quatro
homens que pareciam misteriosamente fascinantes e o mais maravilhoso de
tudo... eles queriam a mim. Minha arte, meu talento, minha marca em seu hall
de entrada.
Eu não podia imaginar o porquê.

O grande prédio alto e bem localizado parecia ainda mais refinado do


que eu tinha ouvido falar. Ao mesmo tempo que tinha um ar de antiguidade,
combinando com a arquitetura possuía alguns toques modernos, variando de
vidro para colunas bem desenhadas e janelas enormes no arranha-céu. As
fotos não faziam jus, também. Precisei tapar o olho com as mãos para
conseguir olhar até o alto sem que o sol fizesse-me lacrimejar, e ainda assim,
não consegui ver o último andar. Debaixo, parecia invadir o céu. Era
majestoso. As três portas giratórias da frente não paravam, enquanto entrava
e saía todos os tipos de gente. Homens muito elegantes e mulheres bem-
vestidas. Clientes em potencial? Sócios? Funcionários?
O taxista buzinou, me fazendo saltar e dar uns passos adiante, saindo de
sua frente. Passei as mãos pelo meu vestido vermelho, desamassando da
viagem conturbada do carro. É claro que ele não perdeu tempo em pegar um
passageiro alguns metros à frente.
Céus! Naqueles momentos eu sentia tanta falta do meu motorista.
Viagens calmas, às vezes com conversas, outras em silêncio... Alguém que
não estava tão apressado em pular de um passageiro para o outro que nem
esperava eu colocar o cinto de segurança. Meu telefone tocou e na tela
brilhava o nome dele, como se soubesse que estava vagando em meus
pensamentos.
— Mic, sério, como você faz isso? — perguntei e agradeci com um
sorriso quando um rapaz me ajudou a girar a porta para entrar no grande
prédio.
— Isso o quê?
— Tem sempre o timing perfeito. Eu acabei de chegar
na Konstantine Business.
— Sobreviveu ao táxi?
— Meio amassada, mas sim. Estou considerando não sair do ateliê até
você voltar.
— Estarei aí amanhã.
— Deixa de ser bobo, Mic. Você merece essas férias.
— Eu preciso estar aí e manter um olho em você, garota. Seu irmão não
está mais aqui, mas eu devo uma vida inteira a ele, e agora meu compromisso
é com você.
Uma pontada de tristeza me tocou ao falar sobre meu irmão, mas me
obriguei a guardá-lo de volta naquela caixinha trancada no peito, sabendo que
se começasse a remoer aquilo, não focaria no trabalho ou qualquer outra
coisa pelo resto do dia.
— De qualquer forma, fique e termine seu tempo de férias. Quando
estiver de volta vai desejar nunca ter saído daí.
— Duvido, garota. No segundo dia eu já estava entediado, caçando
insetos pelo ar para não ter que ficar à toa.
— Ah, Mic. Se soubesse como eu apreciaria estar no seu lugar...
Sua risada me fez sorrir e peguei minha identidade na bolsa, entregando
a uma das recepcionistas do largo balcão.
— Bom, vá fazer suas coisas. Mas, não se esqueça, uma ligação e eu
volto.
— Eu sei, mas descarte essa ideia. Aproveite e se divirta.
— Tchau, garota.
Mic era minha única ligação com meu irmão. Fora ele, só restava a
memória de Style. Meus pais morreram quando eu ainda era muito jovem,
e Style assumiu a responsabilidade por mim, trabalhando e cuidando das
coisas. Foi assim para tudo. Ele pagou meus estudos, minhas roupas, morou
comigo mesmo já podendo se mudar e cuidar de si mesmo, apenas para não
me deixar sozinha, e quando me formei, ele foi meu principal investidor. Meu
irmão dizia que sabia reconhecer talentos, e não tinha a menor dúvida de que
tudo o que fez por mim valeria a pena.
Eu queria que ele pudesse estar comigo para me ver realizar tudo o que
sonhei e compartilhei com ele. Queria poder agradecer por acreditar em mim
mesmo quando eu não fui capaz.
Peguei meu documento e a carteira de visitante, seguindo as instruções
para chegar ao andar que Stark Konstantinova me esperava.
Ao entrar no elevador, conferi minha aparência. Naquela manhã meu
ateliê estava parado, o telefone mal tocava, então Slom me convenceu a
deixá-la me arrumar à sua maneira. Meus longos cabelos pretos e lisos, ela
prendeu uma mechinha para cima, deixando um daqueles “franjões”. E minha
assistente tinha uma estranha obsessão pelos meus traços orientais, quase
surtando de alegria quando a deixei maquiar meus olhos. Quando ela acabou
e me deixou ver o resultado, perguntei como conseguiu deixá-los ainda mais
puxados.
O elevador apitou no andar correto e desci, instintivamente comecei a
analisar o lugar. Já vinha fazendo isso desde que o carro havia parado na
calçada, mas de dentro, podia ver com mais calma, captando quaisquer
referências sobre os gostos dos Konstantinova’s.
Mas, assim que virei a esquina, fui empurrada com brutalidade para trás,
a parede foi o que me impediu de cair. Com os olhos arregalados, assisti
quatro homens tentarem segurar alguém que lutava para se soltar dos braços
deles, aos gritos. Os funcionários se afastavam ou saíam do andar, chamando
o elevador ou indo pela escada. Eu sabia que deveria seguir o mesmo
exemplo, mas apenas fiquei ali, escorada contra a parede como se estivesse
me tornando parte dela, e assim, quem quer que fosse aquele a dar trabalho
aos seguranças, não me veria.
Um deles levantou uma arma de choque e encostou na coluna do cara,
um grito agonizante ecoou pelas paredes e pareceu tremer o piso de mármore
caro, seu corpo dobrou quando a cabeça ergueu com a dor, mas ele não caiu.
Ele finalmente quase se soltou, o choque que deveria tê-lo derrubado,
parecia só ter lhe dado mais gás. Eu ofeguei quando ele deu um passo ainda
de costas, a poucos centímetros de mim, longe do círculo dos caras, quase
fugindo. Como se estivesse se preparando para correr e virou em minha
direção.
E quando ele levantou a cabeça para mim, minha respiração foi audível.
Os quatro homens o segurando não aguentariam muito mais tempo. O
homem era forte, feroz, rosnava e os olhos sem foco pareciam enlouquecidos.
Ele parecia um animal com raiva que precisava ser contido. Ele usava uma
camisa branca que destacou os músculos enormes dos braços, que
flexionavam com cada movimento de sua rebeldia, a camisa esticando no
corpo poderosamente construído. A roupa não combinava com o lugar, a
calça de moletom e os pés descalços não eram o tipo de coisa que alguém
vestia em um império, mas naquele homem... pareceu simplesmente certo.
Perfeito.
O cabelo liso e curto era de um loiro escuro que combinava com o tom
levemente dourado de sua pele. Quando seus olhos bateram em mim, quase
perdi o ar.
Eu não pensei. Eu não me movi. Eu não respirei.
Estreitando os olhos para mim, piscou e inclinou a cabeça, como se
quisesse me observar melhor. Os dentes eram brancos e perfeitamente retos, e
uma covinha apareceu num único lado quando sua boca esticou num rugido
raivoso, combinando com a discreta fenda no queixo marcado. Os cílios
longos só o fizeram parecer mais lindo. Com sua proximidade, percebi o
quão grande realmente era. Parecia um gigante. Alto e largo, me fez sentir
pequena, delicada e... protegida.
Ele não desviou o olhar. Os olhos azuis escuros não piscaram, e aos
poucos ele foi ficando calmo em seus movimentos, menos bruto. Enquanto
nos olhávamos, a besta enfurecida me olhou e ficou manso. Ele não
pareceu nervoso ou inquieto como eu, nem de longe. Ele parecia seguro.
Como se tudo estivesse em seu lugar.
De repente, uma enorme mão segurou meu braço e cortou meu contato
com o homem a minha frente.
— Você está bem? Ele a machucou?
Eu fitei o homem que falava comigo e franzi a testa, percebendo como
era parecido com aquele que estava em surto. Ele tirou os óculos escuros e
imediatamente o reconheci. Siriu Konstantinova, o tal Senhor X.
— Nã-não. — Mal ouvi minha voz, mas pelo aceno bruto que ele deu,
soube que havia me escutado. Soltando-me, Siriu acenou para uma mulher
encostada na parede em frente à minha, que parecia em pânico.
— Leve a senhorita Tieko para a sala de reuniões. Estaremos lá em
poucos minutos.
— Sim, senhor. — A mulher assentiu, hesitando os passos até mim e
acenou com a mão, me mostrando o caminho.
— Espere. — Eu disse a Siriu. — Mas e ele?
Ele não me respondeu. Ao contrário disso, acenou novamente para a
mulher, que segurou minha mão e me levou para longe. Os olhos do homem
afastaram-se de mim e fitou Siriu, tão logo, se agitou novamente, tentando
alcançá-lo. A secretária me puxou outra vez, e assim que cruzamos o
corredor, ouvi um grito agoniado, me soltei dela e voltei atrás, ouvindo-a
praguejar enquanto me seguia.
Parei escondida e ofeguei ao ver o homem ajoelhado, com dois dos
guardas segurando-o e quase torcendo seu braço. A sua frente, Siriu passou a
mão em sua cabeça e levantou uma seringa, a enfiando em seu pescoço.
Então ajoelhou na frente dele e apoiou sua cabeça quando o enfurecido
homem perdia a consciência.
— Levem-no de volta — disse Siriu, em seu rosto nenhuma pista do que
sentia. Eu quis ir até ele e exigir que chamasse um médico, que me levasse
para ver o homem, mas antes que pudesse fazer qualquer outra coisa, a
secretária colocou a mão no meu ombro e seguiu meu olhar, engolindo em
seco.
— Pelo amor de Deus... não o contrarie! Venha comigo e deixe-me fazer
meu trabalho!
Em transe, a segui pelo longo corredor, revivendo os últimos dez
minutos como uma fita rebobinada que nunca passava dos mesmos dez
minutos.
— Quem... quem é aquele homem? — perguntei com a garganta seca.
— Demeron Konstantinova. — Ela abriu uma porta e apontou para
dentro. — Aguarde aqui. O senhor Stark vai vê-la em breve.
— Por favor, me diga...
— Não — disse ela, com os olhos acelerados fitando o corredor. — Não
me faça mais perguntas. Eu preciso do meu trabalho... e gosto da minha vida.
Deixando-me sozinha, eu agarrei minha bolsa com força contra o peito e
fechei os olhos, respirando profundamente repetidas vezes. Respirações
superficiais, pois meu coração batia feito um louco. Nunca tinha efetivamente
vivido algo tão surreal em toda a minha vida. Nunca vi ninguém surtar na
minha frente e ainda pior, agora sabendo que o homem em questão se
chamava Demeron. Só podia ser um dos filhos de Stark. Mas, o que pensar
de Siriu o dopando e não fazendo nada enquanto homens que seguiam suas
ordens tratavam seu primo com tanta brutalidade, dando a ele que nem um
animal recebia em circos.
Incapaz de continuar ali, em meio àquelas pessoas e revivendo a cena
que presenciei, tirei o salto, preparando-me para correr fora dali e abrir a
porta. A comoção parecia nunca ter acontecido e a secretária não estava em
sua mesa. Abrindo a porta da escada de emergência, saí daquele lugar.
Mas, a cada degrau descido, me sentia pior pelo que vi.
A cada passo dado para longe, eu via os olhos do homem enlouquecido.
O misterioso homem de olhos azuis sobre o qual eu não sabia nada.
"Você é um mundo distante
Em algum lugar na multidão
Em um lugar estrangeiro
Você está feliz agora?"
ELLEY DUHÉ, HAPPY NOW
Saí de casa quando amanheceu, mesmo que estivesse acordada desde
antes disso. A mochila nas costas continha roupas para caso eu precisasse sair
do ateliê, e fui caminhando. Observar as ruas, pessoas e ambientes me
inspirava. Minhas esculturas tinham a variedade que eu admirava, e por isso
elas eram tão admiradas também.
Era uma distância de mais de uma hora, mas eu precisava desse tempo
para pensar. Quando deixei de pensar no pesadelo daquela madrugada, foi
para fixar Demeron Konstantinova na minha mente, então, eu estava inquieta.
Inquieta, atormentada e amedrontada. Ficava me perguntando se ele
estaria numa ala psiquiátrica naquele momento, ou jogado em algum canto e
esquecido por sua família. Em meus vinte e cinco anos, nada e ninguém tinha
me abalado tanto. Dizer que sonhei com o rosto daquele homem me trouxe
vergonha, mas eu lembrava de cada uma de suas expressões sombrias, os
gritos e a dor nos olhos, essa era a mais pura verdade.
E nos meus sonhos, ele se acalmava com o meu olhar.
Olhei ao redor, de repente uma sensação de estar sendo observada
começou a me corroer e eu parei de andar. Já estava suada, queria continuar,
mas agi pensando na minha segurança e acenei para um táxi que passava,
dando o endereço. Sabia que estava paranoica. Desde que recebi a notícia da
morte de Style, já havia ficado temerosa com tudo ao meu redor. Meu irmão
era quem me protegia, cuidava de mim e deixava claro que eu não tinha
motivos para temer. Mas, sem ele e sabendo que nunca o veria outra vez,
aquelas sensações aterrorizantes de que algo ruim me aconteceria a qualquer
momento ficavam cada vez mais fortes.
Sem saber, Demeron só piorou aquilo.
Vesti o avental assim que cheguei, abri as janelas para deixar a luz
natural entrar e peguei meus pincéis, ligando o som e aumentando o volume
no máximo. As paredes à prova de som serviam exatamente para quando eu
precisava extravasar e a pintura me proporcionava isso. Ali dentro eu estava
protegida, segura e em paz.
Mesmo que pacífica fosse a última coisa que eu me sentia.
Eu gostava de pintar de vez em quando, por mais que minha paixão
fosse criar formas, desenhá-las e defini-las com minhas próprias mãos.
Quando eu era pequena, mamãe me deixava brincar onde eu quisesse ir.
Me perdi no bairro algumas vezes, e numa delas andei pela floresta tentando
achar o caminho de volta durante horas, até Style me encontrar, e quando
voltamos para casa, eu esperava ser repreendida por mamãe e papai, mas eles
não estavam. Nossa babá, uma garota do colegial da casa ao lado, estava nos
esperando.
Durante aquelas pequenas explorações, eu descobri que gostava de
molhar a areia e construir castelos com pontes como nos desenhos de
princesas. Depois Style começou a me dar massas de modelar coloridas, e eu
enchia nossa casa com cada coisa que ficava boa para ser exibida. Quando fiz
dez anos, ele me deu minha primeira maleta realista de esculturas.
Quarenta minutos depois, estava com os braços doloridos de pintar e
quando tomei uma distância para observar o quadro, neguei que aquilo havia
sido feito pelas minhas mãos.
— Que lixo — resmunguei e me deitei no chão, de braços abertos.
John Lennon cantava Imagine como a minha trilha sonora e eu me
permiti fechar os olhos novamente. Ainda não eram nem dez da manhã e eu
estava exausta, porém, ainda assim, me sentia elétrica. Levantei-me, mesmo
querendo continuar deitada, desejava cancelar minha agenda do dia e voltar
para casa. Pedir uma comida leve e tomar um calmante para finalmente
dormir.
Mas, a minha vida não me permitia tomar uma folga repentina dessas,
principalmente com os clientes que dali a poucas horas começariam a ligar.
Tirei o avental e peguei uma garrafa de água quase congelada na
copa, tomando até a metade. Fui para o escritório, liguei meu computador e o
de Slom também, já sabendo que ela chegaria atrasada e reclamando que o
seu demorava anos para ligar. Verifiquei meu e-mail, separando três pessoais
e decidindo que deixaria Slom lidar com todo o resto.
Pelo menos por hoje, eu disse a mim mesma.
Um dos lembretes me chamou atenção e eu nem precisei o ler
completamente para me lembrar do que se tratava. Peguei o telefone e disquei
o número que já sabia de cor. Demorou alguns toques para atender, o que me
fez até imaginar se ele estava decidindo se falava comigo ou não, mas
finalmente atendeu, para a minha surpresa.
— Olá, Enrico.
— Onira, como vai?
— Bem... escuta, eu queria saber como andam os processos com a
investigação.
O delegado suspirou. Já não aguentava mais as minhas ligações diárias e
ter que repetir sempre a mesma coisa.
— Já falamos sobre isso.
— Eu sei, eu sei. Só quero ter logo esses papéis nas minhas mãos e ver
por mim mesma.
— Você os terá, eu estou fazendo o máximo que posso.
— Certo — resmunguei, ríspida. — Me ligue se tiver qualquer
novidade.
Desliguei batendo o telefone na base e suspirei, me recostando na
cadeira. Enrico Aguilar estava me enrolando. Eu era educada, mas não
estúpida. Style havia me ensinado a ler as pessoas porque, por alguma razão,
meu irmão parecia sempre ter um medo infundado de que eu teria que me
virar sozinha em algum momento, o que eu achava ridículo, mas quatro
meses antes passei a entender e desejei não ter rido dele todas as vezes que
quis me ensinar defesa pessoal, táticas de segurança ou até mesmo linguagem
corporal.
Aquele momento havia chegado e eu estava lidando com tudo sozinha.
Mas, eu aprendi o básico e mesmo se não tivesse, ainda assim conseguiria
perceber que Enrico não me entregaria os documentos. Me perguntei diversas
vezes porque ele teria entrado em contato comigo se sua intenção não era me
ajudar com as investigações da morte do meu irmão, mas ao invés de
colaborar, só ficava adiando e dizendo que “estava trabalhando nisso”.
Eu recebi uma ligação no meio da noite dizendo que meu irmão havia
sofrido um acidente de carro fatal, no qual ele e o motorista do outro carro
não resistiram. Eu fiquei devastada. A ideia de dizer adeus a minha única
família viva desmoronou como uma montanha em cima de mim. Mas, após o
choque passar, percebi que tudo foi muito estranho.
Se foi um acidente de carro, por que um policial não foi até a minha
porta?
Por que não me permitiram reconhecer seu corpo?
Por que o caixão ficou fechado o tempo todo?
Enrico estava no meio de tudo aquilo porque eles diziam
que Style estava na fronteira do México, e o delegado designado para o caso
era o senhor Aguilar, que não parecia motivado a me ajudar. E por que eu não
recebi nenhum documento relacionado a sua morte? Autópsia, laudos,
qualquer coisa? Tudo era suspeito e a cada teoria nova que surgia na minha
mente, eu tentava me lembrar de algo que Style me disse, me agarrando à
esperança de que os devaneios do meu irmão fariam sentido.
Passei as mãos pelo rosto, reconhecendo que podia ser que eu estivesse
finalmente ficando louca. Ou a exaustão estava plantando coisas na minha
mente.
Fui ao banheiro, passei uma água no rosto e voltei ao escritório,
encontrando Slom sentada em sua mesa. Mas, isso não foi o que me fez
travar no meio do caminho, e sim os três homens que ocupavam minha sala
de reuniões.
— Mas o que... — Comecei.
Slom chegou perto, entregando-me nossas costumeiras pastas e o
portfólio variado das minhas obras.
— Quando cheguei Stark estava prestes a tocar a campainha, eu os
deixei entrar. Vou levar o café em cinco minutos. — Sorrindo, ela piscou. —
A reunião deve ter sido ótima ontem, hein? Para voltarem hoje.
Quando ela fechou a porta, eu soltei uma respiração pesada e tentando
conter minhas emoções, entrei na sala de vidro, deixando a porta aberta.
Os três estavam sentados, mas Stark se levantou imediatamente,
aproximando-se de mim.
A família Konstantinova tinha um império de poder e sucesso a várias
gerações, e aquele homem era uma parte fundamental nisso, mas toda a
minha admiração por ele estava coberta de decepção. Stark era alto e forte,
não parecia que já passava de seus cinquenta anos, e os olhos azuis me
deixaram mais tristes ainda, pois eram idênticos aos de Demeron.
Um minuto de silêncio tomou a sala antes de ele falar algo, e quando
fez, me surpreendeu por ter sido tão direto.
— Demeron tem certos... problemas.
— Eu percebi — respondi sem nenhuma educação, mas naquele
momento, nada mais me importava, a não ser saber se ele estava bem. — O
que não entendi, foi porque o trataram daquele jeito. Ele é seu filho! —
Fitei Siriu acusadoramente. — Seu primo!
— Entendo que a cena toda deve ter sido profundamente perturbadora
para você, Onira. Mas essa foi uma exigência de Demeron.
— Ser sedado? Exposto e atingido com arma de choque?
— O que fosse preciso para impedi-lo de machucar alguém — disse
Siriu, o rosto calmo como no dia anterior e a voz tão controlada que parecia
estar tratando de um negócio, não um familiar doente.
— Eu não acredito nisso.
O terceiro deles, Regnar, levantou com graça da cadeira e segurou
minha mão, até mesmo invadindo meu espaço pessoal.
— Demeron serviu ao exército grande parte de sua vida, e depois de
certas missões você acaba ficando meio... lelé da cuca, se é que me entende.
— Ele sorriu ironicamente, parecendo se divertir com meu tormento. — Ele
tem problemas, como disse meu pai. Consequências mentais de anos servindo
ao país. Ele é lúcido e está bem na maior parte do tempo, é claro, leva uma
vida completa e normal, tirando as vezes que não quer comer ninguém.
Arranquei minha mão da dele, dando um passo atrás. Meus olhos
arregalados com a ousadia e desrespeito.
Stark revirou os olhos e se aproximou de mim, ignorando o sorriso
malicioso do filho.
— Às vezes, como ontem, ele tem pesadelos, imagina que ainda está no
serviço e pode ficar descontrolado. Aconteceu que estava no loft da empresa
bem naquele momento. Ele atacou Ryses, minha secretária, aquela que você
conheceu. Estava extremamente agressivo como você viu, então precisamos
fazer algo que partiu meu coração, que foi detê-lo. Uma solução temporária.
Tudo o que ele dizia fazia sentido, tudo batia, mas por algum motivo eu
não conseguia acreditar. Talvez fosse meu instinto paranoica, talvez fossem
os anos convivendo com Style e sua obsessão pela minha segurança, ou
talvez... a dor nos olhos de Demeron.
A indiferença de Siriu.
— Onde ele está agora?
— Em casa, descansando.
— Mandou-me pedir desculpas, lhe trazer flores. — Siriu apontou para a
mesa, onde um vaso estava perfeitamente montado. — E me disse para
convencê-la a não desistir do trabalho por causa dele.
— Eu não desistiria por causa dele, desistiria por causa de vocês. Mas,
se é tudo como dizem, vou pensar, e peço a Slom que entre em contato
quando me decidir.
Stark sorriu e parecia um sorriso verdadeiro.
— É tudo o que peço. Que reconsidere. Acho que você é uma das
artistas mais talentosas da atualidade. Quero exibir quatro peças exclusivas da
minha família, feitas por você, no meu próximo aniversário.
Fitei Siriu, depois Regnar, e voltei a Stark. Todos pareciam
arrependidos e sinceros. Relaxando meus ombros, me permiti dar um leve
sorriso fechado e assentir para o homem que fazia tanta questão da minha arte
para algo tão importante como sua família.
Respirando profundamente, coloquei a ponta da caneta na tela do tablet
e usei o tempo que Slom entrou na sala, servindo-lhes café e conversando
brevemente com os três para tomar minha decisão.
Lhe dei um olhar de reprovação quando descaradamente se jogava para
Siriu, que não hesitou em envolvê-la em sua conversa, e dava risadinhas para
as piadas inapropriadas de Regnar. Me perguntei se a criatura se esquecia que
tinha uma esposa.
Quando ela saiu, fitei Stark.
— O que você quer das esculturas?
Ignorei minhas paranoias, e a cada momento que voltava a pensar nos
gritos, olhava para o vaso no meio da mesa. Isso ajudava a me recompor, mas
não mudava que eu continuava definitivamente perturbada.
“Não deveria estar aqui porque eu deveria estar morto
Posso ver as luzes na minha frente”
LIGHTS OF HOME, U2
BASE MILITAR DO BUNDESNACHRICHTENDIENST, BND
(Serviço de Inteligência da Alemanha)

ALGUMAS SEMANAS ANTES

— Eu não deveria estar aqui. — Siriu Konstantinova repetiu pela


segunda vez, enquanto observava dois guardas dando tapas no rosto de seu
primo mais novo para acordá-lo.
Ainda havia um toque de compaixão que o fez querer derrubar aquela
porta e salvá-lo do mundo, mas ele sabia que não havia a menor possibilidade
de ambos saírem com vida. E, além disso, sabia que Demeron merecia o que
estava sendo feito a ele.
— Sim, sim — Erike Ditz, o diretor da BND, resmungou. — Você é um
homem da lei e tudo mais. Bem, eu também sou.
Não, ele não era. O homem comandava a maior agência de espionagem
da Alemanha e se recusava a deixar Demeron Konstantinova, um preso
acusado de traição, voltar para A Liga, mesmo sabendo que as leis para os
desertores do país eram tão rígidas lá quanto no sistema do Governo.
— Seu primo se recusa a contar para onde Style Tieko foi, isso não pode
ficar impune. A missão dele era clara e além de fracassar, os dois
conspiraram para transformar uma missão de alto nível autorizada, em um
ataque terrorista. As vidas daquelas meninas inocentes estão nas mãos deles,
e seu primo pagará por isso sozinho se não entregar o parceiro.
Siriu respirou profundamente e olhou através do vidro,
vendo Demeron cuspir a água do afogamento simulado. Ele tinha estado
preso entre quatro paredes de concreto sozinho durante quase dois anos, e o
diretor finalmente decidiu que era tempo suficiente para tentar quebrá-lo. Já
tinham passado para o terceiro dia de tortura e não tiraram uma palavra
sequer de sua boca. Siriu sabia que continuaria assim. Ele não era um espião
e nunca passou pelo treinamento militar que seus primos haviam passado,
mas sabia como funcionava e Demeron aguentaria a tortura até a morte, mas
nunca diria nada.
Siriu ainda se recusava a acreditar que Demeron tivera algo a ver com
isso. Antes de ser um espião, Demeron foi um militar exemplar, apaixonado
pelo país. O que o levaria a trair e deserdar sua nação?
— Ele nunca vai falar.
Erike deu de ombros, sorrindo enquanto observava os guardas
colocarem Demeron contra a parede, ligarem a mangueira de gelo líquido e
apontarem para ele. A boca de seu primo se abriu num grito silencioso,
enquanto os jatos de água batiam em seu corpo nu.
— Ele pode não falar, mas vai receber a lei por ele e por Style.
— Por que não o usa de outra forma?
Os olhos de Erike mudaram para ele com interesse.
— Ele pode não dizer onde Style está, mas pode nos levar até ele.
— Está sugerindo que eu liberte um dos mais talentosos agentes? Ele vai
desaparecer.
— Não, ele não vai.
Siriu foi para a porta e abriu, ouvindo Erike atrás dele mandando os
guardas pararem. Ajoelhando ao lado de Demeron, viu como ele tremia
incontrolavelmente, o corpo tendo espasmos da tortura.
— Soldado — Siriu chamou, fazendo Demeron, sua carne e sangue,
olhá-lo. O rosto mal era reconhecível, os olhos tão distantes que Siriu se
perguntou se ele ainda podia ver. — Temos uma missão para você.
Demeron reuniu todas as forças que ainda restavam sob seus ossos e a
carne fraca em seu corpo, e se inclinou para frente, quase encostando nariz a
nariz com seu primo quando rosnou:
— Eu não sou mais um soldado.
Siriu trancou a mandíbula e ficou de pé, afastando-se dele. Quando
estava longe da mira das mangueiras, ordenou:
— Liguem novamente. Mais forte dessa vez.
Ele assistiu um de seus melhores amigos sofrer e foi atingido por alguns
resquícios de água também. Mas, não se importou de molhar o terno àquela
altura, quase nada abalava suas sombras.
"O mundo desacelera
Mas meu coração bate depressa agora
Eu sei que essa é a parte
Onde o fim começa"
THE PUSSYCAT DOLLS, I HATE THIS PART
DIAS ATUAIS

— Como foi? — Slom perguntou assim que passou pelas portas do


ateliê, referindo-se a minha reunião mais cedo com Stark, no prédio da
Konstantine.
— Normal — murmurei, concentrada na figura ganhando forma a minha
frente.
A verdade era que eu estava irracionalmente irritada. O tour que um
funcionário me deu pelo prédio da Konstantine Business foi incrível,
principalmente porque eu era uma boa admiradora de obras de arte, categoria
em que aquele prédio se encaixava. Mas, eu tinha que admitir a mim mesma
que foi o fato de ter ido a todos os andares e não encontrar Demeron, o que
me deixou frustrada.
— Stark não sabe o que quer. Ele pediu algo com o brasão de sua
família, mas quando pedi maiores detalhes, ele não sabia. Disse que eu tenho
orçamento ilimitado para escolher o material, fazer o que eu quiser para criar
meu melhor trabalho.
— Uau — disse ela, puxando uma cadeira para o outro lado da
escultura, sentando-se de frente para mim. — Que generoso.
Eu não respondi. A generosidade dele não significava nada para mim.
Eu queria criar algo com alma, com paixão, com força, mas após a manhã
que passei com Stark, comecei a me perguntar: por que ele havia realmente
me chamado para isso, se era nítido que a escultura seria apenas algo para
exibir?
Eu não podia fazer uma exposição de uma peça só, portanto, ia exibir
minha coleção nova, já criada, com quatro peças, e acrescentaria a
de Stark como um bônus. Ela seria a estrela da noite. Ele achou que era uma
ideia incrível, mas para ser bem sincera, havia uma pontinha de medo em
mim que me fazia tremer cada vez que pensava no assunto.
— Ele não está sendo, Slom — sussurrei, esculpindo então um anel de
fogo, um dos detalhes que compunham a enorme figura. — Eu odeio criar
algo só por criar. Meu trabalho nunca foi por dinheiro. Eu não me importo
com a generosidade dele, se, no fim, ele vai olhar para a escultura como se
sua próxima preocupação fosse encontrar um lugar para deixá-la e seguir em
frente.
Eu esculpia o que sentia em minhas veias. A vida, meu sangue
bombeando, minhas emoções, sentimentos e angústias. Eu gostava de ver as
pessoas sendo tocadas e profundamente incomodadas com uma enxurrada de
sentimentos em minhas exposições.
Elas deveriam pensar, refletir, se encorajar e entristecer.
Isso era o que eu sentia enquanto as criava. Uma tristeza profunda, um
incômodo constante e era atacada pelos pensamentos mais perturbadores. Na
maioria das vezes, minhas lágrimas se misturavam ao material ainda pastoso,
porque eu via as figuras antes de estarem construídas, e as sentia antes que
pudesse sequer tocá-las.
E Stark Konstantinova me desafiava a criar algo oculto, algo que eu não
sentia, algo que não existia para mim.
— Onira? — Slom perguntou e eu senti uma lágrima deslizar pela
minha bochecha.
Empurrei o suporte para o lado, derrubando o objeto sem significado no
chão, a cera endurecida quebrando em milhões de pedaços aos nossos
pés. Slom se levantou, puxando sua cadeira e voltando minutos depois com
uma vassoura na mão. Ela não disse nada e nem tentou me tirar dali, mas
levantei uma mão, pedindo silenciosamente para me deixar sozinha. Ela
fez isso, e o barulho da porta fechando foi reconfortante.
Continuei sentada, observando a peça irreconhecível aos meus pés.
Mais uma vez pensei sobre Demeron.
Me perguntei o que ele diria se eu perguntasse o que estava sentindo.
Ele seria como seu pai e resumiria em dinheiro?
Ou assim como da primeira vez, ele seria misterioso, intrigante e
abalador?
Inclinando-me, passei os dedos pelo gel no chão. Olhando o material da
peça mais desafiadora da minha carreira e tive vontade de sorrir. Sabendo que
apenas pelo que em menos de cinco minutos a presença de Demeron me fez
sentir, com palavras em sentimentos, ele me faria criar a coisa mais
extraordinária da minha vida.

FRANKFURT, ALEMANHA
PRESÍDIO SECRETO DE SEGURANÇA MÁXIMA PARA EX
ESPIÕES

A cela bem protegida do presídio de segurança máxima nos cantos mais


esquecidos de Frankfurt era fria, e naquela noite se tornaria congelante para o
prisioneiro em questão, que ansiava por sua liberdade em dez dias. As
paredes que rodeavam o lugar eram frias e sem uma cor definida. Poderia ser
branca, cinza ou até mesmo preta, dependia unicamente de quem a ocupava.
E naquele momento, era tão escura quanto um abismo profundo.
O homem de pé encapuzado segurou a arma com uma tranquilidade que
os anos de treinamento o ensinou a ter. Aprendeu a caçar, rastrear e eliminar,
ansiando para seu nível na Liga subir conforme riscava os nomes nas listas.
Uma morte, um passo acima. Era a cadeia alimentar fatal, onde para
sobreviver, era necessário matar. E nenhum dos integrantes se preocupava
com isso.
Os olhos do homem deitado na cama se abriram de imediato quando
sentiu uma presença em sua cela, e com uma rapidez impressionante, ficou de
pé. Não tentou lutar e nem resistiu. Sabia que estava em desvantagem. E no
fundo, reconhecia que merecia aquele fim. Mas, de qualquer forma, resolveu
tentar.
— Quero falar com Stark.
— Tarde demais. — O atirador respondeu, se sentindo mais satisfeito do
que nunca com o embate.
Orgulhoso da posição que estava.
— Eu solicito um julgamento na Liga.
— Você já teve um. E o resultado é a bala que daqui a poucos segundos
estará cravada em seu coração.
O prisioneiro ergueu o queixo, sabendo que não adiantava debater e
muito menos tentar fugir. Sua hora havia chegado, e assim como deu as
costas a seus companheiros, todos dariam as costas para ele também. Não
havia ajuda, opções ou adiamento.
Era ali e naquele momento.
O julgamento final.
— Suas últimas palavras?
— Que Stark se lembre de mim quando morrer, porque os meus irão me
vingar.
O atirador inclinou a cabeça, sorrindo.
— Passarei seu recado.
Puxou o gatilho e o silenciador garantiu que a atenção desnecessária não
fosse chamada. Quando o corpo grande desabou no chão, ele se aproximou e
deitou o homem na cama novamente. Pegou o ácido que havia guardado no
bolso e apagou o Rubi que havia no peito, acima do coração. O homem
gemeu, segundos depois os olhos arregalaram em choque, e o ceifador levou
os dedos ao pescoço dele, sentindo o pulso ficar mais fraco.
Ficou de pé, abrindo a cela, e saiu, fingindo não ver o guarda que
vigiava o corredor, assim como o guarda fez vista grossa para ele também.
Escondeu a arma por dentro do sobretudo e saiu pelos portões, sorrindo
para a noite.
Missão cumprida.
A Liga dos Diamantes colocou um alvo em suas costas, e independente
de ser culpado ou inocente, o coração do homem deveria parar de bater
quando a noite caísse.
A Liga nunca errava, e como sempre, aquele era apenas mais um nome
acrescentado à extensa lista de eliminações.
"A mente é um campo de batalha
Toda a esperança se foi
Pensamentos como um campo minado
Eu sou uma bomba prestes a explodir
Talvez você deva prestar atenção por onde anda
Não se perca
O coração é um livro de histórias
Uma estrela apagada
Alguém está chegando
Não olhe agora"
FOO FIGHTERS, THE SKY IS A NEIGHBORHOOD
Style e eu costumávamos ir à missa antes de ele ir embora, e mesmo que
agora eu tentasse manter aquele costume vivo todos os domingos, era difícil
sem meu irmão. Ainda que relutante, levantei cedo e fui, já sabendo que
quando voltasse para casa não teria cabeça para mais nada.
A igreja antiga, decorada de dentro para fora no estilo do século XVIII,
era um luxo. Os desenhos que contavam histórias, cada detalhe nas pinturas
do teto, nos lustres e até nas velas, fazia com que o chão daquele lugar
intocável se tornasse sagrado.
Sentei no canto do último banco, o véu na cabeça me dava uma pequena
sensação de estar protegida, e ouvi o sermão do padre, inevitavelmente chorei
nos coros. Nós nunca interagíamos com as pessoas que frequentavam, meu
irmão era paranoico ao nível de desconfiar de tudo e todos, até mesmo das
senhoras de bengalas, mas se esforçava para, pelo menos, ser gentil com a
maioria delas.
— Onira! — O padre chamou quando me viu na fila caminhando
lentamente para fora.
— Padre. — Acenei e dei-lhe um pequeno sorriso.
Ele abriu os braços com um sorriso gentil nos lábios.
— Estou feliz que veio. Sentimos sua falta nos últimos domingos.
— Sinto muito não ter aparecido. Eu só fiquei pensando em como seria
estranho me sentar aqui sem meu irmão.
— Eu entendo. — Com um olhar simpático, ele assentiu. — E como
foi? Como está indo?
— Ele era minha única família, sinto sua falta todos os dias. Mas sei que
ele não gostaria que eu deixasse de vir.
Padre Terry segurou minhas mãos e deu um aperto consolador. Eu
suspirei aliviada por simplesmente ter alguém que se importava. Ele não me
conhecia particularmente e muito menos de Style. Só sabia nossos nomes e
que vivíamos na cidade, mas fora isso, toda a gentileza e simpatia que nos
dirigia era preocupação, afeto puro e cuidado. O homem sorridente e muito
bonito queria cuidar de seu rebanho, e eu estava grata por isso.
— Ficará mais fácil com o tempo e eu tenho certeza de que ele está
olhando por você.
— Obrigada, Padre. Eu estou me sentindo um pouco em falta, levando
em conta tudo o que o senhor fez por mim e pelo meu irmão.
Ele cortou com a mão no ar, me acalmando com simpatia.
— Deixe disso. Vocês são parte dessa casa. O Senhor tem planos para
você e mesmo que não entendamos Seus caminhos para Style, devemos
confiar. Eu só cuido das coisas por aqui enquanto Ele me permite. Faço
apenas o que posso.
— Está enganado, Padre. Acalmou Style muitas vezes e me confortou
várias também. Eu pensei que talvez... O senhor precisa de ajuda por aqui?
Eu poderia ajudar com algo além de doações em dinheiro. Tenho um tempo
livre consideravelmente bom.
Ele sorriu.
— Onira, você já faz muito contribuindo com a casa de Deus e
principalmente vindo aqui mesmo diante de suas dificuldades e do momento
que passou. E eu tenho tudo sob controle.
— Certeza?
— Olhe para essas senhoras. — Ele acenou com afeto para as velhinhas
espalhadas pela igreja. — Elas anseiam pelo voluntariado e as obras que
fazem aqui. Ter uma jovem moça ajudando as deixaria inseguras.
Eu dei risada, aceitando. Eu sabia que ele estava brincando. Mesmo
sério, Padre Terry tinha um bom senso de humor.
— Tudo bem, Padre. Mas eu estou à disposição. Sua benção.
— Que a graça de Deus lhe acompanhe, minha filha.
Saí da igreja com um adeus e mais uma vez pensei em Mic, na
facilidade que seria ter nosso motorista de volta. Em alguns momentos ficava
tentada a ligar e pedir que voltasse de uma vez, mas me controlava. Não que
ele fosse reclamar, afinal, depois de anos no exército, ele dizia ter perdido o
dedo calmo, gostava de trabalhar. Isso me fazia pensar em algo
que Style havia me dito uma vez.
“Manter-se ocupado impede que homens como nós pensemos demais.”
Eu nunca tinha entendido o que ele queria dizer com “homens como
nós”, mas não perguntei. Conhecia meu irmão e sabia que havia coisas que
simplesmente não se questionavam.
Meu telefone tocou enquanto eu caminhava pela calçada para casa, e o
nome de Slom piscando na tela me trouxe um sorriso.
— Não me diga que deixou as luzes acesas e a porta destrancada e
precisa que eu volte lá, de novo — falei e ouvi seu riso do outro lado.
— Você fala como se eu já tivesse feito isso.
— Ah, Slom... quem não te conhece até cai nesse seu papo inocente.
— Bem, eu não aprontei no ateliê, mas sei que esse horário você deve
estar saindo da sua missa.
— Eu estou.
— Timing perfeito! — disse ela e na mesma hora um SUV prateado
parou ao meu lado. Dei um pulo para trás, mas a porta traseira se abriu e
minha amiga saiu, correndo para mim. — Vim te pegar para gente almoçar!
— Slom! Porra, você quer me matar do coração?
— Acabou de sair da igreja e está com a porra na boca?
Revirando os olhos para suas gracinhas, guardei o telefone.
— É bom que a comida seja boa.
— Deve ser ótima. Vamos. — Cruzou nossos braços e foi saltitando
para o carro. — Kurt vai nos levar em um lugar novo que abriu no centro. Ele
é o principal investidor e quer saber se perdeu dinheiro.
Eu estanquei na mesma hora, pensando em milhões de maneiras de sair
daquela situação. Atirando à minha amiga um olhar aturdido, soltei seu braço
e dei um passo atrás.
— Kurton? — perguntei enfaticamente. Ela só podia estar brincando
comigo.
— Sim, o que tem? Ah, por favor Oni, já faz tempo.
Eu a encarei incrédula, e como se fosse invocado pelo próprio demônio,
a porta do outro lado foi aberta e um dos meus maiores desgostos surgiu ali,
tirando os óculos escuros que cobriam os olhos pretos. Ele teve a cara de pau
de me dar um sorriso.
Mas, é claro que ele faria isso, afinal, era Kurt.
Acontece que Slom não era apenas minha amiga, assistente e futura
sócia. Era também a irmã dele. Pensando bem, eu comecei no mesmo
momento a reconsiderar a proposta de sociedade. Não podia acreditar nessa
merda. Meu domingo havia começado tão pacífico, e então, aquilo.
— Onira. — Ele me cumprimentou de longe. — Você está encantadora.
Desviei os olhos dos seus e foquei em minha amiga. Não sei qual foi a
luz que atingiu Slom, mas ela de repente pareceu arrependida, como se
tivesse se dado conta da besteira que fez. Eu tinha evitado aquele homem
com todo o esforço e ela o levou direto para mim.
— Acho que não foi uma boa ideia? — ela meio afirmou e meio
perguntou, torcendo os dedos.
— Eu tenho planos, Slom — falei pausadamente, esperando que ela
entendesse quão puta eu estava. — Acabei de me lembrar de algo que
precisa da minha atenção. Mas vá em frente e almoce com seu irmão.
— Ah, não, Oni. Por favor!
— Estou um pouco abalada por ter vindo aqui a primeira vez sem Style.
Eu não seria uma boa companhia agora.
— Você é sempre boa companhia, Onira. — Kurt disse, recolocando os
óculos.
Respirando fundo, cerrei os dentes juntos e fitei Slom.
— Tire-o de perto de mim.
Ela rapidamente acenou e me deu um abraço. Eu não perdi o sorriso
divertido que enfeitava o rosto do maior cafajeste da cidade.
Kurton Ward.
Kurt era um magnata dos negócios e esse fato parecia fazê-lo pensar que
ele podia tudo. Ele estava envolvido com um pouco de tudo. Pelos boatos,
variando e pisando dentro e fora da lei, mas independente de qual ramo fez
dele tão poderoso, o fez também multibilionário, mas além disso, um idiota.
Tanto dinheiro, uma personalidade venenosa e um cinismo que eu não
entendia como cabia nele. Passar uma semana com ele foi o suficiente para
saber que eu não ia aguentar ficar nem mais um dia. A vida dele era resumida
ao trabalho, e quando decidia deixar o trabalho de lado, me procurava para
fazer sexo. Ele levou minha virgindade enquanto declarava seu amor na beira
do mar de sua ilha particular.
Quando “terminamos” eu comecei a descobrir mais sobre ele, ouvir
boatos sobre seus negócios e a assistir o desfile interminável de mulheres que
ele exibia. Eu não podia culpá-las. Ele não era só absolutamente lindo, mas a
forma como se movia, como falava... conquistava quem quer que fosse.
O cabelo loiro escuro, que beirava ao castanho claro, num corte simples
que parecia sempre despenteado, era um charme, mas a primeira coisa que eu
notei foram os olhos. Ele tinha os olhos mais escuros e intensos que já vi. E
aqueles lábios... um rosto emoldurado com uma mandíbula quadrada e um
nariz perfeito. Ele era muito educado também, mas seu maior defeito estava
nos lábios: as mentiras que escorriam tão fáceis deles.
— Nós nos vemos amanhã, Slom. — Eu a abracei em despedida e
acenei para ele secamente com a cabeça. — Adeus, Kurton.
— Até logo, Onira — declarou com um sorriso perverso nos lábios.
Me negando a perder a cabeça por seus jogos, me afastei e praticamente
corri para virar a primeira esquina que vi, querendo urgentemente sair da
visão daquele homem.
O dia frio era bem-vindo, principalmente sabendo que eu podia chegar
em casa e me aconchegar no sofá com uma taça de vinho. Por ser domingo,
eu me daria o direito de ignorar qualquer ligação e alertas de e-mail. Passei
pelo beco com meus saltos fazendo barulho a cada passo, e franzi a testa ao
ver que no fim dele não tinha uma avenida ou rua movimentada. Peguei o
próximo beco à direita, acelerando meu caminhar para encontrar uma saída e
pegar um táxi.
Foi quando ouvi outros passos além dos meus atrás de mim. Meu
coração deu um salto e olhei para trás, não vendo nada além da rua vazia.
Andei mais rápido, ouvindo um barulho mais alto dessa vez, como algo
batendo num metal. Olhei para trás, vendo uma lata de lixo derrubada e
alguém já entrando em meu campo de visão.
Minha pele esfriou. Não pelo frio, mas de puro terror.
Quem disse que os becos não são tão perigosos durante o dia não sabe
de nada.
Não esperando para ver se era realmente alguém atrás de mim ou só uma
coincidência, me atirei na próxima curva que vi à esquerda, e corri. Corri
como nunca antes. Meus pés desequilibrando no salto e meu cabelo
atrapalhando a visão. Olhei para os dois lados, não vendo nada além de um
labirinto sem fim, e comecei a entrar em pânico completo. Seguindo para a
curva mais próxima, virei ainda correndo, mas no momento em que entrei no
beco, bati em alguém. Mãos enluvadas seguraram meus braços e eu fechei os
olhos, soltando um grito que ecoou pelas paredes sem reboco desertas.
— Ei! — disse ele, tentando me impedir de acertá-lo com meus tapas.
— Me solte, me solte! Deixe-me ir!
— Onira, abra os olhos.
Ouvindo a voz que tinha me atormentado, obedeci. Meu corpo estava
entre acalmar ou tencionar mais ainda.
— Você — sussurrei.
Como ele estava ali? Como sabia quem eu era?
Ele olhou para os lados, como se estivesse evitando meus olhos. Mas,
ainda assim, eu não desviei dos dele. As irises azuis intensas que dois dias
antes me aterrorizaram de medo por ele, naquele momento pareciam serenas.
Podia mesmo ser o mesmo homem?
Eu exalei uma respiração pesada e puxei o ar, tentando fazer meu
coração parar de bater na garganta, sabendo que tudo estava bem, era ele e...
Mas então isso me bateu.
— Você está me seguindo? — gritei, tentando empurrá-lo.
— É claro que não. — Ele franziu a testa, as sobrancelhas baixando
juntas. — Eu estava caminhando e você simplesmente bateu em mim. O que
está acontecendo?
— Eu não sei — sussurrei. — Eu estava andando e de repente alguém
começou a me seguir!
Ele deu um passo atrás, colocando distância entre nós.
— Sinto muito, não queria assustá-la mais do que já fiz.
— Você se lembra... se lembra de mim?
— Claro que sim. — Me evitando de novo, se afastou mais, enfiando as
mãos nos bolsos. — Você viu o rosto? Saberia reconhecê-lo?
— Não, eu não olhei direito. Ouvi passos atrás de mim a cada curva que
eu fazia e entrei em pânico, comecei a correr.
Ele soltou um suspiro, olhando por cima da minha cabeça.
— Vou levá-la até sua casa.
— O quê? Eu deveria prestar queixa, fazer algo.
— Você não viu o rosto do sujeito, Onira. Não há nada que possa fazer.
Os policiais não farão nada, porque não têm como te ajudar nesse caso.
— Mas... mas e se...
— Esses becos não têm câmeras e você não tem um rosto. Na verdade,
não tem certeza se ele te seguiu, certo?
— Ele parecia estar fazendo isso.
— Tenho certeza de que você acha que parecia, mas pode não ser isso.
Eu suspirei, encostando minha cabeça na parede, mas, na verdade,
queria deitar meu rosto em seu peito largo, me aproximar o máximo possível
da sensação de segurança que ele transparecia.
— Tive tanta sorte em encontrá-lo, Demeron. — Segurei sua mão e dei
um aperto, tentando sorrir em agradecimento. — Obrigada.
Os olhos dele brilharam com as minhas palavras e esperei um sorriso
aparecer em seu rosto, mas ele só endureceu mais ainda.
— Sim. Você teve muita sorte.

— Lugar legal. — Ele disse assim que entrou na minha casa.


Se Style pudesse me ver, me trancaria no quarto por uma semana. Levar
um estranho para dentro de casa seria considerado altamente proibido para o
meu irmão.
Eu olhei em sua direção, vendo-o olhar em volta e me admirei de como
o grande homem parecia deslocado com suas botas pesadas e jeans dentro do
meu apartamento decorado pela maior designer da França, rodeado de obras
de artes que fui presenteada.
— Obrigada. — Rindo de seu desconforto claro, apontei para o capuz e
as luvas. — Você pode tirar isso aqui dentro, você sabe.
Ele baixou o capuz para trás, expondo os fios do cabelo dourado, mas
continuou com as luvas.
Um silêncio estranho se construiu, e eu tirei o casaco, tentando deixá-lo
confortável. Eu não podia acreditar que estava sozinha com alguém que tinha
problemas mentais que poderiam sair do controle a qualquer momento.
Estava me colocando em risco por curiosidade. Porque aquele homem me
intrigou desde o primeiro momento, e isso não era algo que eu podia mudar.
— Obrigada pelas flores.
— Flores? — perguntou, franzindo o cenho.
— Sim, Siriu as levou no meu ateliê.
Cerrando a mandíbula, ele assentiu.
— Claro, as flores. De nada.
Indo para a estante das fotos, pegou um retrato da minha primeira
viagem fora da Tailândia, em Paris, no museu Rodin. Eu estava ajoelhada na
frente da escultura de Rodin, “O Beijo”, e olhava para o casal de pedra com
as mãos sob o queixo, uma expressão sonhadora no rosto.
— Quantos anos você tinha nessa foto?
— Tinha acabado de fazer quatorze. Eu estava infernizando meu irmão
há meses para me levar para conhecer o beijo mais famoso da história e de
alguma forma ele conseguiu fazer isso.
Ele ergueu as sobrancelhas, surpreso.
— Você era muito jovem.
— A maioria das adolescentes em algum momento sabem que estão
apaixonadas mesmo antes de saber o que significa isso. Depois de visitarmos
essa escultura, perguntei ao meu irmão quando eu poderia dar o meu beijo da
história. Depois de alguns anos percebi que Rodin e Camille acontecem
apenas uma vez na vida.
Os olhos claros levantaram-se para mim.
— Então você desistiu do seu beijo histórico?
Eu engoli em seco com sua pergunta, sem saber o que responder. Era tão
absolutamente perturbador a forma como ele me afetava, e não era apenas
sobre desejo, mas uma força que me atraía para ele, que me fazia querer
sentá-lo e amarrá-lo na cadeira até que me contasse cada um de seus
segredos. Eu não sabia explicar e, certamente, falando com ele sobre o meu
suposto beijo histórico, só tornava tudo mais difícil de lidar.
Porque de repente, onde eu sempre vi Rodin e Camille, passei a
imaginar, então, Demeron. Essa era apenas uma das curvas que minha atração
por ele fazia.
— Só acho que mudei meu conceito de histórico.
— Você conhece a lenda de Tristão e Isolda?
— Não. Não conheço muito sobre mitologia grega.
Um quase sorriso surgiu nos lábios e ele assentiu.
— Vou te contar essa história algum dia.
— Eu posso pesquisar no Google. — Dei de ombros.
— Por favor, não faça isso, madchen.
— Por que não?
Ele se aproximou e lentamente ergueu a mão, tocando levemente minha
bochecha. Eu queria ter sentido a pele dos dedos, mas o couro da luva foi a
única coisa ali.
— Quero que ouça de mim. Mas, não se preocupe, será em breve.
— Por que está me olhando assim? — perguntei baixinho.
— Tentando entendê-la.
— Basta perguntar.
Demeron deixou cair a mão e deu dois passos atrás, me lembrando do
quão grande era.
— Meu pai falou bastante sobre você. O suficiente para que eu
pesquisasse seus trabalhos. Nunca fui fã de arte, mas depois que vi o que
você pode fazer, fiquei intrigado.
— Obrigada. Fico feliz que te introduzi da melhor maneira nesse
mundo.
Ele abriu e fechou as mãos ao lado do corpo, então me deu as costas e
foi até a porta. Eu dei um passo à frente, querendo impedi-lo de sair, mas
antes que chegasse a isso, ele a abriu, mas fechou de novo e voltou atrás.
— Saia comigo.
Levei alguns segundos para raciocinar o que tinha acabado de ouvir.
— Isso é um convite ou uma ordem?
Ele olhou ao redor.
— Não aceitarei um não, então é uma ordem.
Tentei segurar o riso, mas foi impossível. Ele era inacreditável. Me
desafiava com novos sentimentos a cada palavra, a cada olhar.
— Digamos que vou aceitar apenas como gratidão por ter me salvado
hoje.
Um ar pesado assolou seu rosto, os ombros caíram levemente e ele
chegou perto outra vez. Os olhos azuis que me encantavam assemelhavam-se
ao Glacial Ártico, mas ainda assim, não desviei. Eu me senti gelada.
— Aceite. Mas, por favor, nunca me imagine como seu salvador.
Olhando por cima de mim, ele colocou seu capuz novamente e saiu.
"Você acredita em vida após o amor?"
CHER, BELIEVE
— Onde devo deixar as flores, senhorita Tieko?
— Eu já disse três vezes que são... — Parei ao fitar as rosas que ele
segurava. — Por que são vermelhas? Será que alguém nesse lugar está me
ouvindo?
— Nó-nós pensamos que as planilhas estavam erradas, senhorita, então
corrigimos o erro.
— Eu fiz as planilhas, por que eu erraria meu próprio pedido?
— Porque estavam listadas rosas negras.
— Sim. E isso é exatamente o que eu pedi. Tire as vermelhas da minha
frente.
Quando me dei conta de que vinha me tornando uma artista a nível
mundial, comecei a listar os lugares que seriam metas para expor meus
trabalhos. E quando me mudei para a Alemanha, decidi que a principal e
maior sala da Gemäldegalerie, em Kulturforun, era um desses sonhos. Mas, lá
dentro, enquanto observava os preparativos sendo feitos para minha
exposição em dois dias e via que nem tudo era feito como queria, estava
quase surtando.
— Onde está Munsek?
O curador estava eufórico quando me viu, tanto que derrubou café em
sua própria blusa, saiu para trocar e não havia voltado. Eu preferia que ele
tivesse permanecido sujo ao meu lado naquela manhã caótica.
— Espero que esteja ficando como você imaginou. — Eu pausei a
conversa com três funcionárias da galeria ao ouvir a voz de Siriu, e lamentei
que estivesse entrando logo que eu estava prestes a sair.
— É um sonho expor aqui. Eu deveria ter imaginado
que Stark conseguiria algo assim tão impossível.
Siriu riu, cruzando as mãos nas costas depois de me cumprimentar.
— Eu ia perguntar se está animada, mas vejo que sim.
— É claro que sim! Depois disso, toda a Alemanha vai conhecer minha
arte. O conceito dela e a forma como me inspiro.
— Não só a Alemanha, os poucos países que não a conhecem, vão
conhecer.
— Eu sei. Isso me apavora, mas anima ao mesmo tempo. — Fitei o
relógio, dando-lhe um olhar de desculpas. — Espero que não tenha vindo por
mim. Estou atrasada para voltar ao ateliê, ou não terminarei as esculturas a
tempo.
— Não, vim tratar de outros assuntos. Fique tranquila. Te acompanho
até a saída.
Enquanto me acompanhava para fora, perguntou alguns detalhes sobre a
exposição e exibia sempre o sorriso cortês.
— Mais uma vez, agradeça a seu tio pela galeria incrível.
— Nada é impossível para nós. Mas, meu tio escolheu dentro de
escolhas suas, então me conte... Por que você escolheu está entre tantas em
Berlim? —perguntou.
Eu suspirei, pensando num resumo rápido que não fosse tão sonhador
quanto o que dei a Demeron. Siriu não parecia fazer o tipo que ia
escutar minhas divagações pacientemente.
— Gemäldegalerie é uma das galerias mais antigas de Berlim, se não for
a mais antiga. É o berço dos clássicos e, além disso, a Filarmônica fica
próxima também. Esse foi um dos primeiros lugares que visitei quando
cheguei no país e imediatamente me apaixonei.
— Bem... fico feliz que podemos lhe proporcionar o espaço que você
queria. Espero que o aproveite bem.
— Não tenha dúvidas disso! Estou tão animada que mal posso me conter
aqui.
Siriu riu.
— Então essa é minha deixa para ir e deixá-la livre para trabalhar. Sua
alegria é contagiante.
Eu fitei o homem muito bonito, enormemente construído e tão contido.
— Obrigada, Siriu.
— Eu lhe convidaria para um almoço, mas preciso estar na Suprema
Corte daqui a duas horas.
— Daqui até lá são seis horas de viagem.
— Sim. — Ele riu. — Por isso tenho um voo daqui a quinze minutos.
— Não se preocupe comigo, vou terminar as coisas por aqui e me
conhecendo, sei que ficarei mais do que o planejado. Obrigada por vir Siriu,
foi gentil da sua parte.
Ele me deu um sorriso avassalador. O homem tinha um encanto natural
sobre ele. Era gentil, atencioso e fazia de tudo para me deixar confortável
sem se esforçar. Um homem da justiça, da lei e leal à família. Me lembrava
da raiva equivocada que tive dele de primeira, mas depois só conseguia
admirá-lo, ainda mais quando ele simplesmente colocou em risco se atrasar
para algum trabalho importante, apenas para vir checar se estava tudo em
ordem comigo e o projeto de seu tio.
Me estendendo a mão, ele deu um aperto e se despediu, me observando
até eu chegar ao táxi. Eu o observei dar poucos passos e quando percebi, já
tinha inconscientemente aberto a boca e o chamado. Ele parou, virando para
mim e dando alguns passos de volta.
— Sim?
— Você pode dizer a Demeron que eu perguntei se ele pode chegar mais
cedo no dia? Nós estávamos conversando sobre a exposição, ele vai entender
ao que você se refere.
Uma sombra passou pelos olhos dele, mas logo um sorriso surgiu
novamente e ele se aproximou mais.
— Você o tem visto?
— Sim, eu estava em apuros e ele apareceu. Foi realmente muita sorte.
Siriu assentiu lentamente enquanto me observava.
— Tenho certeza de que foi.
— Você dará o meu recado a ele? Eu mesma avisaria, mas não trocamos
telefone, nem nada do tipo.
— É claro. Darei o recado. — Ele virou novamente, mas parou e me
olhou. — Cuide-se, Onira.
Sorrindo, acenei em despedida e voltei para minhas esculturas. De
repente, estava tão animada com meu dia que finalizar os preparativos para a
noite seguinte foi fácil. Mas, durante todo o tempo, pensei sobre o
que Demeron Konstantinova acharia ao ver meu trabalho pela primeira vez.
Meu telefone tocou assim que me acomodei no carro. Vendo um número
desconhecido, atendi. O telefone de alguém com clientes ao redor do mundo
nunca podia deixar de ser atendido. Eu aprendi isso da pior maneira quando
perdi os cumprimentos do embaixador da Tailândia, querendo me
parabenizar por levar mais prestígio para a arte do país.
— Onira Tieko.
— Bom dia, senhorita Tieko. O senhor Stark me pediu para entrar em
contato sobre um almoço. Não foi previamente agendado e ele pede
desculpas por isso, mas surgiu uma brecha na agenda e ele gostaria que a
senhorita considerasse.
— É claro. Eu estou a alguns minutos do centro agora, onde posso
encontrá-lo?
Após passar ao taxista o endereço do restaurante, conferi meus e-mails e
mensagens, ajeitei a maquiagem num pequeno espelho de bolso e esperei até
chegarmos. Descobri que Siriu já havia pagado e agradeci ao motorista pela
viagem.
— Boa tarde. Bem-vinda ao Edlom. A senhorita tem uma reserva?
— Eu vou encontrar o senhor Stark.
Ela assentiu, sorrindo e apontou para o corredor que levava ao salão.
— Por aqui.
Olhei ao redor, reconhecendo a beleza de um dos melhores restaurantes
do país, e agradeci quando chegamos à mesa, mas assim que dei a volta e
fiquei de frente para quem me esperava, o sorriso sumiu do meu rosto.
— Eu esperava ver seu pai. — Eu disse sem fingir que gostei da
surpresa.
Regnar se ergueu com um sorriso e acenou para a cadeira a sua frente.
— Peço desculpas pela falta de um cumprimento mais caloroso, mas eu
aposto minhas únicas duas bolas que minha bruxinha está de olho em nós.
Então prefiro que ela não tenha ideias erradas do que viu.
— Desculpe?
— Minha esposa. — Ele se sentou e levantou a mão, fazendo um gesto
para chamar o garçom. — Ela pode ser um tanto quanto obcecada. Mas, tudo
bem, eu sou da mesma forma. — Ele me fitou e seu sorriso ficou ainda
maior. — Você vai se sentar ou sempre come de pé?
Ignorando todos os meus instintos que gritavam para sair dali, me sentei
e tentei ficar o mais confortável possível. Também fechei minha boca para
evitar perguntar se sua mulher sabia que ele a chamava de bruxa para outras
pessoas.
— Como eu disse, esperava ver seu pai. Espero que não tenha sido nada
grave o que o impediu de vir.
— Na verdade, ele não marcou. Fui eu.
Estreitando os olhos, inclinei-me para frente.
— Estou curiosa sobre o porquê.
Ele me abrilhantou com aquele sorriso sarcástico e pediu vinho para o
garçom. Eu não queria beber, mas contrariá-lo talvez só levaria a mais tempo
na discussão do beber e não beber, e tempo era uma coisa que eu não queria
gastar com Regnar Konstatinova.
Não em um restaurante. Em público. Não no meio do expediente.
Inferno, não em qualquer outro lugar.
— Fiquei impressionado com você, Onira. Se é que posso te chamar
assim.
— Eu prefiro senhorita Tieko.
Ele riu.
— Você é engraçada, Onira.
— Eu falo sério.
Ele revirou os olhos e se recostou na cadeira, pegando um aperitivo do
prato.
— A maioria das japonesas que já conheci foram educadas.
— Eu não sou japonesa.
Ele riu novamente. Eu obviamente o divertia, mesmo sem ter a intenção.
E isso me fazia perceber cada vez mais que Regnar tinha algum sério
problema com sua confiança e ego. Ou fosse apenas um desequilíbrio
mental.
— Isso explica tudo, então. Você sabe que eu consigo diferenciar
chinesas de tailandesas, e coreanas de asiáticas?
Eu contive um suspiro. Aquela “reunião” não era nada além de perda de
tempo, mas, ainda assim, ele era um dos homens que seguravam meu
contrato com um dos maiores sobrenomes da Alemanha.
— Imagino que seja pelo seu aclamado super-QI-gênio?
— Não — respondeu de boca cheia, as sobrancelhas franzidas em
concentração no aperitivo. — Na verdade, eu só gostava bastante de olhos
puxados antes de Kaladia.
Era tão absurdo que eu quis rir, mas tinha a impressão de que para ele,
isso seria um sinal de “vá em frente e continue com as gracinhas, está me
ganhando”, então me limitei a erguer uma sobrancelha, bebericando minha
água.
— Se você prestar bem atenção, se torna fácil diferenciar.
— Sim. — Ele abriu os braços como se eu tivesse acabado de desvendar
um grande mistério. — E você é das Filipinas.
— Incrível.
— Eu sei. — Ele se gabou, bebendo mais.
— Você acertou o continente.
Ele parou de rir e jogou a mão no ar, soltando um lamento forçado. Eu
esperei o garçom sair antes de fitá-lo atentamente e decidir acabar com seu
jogo, seja lá qual fosse.
— O que você quer, Regnar?
— Eu amo a minha esposa — disse ele após um instante, como se fosse
algo que eu deveria saber.
— E a chama de bruxa?
— Bem — deu de ombros —, ninguém pode nos culpar dos nossos
fetiches.
— Como mentir para encontrar uma mulher solteira num restaurante no
meio de um dia de trabalho e ainda avisar que sua esposa pode estar vendo?
— Achei melhor dar o alerta caso você resolvesse tentar algo.
Ele disse isso com tanta naturalidade que a risada me pegou
desprevenida, tão incrédula quanto eu estava.
— Você tem que estar brincando comigo — murmurei, incrédula.
O sorriso que o acompanhava, como num passe de mágicas, sumiu de
seu rosto, e percebi como num instante ele ficou tão incrivelmente parecido
com Demeron. Se inclinando para frente, Regnar largou a taça na mesa e
fitou meus olhos como um falcão.
— Eu quero saber qual é o preço para que você durma com o meu
irmão.
— O quê?
— Demeron. Quero que o seduza, que fique com ele.
— Você está definitivamente brincando.
— Eu estou falando sério, na verdade. Pago qualquer valor. Você só
precisa fazer meu irmão querer você cegamente. O deixe louco, apaixonado.
Tomei toda a água e respirei por alguns segundos antes de responder.
— Primeira coisa, eu achava que você era um mau caráter, mas agora
não só isso, também penso que tem algum tipo de distúrbio mental. Segunda
coisa, nenhum dinheiro no mundo me faria deitar com um homem a não ser
que eu realmente quisesse isso. Seu irmão pode ser estranho, sim ele é, mas
honestamente, não posso acreditar que você está simplesmente o vendendo.
Ele deu de ombros, cruzando as mãos sobre as pernas cruzadas.
— Um homem faz o que é preciso fazer para proteger seus interesses.
Soltei um riso incrédulo, sem graça alguma.
— Qual o seu interesse na vida romântica do seu irmão?
Regnar me fitou em silêncio por longos segundos.
— Sua resposta é “não”?
— É claro que é um grandíssimo não! É uma proposta tão absurda que
eu aceitaria um acordo com o diabo ao invés disso.
— Então nós acabamos por aqui.
Mais do que aliviada de pôr um fim naquele encontro desastroso, me
levantei pronta para partir.
— Onira?
Eu parei por apenas um momento, sabendo que me arrependeria de dar
ainda mais atenção a ele, e olhei por cima do ombro. Regnar estava sorrindo
e bebericando seu vinho.
— Se você fodesse meu irmão, estaria fazendo exatamente isso.
Me recuperando do choque de suas últimas palavras, o deixei, saindo do
restaurante com toda a pressa possível. Quando já estava do lado de fora,
puxei uma profunda respiração e afaguei meu peito. Simplesmente acabara de
ouvir o homem que eu começava a desejar e ansiar pela presença, ser
comparado ao diabo.
— Você foi embora e agora eu tenho loucos querendo leiloar com quem
eu durmo. Juízes me observando e atração por caras estranhos — suspirei e
arranquei meus sapatos, jogando-os por perto na grama. — Ele usa um
capuz, Style. Seu pai, irmão e primo vivem de terno e ele mal corta o cabelo.
Mas você sabe o que me apavora? Que eu nem sequer me importo.
“Style Tieko - Irmão e amigo leal”
Era o que dizia em sua lápide. Eu a havia esculpido em uma noite,
perdida entre lágrimas e um desespero que me cegava, com Slom em meu
encalço para garantir que se eu surtasse de vez, não estaria sozinha.
Aparentemente, era sombrio demais que eu quisesse ser a criadora da placa
que identificava meu irmão como morto.
— Padre Terry tem me ajudado a lidar com a sua perda, eu me ofereci
para ajudar mais na igreja, mas ele me dispensou. Sabe uma coisa que me
deixa feliz? Que nunca te falei sobre Kurton. Você teria o matado, e mesmo
que isso me deixasse em paz, Slom ia sofrer. Você podia ter sentido que não
voltaria daquela viagem e nunca ter saído de casa. Pelo menos agora eu não
estaria aqui sentada conversando com uma pedra.
Reparei num pequeno arranhão que não existia na minha última visita e
me aproximei para ver melhor, na lateral, reconheci como um desenho das
mesmas joias que vinha recebendo no escritório. Um pequeno rubi. Aquela
brincadeira de mal gosto estava indo longe demais, e por algum motivo, a
primeira pessoa que me veio à cabeça como responsável, foi Kurt.
Suspirando, acariciei o nome do meu irmão antes de ficar de pé,
reconhecendo que estar ali não tinha sentido. Style estava morto, não havia
nada debaixo daquela terra além de carne e ossos que um dia me abraçaram e
protegeram, mas estava vazio.
— Talvez nós fossemos feitos para terminar assim, irmão. Sempre
estivemos sozinhos, afinal de contas.
Nenhum vento bateu em meu rosto, nenhum arrepio e nenhum pássaro
pousou na lápide dele.
Nada.
Eu não sentia o meu irmão.
"Parado sozinho, meus sentidos se confundem
Uma atração fatal me segura por completo
Posso escapar desse irresistível aperto?"
LEARNING TO FLY, PINK FLOYD
Os aplausos acabaram junto com minha terceira taça de champanhe.
Tudo estava como imaginei.
Fotógrafos com as câmeras afiadas para pegar os melhores ângulos e
fazer a melhor fotografia, mas ajustadas para não danificar as esculturas. O
curador apresentando cada uma das quatro peças e divagando filosoficamente
sobre os conceitos.
Uma centena das pessoas mais ricas e do mais alto escalão da sociedade
alemã desfilando pela sala enorme e bem decorada, me parabenizando pelas
magníficas peças e até fazendo fila para me cumprimentar.
Fiz contatos, consegui a atenção de todas as pessoas certas e meu
principal cliente, Stark, estava feliz. Ou parecia. Ele disponibilizou um
motorista para me buscar, mas ao contrário de todas aquelas pessoas, eu não
tive o dia todo para cuidar apenas da aparência, precisei chegar na galeria
antes que o sol se pusesse, e nos quarenta minutos que faltavam para abrir as
portas, pude me retirar para me arrumar no hotel mais próximo e voltar,
garantindo que estaria ali antes de qualquer convidado.
Aquele era o meu momento, mas em vez de aproveitá-lo ao máximo, eu
só conseguia desviar meus olhos a cada brecha que tivesse para um canto
mais afastado, onde Demeron estava... com sua acompanhante.
Eu conhecia Naya Pollintzi. Não pessoalmente, é claro, mas ela era uma
cantora a nível mundial. Todos a conheciam, fosse por fotos, TV, rádio ou
internet. Ela tinha uma beleza que parecia fazer parte da realeza, e se portava
da mesma forma. Quando chegaram, ambos me cumprimentaram. O que eu
já esperava dela, mas dele... Demeron me parabenizou pela noite como se eu
fosse a artista que sua família contratou, e não a pessoa que o recebeu em
casa e a quem ele prometeu contar uma lenda antiga.
Mas isso abriu meus olhos para ver que eu estava tão desesperada por
alguém que me entendesse que vi isso no primeiro homem que apareceu e me
“salvou”.
Um soldado traumatizado? Sim, claro.
Nada que uma super estrela não resolvesse.
— Meu sogro está encantado com você.
Uma loira alta e esguia falou ao meu lado, até então, eu só a havia visto
andando com Siriu ou Regnar, mas ninguém a tinha apresentado para mim.
Percebi pela proximidade com os dois, que devia ser Kaladia.
— Eu estou feliz que ele gosta. Stark é...
— Um homem que nunca foi apreciador de arte. A não ser que tenha
sido feito pelas próprias mãos dele. — Ela me interrompeu com um sorriso
clássico, acenando com a cabeça para um casal que passou ao nosso lado. —
O que me faz pensar, Onira... — Ela bebeu um gole do champanhe e curvou
o queixo levemente. — Por que você está aqui?
— Eu fui contratada, isso significava que a posição de Stark sobre arte
deve ter mudado.
Ela deu de ombros.
— Dificilmente. Mas me diga... eu soube do seu interesse em Demeron.
Imagino que deve ser decepcionante vê-lo com Naya, não?
Antes que eu pudesse dar uma resposta, um braço enrolou em sua
cintura e ela foi puxada para trás, onde Regnar a segurava.
— Achei você. — Ele disse a ela antes de abrir um sorriso para mim. —
Vejo que já conheceu nossa ilustre artista.
— Sim, conheci.
De repente, a discrição que Slom havia feito dela me pareceu justa.
— Sua esposa estava me dizendo as impressões sobre meu
trabalho. — Cutuquei, deixando de fora os detalhes de sua impressão.
— Estava querida? E quais foram?
— Impressionante.
Eu franzi os olhos para sua mentira, que me devolveu um erguer de
sobrancelhas e aquele sorriso insuportavelmente branco e perfeito.
— Então Regnar, qual foi sua peça favorita?
— Não vou negar que esperava algo mais picante. Essas pessoas seriam
muito mais fáceis de aguentar se você tivesse pousado nua, Onira.
Eu fitei Kaladia em choque, mas ela continuou na mesma posição, como
se ele não tivesse dito nada. Depois de me encarar por vários segundos, ela
virou nos braços dele e sendo alguns centímetros mais baixa, ergueu a
mão, eu não esperava, mas Kaladia deu um tapa discreto no rosto dele, para
quem visse de longe, parecia uma brincadeira, como se estivesse dando
tapinhas para chamar sua atenção, mas o estalo para mim, que estava tão
perto, foi claro. Ele cerrou a mandíbula e olhou para ela com fúria nos olhos,
e a mão que segurava sua cintura, subiu para o braço, seus dedos apertaram a
ponto de a pele branca dela se tornar vermelha.
— Regnar! — Comecei, pronta para dar um jeito de separá-los, mas os
dois se viraram para mim como se estivessem só então se dado conta de onde
estavam e mudaram completamente.
Onde ela havia batido, passou a mão, acariciando.
E o braço que ele apertava, massageou com os dedos.
Tornaram-se dois amantes apaixonados e meigos em questão de um
segundo, quando pouco antes, se agrediam em público.
— Não se preocupe conosco, Onira — disse ele, sorrindo
novamente. — E sim com sua bela e extravagante exposição.
— Pelo que sabemos, era tudo o que você sonhava, não
é? — perguntou Kaladia, mas o tom de sarcasmo em sua voz era claro.
— Qual o problema de vocês dois?
— Onira. — Senti um toque em meu cotovelo, e virei
para Siriu. — Stark gostaria de falar com você.
Olhando para o casal atrás de mim, Siriu os fitou por alguns segundos,
parecendo passar alguma mensagem, e quando foi me levar até seu tio, me
desvinculei dele. Kaladia e Regnar já tinham sido o suficiente, e Siriu, por
parecer estar ciente de qualquer que fosse o problema dos dois, não era
alguém com quem eu queria lidar naquele momento.
— Diga ao seu tio que falarei com ele mais tarde, preciso de ar fresco.
— Onira! — chamou enquanto eu saía, mas os deixei para trás.
Por mais que minha perturbação não se tratasse apenas
de Regnar e Kaladia, os dois com suas doses de ironia e acidez me
desgastaram e fizeram sentir desconfortável no meu próprio ambiente.
Encontrando uma das varandas destrancadas, abri a porta dupla e entrei,
encostando quando as fechei e suspirando de olhos fechados.
— Você não é a única aliviada de dar um tempo disso tudo.
Abri os olhos lentamente, querendo negar, mas sabia que era ela, a
mulher gentil que, naquele momento, eu não queria ver o rosto.
— Naya — falei como um cumprimento. — Eu só precisava respirar um
pouco.
Abri as portas novamente, pensando que ao ouvir qualquer coisa do lado
de fora seria uma boa desculpa para sair.
— Eu te entendo. Se meus fãs soubessem quantas vezes por show eu
dou uma escapada, ficariam surpresos. — Ela franziu a testa e riu
depois. — Ou horrorizados.
Mas, eu não consegui rir, a imagem dela segurando o braço de Demeron,
rindo para ele e andando ao seu lado, ainda estava muito clara em minha
mente.
Fiquei em silêncio, me debruçando na grade alta da varanda, respirando
a vista escurecida pela noite que nos cercava.
Ouvi um suspiro, então sua mão em meu ombro. Eu fiquei
completamente tensa.
— Tenho que voltar para dentro, preciso procurar meu noivo. Mas, foi
ótimo conhecer você, Onira. Você é muito talentosa.
Ela sorriu gentilmente e saiu, deixando-me sozinha com a palavra
“noivo” rondando minha cabeça.
— Não sou eu.
Assustei-me ao ouvir a voz rouca e grossa e não ver ninguém. Franzindo
a testa, observei o canto tomado pelas sombras atrás de uma pilastra e pouco
depois, vi Demeron sair dali.
— O quê?
— O noivo. Caso esteja se perguntando.
— Eu não estava. — Estava sim, mas depois de esperar estupidamente
por ele durante dias e depois vê-lo com outra pessoa o acompanhando, estava
percebendo que deixar qualquer pensamento sobre aquele homem de lado era
o mais sensato a se fazer.
Principalmente quando sua família perturbadora vinha no pacote.
Ele encolheu os ombros, e olhou para o céu brevemente, enfiando a mão
no bolso para retirar um maço de cigarros. Com passos calculados e os olhos
treinados em mim, ele se aproximou, encostando na grade ao meu lado e
acendendo um, soltando uma nuvem de fumaça silenciosa que dissipou no
ar.
— Eu pensei que tivesse ido embora. — Eu disse, me referindo a
quando ele sumiu por um tempo do salão.
— Não, só não gosto de multidões.
Não parecia quando ela estava ao seu lado, pensei
amargamente. Totalmente consciente de que aquele incômodo sobre ele estar
com outra pessoa era louco e descabido.
Ficamos em silêncio por vários minutos. Ele terminou o cigarro,
acendeu outro e eu ouvi alguém dizendo meu nome no salão, mas fingi que
não escutei e Demeron não me disse nada sobre isso também.
— Naya é afilhada do meu pai. Crescemos como irmãos.
Olhei para ele com uma rapidez não disfarçada, e sua cabeça baixa não
ergueu, mesmo quando a sombra de um curvar de lábios cruzou o belo rosto.
Ela era como uma irmã? O alívio e a leveza que senti foram insanos, eu sabia
disso, mas ignorei também.
— Você fica bem de terno. — Eu falei, mudando de assunto.
— Imaginei que você gostaria disso.
Ele se vestiu pensando em mim? Em me agradar? Tive que sorrir,
porque aquele homem não parava de me surpreender, mas acima disso,
colocar-se em algo que claramente o deixava desconfortável apenas para me
agradar não era o que eu queria dele. E, além disso, o fazia muito parecido
com seus irmãos.
Eu gostava das botas surradas, os jeans e as camisas desgastadas. Fazia
com que ele parecesse verdadeiro, tão assombrosamente belo e verdadeiro.
Seus cabelos estavam penteados, mas pude perceber que não cortou. Eu
gostei. Não do penteado, mas que não tivesse se desfeito de outra coisa para
mim.
Se ele me perguntasse, eu diria que bastava estar lá. Eu não me
importava com suas roupas e o cabelo fora de ordem. Eu só o queria. Deus,
eu queria aquele homem danificado, triste e tão bonito.
— Acha que eu gosto de homens de terno? — perguntei suavemente,
sem conseguir tirar os olhos de seu rosto, desejando absorver cada tique,
movimento e sutileza de sua expressão.
— Você é uma artista.
— O que importa?
— Artistas gostam de coisas arrumadas.
— Alguns artistas gostam de bagunça também. — Me inclinando mais
para frente, tentando desesperadamente sentir o cheiro dele, dei-lhe um
sorriso. — Você parece ter algumas opiniões formadas sobre mim baseado na
minha profissão. Me conte sobre elas.
Eu queria desfazer cada um dos clichês que ele pensava saber sobre
mim. E em cada coisa que ele não achava combinar, eu queria fazê-lo se
encaixar exatamente lá.
— Você gosta de falar sobre arte, gosta de pessoas que entendam disso.
Gosta de visitar pontos turísticos e ir aos lugares mais venerados das cidades.
Mas, isso não é um defeito, é quem você é. Você é culta, intelectual e
talentosa. — Ele parou e franziu a testa, seus olhos mudando de mim para a
porta que levava ao salão, parecia que estávamos, de repente, lá no meio da
multidão, e ele estava observando ao redor. — Isso não é um defeito.
Eu precisei de alguns segundos para me recompor de sua análise fria e
crua. Me senti vitoriosa também, porque mesmo que Demeron parecesse ler
através de mim, ele ainda me via da forma como eu queria que o mundo
visse.
Ele não sabia sobre os pesadelos, minha culpa, minhas lembranças,
minha tristeza constante. Assim como todos ao meu redor, ele não precisava
saber das minhas noites sem dormir, do meu refúgio nas minhas esculturas
sombrias.
Ele pensava que eu era boa demais para ele. Boa demais para suas botas
desgastadas, calças surradas e cabelo grande demais. Eu queria ser boa para
ele, não boa demais, apenas boa. Mas, não desmenti nenhuma de suas
impressões, porque isso significava trazer à tona a verdade.
Ele pensava que eu era uma pessoa de luz, isso era bom. Eu não queria
que ele soubesse que a escuridão era a única que me confortava.
— Demeron, se você se arrependeu de ter vindo... — Comecei, mas ele
me parou, tocando meus dedos com as pontas dos seus.
— Não. — Sua voz firme e crua, me fez olhá-lo mais atentamente, vi
como olhou ao redor de novo, engolindo em seco e se ajeitando, saindo um
pouco das sombras e dando um passo mais perto da luz. Ele passou a ponta
da língua pelo lábio inferior, me hipnotizando com cada movimento. Ajeitou
o colarinho da camisa, fazendo a gravata ficar ligeiramente torta. Eu quis
sorrir. Sorrir e dizer a ele que estava tudo bem arrancar aquilo.
Será que apertava seu pescoço? O pinicava? O fazia sentir preso?
Eu me sentia assim com alguns vestidos também.
Ele estava incomodado. Com o público, com o rumo da conversa, com
as pessoas em volta de nós. Sem que ele dissesse, percebi que não queria
estar ali. Então, tomando uma rápida decisão, bebi o restante da água e numa
demonstração de que ele podia tirar a gravata, soltei meu cabelo, arrancando
a tiara que Siriu havia me dado mais cedo.
— Por hoje, eu cansei de ficar ao redor de todas essas pessoas. — Eu
disse, desejando sair o mais rápido possível dali e trazê-lo de volta para
perto.
Para mim.
— Alguém lhe fez algo?
— Não, quer dizer... não importa.
Ele franziu a testa, os lábios apertaram naquela mania que eu percebi
que ele tinha de fazer essa expressão confusa.
— Eu pensei que fosse um dos seus lugares favoritos.
E era. Eu não sabia como ele sabia disso, mas eu amava estar ali, porém,
o desconforto dele era quase palpável. Abrir mão do meu momento
glorioso não me faria mal.
— Quer saber... por que não vamos a um lugar mais à vontade?

Nós escapamos dos convidados e da imprensa sem nenhum


problema. Demeron foi rápido e habilidoso em me fazer parecer invisível e
no fundo da minha mente, eu sabia da tamanha irresponsabilidade e falta de
ética ao abandonar meu evento daquela forma. Por isso, tentando amenizar a
culpa, mandei uma mensagem a Slom, pedindo que ficasse de olho em tudo
por mim.
O caminho de carro da galeria até uma subida escura e deserta de terra
foi em silêncio, mas quando descemos do carro e começamos nossa
caminhada para dentro de onde quer que estivesse me levando, ele começou a
me fazer pequenas perguntas.
De onde eu era, minha idade, meus estudos, até que chegou a minha
família. Refleti por alguns minutos, pensando em como descrever Style. Meu
irmão era meu herói, quando me perguntavam sobre ele, eu sempre queria
que a pessoa sentisse como ele era incrível.
Meu Style merecia isso.
— Ele aconselhava investidores de risco. Eu sempre pensei que era um
trabalho perigoso — contei.
Um daqueles quase sorrisos que eu adorava cruzou o canto de seu lábio.
Estava ansiosa e até mesmo, debatendo entre contar ou não uma piada para
tentar arrancar-lhe um sorriso completo de vez.
— É verdade, o que poderia ser mais assustador do que investir
dinheiro?
— Não quis dizer isso, quer dizer, sei que existem coisas piores.
Policiais morrem todos os dias nos protegendo, bombeiros também.
— Eu entendi o que quis dizer, Onira.
— Porque você me chama de Onira? Por que não Oni?
Ele franziu os lábios.
— O diminutivo do seu nome em algumas línguas ocidentais significa
“pequena irmã”. Me recuso a chamá-la assim.
Dei risada, adorando que ele começava a me mostrar uma versão mais
descontraída de si mesmo. Que já não olhava mais ao redor como se fosse ser
atacado a qualquer momento, que não hesitou em me dizer nada, que parecia
seguro. Bem. Feliz.
Eu olhei de volta para os quilômetros de árvores que nos
cercavam quando finalmente chegamos ao topo, uma pista de concreto
pichada de vários desenhos e palavras em alemão.
Ele segurou minha mão, arrepiando-me da cabeça aos pés e me levou até
a beirada, me puxando para sentar-se ao seu lado. A vista era incrível e meu
suspiro alto de apreciação disse tudo.
— Eu não gosto de estar em público.
Eu não sabia o que responder, mas de qualquer forma, duvidava que
pudesse dizer algo que iria ajudar.
— Por quê?
— Você conhece a história desse lugar?
— Sei que não é muito aclamado — respondi suavemente, sabendo que
pelas histórias do que se passou ao decorrer dos anos, aquela montanha não
era motivo de orgulho para os alemães.
— Nós estamos sentados sob a guerra. — O rosto assombroso e pesado
não me encarou, ele olhou para a frente, os olhos apertados e as mãos
fechadas em punho. — Os escombros de anos e anos da reconstrução de
Berlim depois da queda. Wehrtechnische Fakultät foi construída aqui debaixo
para treinar jovens nazistas. Soldados criados pelo ódio e intolerância. Esse é
o lugar mais alto de Berlim, vemos toda a cidade daqui, mas ainda assim, isso
foi chamado de montanha do diabo. Acho que foi merecido.
— Você sabe... não é culpa sua o que aconteceu durante aqueles anos,
nem de muitas pessoas que ainda vivem aqui. Não marque a si mesmo pelas
atrocidades de alguém que nem nasceu aqui.
Seu rosto virou para mim com tudo, encarando-me quase que com
desespero no olhar.
— Não devo me marcar quando isso marca tantas outras pessoas?
— É claro que marca. Mas, isso não é culpa sua, Demeron, por Deus
e...
— Se você tivesse a chance de salvar alguém que sofre nas mãos de
quem ainda comete atos em nome dessa ideologia, você faria isso?
— Sim — respondi imediatamente. — Quer dizer... eu faria o possível
se estivesse ao meu alcance.
Ele assentiu lentamente, voltando a olhar para frente.
— Se estivesse a apenas alguns passos de salvar uma centena, mas
tivesse que quebrar regras para isso, ainda assim faria?
— Sim.
Eu não entendia o porquê ele levava aquele assunto tão profundamente,
como se fosse realmente sua culpa. Segurei seu braço suavemente, sentindo
os músculos completamente tensos por baixo da camisa.
— É claro que faria. Qualquer pessoa com humanidade o suficiente teria
feito. — Ele terminou quase num sussurro, mas eu ouvi, e ainda mais
confusa, me movi para a sua frente, hesitando quando me aproximei o
bastante para segurar seu rosto e trazer os olhos para mim.
Então eu disse a primeira coisa que me veio à mente, que foi, inclusive,
a primeira que eu notei no momento em que subimos ali.
— Tudo o que eu consigo pensar é que nunca estive tão perto da lua
quanto agora.
A careta dele aprofundou ainda mais antes que virasse o rosto e o
erguesse ligeiramente, olhando para onde eu apontei. Passaram-se vários
segundos em silêncio.
— Estou rezando silenciosamente para não ter sido insensível agora.
— Não — disse ele, virando-se para mim com um sorriso pequeno. —
Você acabou de me dar uma perspectiva nova. Vou lembrar disso cada vez
que vir aqui.
Dei de ombros.
— Gosto de pensar que mesmo que seja pequeno, tudo tem algum
valor.
O sorriso dele se foi; voltando para a expressão gélida e distante. Meu
coração apertou em pesar, e eu quis imediatamente dizer algo que trouxesse
de volta aqueles minutos em que ele só sentou e relaxou, esquecendo
quaisquer que fossem os problemas que o mantinham tão longe.
— Eu conversei com muitos homens de terno na galeria. Todos eles
sabiam falar muito bem e reconheciam todos os artistas que eu citava. Mas eu
só conseguia prestar atenção em você. O único que não disse uma só palavra.
Os olhos azuis profundos congelaram em mim.
Ele ergueu as mãos, segurou meu rosto e acariciou minha bochecha.
Ele aproximou mais o rosto do meu e meus olhos foram fechando,
ansiando para sentir seus lábios nos meus.
Mas, no segundo seguinte, senti uma pontada no meu pescoço, meus
olhos arregalaram e meu corpo impulsionou para trás, sem entender o que
estava acontecendo. Abri a boca para gritar, chamar o nome dele.
Mas o homem que me encarava já não era o quebrado e frágil que eu
conheci.
Enquanto eu perdia a consciência, os olhos que me encaravam eram de
gelo.
"Fico de olho no sorriso da sombra
Para ver o que ela tem a dizer
Você e eu sabemos
Um nó que está girando em torno do meu coração é como
Um pouco de luz e uma pitada de escuridão
Mas eu vejo o seu brilho
Você não entende a minha mente
Necessidades obscuras são parte do meu ser
Mas a escuridão nos ajuda a brilhar"
RED HOT CHILI PEPPERS, DARK NECESSITIES
Acordei encolhida no canto de uma cama pequena, num cubículo escuro
e um cheiro de produtos de limpeza penetrando meu nariz, provocando
espirros um atrás do outro. Empurrando o edredom escuro, aveludado,
percebi que estava fraca o suficiente a ponto de quase não aguentar levantar o
peso do tecido. Olhei ao redor, a cama pequena, de madeira antiga, dividia o
espaço com apenas um armário encostado na parede, de onde vinham os
cheiros fortes. Garrafas, potes, sacos. Dei por mim que estava num quarto
que deveria pertencer a algum empregado do lugar, ou só um cômodo onde
colocavam o que não tinha serventia.
Aliviada por não estar nem amarrada e nem sem minhas roupas,
levantei, coloquei o salto, sentindo o desconforto de uma noite inteira de pé
em cima deles e um desmaio induzido e...
Droga.
Com aquele pensamento, fiquei em alerta. Sentindo-me estúpida por não
pensar nisso logo de cara, assim que acordei.
Olhei para todos os lados procurando uma janela ou um relógio que
pudesse me dizer que horas eram, pelo menos que período do dia estava.
Se ainda era noite, madrugada, talvez. As lembranças de um momento doce
que me levou até ali pouco a pouco foram se transformando em
choque, terror e raiva.
Onde estava Demeron?
Seu rosto vazio, assustador, era a última coisa que me vinha na cabeça
quando pensava e tentava me recordar do que aconteceu. Lembrava-me de
estarmos conversando e quando pensei que o que eu tanto desejava fosse
acontecer, fui surpreendida da pior maneira. Com aquela memória, toquei
meu pescoço com a ponta dos dedos, onde ainda podia sentir a picada da
agulha, e uma dor de cabeça que se iniciava.
Onde estava Demeron?
Em meio ao devaneio, a porta foi escancarada, batendo na parede e
fazendo-me pular com o susto. Uma mulher ruiva, que nunca sequer vi na
vida, me fitava com os braços cruzados. Mas, ainda sem conhecê-la, senti que
não me era estranha, parecia familiar. Ela franziu as sobrancelhas, estreitando
os olhos para mim e olhando de cima abaixo, talvez estranhando até mais do
que eu toda a situação. Esperei que dissesse algo, que explicasse, ou qualquer
coisa, mas ela apenas me olhava. Um silêncio desconfortável e um olhar nem
um pouco gentil. Fosse quem fosse, ela não estava feliz de me ver ali.
Com a porta aberta, pude ouvir a música alta vindo de fora. Uma batida
provocante, até mesmo sensual. Depois vieram alguns gritos e risadas. Atrás
da ruiva a parede era de veludo vermelho, com detalhes pretos e
desenhos dourados do chão ao teto.
Só de ter aquele raso vislumbre, imaginei do que se tratava o lugar.
Tanto pelo cenário, quanto a música, e a forma como ela estava vestida.
O cabelo num coque que deixava alguns fios estrategicamente soltos
do penteado e uma simples presilha brilhante até demais segurando-o um
pouco acima da orelha. O vestido longo atrás e curto na frente também era de
um vermelho sangue que combinava com seu batom e com os olhos verdes.
Ela era linda, mesmo que parecesse perigosa demais para lidar.
— A bela adormecida resolveu acordar. — A rouquidão de sua voz não
parecia forçada, era natural.
Elegante. Bonita. E uma completa desconhecida para mim.
Franzi a testa, confusa com sua recepção.
— Desculpe, mas... eu não sei o que está havendo aqui.
Sua língua espreitou para fora e circulou os lábios enquanto me fitava,
então ela deu um passo à frente, mas antes que pudesse fazer ou dizer outra
coisa, uma sombra se instalou em suas costas, e segurou a mão que ela erguia
em minha direção.
— Não a toque. — As palavras da sombra foram quase um rosnado,
seguidas do riso feminino da ruiva.
— Eu não ia machucá-la, sua pele parece macia, eu só queria sentir.
Saindo do escuro, a sombra se revelou. Eu sabia que era Demeron pelo
resquício da voz por trás dos rosnados, mas vê-lo após o que tinha acontecido
o fez parecer ainda maior, ainda mais feroz, e pela primeira vez, admiti para
mim mesma que aquele estranho homem poderia, sim, ser mortal.
— Isso é tudo, Kirina. Obrigado.
Ela o fitou por alguns segundos antes de me encarar, o nariz arrebitado
ficando ainda mais erguido conforme me olhava de cima.
— Ela não poderá ficar aqui. Não quero ter problemas.
— Não terá.
— Duvido disso. — Foram suas últimas palavras antes de sair, passando
a mão pelo braço dele delicadamente enquanto nos deixava.
Eu observei a cena esperando que ele se sentisse incomodado, que
a repreendesse, ou, pelo menos, me desse um olhar de desculpas, ainda que
não me devesse isso. Mas, a única coisa que recebi foi seu silêncio e o
impacto daqueles olhos azuis tão intensos, tão profundos, que me encaravam
como se não me conhecesse.
Eu queria perguntar de uma vez por que me levou ali? Por que fez o que
fez?
Por que não se afastou assim que as unhas vermelhas tocaram sua
pele?
Mas tinha medo das respostas.
— Quem é essa mulher?
— Uma amiga.
— Ela não parece amigável.
— As aparências enganam.
Sim, eu começava a perceber isso.
— Demeron, eu estou tentando não surtar sobre o porquê de ter
acordado aqui, sozinha e a música alta lá fora. Tentando ser racional e
esperando uma explicação, mas estou começando a ficar assustada e...
— Você ia sofrer um atentado essa noite. Depois que eu a levasse de
volta a galeria, um motorista seria designado a você, e no caminho, um
acidente aconteceria.
Ele permanecia como uma estátua em pé na minha frente. Os braços
atrás das costas, pela voz, era como se estivesse dando um relatório. Vazio,
distante... profissional.
— O-o quê?
— Você está em perigo.
— Começo a acreditar nisso, vendo que você enfiou uma agulha no meu
pescoço, me trouxe aqui e não está falando nada que me faça entender o que
diabos está acontecendo!
— A única forma de conseguir explicar o porquê disso, era a levando
para um lugar onde não seríamos incomodados.
— Eu não estou ouvindo isso... não faz sentido.
— Se eu tivesse dito que estava em perigo, que sofreria um atentado e
que eu sabia disso, sairia de lá comigo ou teria corrido a delegacia mais
próxima, pensando que simples policiais poderiam te proteger?
— Eu teria pedido uma explicação a você, teria lhe ouvido!
— Talvez, mas nós não tínhamos tempo para talvez.
— Eu nem sequer tenho motivos para sofrer um atentado! Nunca fiz
nada a ninguém, estou segura disso!
— Você não fez, mas seu irmão sim.
O fitei em choque, duvidando do que acabara de ouvir.
— Meu irmão? O que Style tem a ver com isso? — Balancei a cabeça,
tentando me afastar, mas ele se aproximava mais. — Por que está fazendo
isso? Por que está dizendo essas coisas?
Ele não me tocava, não estava nem perto de encostar em mim, mas
ainda assim, parecia que estava me sufocando.
— Meu pai não se aproximou amigavelmente de você, ele quer
respostas, e você é a chave para isso.
— Não, eu... eu sou apenas a pessoa que fez as esculturas e...
— Pare — ordenou num tom de voz duro, quase mordaz. — Seu irmão
tirou algo dele, algo com que ele se importava.
Era tão absurdo que tive que rir, jogando as mãos em desdém, mesmo
diante de sua seriedade.
— Style jamais roubaria algo de alguém, ele era incapaz de fazer mal a
qualquer um.
— Eu não me importo com o que seu irmão fez ou deixou de fazer. Eu
conheço meu pai, conheço meu irmão e meu primo. Se você é a única pessoa
que pode levá-lo a Style, ele a quer.
Dei outro passo atrás, começando a ficar mais assustada a cada palavra
que ele dizia. Sua voz, seu olhar, sua postura, tudo emanava perigo, cada
palavra parecia uma ameaça velada.
— Não há como me levar ao meu irmão, ele está morto! Eu lhe disse
isso. — Me aproximei dele, erguendo o rosto para ficar bem perto dele. —
Que brincadeira sádica é essa?
Demeron desviou o olhar de mim, deu a volta e foi até a cama onde
minha bolsa estava, pegando-a, ele me entregou e depois de alguns segundos,
insegura de suas intenções, a peguei.
— Eu sei que ele está morto.
— Sim, eu te disse. Disse como isso dói.
— Eu sei que é recente, sei que ainda dói e não se curou, mas o que você
vai enfrentar precisará de mim. Stark não é o homem que parece ser. Não é
honesto, não é bom. Ele é o meu pai, mas não me orgulho das coisas que ele
faz.
— Eu não entendo... ele sempre foi tão gentil, dedicado!
— As pessoas parecem muitas coisas quando querem parecer.
Demeron segurou minhas mãos e depois de um aperto, a subiu
pelos meus braços, parando no pescoço, e com os dedos da mão direita
passou levemente pelo lugar onde havia espetado a agulha, e mesmo que já
não tivesse mais como sentir a picada, parecia que ele sabia o exato lugar.
Depois de alguns segundos ali, as subiu para o meu rosto, acariciando minha
bochecha com uma delicadeza que eu não esperava.
— Me desculpe pela agulha, o desmaio e tê-la deixado acordar aqui
sozinha. Eu havia planejado ficar, mas tive que sair para garantir que meu pai
e nenhum de seus homens havia nos seguido. A única coisa que passa pela
minha cabeça é que ficamos perto de você ter um carro capotado na estrada,
ou um falso desaparecimento. Até mesmo alguém invadindo sua casa, a
seguindo e assustando. Eu não sou um homem que pensa, sou um homem que
age. Algumas vezes essas atitudes podem ser erradas, mas não fiz para
machucá-la, estava tentando protegê-la e se você deixar vou continuar
fazendo isso. Devo proteger você.
— Seu pai é perigoso? Como posso saber que ainda que esteja comigo,
me protegendo, ele não fará nada?
— Não tenho garantias para te dar, a única coisa que podemos fazer
agora é sermos sinceros um com o outro, e eu estou fazendo isso. Ei. — Ele
estalou os dedos em frente ao meu rosto, tentando fazer-me focar nele. —
Olhe para mim. Preciso de você. Entendeu?
Assenti, ainda que fosse difícil pensar que ele precisava de mim para
qualquer coisa.
— Responda-me uma coisa, Demeron. Pode fazer isso?
Ele não respondeu, apenas continuou me olhando.
— Desde o começo... desde... desde que apareceu para mim, foi
verdade? Até mesmo aquela conversa no topo da montanha do diabo?
— É claro. — A resposta imediata deveria ter me feito dar um passo
atrás, desconfiar, como meu irmão havia me dito para fazer a vida inteira,
mas quando Demeron se sentou na cama e me puxou para o seu lado,
eu deixei.
— O que faremos?
— Ele quer se vingar de Style mesmo que ele esteja morto, então eu
pensei que se conseguíssemos provar que seu irmão não é
culpado, Stark veria a razão e a deixaria em paz.
Assenti, pensando em meu trabalho, meus amigos, e que faria de tudo
para ficar em paz.
— É claro, eu estou disposta a tudo.
Demeron inalou com força, trancando os dentes, e assentiu, segurando
meu rosto mais uma vez.
— Muito bem, Onira. — Os olhos hipnotizantes não desgrudavam dos
meus. — Isso é exatamente o que eu queria ouvir de você.
Com o medo se acalmando por ora, e a certeza de que ele cuidaria de
mim, o abracei. Praticamente me atirando em seu peito. A dureza dos
músculos e sua pele quente me causou um arrepio, e a sensação inevitável de
querer descobrir mais.
Alguém pigarreou na porta, atrapalhando qualquer pensamento meu,
mas foi Demeron quem me surpreendeu com sua reação, praticamente
saltou da cama, afastando-se dos meus braços. De um abraço que não chegou
a devolver.
Da mesma forma como ele havia me recebido com as mãos atrás das
costas e os olhos cobertos por uma proteção que escondia qualquer
emoção, qualquer piscar vulnerável. Ele encarou o menino que nos fitava da
porta, o jovem não podia ter mais de 15 anos. Algumas espinhas pelo rosto, o
cabelo loiro, os olhos azuis. Estreitei os olhos, observando-o um pouco
mais. Ele tossiu, gaguejando o nome de Demeron duas vezes, passou a mão
pela cabeça e olhou para os lados, então olhou para mim de novo, depois
para Demeron.
Como se estivesse cansado do desastre do menino, Demeron foi
mais à frente.
— O que foi?
— Nó-nós temos que ir.
— O salão está limpo?
— Sim, está sim.
Notei como tremia, e não era pela voz dura de Demeron. Com isso ele
parecia estar acostumado. Era com a minha presença. Tentando deixá-lo mais
confortável, me aproximei um pouco e estendi a mão.
— Olá, eu sou Onira.
Ele me fitou por longos segundos, os olhos azuis arregalados, depois
fitou Demeron, que nada disse, então virou as costas e saiu correndo.
— Eu disse algo errado?
— Não. Nós precisamos ir agora.
— Quem é ele? — perguntei enquanto saíamos do quarto improvisado.
— Ninguém.
— Ele é alguém.
— Sim, apenas um garoto.
Tentei acompanhar seus passos, mas ele andava rápido demais,
deixando-me sempre dois ou três passos atrás.
Depois de passar pelo grande corredor, ele abriu uma porta
dupla, fazendo o estrondo da música bater em meus ouvidos sensíveis.
Eu olhei ao redor, tentando ver através da escuridão e das luzes bem
posicionadas. Mulheres nuas dançavam em cima de um balcão que se
estendia por metros e metros do enorme salão. Uma cama redonda ficava no
meio da pista, onde em cima dela, um homem deitado sobre pétalas de rosas
segurava uma garrafa, sendo acariciado por muitas mãos, e mulheres em
volta dele dançavam com sorrisos no rosto. Alguns dos homens assistiam
rindo, jogando dinheiro para cima, observando as belas que dançavam no
pole dance, ou as que serviam as bebidas com roupas pequenas que quase não
cobriam nada, outros conversavam sem companhias femininas. Sentados em
dois ou três, discutindo como se ali fosse um escritório e estivessem no meio
de uma reunião, totalmente focados.
Vi alguns seguranças, eles tinham os olhos treinados sobre cada lugar da
casa. O que me deu um pouco de alívio. Pelo menos eles estavam ali por
aquelas mulheres, e eu gostava de pensar que se elas precisarem, eles
ajudariam.
Nós alcançamos a saída e Demeron me levou até um carro estacionado
do outro lado da rua, quando íamos entrar, a porta da boate abriu
novamente, e a ruiva saiu.
Kirina o nome dela. A perigosa mulher de vermelho.
— Vai sair rápido. — Ela disse, fitava Demeron.
— Não vim visitar.
Ela abriu um sorriso enorme, deslumbrante.
— Não vou mentir, pensei que fosse deixá-la comigo.
Me agarrei ao braço dele ao ouvir suas palavras. Ele inclinou a cabeça
sutilmente para o meu lado, como se me entendesse.
Me deixar com ela? Por que ela pensaria isso?
— Obrigado pela sua hospitalidade, Kirina.
— Você é bem-vindo.
Abrindo um leque com estampa de chamas, ela nos deu as costas e
entrou, ladeada por dois homens enormes e mal-encarados.
— Escolheram uma gerente e tanto para o lugar — comentei assim que
tomei meu lugar ao lado do motorista.
Demeron segurou o volante e pela primeira vez naquela noite que
parecia um pesadelo, me deu o que era sua versão de um sorriso.
— Ela é a dona.
Percebendo que não diria mais nada, olhei para fora da minha janela, o
relógio de uma catedral mostrava quase seis da manhã.
Eu não sabia para onde ele estava indo, mas não me preocupei em
perguntar.
Tudo era um jogo, e eu não fazia ideia de qual lado escolheria para
apostar.
Style deveria estar se revirando no túmulo.
"Então aqui vou eu
Até o olho do furacão
Acabe comigo"
LADY GAGA, JOHN WAYNE
— Mais rápido, Oni, mais rápido!
Eu estava tentando, mas as pedras nos meus pés e os galhos pareciam
estar entrando na pele. Doía tanto! Queria ser corajosa como o meu irmão,
correndo e pulando os troncos caídos no meio da floresta. Vendo suas
costas, nossas mãos unidas firmemente não se soltavam, sua camisa branca
com manchas vermelhas me fez olhar para trás, para a casa que deixávamos
no meio da noite.
Fitei meus dedos manchados, desacelerando o passo, ficando sem
forças para continuar.
— Oni, não pare agora! Você não pode parar agora!

— Tem ideia de como foi difícil explicar a todos os convidados por que
a artista da noite simplesmente desapareceu? — Slom praticamente gritava,
andando de um lado para o outro no meio do ateliê. — E como se não fosse o
bastante, você aparece aqui como se nada tivesse acontecido não tem nem a
decência de explicar o que houve, ou me ligar!
“Você não pode contar a ninguém.”
As palavras de Demeron ecoaram na minha mente.
— Se estava passando mal ou sobrecarregada, eu teria cuidado de tudo,
fiz isso de qualquer jeito. Mas, um aviso teria sido bom, sabe?! Eu dei pelo
menos três desculpas diferentes sobre seu desaparecimento! Já até imagino o
que os jornais e revistas dirão hoje, que fontes se confundem sobre o porquê
de a artista ter sumido! Sabia que pensei que tivesse sido sequestrada e morta,
porra?
“...ficamos perto de você ter um carro capotado na estrada, ou um falso
desaparecimento. Até mesmo alguém invadindo sua casa, a seguindo e
assustando. Eu não sou um homem que pensa, sou um homem que age...”
— Você sequer estava lá para me impedir de ir embora com Siriu! —
Ela disse num sopro, falando tão rápido que precisei de alguns segundos
extras para as palavras fazerem sentido.
— O quê?
— Siriu Konstantinova. Eu posso ter acidentalmente dormido com ele.
— Slom, como você acidentalmente dorme com alguém?
Ela suspirou, esquecendo de seus discursos e se jogando na poltrona,
tampando o rosto com as mãos.
— Eu sei, droga, eu sei! Mas como poderia resistir? Ele é tão gostoso!
— Você não o conhece.
— Você não conhece o militar estranho e fica salivando por ele.
— Eu não fico salivando!
— É claro que fica, só não percebe isso.
— Você dormiu com Siriu. — Repeti em voz alta, para mim
mesma. — Deus.
— Eu sei, droga. — Ela suspirou novamente, fechando os olhos. — Foi
tão incrível.
— Slom! — Havia uma nota de alerta em minha voz. Eu queria
repreendê-la, mas como poderia, se desejava o que ela teve com o outro
Konstantinova?
Queria alertá-la, dizer o que Demeron me falou, que Siriu era perigoso,
aquela família não era o que parecia, mas como, sem revelar o que ele me
pediu para deixar guardado entre nós dois?
— Ele me amarrou.
Arregalei os olhos, saltando da minha cadeira e ajoelhando em frente a
ela, agarrando suas mãos nas minhas.
— O quê? — sussurrei, já em pânico com a possibilidade da minha
amiga sendo machucada de qualquer forma.
— Me amarrou, me bateu. — Ela revirou os olhos e se abanou. — Ele
faz coisas com aqueles dedos que fazem todos os paus que já passaram pela
minha vida parecerem tediosos.
Eu expirei em alívio, inevitavelmente rindo de suas descrições.
Ela tomou um gole de água, enquanto eu ainda ria sentada no chão, e
encheu a boca com o líquido, inflando as bochechas, depois engoliu tudo e
deu de ombros.
— Minha boca ficou mais cheia que isso.
Com um grito, pouco depois estávamos as duas rindo, e as broncas
ficaram para depois.

Quando fui embora tarde da noite, mesmo sabendo da


ameaça pairando em cima da minha cabeça, andei devagar, caminhando pela
rua deserta, iluminada pelas janelas das casas e os postes de luz até chegar a
minha.
Meu salto ecoava pela noite, o vizinho que sempre me observava demais
e morava na minha frente, me deu boa-noite, acenando com um sorriso maior
que o próprio rosto. Ele nunca era tão aberto quando eu tinha Style, então
nunca me preocupei, mas a ausência do meu irmão pareceu deixar o rapaz
confiante de agir. Eu o achava estranho, mas inofensivo.
Fechei meu pequeno portão, conferindo a correspondência antes de
entrar.
Subi os três degraus.
Tirei o cachecol.
Abri a bolsa para procurar a chave.
— É tarde.
Tropecei para trás, tamanho o susto que a voz dele me
deu. Demeron estava encostado na cerca da varanda, totalmente coberto pelas
sombras, apenas uma parte de seu rosto iluminado.
— Deus! Quer me matar?!
— Pelo contrário, estou garantindo que fiquei bem viva.
Respirei profundamente, encostando na cerca atrás de mim, ficando de
frente para ele.
— Então... visitas noturnas fazem parte da minha segurança?
— Eu não entrei na casa, então pode-se considerar um avanço.
Eu não reclamaria se você entrasse.
O pensamento involuntário me fez baixar a cabeça, sentindo que minha
pele branca tinha atingido um tom de vermelho nas bochechas, e ele não
precisava pensar demais para entender o motivo.
— Não vou deixá-lo colocar câmeras na minha casa.
— Eu jamais pediria isso.
— E nem vou andar com seguranças por aí.
— Sua escolha.
— Também não quero um motorista particular.
Diferente das respostas imediatas, nessa questão, ele não respondeu.
Depois de alguns segundos em silêncio, ele saiu de onde estava, vindo em
minha direção com passos decididos. Parou a um palmo de distância,
inclinando a cabeça para o lado enquanto me observava de perto.
Dividindo o mesmo ar que eu.
— Tem certeza?
— Não é negociável — respondi, mas minha voz não era a mesma.
— Não negue tão rápido, eu sou bom em discutir termos.
Ergui o rosto, decidindo mostrar a ele o tipo de termo que queria
realmente discutir, mas assim que o vi na luz, meus olhos arregalaram,
tomada pelo espanto.
— Demeron! O que aconteceu? — Inconscientemente levei meus dedos
a seu lábio machucado e do lado do olho, onde inchava. Na camisa cinza,
agora eu via poucos respingos de sangue, e quando ele foi segurar minha mão
para impedir de tocá-lo, senti algo molhado em seus dedos, vendo o sangue
também ali.
— Briga de bar.
Passei por ele, pegando a chave na bolsa, com as mãos trêmulas de
preocupação, e o levei para dentro.
— Você está tão machucado! Fique aqui, eu volto em um segundo.

DEMERON

Ela saiu da sala, deixando-me sentado no sofá cheio de almofadas.


Estava tenso, agitado, cansado. Com a luz acesa, observei a sala e o que
conseguia ver do pequeno corredor, conferindo se as câmeras instaladas na
noite anterior estavam bem posicionadas o suficiente para ninguém ver.
Depois de deixá-la com o sol nascendo a sua porta, não me despedi,
apenas esperei que saísse do carro alugado e fechasse a porta. Então esperei
meia hora antes de entrar furtivamente, invisível e silencioso. Com todas as
luzes apagadas, instalei as câmeras e escutas em lugares estratégicos, coisa
que já havia feito centenas de vezes antes.
Vasculhei sua casa pela quinta vez desde que havia tomado
conhecimento de sua existência, e mais uma vez, não encontrei nada.
Decidi ir embora quando terminei o que havia ido fazer, mas por alguma
razão não consegui sair. Meu corpo parecia estar fora do meu controle,
minutos depois eu estava na porta de seu quarto, com a mão na maçaneta,
tentado a abrir. Tentando convencer a mim mesmo que ali dentro poderia
estar o que eu buscava, debati comigo mesmo, finalmente colocando
distância entre mim e ela, e quando deixei a casa, sabia que era o melhor a ser
feito.
A coisa certa.
Onira Tieko voltou com uma caixa de madeira nas mãos e uma camisa
pendurada no ombro.
Ela era muito bonita. Eu cresci vendo meu pai desfilar com mulheres
bonitas, depois meu irmão e, também meu primo seguiram o exemplo. Até
mesmo em minha adolescência, antes de entrar para o serviço, gostava da
companhia delas, aproveitava as vantagens de poder estalar os dedos e ser o
Deus para quem elas adorariam passar a noite estendendo suas preces.
Mas, quando se passa anos longe de coisas bonitas, o feio se torna
comum, normal, confiável. E o bonito... não inspira nada de bom. Portando, a
beleza de Onira, em conjunto com seus olhares tristes e a preocupação que
ela fazia questão de expressar, me dizia apenas uma coisa: Seu irmão a
treinou bem.
Muito melhor do que eu teria esperado.
Eu queria parabenizar Style por sua atuação.
Esperei que quando voltasse, ficasse falando o tempo todo, mas ao
contrário, ela limpou meu rosto, cuidou dos machucados, levou seu tempo
franzindo ora os lábios, ora a testa enquanto mexia em sua caixa de primeiros
socorros e fazia o que pensava ser necessário fazer. Só depois de terminar
com o rosto, ela falou algo.
— Não consigo imaginá-lo num bar, quanto mais brigando.
— E eu não te via como uma enfermeira, pelo menos até agora.
— Conte-me algo que ninguém sabe sobre você — sussurrou, tirando o
pano do meu rosto e levantando as mãos.
— Não quero te dar pesadelos.
Ela riu, mas era um som triste, no entanto, ainda assim, não consegui
desviar meu olhar de sua boca.
— Acredite em mim, há coisas piores do que um pesadelo.
Levantei um pouco mais a cabeça, fitando-a dentro dos olhos.
— Você parece alguém que já viu muita dor.
— E você vê o sofrimento sem que eu precise falar com todas as
palavras.
— Sobre o que são os seus pesadelos, Onira?
Ela encolheu os ombros, dedicada a cuidar dos meus ferimentos da
mão.
— Não sei se são lembranças ou apenas coisas que minha cabeça criou.
— Faz diferença?
— Não, acho que não.
— Não importa se são lembranças ou pesadelos — falei, engolindo em
seco. — Dói de qualquer jeito.
Perturbada.
E eu, também perturbado o bastante para fazê-la cuidar dos ferimentos
de uma suposta briga de bar.
— Vamos, vou chamar um táxi e levá-lo até a sua casa.
— Não. Não é necessário.

ONIRA

Era necessário. Totalmente.


Eu estava confusa sobre em que pé estávamos. Ele me protegendo, eu
tentando esconder minha obsessão inexplicável por ele, mas e então?
Onde isso nos levava?
— Demeron — sussurrei, sem saber como começar a dizer algo que o
fizesse entender o meu lado.
— Eu sei — respondeu.
Ele então se aproximou, e eu hesitei um pouco, lembrando o que
aconteceu da última vez que chegou perto demais e que me tocou daquela
maneira.
— Está tudo bem. Confie em mim.
Com nossos olhos presos um no outro, ele segurou meu cabelo e o
trouxe para frente, abaixei a cabeça, não aguentando sustentar o peso de seu
olhar, e assim, vi quando colocou uma corrente em volta do meu pescoço.
Pouco depois, pulei quando senti a ponta de seus dedos ásperos na minha
nuca, e o gelado do colar sendo fechado. Levei a mão até lá, sentindo uma
pequena pedra afiada como pingente, que imediatamente picou meu dedo,
fazendo um pequeno furo como de uma agulha. Demeron viu, segurou minha
mão e deu um beijo no furo invisível.
— O que é isso? — perguntei, hipnotizada com o minúsculo resíduo do
meu sangue em seu lábio inferior.
— Isso... é tudo o que eu sou.
A resposta enigmática era exatamente ele, tão misteriosa que me
respondia tudo e não respondia nada.
Minha respiração ficou presa na garganta. Isso era tudo o que ele era, e
eu segurava em meu pescoço. Inferno, eu seguraria aquilo com tudo o que eu
mesma sou. Ele virou o rosto, como se não quisesse continuar me olhando,
mas eu não podia tirar os meus próprios dele.
Do homem mais misterioso que já conheci. A criatura mais curiosa e a
alma mais escura, até mais do que a minha. Ele era sem igual. Perfeito.
E com o azul de seus olhos piscando nos meus, eu deixei que os
sentimentos me guiassem, fluíssem livremente. Me levantei ligeiramente e
antes que pudesse pensar mais sobre isso, toquei meus lábios nos dele. O
mundo explodiu. Num simples toque, com uma tempestade que eu sequer
havia percebido começar ganhando mais força do lado de fora e meu sangue
impresso em nossos lábios, me engasguei com a emoção de finalmente ter
tido coragem de fazer aquilo.
Esperei que me parasse, que dissesse que aquilo era apenas um acordo
sobre me proteger da vingança de seu pai, mas não, Demeron me agarrou
com a força de seus braços poderosos, me envolvendo num aperto de morte e
beijando-me como eu nunca fui beijada antes.
Sem perceber, fui agarrada pela cintura, e como se não pesasse nada, ele
me colocou em seu colo, os dedos grossos e calejados viajando da minha
coluna, para os ombros, até meu pescoço, onde sua boca passava, acariciando
com língua, dentes, e arfando sobre mim, deixando um rastro de fogo que
dizia mais do que qualquer coisa.
O beijo.
O meu maldito beijo de Rodin e Camille.
Apenas que esse era muito melhor, meu sonho de amor adolescente se
tornando uma fantasia incomparável.
E quem o parou foi eu, quando suas mãos seguravam meu pescoço com
um pouco de força. Quando senti onde nossos corpos estavam quase unidos
se não fossem pelas roupas. Quando senti o tamanho de seu desejo e do meu
também.
— Demeron. — Toquei nossas testas, respirando ofegante, enquanto ele
estava calmo, respirando tranquilo.
Meu coração acelerado, e com minhas mãos em seu peito, senti seu
coração batendo normalmente.
Mas, nada disso importou, nada foi um sinal.
Naquele momento, eu só estava consumida pelo homem que me via
como ninguém mais conseguia ver, que não acreditava nos meus sorrisos
falsos e não me olhava como se esperasse algo de mim.
Fui fundida a ele.
Coloquei meu coração na mesa e prometi silenciosamente que nunca o
deixaria ir.
Com meu corpo, alma e mente.
"Seus lábios são uma conversa
esse rosto é uma música
Se é minha imaginação
Me pare se eu estiver errado
Você não precisa dizer uma palavra
Porque seu corpo fala"
THE STRUTS, BODY TALKS
— Eu vou garantir que minha assistente entre em contato com vocês.
Esse primeiro contato cara a cara é muito importante para que eu sinta o que
vocês estão querendo, mas a partir daí Slom vai preencher TODAS as lacunas
e esclarecer suas dúvidas.
— E quanto a visita ao local? Eu gostaria que você fosse.
Eu sorri para a minha mais nova cliente, tentando transmitir a ela
segurança e confiança.
— Slom vai agendar também, então poderemos dar seguimento.
— Ah, Onira, isso é ótimo! Nós acabamos de restaurar a mansão, e
como a abriremos para eventos, eu gostaria que cada um dos envolvidos
fossem lá para ficar por dentro do projeto completo.
— Eu entendo.
Ela se levantou com um enorme sorriso no rosto e foi até a lousa,
observando mais de perto minhas anotações.
— Nossa mansão foi construída há mais de cinquenta anos.
— É muita história.
— Sim, eu sei. Por isso temos grande pressa com tudo. Meus irmãos e
eu não vemos a hora de estar tudo pronto. — Ela tocou o coque bem apertado
no alto da cabeça e alisou o vestido tubinho preto que combinava com o salto
altíssimo.
Sophi Maraba era uma socialite em constante destaque nas mídias e
revistas populares da alta sociedade. Eu a havia conhecido em um desfile,
onde nós duas éramos convidadas do designer. Ela devia ter a minha idade,
talvez dois anos mais velha. Mas, o cabelo loiríssimo e a pele bem cuidada,
dava a ela uma aparência de menina jovem.
No entanto, havia algo em seus olhos, no comportamento, que me
deixava ver que por trás dos sorrisos doces e a fala mansa, ela era uma
mulher que não aceitava nada menos do que era exigido. Eu não conhecia
seus irmãos, mas se fossem um pouco como ela, eu estava andando numa
linha fina nesse trabalho.
— Que tipos de eventos serão realizados lá? — perguntei, genuinamente
curiosa.
— Ah. — Ela jogou a mão em desdém. — Vários tipos.
— Vou esperar um convite para um deles — brinquei, a levando até a
porta.
Ela parou no meio do caminho e me olhou dentro dos olhos, um sorriso
ainda presente.
— Será uma honra, Onira. Meus irmãos e eu gostamos de proporcionar
diversões às pessoas. Só é preciso tomar um pouco de cuidado, porque o
prazer pode se tornar perverso.
Dei risada, meio sem graça.
— Vou me lembrar disso.
Nos despedimos e acenei para o segurança que a esperava no hall.
— Até breve — disse ela.
— Nos vemos.
Mas, assim que abriu a porta, minha surpresa foi nítida e nada
agradável.
— Siriu? — chamei, mas meio que esperando aquilo ser apenas uma
visão.
— Onira, boa noite.
Me aproximei, e nisso vi como ele e Sophi se encaravam. O segurança,
tão desconfortável quanto eu, segurou o braço dela, fazendo-a me olhar uma
última vez antes de sair em completo silêncio.
Siriu olhou para fora por longos minutos antes de fechar a porta e se
aproximar de mim.
— Quem era a moça? — perguntou despretensiosamente.
— Nova cliente. Como vai, Siriu?
— Muito bem. E você? Espero que esteja melhor.
— Melhor?
— Eu soube que passou mal na noite da exposição.
— Ah, sim. Estou bem agora.
— Chegou em casa com segurança?
— Sim. Cheguei. — Sem tempo ou disposição para aquele jogo de
gentilezas, decidi ir ao ponto. — Eu preciso finalizar algumas coisas antes de
ir para casa. Posso te ajudar em algo?
Não podia imaginar o que ele queria ali. Me visitando no começo da
noite. Já tinha entregado o trabalho, já fui paga por ele e só me passava uma
coisa pela cabeça: veio completar o serviço a mando de Stark. Demeron tinha
impedido qualquer coisa que estivesse em seus planos, mas ali, sozinha, eu
não tinha defesas contra ele.
Por um momento senti estar ficando louca. Style, quando vivo, me
deixava paranoica por suas próprias paranoias, e mesmo depois de morto,
fiquei pior. E agora tinha Demeron, enchendo minha mente.
Olhei para Siriu, tentando ver através do enorme homem bem vestido,
elegante. Ele cheirava a dinheiro e imponência. Mas eu só conseguia lembrar
das palavras de Slom no dia anterior.
Instintivamente, imaginei minha amiga pequena sendo amarrada por
ele.
— Stark está se sentindo culpado.
Balancei a cabeça, livrando-me daqueles pensamentos.
— Por quê?
— Na realidade, eu também estou. Sentimos que a pressionamos
demais, com o curto prazo para a entrega, a quantidade de convidados. Foi
demais. — Ele caminhava pelo ateliê observando tudo ao redor enquanto
falava. — É compreensível que tenha passado mal. Estresse.
E aproveitando sua distração, eu sutilmente me aproximava da mesa
para alcançar pelo menos um lápis, assim, se tentasse qualquer coisa, eu
podia de alguma forma me defender.
— Alguns conhecidos meus já morreram de estresse. É uma morte lenta.
Imagine como deve ser ruim sofrer uma morte lenta.
Ele virou para mim no exato momento em que consegui agarrar uma
caneta. A enfiei na cintura da saia, cobrindo com a blusa, e lhe dei um sorriso
fechado.
— Não gosto nem de imaginar. Sinto muito por eles.
— Por meus conhecidos que morreram de estresse? — Sorrindo
misteriosamente, ele inclinou a cabeça, sem me encarar. — Estresse mata
mais que uma arma. Por isso odeio me estressar.
Estranhando suas palavras, senti um arrepio na coluna, levei as mãos ao
pescoço, segurando-as para não puxar os cabelos, mas isso atraiu sua
atenção.
— Bonito colar.
Meu coração bateu mais forte, lembrando-me que desde o momento em
que Demeron o colocou ali, não o tirei.
— Obrigada. — Olhei para a porta, depois para ele novamente. —
Siriu...
— Stark gostaria de convidá-la para um jantar essa noite. Nossa família
vai se reunir, fazemos isso bastante.
— Eu agradeço, mas não quero incomodar.
— Demeron estará lá.
Ergui uma sobrancelha.
— E então?
— Não me entenda mal, mas percebi que se tornaram próximos. Se
estiver se sentindo desconfortável, terá um amigo por perto.
Sua definição de próximo não se aplicava a nós, mas ele tinha razão.
Quando os conheci, eu estava claramente encantada, se começasse a tratá-los
com frieza e indiferença, se tornaria claro que sabia o que estavam tramando,
e talvez, isso até respingasse em Demeron.
— Certo, eu vou.
— Vou esperá-la, não tem por que irmos separados se vamos para o
mesmo lugar, não acha?
Engoli em seco, pensando nas possíveis consequências de entrar num
carro com ele.
— Tudo bem. — Não havia para onde correr.
Com um sutil sorriso no rosto, Siriu soltou o botão de seu terno e
sentou-se confortavelmente numa das poltronas da sala. Senti seu olhar
queimando minhas costas a cada movimento que fiz.

O caminho foi silencioso, devemos ter ficado pouco mais de meia hora
no carro, o trânsito complicando a chegada ainda mais. Ele não tentou puxar
assunto, o que me deixou aliviada. Ainda insegura sobre estar ali, coloquei o
endereço que sabia ser o da casa de Stark no momento em que entramos no
carro, e observei se seguíamos a rota correta.
Siriu não se moveu. Parecia congelado em seu lugar. Ele se mantinha
olhando para fora da janela, as pernas cruzadas e as mãos unidas em cima do
joelho.
Olhei para mim mesma, a saia comprida, meio esvoaçante, e uma camisa
bem apertada, simples. Esse era meu vestuário para um dia no ateliê. Sorte a
minha ter, pelo menos, um salto guardado por lá, que não usava há muito
tempo e chegava até a machucar. Mas até o desconforto era melhor do que
aparecer com um chinelo.
— Um minuto e estaremos lá. Você conhecerá minha avó, Angelina. Ela
será desagradável, mas não é pessoal, o tempo a amargurou.
— Obrigada pelo aviso.
— Vai conhecer Blair também.
— A filha de Regnar e Kaladia?
Pela primeira vez ele me fitou, e vi um sorriso irônico que muito se
parecia o de Regnar.
— Sim, a filha de Kaladia.
O carro de repente parou. Siriu desviou a atenção de mim e saiu,
segundos depois, veio ao meu lado, abrindo minha porta.
— Obrigada.
Ele assentiu e me guiou até a entrada da enorme mansão. Por fora era
branca, janelas marrons e três andares ostensivos, sendo o segundo,
completamente de vidro. Não era uma casa antiga, parecia bem moderna e
seguia linhas de designers com os quais eu estava familiarizada.
Mesmo sendo uma família tradicional, percebi que Stark não era do tipo
que mantinha uma casa de sessenta anos por memórias de infância e
sentimentalismo. Ele só se mudava para uma melhor. Me perguntei se ele era
assim com tudo.
Estávamos no último degrau da pequena escada da varanda quando a
porta escura foi aberta e uma linda mulher apareceu. Com certeza não era a
avó, e nem podia ser Blair.
— Vocês chegaram! — Ela bateu palminhas e sorriu para mim, se
aproximando e me cumprimentando com dois beijos na bochecha, mas sem
encostar. — Estamos quase na hora do jantar. Ainda dá tempo de tomar uma
taça conosco, Onira. Você bebe?
Ela falou tantas coisas tão rápido, sorrindo com seu batom rosa e voz
alta, que fiquei desnorteada.
— Vá devagar, Belle. Deixe a senhorita Tieko entrar pelo menos.
— É claro. — Ela enganchou nossos braços e me levou para dentro. Eu
queria perguntar quem era ela e porque estava sendo tão sufocantemente
íntima. — Eu sou Belle. Estava tão ansiosa para te conhecer!
Ouvi a porta ser fechada e Siriu passar por nós, parando a alguns
centímetros de distância, seu olhar fixo em mim.
— No dia da exposição eu estava em um desfile em Paris. Fiquei
decepcionada em perder. Sabe que estive pensando. — Ela me soltou e parou
na minha frente, colocando os cabelos para trás dos ombros, revelando um
enorme colar de diamantes combinando com os brincos. — Eu gostaria de
uma escultura minha, será que conseguiria fazer?
— Belle. — A voz veio das escadas, e poucos depois, vi Stark se
aproximando de nós. — Não monopolize nossa convidada.
O sorriso que se abriu no rosto dela quase apagou o brilho dos diamantes
no pescoço. E me chocando, ela praticamente correu para ele, o abraçando e
dando-lhe um beijo rápido nos lábios.
— Amor... eu só quero que ela saiba como é especial para nós.
Os olhos dele se voltaram para mim.
— Tenho certeza de que ela sabe disso.
Ah, merda.
Tentei manter minha surpresa bem escondida.
Eu a olhei mais de perto, prestando atenção nos cabelos castanhos
claros, quase que um loiro escuro, solto com apenas uma mechinha presa do
lado esquerdo. Os olhos castanhos, redondos e expressivos. Ela tinha um
lindo sorriso. O sorriso de uma menina.
Vendo-a abraçar Stark, eu tinha certeza de quantas coisas as pessoas
diziam sobre ela. Não sobre ele, mas ela. A aproveitadora, mercenária, e
piorando a cada sílaba. Mas, eu só conseguia notar como aqueles mesmos
olhos expressivos o fitavam, com adoração. Ela adorava Stark.
A menina feliz, com o namorado que tinha um pouco mais que o dobro
da idade dela, mas ela o amava. Se ele ao menos a olhasse da mesma forma...
— Onira — disse Stark, após me cumprimentar.
— Obrigada pelo convite, senhor Stark.
— Apenas Stark.
— Vamos lá para cima! A família está reunida.
Nós três seguimos em silêncio, enquanto Belle tagarelava sobre coisas
que mal prestei atenção, só ouvia sua voz mais que entusiasmada falando e
falando.
Vi Regnar assim que entrei, ele estava encostado na parede de vidro que
vi do lado de fora, e por dentro, eu tinha uma vista extraordinária da
paisagem que ia além da propriedade. Ele observava com um copo na mão e
a outra no bolso, Kaladia, que estava sentada no sofá ao lado de uma senhora.
As duas tinham as mãos dadas e Kaladia assentia enquanto a mulher falava.
— Olhem quem veio jantar conosco essa noite! — Belle anunciou com
seu entusiasmo inabalável, me levando para perto das duas mulheres. —
Kaladia já a conhece, mas Angelina, essa é Onira Tieko. Ela não é linda?
Angelina não parecia tão disposta a me dar uma recepção calorosa. Na
verdade, ela não fez mais do que virar o rosto em minha direção.
— É um prazer conhecê-la, Angelina.
Eu arrisquei, a chamando pelo primeiro nome, já que não tinha certeza
se respondia por Konstantinova também.
Kaladia levantou e segurou a mão dela, a ajudando a se firmar de pé.
— Seja bem-vinda, Onira. — Os olhos azuis frios me fizeram lembrar
de seu tratamento aquela noite na galeria.
O que me fez querer dar o fora dali.
E Angelina só continuou me olhando.
— Siriu sai de mãos vazias e volta com a rede cheia, como sempre —
disse Regnar, lembrando-me do quão inconveniente podia ser. — Aceita uma
bebida, senhorita Tieko?
— Tenho certeza de que ela veio para jantar — retrucou Kaladia, sua
voz tranquila, mas os olhos mandavam um recado claro para ele. — Não para
beber com você.
— Eu vou buscar Demeron — disse Belle, mas dessa vez ela olhava
para os rostos na sala, com incerteza, sua alegria meio vacilante. — Por que
não leva todos para a sala de jantar, amor? Heidi avisou que em poucos
minutos estaria pronta para servir.
Ela beijou sua bochecha e saiu, deixando nós seis num silêncio
desconfortável, no qual havia um único alvo para olhar: eu.
De repente, me arrependi de não ter aceitado a bebida. Com certeza
passar por aquela noite sóbria seria um inferno. Mas, pelo menos, teria
Demeron ali para tornar mais fácil.
Nós seguimos Stark para uma enorme sala ao lado, com um lustre de
cristais que devia custar a minha casa. A noite lá fora começava a chegar,
quase perto das sete e meia. Sentamos e taças de vinho à gosto foram
servidas. Eu não queria negar algo uma terceira vez, então beberiquei apenas
para disfarçar e deixei a taça, tomando um longo gole de água depois.
Estar numa casa onde até eu sabia, pelo menos uma parte de quem
estava dentro queria me prejudicar, não permitia álcool. Nem uma gota.
Pensei em puxar algum assunto, distrai-los até que Belle voltasse, mas a
tensão era grande demais. Parecia sufocante.
Peguei Siriu olhando seu relógio de pulso, Kaladia quieta, olhando pela
parede de vidro, Angelina com os olhos fixos em algum ponto na mesa, e
Regnar e Stark trocaram umas palavras meio vazias.
Nenhum deles queria estar ali.
Era a porra de uma família fodida e Siriu me dizendo que tinham o
costume de se juntar para jantar juntos deveria ser uma baboseira maior
ainda.
Respirei aliviada quando ouvi passos se aproximando, saltos e pés um
pouco mais pesados, então segundos depois Belle apareceu, atrás dela, o
homem que vinha sendo o meu anseio.
Droga, ele estava malditamente bonito. Calça escura e a camisa também,
fazendo seus olhos azuis e os cabelos claros ficarem em evidência. Os
músculos pareciam ainda maiores. Ou talvez fosse impressão minha depois
de tê-los sentido em volta de mim.
Mas, então como se fosse um sonho virando pesadelo, ela apareceu atrás
dele. Com uma bota que alcançava seu joelho, saltos altíssimos e um vestido
minúsculo, Kirina, a ruiva dona do bordel, estava lá.
— Ótimo, estou morta de fome.
Passou por trás de Kaladia e Angelina, apertando o ombro da mulher
antes de puxar uma cadeira ao lado da esposa de Regnar e se sentar. Eu quis
alertá-la que deveria procurar um lugar longe da loira para se acomodar, mas
só conseguia pensar no porquê de ela estar ali. E se Belle foi buscar Demeron
e voltou com ela, o que diabos os dois estavam fazendo juntos por aquela
enorme mansão?
Belle se sentou ao lado de Stark, e Demeron pegou a cadeira vazia ao
meu lado.
Eu o fitei, buscando um traço de como deveria agir, tentando entender o
que estava acontecendo, mas ele não me olhou. Ele só sentou em silêncio
e virou a taça do vinho, que foi reposta por um rapaz parado no canto da sala
que segurava a garrafa.
Então ele virou a taça novamente.
— Agora que estamos todos aqui, pode servir, Heidi — disse Belle,
sorrindo para uma mulher mais velha perto da porta.
— Sim, senhora.
— Não lhe perguntei se era alérgica a algo e se comia de tudo, Onira —
falou Siriu, com uma expressão neutra e a voz suave.
— Não sou, mas obrigada. Tenho certeza de que tudo estará ótimo.
— Se soubesse que viria, teria chamado um chefe e amigo especialista
em comida japonesa — disse Regnar, claramente tentando me tirar do sério,
ou simplesmente me fazer lembrar de nosso encontro no restaurante.
— Antes de comermos, acho que falta uma reapresentação — afirmou
Kaladia, sorrindo sem sinceridade para mim. — Onira, essa é minha irmã
Kirina.
Quase cuspi a água, mas me segurei e encarei as duas, engoli em seco e
acenei.
— Prazer em conhecê-la, Kirina.
Ela sorriu perversamente, mas era diferente de Kaladia. Na verdade, se
não fosse pelo fato que a envolvia em algo com Demeron, eu a teria achado
engraçada.
Era quase como se ela fosse uma personagem safada o tempo todo.
— É todo meu, querida.
A entrada foi servida e me senti comendo num restaurante cinco
estrelas. Elogiei a comida, sorri nos momentos certos e respondia ou
comentava algo quando era pedido, seguindo o protocolo daquele tipo de
situação.
O tempo todo, sentia a presença e o vazio de Demeron, sua indiferença
em relação a mim tanto machucava, quanto era compreensível. Talvez, se ele
não estivesse com Kirina antes de se sentar ao meu lado, eu entenderia sua
falta de contato comigo.
Me lembraria que ele estava me protegendo em silêncio e esperaria
pacientemente o momento de ficarmos a sós.
Mas, os vendo juntos, eu só conseguia pensar que ele me ignorava por
causa dela. E esse ciúme incômodo e venenoso era uma cadela no cio.
Um talher bateu no prato, e virei para ver Regnar, que estava na cadeira
ao meu lado.
— Minha esposa e eu temos pensado em nos divorciar. Mas, quero sair
dessa situação com as duas bolas grudadas ao corpo, então, por enquanto,
manteremos as alianças.
Kaladia bateu o copo na mesa com força, e eu franzi a testa ao ver o
líquido escuro lá dentro. Ela jantava bebendo whisky?
— Não se preocupe, querido. Posso grampeá-las em seus ouvidos. Uma
de cada lado.
— Faz sentido — concordou Siriu, um toque de humor na voz. — Ainda
estaria no corpo.
— Não brinquem com o meu coração — disse Kirina. — Vocês sabem
que esse seria o meu maior sonho se realizando. Minha irmãzinha finalmente
indo cuidar dos negócios da família comigo.
— Nem em mil anos minha esposa administraria o seu puteiro —
rebateu Regnar.
— Pois é, querido. Mas o divórcio faz dela a sua ex-esposa. Então você
não teria realmente nenhum direito à palavra.
— Que lindo colar — elogiou Angelina, parando qualquer assunto sobre
divórcio, chamando a atenção de Siriu e Stark, que conversavam baixo.
De repente, todos pararam e suas atenções eram exclusivamente para a
peça pendurada no meu pescoço. Franzi a testa. Será que era tão chamativa
assim?
Com o canto dos olhos, fitei Demeron, mas ele continuava mudo, da
mesma forma de como entrou na sala e se sentou.
— Obrigada. — Agradeci, tocando levemente a pedra delicada.
— Foi um presente? — A senhora insistiu.
— Foi sim.
— Eu dei a ela. — Ele finalmente disse, depois de alguns segundos se
fez silêncio. Eu estava mais do que surpresa. Ele deixou sua taça na mesa e
me olhou de volta. — É bonito e único. Como Onira. Tinha que ser dela.
— Eu imagino as coisas únicas que andam acontecendo para ela ganhar
a sua fatia.
Demeron tirou os olhos de mim e girou a cabeça lentamente para seu
irmão, cerrando a mandíbula, lhe lançando um olhar nada agradável. Siriu
franzia a testa para mim e Regnar tinha um olhar cheio de curiosidade
passando entre mim e seu irmão. Senhor Stark continuava neutro, como se
estivesse alheio aos meus devaneios que só ele não percebeu.
— O jantar estava ótimo, mas deu a minha hora — disse Kirina, então
ficou de pé.
Aquele sorriso não saía de seu rosto. O que ela achava tão engraçado,
afinal?
Eu não sabia se ela só queria sair do meio daquele desastre ou tinha
mesmo que ir, mas agradeci mentalmente a distração.
Porém, isso foi apenas até quando a cadeira ao meu lado arrastou para
trás. Eu baixei os olhos para o meu prato, fechando-os, quase implorando que
fosse Regnar indo acompanhar a irmã de sua mulher, mas é claro que não.
— Eu vou acompanhá-la.
Raiva.
Tudo dentro de mim virou raiva.
A forma como ela sorriu para ele e acenou para todos na mesa,
depois saiu quase saltitando com ele atrás, me enervou.
Kaladia virou seu whisky de uma vez e disse algo, mas não prestei
atenção.
Belle tentou puxar assunto com Angelina, mas a mulher a ignorou
completamente, simplesmente se levantou e saiu. Stark e Siriu continuavam
falando.
Regnar foi o próximo, mas antes de sair, ele agachou ao meu lado e
colocou a mão na minha perna. Meus olhos voaram para Kaladia, mas ela
apenas segurava a taça de vinho que era de sua irmã e a balançava, girando o
líquido.
Suas sobrancelhas ergueram.
Fitei Regnar.
— Eu mudei de ideia sobre você, Onira — murmurou. — Não foda com
o meu irmão. Ele é um animal.
A cadeira a minha frente arrastou para trás e Kaladia apoiou as duas
mãos na mesa, então se inclinou o máximo que pôde para mim.
— Já está tudo perdido para mim, mas você deveria correr enquanto
ainda pode.
Não foi apenas por seu alerta que me levantei sem dizer mais nada a
qualquer um deles e saí daquele purgatório, ignorando os chamados de Siriu e
correndo o mais rápido que pude para fora, foi também por Demeron.
Na verdade, foi completamente por causa dele.
Maldita Kirina.
Já não era complicado o suficiente sem que ela estivesse ali?
Saí da casa e desci os degraus da varanda, minhas pernas tremendo,
assim como as mãos, eu tremia por inteiro de raiva.
Mas não fui muito longe. Num minuto eu tinha meus olhos fixados no
grande portão a metros à frente da propriedade, e no próximo, estava grudada
à parede da casa com uma parede de músculos me segurando ali.
Eu ofeguei com o impacto de sua brutalidade e tentei empurrá-lo, o que
era perda de tempo. Eu não sairia dali a menos que ele me deixasse.
— Deixe-me ir, H̄mū k̄hxng khuṇ!
— Vai precisar me xingar em outra língua, Liebe, eu falo tailandês.
— Qual idioma você prefere? A língua das prostitutas?
Ele franziu o cenho, a careta aprofundando a cada coisa que eu dizia.
— Acha que te trato como uma prostituta? — Seus olhos eram severos,
assim como a voz.
— Sim, eu acho. Mas não é de se estranhar. Talvez eu não seja o tipo de
mulher para você, olhando pra mim e para Kirina, posso ver isso.
Suas sobrancelhas ergueram.
— Kirina?
— Não se coloca quem você dorme e quem você planeja dormir para
comer na mesma mesa.
— Você não sabe de porra nenhuma — sussurrou. Sua voz era gélida, os
olhos distantes.
Me irritou mais ainda. Fora da equação.
— Foda-se, Demeron! Foda-se! Vão se foder você e sua família louca!
Eu não dou a mínima se um carro me atropelar na próxima esquina, se vou
levar um tiro quando passar por aquele portão ou o que quer que seja!
Simplesmente não me importo. Só fique longe de mim!
Ele agarrou meu braço e me puxou de volta, colando-me em seu peito.
— Mas eu me importo. E você não tem a porra da permissão para
morrer.
Então ele me beijou.
Novamente.
Aquela porra de beijo que fazia minhas pernas ficarem bambas. Mas, era
pior dessa vez, porque eu estava sendo corroída pela raiva e esmagada pelo
meu orgulho ferido.
As imagens dele e Kirina ficavam repassando na minha mente como um
replay acionado direto do inferno. E era o próprio diabo que me beijava e
fazia isso.
Que me deixava doente de pensar em coisas sobre ele. Sobre nós.
Eu o empurrei, e sem parar para pensar em minhas ações, deixei minha
mão livre para acertá-lo em cheio. Ele não se moveu e eu não me arrependi,
mesmo tendo consciência de seu tamanho ser o dobro do meu. O rosto virou
levemente, mas quando os olhos furiosos bateram em mim outra vez, ergui o
queixo, desafiando-o a devolver.
Mas, ele sorriu, um sorriso lento e perverso, que enviou calafrios dos pés
até a cabeça e no profundo da minha alma.
Minha pele queimava.
— É bom saber que não preciso ser delicado, kleine Unze.
Ele abaixou atrás de mim e quando levantou, senti suas mãos arrastando
em minhas pernas, levando o tecido da saia junto, então me virou, grudando
minhas costas em seu peito.
Demeron respirava pesadamente, eu não sabia se era raiva, excitação ou
adrenalina, talvez os três juntos. Pelo menos aquela mistura era o que eu
sentia.
Eu sabia o que ia acontecer ali, pois ficou mais claro ainda quando
ele me puxou, ainda grudado em mim, beijando, mordendo, cheirando o meu
pescoço, e nos guiou até a parte de trás da casa. À minha frente surgiu um
labirinto, onde ele rapidamente entrou e depois de dar algumas voltas,
chegamos a uma fonte, parecia ser o centro, e bancos de mármore rodeavam a
minha escultura fixada no meio de onde a água se derramava.
Era a maior que eu tinha feito para eles.
— Demeron... — Praticamente gemi entre sussurros e ofegos.
Ele não respondeu. Estava concentrado demais me transformando em
uma gelatina humana.
Então estávamos sentados. Ele rapidamente me puxou para seu
colo, posicionando-me diretamente em cima de sua ereção. As mãos
agarrando meus cabelos não relaxaram. Ora descendo por minhas costas, ora
segurando minha cintura, mas ele não parou de me beijar.
Era como se não pudesse se controlar tanto quanto eu não podia
também.
Esqueci onde estávamos.
Esqueci que aquele fogo foi despertado por gritos e tapas.
Esqueci completamente que havia pessoas naquele lugar que poderiam ir
até nós imediatamente.
Eu só podia lembrar dele.
De Demeron e nossos corpos em perfeita sincronia.
Enquanto segurava seu rosto e o beijava com os olhos apertados, me
senti ser levemente erguida, depois suas mãos alcançando a parte mais íntima
do meu corpo.
Era demais.
Tantas sensações. Tanta vontade. Tanto desejo.
— Tire — pedi, ofegante, tentando levantar sua camisa, mas sua mão
segurou as minhas.
— Não.
— Demeron, rápido... eu... eu quero.
— E você terá.
As mãos ásperas seguraram minha cintura com força, levantando meu
quadril sem delicadeza e no segundo seguinte, ele bateu dentro de mim.
Fui impulsionada para frente.
— Quieta, Liebe. — Ele sussurrou no meu ouvido. — Nós não
queremos que Stark ouça, não é?
Eu choraminguei, perdida nas sensações de seu corpo segurando o meu,
envolvendo-me em seu peito.
Eu deveria estar gritando e correndo de pavor, mas estava fascinada.
Não houve delicadeza. Nenhum cuidado. Mas, ainda assim, eu estava
molhada pra caralho e pronta para recebê-lo. O silêncio de repente foi tomado
pelos sons de nossos corpos se batendo, os meus gemidos sôfregos e nossas
respirações.
As mãos não me soltavam, ele me apertava como se eu fosse fugir. Mas,
não havia como, nem se eu quisesse. Ele estava tão profundo, que eu sabia
que levaria dias para esquecer fisicamente que esteve ali.
E isso me fez pensar quanto tempo seria até que me esquecesse dele em
minha mente?
Ele segurava meus quadris, e me puxava para baixo com força, e a cada
batida, eu tinha a sensação de que ia mais fundo. Comecei a pressionar de
volta, segurando seus ombros e olhando nos olhos assombrosos,
encontrando seus movimentos.
Joguei a cabeça para trás quando se tornou demais suportar e ele se
tornou mais rápido. Por reflexo, meu corpo se ergueu, tentando me livrar da
pressão que começava a se construir, mas ele me puxou de volta e fechou a
mão sobre minha boca, sufocando o grito que deixei ao ar.
O orgasmo me bateu com força, afogando-me como nunca aconteceu.
Eu respirava pesado, meus ouvidos zumbindo, peito arfando, coração
acelerado.
Tentei recuperar o fôlego quando ele já tinha parado seus movimentos e
apenas me segurava, seu pau ainda cravado como uma rocha no meu interior.
Mesmo no escuro, os olhos azuis escuros e opacos eram fáceis de ler
para mim. Sempre com o rosto severo, nunca sorrindo.
Nem mesmo quando dei tão fácil o que nós dois queríamos.
Levei meus dedos no meio das sobrancelhas, cutucando o franzido que
ele sempre fazia ali.
— Por que está me olhando assim? Você sempre me olha estranho.
Ele levou alguns segundos para responder.
— Eu vou me casar com você.
Eu dei risada, revirando os olhos.
— Isso não é bem o que se espera ouvir antes mesmo do primeiro
encontro.
Ele franziu a testa de novo. Era bem daquele jeito que fazia quando
estava pensando.
— Essa é a quinta vez que nos encontramos.
Segurando um sorriso, fiz uma conta mental rápida, notando que ele não
contou a primeira vez, quando presenciei seu surto na Konstantine Business.
Será que sequer lembrava daquilo?
— Poderia ser a décima, mas ainda seria cedo para dizer que quer se
casar com alguém.
— Pessoas se casam todos os dias em Las Vegas horas depois de terem
se conhecido.
Dessa vez eu ri.
— Pessoas bêbadas.
— Álcool nessa casa é o que não falta, se é disso que você precisa.
— Demeron... é preciso mais do que álcool para se casar com alguém.
— Eu não vou me casar com alguém. Vou me casar com você. O que
você sendo alguém precisa para casar comigo?
Se isso era uma brincadeira, ele não estava dando sinais. Sua expressão
séria e os olhos totalmente focados em mim. Um grito e um “sim” estavam
entalados em minha garganta, então, reconheci que estava, sim, perdendo a
sanidade. Considerando me casar com alguém por pura atração, por batidas
mais rápidas do coração, por uma sensação de segurança.
Droga! Pela intensidade que sentia sempre que estávamos perto.
Mas, ainda assim, era louco.
— Não vou me casar com você. Nunca mais me diga isso.
— Então deve parar de me olhar assim.
Franzi a testa, ainda acariciando sua barba clara.
— Assim como? Como eu te olho?
— Como se quisesse me foder outra vez.
Inalei bruscamente, sentindo os efeitos de suas palavras irem direto para
o ponto do meu corpo em questão. A excitação que tinha apenas dissipado
um pouco, voltou com força. Tentei tirar o joelho de onde estava, mas ele foi
mais rápido, segurando minha coxa com as duas mãos e a puxando para mais
perto, me tirando um pequeno grito quando seu membro pulsou.
— Acha que eu quero te foder outra vez? Eu já fiz isso, posso
simplesmente ir embora.
— Desde a primeira vez que me viu, sim, você queria dar pra mim. Fale
o quanto quiser, você não vai embora.
Com a boca quase escancarada por sua estupidez, agarrei seus ombros e
me movi, descendo e subindo lentamente com nossos corpos ainda
grudados, sentindo seus dedos massageando a pele por baixo da saia.
— Então está dizendo que vai se casar comigo para me comer? Só vai
fazer isso de novo se houver um casamento?
— Se eu te foder como quero, você vai virar as costas quando acabar e
nunca voltará para mim. Se for minha esposa, posso te prender comigo, então
não corro o risco.
— Você fez exatamente isso.
— Te prendi?
Com a garganta apertada, passei os dedos entre os cabelos ralos.
— Me fodeu como um animal. — Minha voz era quase um sussurro.
Os olhos incrivelmente profundos me encaravam sem piscar.
As mãos fortes ainda me seguravam como se não fosse me soltar nunca.
Mas ele havia feito exatamente o que eu disse.
Me fodeu como um animal.
Eu fodidamente gostei disso.
E ali no meio do purgatório, completamente vestidos debaixo da minha
escultura, eu deixei que ele fizesse outra vez.
“Nos seus olhos há um triste azul intenso
Eu quero me sentir como nos sentimos naquela noite
Bêbados de um sentimento, sozinhos com as estrelas no céu”
SELENA GOMEZ, WOLVES
Aquele quarto não era dele. Parecia ser de ninguém. Frio, vazio, paredes
brancas e móveis claros. Tudo opaco e sem vida. Nenhuma decoração
pessoal, nada que me desse uma pista sobre o lugar onde Demeron tinha me
levado depois de fazer-me praticamente desmaiar de prazer em seus braços.
Fiquei sentada naquela cama por vários minutos, talvez uma hora depois
que acordei. Pensando, lembrando, refletindo. Me controlando e
condenando.
Tomei banho, buscando me sentir um pouco mais humana depois da
noite anterior, mas colocar a mesma roupa e enfiar os pés nos mesmos
sapatos, só fazia parecer que aquela noite não tinha acabado. Que eu estava lá
embaixo novamente gritando com o mais belo homem que já vi, e no minuto
seguinte, deixei que ele se afirmasse em mim sem reservas. E enquanto
penteava meu cabelo, esmaguei-me mentalmente com o martelo que me
condenava, porque pior que ter nos deixado ir longe demais, é que não me
arrependi.
Saí do quarto, confirmando que estava na casa principal, e como uma
admiradora de artes, fiquei boquiaberta com a maravilha que era. A grande
escada era como um enorme caracol, levando do terceiro andar até o
primeiro. Desci passando a mão pelo corrimão, sem conseguir acreditar nas
riquezas de detalhes. As paredes eram repletas de obra de arte, e no teto, em
cima da escada, havia apenas vidro, que fazia com que entrasse uma
quantidade infinita de luz, iluminando aquela parte da casa como nem mil
lâmpadas podiam ter feito.
Estava quase no fim, quando ouvi um choro baixo, quase um lamento.
Fiquei tensa imediatamente, procurando a fonte, e encontrando ao descer
completamente. Um pequeno corpo dobrado, que tremia segurando um urso
de pelúcia. Meu coração amoleceu por ela, eu nem precisava ser apresentada
para saber que era Blair Konstantinova, a única neta e sobrinha da casa. Olhei
ao redor, conferindo se não havia ninguém para chegar até ela, sabia que sua
mãe não gostava de mim e queria fazer o máximo para evitá-la, mas como
deixar aquela pobre criança ali sozinha?
Tentei me aproximar sem fazer barulho para não a assustar, mas em meu
próximo passo ela já estava com o rosto vermelho e derramado em lágrimas,
me fitando com uma seriedade que não deveria estar naquele jovem rosto.
Aliás, jovem era eufemismo. Blair era apenas um bebê. Eu chutaria cinco ou
seis anos. Os cabelos incrivelmente longos e loiros, não negando a
semelhança com sua mãe, e os olhos eram de um azul profundo, que podia ter
vindo tanto de Kaladia, quanto da família de seu marido.
Parei onde estava e agachei, ficando no nível dos olhos dela, mesmo
tendo uma boa distância entre nós. Ela não foi o tipo criança rica e mal-
educada de cara, mas também não foi daquelas que imediatamente me
chamou para brincar.
— Olá, eu sou Onira. Você deve ser a Blair.
Falei calmamente, abafando um sorriso ao ver seu cenho franzido para
mim. Ela não estava propositalmente fazendo careta, parecia mais
concentrada, me observando. Uma menina carrancuda, de fato, não negava
ser filha de Kaladia e sobrinha de Demeron. Mas era a coisa mais linda
também.
Os pequenos olhos inocentes me avaliaram por longos minutos antes de
relaxar um pouco a postura e abraçar seu urso.
— Olá, senhora Onira.
— Vamos cortar esse senhora, o que acha? Eu ainda sou bem jovem.
Não tanto quanto você, mas sou — brinquei.
— Sinto muito. Mamãe gosta quando uso minha educação e que seja
gentil.
A ideia de que Kaladia obrigava uma pequena garotinha a se portar
como uma adulta me fez sentir um incômodo que eu sabia não ter direito de
sentir, mas eu fiz.
Lhe dei um grande sorriso.
— Bem, está dando certo. Você é a mais adorável moça e esse urso que
tem aí, eu nunca vi nada parecido! Ele tem um nome?
O sorriso que ela me deu iluminou a sala.
— Ele se chama Harlen.
— Uau! É um nome muito bonito. E raro, também, eu nunca ouvi. E
com certeza é um urso chique.
Blair sorriu passando a manga do vestido pelas lágrimas, levantando do
degrau que estava sentada.
— É o nome do tio Harlen. Ele morreu cumprindo dever, morreu pela
nossa nação. Tio Harlen é o nosso orgulho.
Não deixei transparecer a surpresa da descoberta. Slom não
sabia, porque se soubesse teria me dito logo que apresentou praticamente a
árvore genealógica dos Konstantinova quando fechamos o contrato. E mais
um irmão com certeza não fazia parte dos relatos que eu vi, menos ainda
Demeron o citou em nossas conversas. Mas eu sabia que não era uma
mentira. Blair podia ser pequena, mas a inocência e sinceridade em seus
olhos dizia tudo.
Enquanto eu pensava, ela chegou ainda mais perto e me estendeu a
mão.
— Vamos, Onira, vou te mostrar meu quarto de brinquedos.
Meu primeiro instinto foi ir com ela e fazer de tudo para que as lágrimas
não voltassem àquele lindo rostinho, mas sabia que não era próprio
que começasse a andar pela casa que sequer fui convidada pelo dono a passar
a noite, a ficar perambulando sem a autorização da mãe de Blair.
Segurei sua mão ainda abaixada, e mantive a voz tranquila.
— Primeiro me diga por que estava chorando? Se você quiser, me
deixou preocupada.
O sorriso murchou e seus olhos ficaram baixos.
— Harlen está furado. — Como se para comprovar o fato, ela virou o
urso e levantou a roupinha, mostrando um buraco onde saía um pouco de
espuma.
— Ah, mas isso não é problema! Podemos costurá-lo.
Um pouco de esperança se mostrou em sua face, mas desvaneceu e ela
balançou a cabeça.
— Mamãe não quer. Ela diz que coisas quebradas devem ser
substituídas. Coisas consertadas ficam velhas, fedorentas e sem valor.
Franzi a testa, incomodada que Kaladia tivesse dito algo assim para uma
criança —mesmo que fosse sua filha.
— Eu fugi, porque mamãe e papai estavam brigando muito no quarto,
então vim aqui embaixo esperar que terminassem.
— Oh, pequenina — lamentei, acariciando suas mãos. — O que acha de
irmos ver se está tudo bem agora? Eu aposto que não estavam brigando, era
só uma conversa mais séria.
— Não, Onira. — Ela falou quando começamos a subir a
escada. — Eles lutam. Mamãe sabe lutar tão bem quanto meu pai. Ela deixou
o rosto dele sangrando e ele machucou seu braço.
Abismada, tentei não demonstrar meu choque, mas foi impossível. Ela
dizia aquilo com uma naturalidade que não era normal. Há que tipos de
coisas essa criança estava sendo exposta?
Eu não tinha o que dizer, então a acompanhei até o segundo andar, e
viramos no lado esquerdo, onde ela disse que ficava o quarto de seus pais.
Passamos por várias portas, e mesmo com Blair falando sem parar, eu estava
prestando atenção nela e respondendo, mas atenta a qualquer barulho. Se
ouvisse um grito sequer, chamaria a polícia e a levaria para o mais distante
dentro do jardim que poderíamos ir para que ela não presenciasse nada.
— Mamãe? — Blair chamou, abrindo a porta e entrando. Eu fiquei do
lado de fora, mas com a porta completamente aberta. Pude ver o enorme
quarto e de longe, na cama espaçosa, um corpo jogado em cima.
— Você foi ver o vovô? — A voz era rouca, baixa, mas reconheci como
de Kaladia. Ela não se moveu.
— Procurei por ele, mas não o encontrei.
O silêncio tomou conta do cômodo e olhei em volta, a primeira coisa
que vi foi uma garrafa de whisky ao lado da cama, em cima do criado-mudo.
A janela aberta fazia as cortinas esvoaçarem para dentro, fazendo a luz do sol
ficar dançando com a sombra lá dentro.
Blair ficou na beirada da cama segurando o urso de cabeça baixa. Pobre
menina. Eu quis entrar e sacudir Kaladia, dizer a ela para cuidar de sua filha,
para ser sua mãe.
— Vou te dar um banho, espere só um pouquinho.
— Eu já tomei, mamãe.
— Certo. — Veio um sussurro baixo. — Então fique pronta para o
ballet.
— Tudo bem. Posso ficar com Onira enquanto espero?
Como se meu nome fosse um sino do inferno, Kaladia se ergueu, o
cenho franzido para Blair. Ela colocou as mãos nas costas para ficar em pé e
soltou um pequeno barulho, como se estivesse com dor. Usava um roupão, os
cabelos molhados. Mas, mesmo de longe, eu vi dois pingos de sangue no
tecido branco.
Jesus. Que tipo de merda acontecia ali?
Cada hora dentro daquela casa me deixava mais motivada a ir embora e
nunca voltar.
Seus olhos então ergueram e ela me viu na porta. A postura mudou
completamente. Ela ficou reta, nenhuma evidência de fragilidade em sua
expressão. Caminhou até estar na minha frente com firmeza.
— O que estava fazendo com a minha filha?
— A consolando. Garantindo que ela não ficaria sozinha dentro dessa
casa enorme e fria.
— Ela não precisa do seu consolo, e pode ter certeza de que sabe dar um
passeio pela casa inteira.
Eu bufei, quase rindo em lamento.
— Aposto que sim. Uma criança precisa aprender lugares para se
esconder enquanto a mãe e o pai se matam.
O rosto dela se contorceu em fúria.
— Quem você pensa que é para dar um pio sobre a forma como eu cuido
de Blair?
— Ninguém. Me odeie, se quiser — sussurrei, apenas para ela
ouvir. — Mas não faça sua filha chorar por causa de um urso!
Antes que pudesse responder, Demeron apareceu atrás de mim, o rosto
sério e silencioso. Sem dizer nada, segurou meu cotovelo firme o suficiente
para me guiar e levou-me para longe de Kaladia.
— Que diabos você pensa que estava fazendo? — perguntou, ainda
levando-me para baixo.
— Nada demais.
Ele bufou.
— Você não para de causar confusões. Que ideia foi essa de ir encrencar
com aquela mulher dentro da casa dela?
Uma veia pulsou de raiva, e me soltei de seu aperto, fitando-o
seriamente.
— Temos coisas mais importantes para lidar do que eu e sua cunhada,
como por exemplo, eu tomo remédio. — falei, esperando por sua reação.
Ele ergueu as sobrancelhas levemente, depois assentiu.
— Bom. Sem camisinhas então.
— Bom?! Nós nem pensamos em nos proteger ontem. Eu acho melhor
fazermos um exame de sangue. Sei que estou bem, mas quero saber de você e
assim, prefiro te mostrar o meu também.
— Eu não pretendo fazer um exame. Você aceita a minha palavra e eu
aceito a sua. Não vou ter ninguém me furando e tirando meu sangue.
— Você sequer se preocupou que ontem poderia ter consequências?
— Ontem vai ter consequências.
— Demeron! — gritei, tentando quebrar de alguma forma a parede
imposta entre nós. — Pode me dar uma pista aqui? Eu estou perdida!
Ele apenas me encarou por um momento, então seus ombros caíram
levemente e segurou meu rosto, beijando-me como uma pena de tão leve.
— Bom dia. Venha tomar café.
Ele não esperou minha confirmação. Segurando minha mão, levou-me
para fora. Circulamos a varanda e no jardim de trás, havia três gazebos.
Quase perdi o ar ao ver tamanha beleza. Eram grandes o suficiente para um
sofá e uma mesa, com duas cadeiras à frente, flores penduradas pelas quatro
colunas e as cortinas presas para deixar a luz do dia entrar.
— Demeron — suspirei. — É lindo!
— Obrigado. Cortei o cabelo essa semana.
Parei no caminho e virei para ele com olhos arregalados.
— Acabou de fazer uma piada?
Com a sombra de um sorriso no canto do lábio, ele puxou uma cadeira
para mim.
— Coma.
Erguendo as sobrancelhas em seu comando, cruzei o os braços.
— Não me dê ordens.
Demeron se aproximou, colocando os dois braços em volta de mim,
prendendo-me entre a mesa e a cadeira.
— Quero que esteja alimentada antes de levá-la para casa.
Amoleci um pouco, reconhecendo o cuidado, mas, ao mesmo tempo, a
ideia de ir para casa sem ele me deixou estranhamente desanimada.
— Venha comer comigo.
— Estou bem. Coma um pouco de tudo, se não gostar de algo, apenas
deixe aí. Tente terminar a vitamina.
Ignorando o toque de comando em sua voz, fitei a mesa servida com
várias coisas e decidi que só por aquela vez, ia realmente fazer como ele disse
e experimentar um pouco de cada. Mas apenas porque tudo parecia
delicioso.
— Por que Kaladia me odeia?
Seu corpo tencionou, a boca apertada numa linha fina.
— Ela não odeia.
— Bem, com certeza não gosta de mim.
— Ela não gosta de ninguém.
— É claro que gosta, todo mundo gosta de alguém, mesmo que poucas
pessoas.
— Pare de querer humanizar todas as pessoas que conhece. Algumas
simplesmente não possuem tais sentimentos como amor, simpatia e merdas
do tipo.
— É claro que possuem, só perdem com o tempo.
— Concordamos em discordar.
Cortei mais um pedaço do pão crocante, bebendo um pouco mais da
vitamina de frutas frescas. Mas, sentia seu olhar sobre mim o tempo todo,
quase me travando.
— Você pode pelo menos se sentar? Ou vai ficar só me olhando até que
eu termine?
— Realmente prefiro ficar e olhar.
Frustrada, desviei o olhar.
— Não era necessário tanta comida — murmurei.
— Preciso aprender o que você gosta.
— Para me chantagear?
Ele ficou em silêncio por um momento, então se sentou, puxando a
cadeira para tão perto quanto podia. Pegou minha mão.
— Para quando se casar comigo.
Engoli em seco, tentando fugir do calor de seus olhos fixos.
— Achei que tínhamos combinado em parar com esse assunto ontem.
— Eu não combinei nada. De fato, apenas encontramos algo melhor
para fazer ao invés de falar.
— Foi apenas uma noite, Demeron — sussurrei, tentando convencer a
mim mesma que ele não estava falando sério.
Não podia estar.
Um meio sorriso atingiu seus lábios, os olhos inexpressivos nem
piscavam.
— Não seja ingênua, kleine Unze. O que você me deu, é impossível
pegar de volta.

DEMERON

Demeron se acomodou na cadeira dura e desconfortável, colocou os pés


para cima, abriu a cerveja e ligou os três monitores conectados. Deixando o
teclado próximo para que pudesse trocar os ângulos e ajustar as telas, tomou
um gole da cerveja e esperou.
Não demorou demais, a porta abriu, mesmo que já tivesse a visto
passando pela calçada de sua casa e a varanda, sentiu uma sensação estranha
quando visualizou como Onira trancava a porta, tirava o casaco, sapatos, e
pendurava a bolsa. Depois, esperou que ela fosse comer, dormir, tomar um
banho, mas, para sua surpresa e incômodo, ela apenas ficou ali de pé.
Passaram-se vários minutos, preocupação atingindo Demeron, e Onira não se
movimentava. Quando estava prestes a se levantar e ligar para ela ou até
mesmo correr para sua casa, Onira fechou os olhos e começou a murmurar
sozinha, andando pela casa, arrumando coisas que aos olhos de Demeron, já
estavam arrumadas.
Ele esperou pelo peso na consciência.
Sabia que invadir a privacidade dela não era certo, tampouco aceitável.
Que conhecendo sua kleine unze, ela ficaria furiosa se soubesse que estava
sendo vigiada daquela forma. Mas, sentimentos nunca foram um problema
para ele, principalmente se havia qualquer risco de prejudicar a missão.
O sexo foi incrível, além do que ele esperava, de fato. Ela era uma boa
mulher. Se a conhecesse em outras situações, a desejaria boa sorte e esperaria
que encontrasse alguém para se casar e fosse feliz. Ficaria longe dela. A
deixaria em paz para colocar nos trilhos a bagunça que era sua vida.
Mas havia coisas mais importantes do que bom senso e consciência.
Aliás, Demeron sequer conhecia o significado disso.
Recostou novamente, sabendo que seria um longo dia, e fez planos para
instalar as câmeras em seu ateliê quando fosse visitá-la durante a semana.
É claro que via como ela o olhava, como se entregava a ele, ela gostava
quando tinham conversas profundas e poéticas. Mas ele não sentia nada além
de pressa. Tudo seria mais fácil se ela aceitasse sua proposta de uma vez.
Finalizaria sua missão, e pularia para a próxima.
Aquele papel de vítima foi, sem dúvidas, o que mais estava sendo
tedioso para fazer.
Durante os últimos cinco anos de sua carreira, quando tudo foi para o
inferno, aceitou as missões que ninguém queria aceitar. Ultrapassou
fronteiras de países e continentes, desafiou as regras que nem sequer estavam
registradas nos livros.
Subiu passo a passo da escada, se tornando o braço direito de um
mafioso, assim desmantelando o império de cima para baixo quando chegou
a hora.
Dormiu com a esposa de um político importante, a conquistou até que
estivesse completamente apaixonada por ele, e conseguiu os segredos de
estado de seu marido.
Até mesmo foi um pai de uma família contratada para se infiltrar numa
organização no México.
Tantas outras missões mundiais que fizeram dele uma lenda no mundo
da espionagem, mas nada se comparava a missão mais importante de sua
vida.
Onira Tieko.
E quando ela dissesse sim, é que começava.
Ele não via a hora.
“Sentei-me na escuridão, com o coração totalmente partido
Mas de alguma forma baby, você veio em meio à tudo e me salvou
Você é um anjo, diga que nunca me deixará
Porque você é a primeira coisa em que sei que posso acreditar
Você é santa
Você é a margem do rio onde fui batizado
Me purificando de todos os demônios que estavam matando a minha
liberdade
Deixe-me te deitar, me entregar a você
Te fazer cantar aleluia
Nós vamos estar tocando o céu”
FLORIDA GEORGIA LINE, HOLLY
— Não julgo. Aqueles irmãos são alguns dos poucos que me
convenceriam a fazer uma dupla penetração. — Isso foi o que Slom me disse
quando eu mencionei que havia beijado Demeron.
Deixei de fora todo o resto, e percebi que estava escondendo mais fatos
do que deveria ser saudável. Quando algo está certo, você fica confortável
para falar, principalmente se tratando de uma possível relação, mas omitir e
mentir já deveria ser um sinal de que algo estava errado.
Com certeza eu não ia dizer a minha sócia e melhor amiga que o único
homem, até mesmo acima de seu irmão, que havia sido o primeiro que
despertou minha atenção, tinha uma família completamente perturbada. Que
havíamos transado sem nenhuma proteção ou reservas, como cachorros no
cio. E menos ainda que ele mencionou casamento mais de uma vez.
O que começava a me fazer suspeitar que estaria falando sério.
— Você disse a mesma coisa sobre Bruce Venture.
— Não, eu disse que Bruce me faria considerar uma orgia.
— Não dá no mesmo?
Ela parou de assinar o que quer que estivesse naqueles papéis e me fitou
com as sobrancelhas arqueadas.
— Realmente quer que eu comece a te explicar as diferenças entre orgia
e apenas a dupla penetração?
— Esqueça que perguntei. — Ficamos em silêncio por alguns minutos,
cada uma em seu canto, até que decidi tentar pescar uma opinião sem ser
clara. — Quanto tempo você acha saudável conhecer alguém e manter um
relacionamento até começar a cogitar a palavra “casamento"? — perguntei
num tom desinteressado.
Slom deu de ombros, se revezando entre digitar em seu notebook e
mordiscar uma barra de vitamina.
— Depende. Eu casaria com Siriu, vulgo senhor X, em uma única foda.
Soltei um gemido forçado, revirando os olhos. Se ela soubesse...
— Eu nunca imaginei que um homem como ele faria seu tipo. Você
sempre caiu mais para o lado dos vagabundos e acomodados.
— Era um fetiche, você sabe... como se eu fosse uma sugar mommy.
— Ela disse. — Mas, falando sério, tem gente que namora por anos até se
casar e o divórcio vem em menos de seis meses. Assim como tem quem se
conhece em Las Vegas, casa lá mesmo e passa a vida juntos. O casamento é
superestimado. Um pedaço de papel não define amor e convivência. Você
pode morar com alguém e cada dia realizar uma fantasia diferente, mas
quando se casarem, os dois vão virar o pior pesadelo um do outro. A mulher
vai ter um caso com o jardineiro e o cara com a secretária. Mas tudo pode ser
um lindo conto de fadas também. Como eu disse, eu não hesitaria em me
casar se sentisse como se não pudesse ficar longe de alguém, se não desse
certo, quem se importa? Divórcios estão aí para isso.
Escutei cada palavra atentamente e fiquei em silêncio, refletindo sobre
elas. Observando minha falta de respostas, Slom se endireitou na cadeira, e
terminou a barrinha enquanto me analisava. Finalmente após alguns minutos,
ela balançou a cabeça.
— Merda.
— O quê?
— Você está pensando em se casar com o Konstantinova pirado.
— Não estou, não. E ele não é pirado.
Ela bufou.
— Ele faz total aquela pinta de soldado traumatizado. Tenho certeza de
que viu coisas na guerra que o fizeram ser assim. Acho que ele tem pesadelos
de noite e provavelmente não consegue dormir por conta disso. E ele será
difícil de confiar, não vai te contar os segredos dele, mas vai querer saber
todos os seus.
Eu não sabia se ria ou ficava assustada.
— E você sabe tudo isso se baseando em...?
— Livros que li com Seals, soldado, fuzileiros, o que você quiser levar
em conta.
— Caramba, Slom, obrigada por me dar um discurso inteiro baseado em
ficção.
Ela riu e deu de ombros.
— A ficção é uma imitação da realidade, minha linda amiga de olho
puxado. Apenas isso. Mas, se está considerando casar com o cara, há um jeito
de saber se isso é uma furada.
Revirei os olhos.
— Não que eu esteja cogitando me casar com alguém,
mas se estivesse... que jeito seria esse?
— Se quer conhecer um homem, faça do jeito infalível. Vá até a casa
dele.
Eu não queria admitir, mas fiquei tentada. Ir até a casa dele seria a
primeira coisa que eu faria se ao menos soubesse onde ficava.
Style havia me ensinado que as pessoas que têm algo a esconder,
escondem onde pensam que ninguém iria procurar, onde todos achariam
óbvio demais. Então, sua casa seria o lugar que ele não se preocuparia em
manter aparências.
Eu não achava que Demeron queria me prejudicar, estava bem claro para
mim que mesmo sua família sendo vingativa o suficiente para tentar me fazer
mal por algo que pensavam que meu irmão fez, Demeron só me protegeu.
Ele foi contra seu pai, primo e irmão; e estava me mantendo perto de si
mesmo, até mesmo me propondo casamento. Mesmo que ele não tivesse dito
que essa proposta era por conveniência, eu sabia, de alguma forma sentia que
era seu jeito de dizer a seu pai que se tentasse me atingir, seria como atingir o
próprio filho.
Eu não podia estar mais grata.
Não temia pela minha vida, não tinha medo da morte, tinha medo de
morrer sem uma boa razão. Por isso, queria viver o bastante para provar
a Stark que o que quer que ele pensava que meu irmão fez, não poderia ser
ruim o suficiente para me machucar, ou ir além e até mesmo
me matar. Se Demeron era bom e tão protetor, certamente sua família não
seria tão longe disso.
— Eu não sei onde ele mora.
— Merda — resmungou, pegando a chave e ficando de pé. — Esse é um
sinal claro do que temos que fazer agora.
— O quê?
— Beber.

— Ele me pediu em casamento. Duas vezes.


— O quê? — Ela gritou, cuspindo um pouco de bebida.
— Não foi bem um pedido, foi mais uma ordem. “Case-se comigo.” Eu
esperava algo romântico quando encontrasse o cara da minha vida, mas se
encaixa com ele.
— Você acha que ele é o cara da sua vida?
As palavras emboladas estavam me fazendo rir. Rir tanto que derrubei o
copo e nós duas olhamo-nos e fizemos um “ooooh", rindo mais ainda.
— Slom, chame o gerente, esse copo pulou da minha mão e acabou de
quebrar!
— Eu vou chamar o capitão. — Ela gritou, jogando uma almofada nas
costas de um homem que estava próximo de nós. — Onde estão os stripers?
Nós temos uma noiva aqui!
Eu caí para trás no sofá, completamente desinibida. Rindo e gritando
com todo o álcool fazendo efeito.
No fundo da minha mente, lembrei que não estava nos planos contar
sobre o pedido de casamento, ou melhor, a ordem de casamento. Também
não deveria estar bebendo tanto se uma de nós ia dirigir para casa.
Por todo o caminho do ateliê até a Freude, uma das melhores casas
noturnas de Berlim, tentei convencer Slom de que era uma má ideia, mas ela
aumentou o volume do som e me ignorou como uma criança fazendo birra.
Por fim, eu me perguntei: por que não?
Então nós fizemos da nossa missão no minuto em que pisamos dentro da
boate, que só sairíamos dali quando não nos lembrássemos quem éramos.
— Aceite o pedido. — Ela falou de repente, segurando minhas mãos
com uma e na outra, o copo cheio, que derramava um pouco de álcool em nós
duas.
— O quê? — perguntei num tom agudo demais.
— Case-se com ele. Faça isso por nós duas.
— Slom, o que você está dizendo?
— Eu estou dizendo que, se pelo menos uma de nós tem a chance de ter
um Konstantinova na vida, deve agarrar. Eu estou conformada que Siriu só
vai continuar aparecendo em minha casa, amarrando-me e fodendo com a
minha vida em todos os sentidos.
Sua voz chorosa me fez chorar também, então o que eram risos antes,
viraram lágrimas.
— Ele continua indo te ver?
— Me ver não define as visitas dele. Ele aparece, toma o que quer e vai
embora. Não se importa que meu irmão é um dos homens mais importantes
do país ou que eu venho de uma família nobre e antiga. Só se preocupa com a
minha boceta, isso são palavras dele.
— Sinto muito, Slom. Mas você deveria ficar feliz. Ele não é o homem
que parece ser.
Ela balançou a mão no ar e tentou falar, mas o choro a atingiu ainda
mais. Então com pés vacilantes, me levantei e a ajudei a ficar de pé, lembrei
de pegar nossas bolsas e segui para fora, apoiando minha amiga que se
revezava entre rir e chorar. Slom sempre foi uma bêbada difícil, mas pelo
menos sempre se lembrava de tudo o que fazia no estado comprometido,
diferente de mim, que não tinha os efeitos da ressaca, mas não lembrava de
uma só coisa.
Nós atravessamos a rua e abri a porta do passageiro, a empurrando para
dentro e tentando fechar o cinto. O vento batendo nas minhas pernas e um
pouco mais acima, me fazia pensar que talvez eu estivesse mostrando demais
para as pessoas passando na avenida e na porta da boate, mas o cinto estava
tão difícil de encaixar que eu não podia me concentrar em qualquer outra
coisa.
Não consegui fechar, mas Slom já tinha pegado no sono, então decidi
que iria bem devagar e nenhuma de nós precisava de cinto.
Eu estava a passos vacilantes e confusos dando a volta no carro,
tentando encontrar a chave certa para ligar o motor, quando bati de frente
com um peito grande e duro.
Resmunguei algumas palavras, e tentei contorná-lo, mas apenas bati
novamente, porém, dessa vez, meu corpo mole voltou para trás, quase caindo,
se braços igualmente fortes não me segurassem.
— Oh, meu Deus — murmurei comigo mesma. — Serei sequestrada. —
Olhei para o vidro da frente, vendo Slom dormindo tranquilamente, e gritei:
— Slom!
— Mas que porra?! — A voz grossa soou à minha frente, mas eu estava
ocupada batendo no capô e chamando minha amiga.
— Ei, gata. — Outra voz surgiu, masculina, porém mais fina. — Está
tudo bem aí? Esse cara tá te incomodando?
— Ela é minha, caia fora.
Eu comecei a rir enquanto era levada para outro carro, mas preocupada
porque percebi vagamente que Slom estava ficando mais distante.
— Não deixe meu anjo vingador te ouvir dizendo isso, seu grande
panaca! — Eu disse, batendo no peito do homem.
Fui levantada, minha cabeça girou, então estava encostada em algo
macio, confortavelmente apoiada.
— Está me ouvindo? Se ele te ouvir dizendo isso, vai te matar.
De repente eu estava em movimento.
— Sim, Kleine unze, é bom que você saiba disso.
— Pequena onça... Só ele me chama assim. Espera... é você?
— Você quer que seja?
— Sim — sussurrei, querendo abrir meus olhos para confirmar se meu
anjo estaria ali do meu lado. — Eu sempre quero você por perto.
— Bom.
— Eu deveria lhe fazer sexo oral agora, despertar todo o seu interesse
em mim, assim você não mudaria de ideia.
— Mudar de ideia sobre o quê? — A fúria em sua voz me fez rir, mas ao
mesmo tempo senti uma lágrima molhando minha bochecha.
— Sobre casar comigo — sussurrei.
Sentia meus olhos pesados, eles queriam fechar, mas eu precisava
mostrar ao meu anjo protetor que estava disposta a fazer o que fosse preciso
para mostrar que estava ali e disposta.
— Não se preocupe, Onira. Nada no céu ou inferno mudaria minha
mente sobre isso.
Eu sorri e tentei dizer algo, não sei se consegui, porque ouvindo os
zumbidos da minha própria mente, apaguei de vez.
— Onira, acorde.
Rolando para o lado ao ouvir uma voz penetrando meu sono e uma mão
me balançando, fechei os olhos com mais força, determinada a voltar a
dormir.
— Deixe-me em paz.
Ouvi uma risada rouca, e com o sono dispersando, reconheci quem
estava comigo.
— Sinto muito, querida, não posso fazer isso.
Lentamente levantei o braço que cobria meus olhos e o fitei. Meu
coração derreteu como fazia todas as vezes, e soltei um suspiro trêmulo. Eu
não me cansava de olhá-lo. Estava ainda mais perfeito. Parecia sempre mais
bonito.
— Você é tão lindo — murmurei, meio mal humorada.
— Não faça esse bico.
Ele segurou minhas mãos e com uma delicadeza encantadora, beijou a
ponta de cada dedo, olhando fixamente em meus olhos.
— Você nunca mais vai beber como fez ontem.
Só por aquelas palavras eu imaginei que deveria ter sido muito ruim ter
que lidar comigo. E mesmo não me lembrando, no meio da bagunça da minha
mente, algo me beliscou e eu fiquei tensa.
— Eu pedi para... você sabe. — Hesitei, tão envergonhada em dizer as
palavras.
Beber nunca foi uma grande paixão, e eu nunca tive orgulho do meu
estado embriagado.
— O quê? — ele perguntou, alisando meu rosto.
— Não me faça dizer.
Um meio sorriso alcançou seus lábios.
— Se pediu para chupar o meu pau?
Eu cobri o rosto, gemendo de constrangimento. Tinha certeza de que
meu rosto estava vermelho.
Sua risada seca me fez olhar para cima.
— E eu fiz?
— Não, eu não ia correr o risco de você vomitar nele todo.
— Eu não ia!
— Não se preocupe, Kleine unze. Você terá oportunidades infinitas para
isso. Se lembra do que mais fez ontem?
— Não, e estou grata por isso.
— É uma pena ouvir isso.
— O quê? Por quê?
Ele levantou e foi até a minha estante, parando lá de costas para mim por
alguns minutos.
— Demeron? — Me sentei, franzindo a testa por sua falta de resposta.
— O que foi?
— Eu deveria ter levado em consideração que você estava embriagada.
Que nesses momentos tomamos decisões sem estar com a mente clara. Agora
vai parecer que estou impondo isso a você.
Ele então virou, as duas mãos unidas, segurando algo. Caiu de joelhos
novamente a minha frente e me fitou com aqueles olhos gelo seco, tão azuis
que me tiravam o ar.
— Você me disse sim ontem, me abraçou e disse “sim" repetidas vezes,
então eu a deixei dormindo e chamei um amigo da família, fiz o homem
trabalhar até que tivesse a peça perfeita para você.
Atordoada, vi sua mão abrir e lá dentro pousava um lindo anel todo
trabalhado. Era dourado, como uma aliança, mas tinha uma linha separada
que era prateada, com uma linha que confirmava feita de pequenas pedrinhas
de diamante. Em cima, um pingente idêntico ao do colar que havia me dado
antes.
Levei as mãos à boca, tentando impedir o grito e as lágrimas.
— Demeron... — sussurrei, sem saber o que mais dizer.
— Embora eu tenha gostado de seu entusiasmo bêbado em me aceitar
como seu marido, eu me sentiria ainda melhor de ter a mesma resposta
sóbria.
— E-eu...
Eu realmente aceitei? Disse “sim" várias e várias vezes? Mesmo me
concentrando em tentar puxar as lembranças, não conseguia. Sendo sincera,
era o que eu queria ter feito na primeira vez que ele pediu, enquanto me
segurava e se mantinha profundamente dentro de mim.
— Onira, eu quero proteger você. — Ele se aproximou e beijou meus
lábios. — Cuidar de você. — Beijou meu nariz. — Fazer seus sonhos virarem
realidade. — Beijou minha testa. — E nada me deixaria mais satisfeito do
que fazer isso como seu marido. Então... — Ele pegou minha mão e colocou
o anel no dedo certo, e não ficou nem largo, nem apertado. — Você vai se
casar comigo?
Encaixou perfeitamente.
— Sim. — Me vi dizendo, e no segundo seguinte estava em cima dele,
beijando sua boca como se nunca a tivesse visto antes.
E ele me agarrou de volta, a língua passeando por cada canto dentro da
minha boca. As mãos me apertavam, subindo por dentro da minha camiseta
até que a puxou, jogando-a longe, me deixando nua em seu colo. Elas
passearam pelo meu corpo, pernas, cintura, seios, onde alcançou, como se
estivesse marcando cada parte de mim. Separando nossas bocas, Demeron
abaixou o rosto e mordeu meu mamilo, chupando-o com força suficiente para
me fazer gritar, antes de soltar e arrastar a língua pelo meu pescoço. Ele me
empurrou levemente de volta, deitando-me outra vez.
Ficou de pé, puxou a camisa para fora, os movimentos fazendo os
músculos contraírem sob a pele bronzeada, então voltou sua atenção ao
cinto, abrindo o zíper num piscar de olhos.
Seus olhos viajavam por todo o meu corpo, e mesmo inquieta por
estar sendo observada com toda a luz do dia por seus olhos atentos, não me
senti estranha, me senti desejada. O fascínio nos olhos dele me diziam o
quanto me queria.
Ele ajoelhou na cama, colocando-se entre as minhas pernas e abaixou,
beijando minha barriga com beijos molhados, arrepiando cada canto
escondido do meu corpo. Desceu aplicando beijos até chegar ao meu osso
púbico, rodeando com a língua meu umbigo, e num sopro, se lançou sobre
minha boceta faminta.
A língua quente e macia foi recebida com meu grito de prazer e os
sulcos de sua provocação vazando para fora de mim. Com uma mão ele
segurava minha coxa apertado, onde com certeza haveria vários hematomas,
e a outra maltratava meus seios, pulando de um para o outro, apertando e
rodando meus mamilos rígidos.
Eu gemia e soluçava de prazer, ele beijava os lábios da minha boceta
como se sua vida dependesse disso, e sugava meu clitóris enquanto me
debatia na cama, quase convulsionando com o orgasmo que se aproximava.
— Demeron! — gritei, tentando me afastar quando se tornou demais e
ele não parava. Me levando a gozar uma e duas vezes.
Apenas quando eu já estava sem forças, mole sobre a cama, ele se
afastou, mas não ficou longe por muito tempo. Antes que meus músculos
pudessem relaxar, ele estava afundando dentro de mim. Seu pau grosso me
preenchendo e batendo duro, forte, até meu útero.
Ele segurou os dois lados da minha cabeça e me olhou nos olhos
enquanto metia em mim.
Deslizou dentro e fora numa velocidade que faria qualquer um ofegar,
mas estava calmo, controlado. Os olhos azuis selvagens nem sequer
piscavam. O aperto em meu cabelo se tornou mais forte, quase insuportável,
minha boceta apertou seu pau a ponto de tornar seus movimentos quase
impossíveis. E eu gritei, agarrando seu pescoço quando o senti gozar com
força dentro de mim.
Eu vou casar com esse homem.
O calor que se espalhou por meu corpo naquele pensamento me
envergonhou, mas ao mesmo tempo me fez apertá-lo ainda mais forte.
— Eu não vou a lugar nenhum. — Ele disse, como se pudesse ler meus
pensamentos.
— Eu sei.
Suas mãos acariciavam minhas costelas de cada lado, e ele ainda estava
incrivelmente duro lá dentro. Dando um beijo em meu pescoço, ele puxou
para fora, então deitou e me puxou para mais perto.
— Lembra quando prometi que contaria a lenda de Tristão e Isolda?
— Sim.
— Tristão era um órfão, não sabia nada sobre sua vida, mas com a
ajuda de seu tio Marco, rei da Cornualha, se tornou um cavalheiro de honra e
muita força. Ele sentia que tinha uma dívida com seu tio, por tê-lo tirado da
pobreza e dos cantos desconhecidos do reino e se tornado um grande homem,
então, ele tomou para si a missão de acabar com os inimigos de Marco. E ele
consegue, porém, o último, Morholt, o atingiu com sua espada envenenada,
então mesmo tendo ganhado a batalha, Tristão ia morrer.
Eu ainda não sabia para onde estava indo e por que ele sentia a
necessidade de dividir aquela lenda comigo, mas escutei cada palavra.
— O barco de Tristão o levou para a beira de um mar distante, se
acreditava que as ondas ou os deuses o levaram lá. Ele foi tratado por Isolda.
Depois de curado e tendo suas forças de volta, ele venceu o dragão mais feroz
daquele reino, o matou e por sua bravura, lhe foi prometida a mão de uma
princesa. Apenas lá ele soube que era Isolda. Tristão abriu mão de casar-se
com ela e a deu a seu tio. Mas, no caminho de volta para casa, os dois
beberam uma porção que era destinada a Marco e Isolda para que na noite de
núpcias ambos se apaixonassem, porém, ainda no mar, Tristão e
Isolda beberam e consumaram o amor. Ela já o amava, mas ele ficou
perdidamente apaixonado depois de beber.
— Se ele não queria se casar com ela e nem a amava, por que bebeu se
sabia o efeito?
— Ela era um pacote que precisava ser entregue, mas o amava. Amou
Tristão no momento em que o curou na beira do mar. Ela queria que ele a
amasse de volta. Quando chegaram do outro lado do mar, enfrentaram seu
tio, apaixonados, mas Isolda se casou com o rei Marco, e ainda assim,
manteve o romance com Tristão. Os dois foram amantes durante anos até
que Marco descobriu, ficou furioso e baniu Tristão do reino. Mas,
Isolda apaixonada, e tendo perdoado sua traição, ainda vai atrás dele e vive
na floresta com ele nas condições que uma vida na selva podia dar.
Mesmo sabendo que continuava sendo traído pelos dois, Marco ordenou a
morte de Tristão, assim Isolda voltaria para ele, porém, quando ela
viu Tristão sucumbindo à morte, se deitou sobre ele, o beijou, e morreu
também.
— Ela morreu por beijá-lo?
— Quem sabe? Há quem acredite que morreu de tristeza, outros dizem
que o beijo da morte de Tristão sugou a vida dela.
— Mas, uma coisa é certa... ele nunca realmente a amou, mas, ainda
assim, ela morreu por ele.
— É horrível.
Ele riu baixinho e apertou minha mão que acariciava seu peito.
— Tão trágica quanto Rodin e Camille.
— Demeron — sussurrei, sem saber o que mais dizer. — Faça amor
comigo.
E ele fez.
E me falou como estava feliz por eu ter dito “sim".
“Querido, eu estou dançando com um estranho...”
SAM SMITH, DANCING WITH A STRANGER
— É loucura — disse Slom, ainda inconformada.
— Eu sei.
— Você não o conhece.
— Você deve ter esquecido que foi a principal apoiadora da ideia.
— Eu estava bêbada! Você não pode me levar a sério, principalmente
quando se trata de coisas de vida ou morte, como a porra de um casamento!
— Eu teria aceitado de qualquer maneira, só ia adiar por mais algum
tempo dando a mim mesma a desculpa de que seria irracional me casar com
alguém em tão pouco tempo.
— Der! E isso faz todo o sentido. Já parou para pensar que nesse tempo
adiando, você poderia descobrir coisas que não gostaria?
— Vou descobrir de qualquer forma, é isso que acontece quando você se
casa com alguém. Descobre coisas que não sabia no namoro e decide se vale
a pena continuar.
— Santo Deus. Quanto tempo faz que o conhece? — Ela virou a taça de
champanhe, me encarando com toda a preocupação.
O que era engraçado, porque Slom era a pessoa mais relaxada e
espontânea que eu conhecia.
— Menos de um mês.
— Certo. Agora fique repetindo na sua cabeça “vou me casar com
alguém que conheço a menos de um mês”, quando parar de fazer sentido me
avise.
Eu dei risada, alcançando sua mão e puxando para o meu colo.
— Slom, você tem sido minha melhor amiga há tanto tempo que não sei
mais como seria se não tivesse você. Então aprecio que esteja preocupada,
mas não há nada que me faça voltar atrás. — Desviei o olhar dela para ver
Demeron, que estava um pouco afastado de nós, conversando com um
homem que eu não conhecia. O cara parecia animado, gesticulando com as
mãos e contando algo. Meu noivo o escutava, acenando com as mãos
enfiadas nos bolsos, mas a cada poucos minutos eu sentia seus olhos voltando
para mim.
— Ele é o meu “agora”. Não sei explicar. A vulnerabilidade dele, o jeito
que me olha, que me protege... como ele me segura... Eu nunca tive nada
parecido. Quando eu pensava em dizer “não”, só conseguia refletir depois “e
se ele for embora, então?”. E isso me fez dizer sim.
— Você está apaixonada. — Ela disse com um suspiro, quase deixando
um sorriso aparecer.
— Sim, eu acho que sim.
— Então só posso esperar que ele seja o melhor marido na porra do
mundo, ou Deus o proteja, porque eu não terei dó.
Eu a abracei e dei risada.
— Sei disso. Não teve nem do seu irmão.
— Nem me fale desse imbecil.
Querendo tirar Kurton daquele momento de felicidade, disse a ela que ia
no banheiro e a deixei com Belle. As duas tinham se dado bem já que Belle
parecia tão sozinha naquela casa.
Kaladia estava lá, sentada numa mesa com Angelina e Blair ao lado
dela. A menina olhava ao redor com as costas retas e olhos entediados,
beliscando um doce ou outro. Sua mãe as vezes se inclinava e conversava
com a avó, que aos poucos eu percebia ser a única a fazer isso.
Angelina não falava comigo, nem com Belle, Siriu e Demeron. Ela
falava com Kaladia e Kirina. Eu fui categórica ao dizer a Demeron que não
queria Kirina ali. Duas era ruim, três seria péssimo.
Não vi Regnar, o que foi um pouco refrescante. Eu tinha medo de que
ele e Kaladia começassem uma cena no meio da minha festa de noivado.
Minha festa de noivado não estava sendo discreta como eu pedi a
Demeron. Eu sabia que não era culpa dele, afinal, Belle tinha tomado conta
de tudo. Ela disse que como “madrasta” de Demeron, agora eu era sua filha e
ela queria que eu me sentisse bem-vinda na família. Meu noivo a observava
com tanto tédio enquanto ela despejava seu carinho em mim, que fiquei com
dó da menina.
Mas pior foi como ele a deixou falando sozinha quando ela se
denominou a madrasta. Ela tinha a minha idade, eu entendia sua frustração,
mas se Stark estava contente, os filhos tinham que aceitar.
Demeron escutou quando eu lhe disse isso, mas não concordou e nem
discordou, na verdade, foi como se eu não tivesse dito nada.
— Isso vai estar nas revistas logo de manhã. — Eu disse a ele assim que
chegamos na casa de Stark e vi a quantidade de pessoas lá.
— Você se importa?
— Não, mas eu sei como você é discreto, então se tudo isso te
incomoda...
— Não incomoda. — Me assegurou, chamando um fotógrafo para tirar
mais uma foto nossa. — Amanhã o mundo inteiro saberá que você é
minha. — Ele beijou o canto da minha boca, e o flash bateu bem na
hora. — Então não haverá onde se esconder.
Eu não tinha motivos para me esconder. Dei risada, achando fofo como
ele estava orgulhoso de me ter ao seu lado.

DEMERON

Ela jogou os braços nos meus ombros e me beijou.


— Temos que discutir algumas coisas antes.
— Tarde demais para rever os termos, você já disse sim.
— Eu sei, mas isso não me impede de estar preparada para o que vem a
seguir.
Eu não tinha a intenção de amá-la. Não pretendia. Mas, me preocupava
com ela, gostava de sua presença. Ela era engraçada, bonita, inteligente, e por
algum motivo, queria cuidar de mim. Não que eu precisasse ser cuidado, mas
era como se ela gostasse disso.
Eu a beijei novamente, impedindo a nós dois de falar. Eu menti
para Onira dizendo que ela havia aceitado meu pedido, mas isso era algo que
ela faria eventualmente, eu apenas fiz ambos parar de perder tempo. Mas eu
não queria mentir ainda mais. Escondi muitas coisas e fugi de várias
perguntas, mas o quanto mais distante deixasse aquele casamento, melhor
seria para ela quando acabasse.
— Você está querendo me distrair.
— Está funcionando?
— Sim, mas ainda preciso saber se você dorme do lado direito ou
esquerdo. Se deixa a toalha molhada em cima da cama, se prefere lavar ou
guardar a louça, coisas domésticas assim.
— Eu durmo de qualquer lado.
Eu não dormia realmente.
— Deixo toalhas molhadas em cima da cama e nunca lavei louça na
minha vida.
Minha disciplina era rigorosa, eu sofri durante anos para aprender a
organizar tudo e isso se estendia a minha casa. Mas, Onira precisava de
normalidade, de um marido que iria irritá-la com coisas simples, então eu
teria que dar isso a ela.
— Bem... — Ela riu. — Então me parece que vou precisar te ensinar as
disciplinas da casa. Ou terei que conviver com um marido que vai viver me
irritando com as coisas mais simples.
Exatamente.
— Sim, querida. Vou me esforçar.
— Demeron! — Uma voz cantada me chamou e eu fiquei tenso ao
ouvir Liémen Von Kimitch chamar. Disfarçando, virei para encontrá-lo
sorrindo, os olhos brilhando em Onira.
— Liémen — cumprimentei de volta com um aceno.
— E essa é a nova senhora Konstantinova? — Ele segurou sua mão,
dando um beijo.
— Eu mesma.
— Eu sempre achei que Tailândia e Alemanha eram uma combinação
fascinante.
Ela sorriu, sendo conquistada pela simpatia exagerada dele.
— Até que enfim alguém acertou meu país.
— São os seus olhos que diferenciam, mas um tolo nunca saberia.
Ela riu.
— É um prazer conhecer um amigo de Demeron.
Eu me aproximei mais dela, tirando sua mão de Liémen. Ele percebeu,
mas é claro que não se afastou. Era tão contraditório que o maior criminoso
do país fosse tão bem-vindo em uma casa de militares e juízes, mas isso
funcionou por décadas.
Nós tínhamos um acordo de ficar longe de seus negócios,
porque Stark era seu amigo de longa data. Isso não significava que por muitas
vezes, eu me meti quando ele estava prestes a passar dos limites. Ele não era
meu amigo, muito pelo contrário, mas minha futura esposa não precisava
saber disso. Quanto mais segura ela se sentisse, melhor.
— Por que não dançamos? — ele perguntou, estendendo a mão a ela.
Não tive tempo de recusar, ela aceitou, me dando um beijo na bochecha
antes de ir. Eu a observei de longe, meus olhos treinados em tudo ao mesmo
tempo.
Sentindo um olhar sobre mim, reconheci Siriu do outro lado da enorme
pista formada pelas pessoas dançando. Ele desviou de mim e fitou Onira,
depois me olhou novamente. Sua mensagem era clara: eu falhei na missão.
Mas eu não hesitei. Nós tínhamos métodos diferentes de fazer as coisas.
O meu era eficaz, o dele, por vezes, demorava demais e causava danos
desnecessários. Eu não queria e não precisava fazer Onira sofrer mais do que
o necessário, então, meu jeito de lidar com a situação não o agradava, mas
seria o que alcançaria o objetivo final.
Eu não sentia muitas coisas. Mas existia uma pequena lista de pessoas
que podiam me fazer reagir.
Blair, eu tinha dó da pequena Blair. Um pouco de remorso, talvez.
Kaladia, eu tinha raiva. Queria degolá-la e afogá-la em suas garrafas de
bebida.
Regnar, me fazia sentir a mais crua indiferença. Se eu precisasse
escolher matar um inimigo do país e ele, mataria meu irmão sem pensar duas
vezes.
E Siriu... a minha maior decepção.
Onira olhou para mim por cima do ombro de Liémen e sorriu, seus olhos
amolecendo e brilhando em minha direção.
Ela começava a entrar nessa lista também. Eu sentia um desejo
escaldante por ela, mas ao mesmo tempo, acho que não piscaria se precisasse
escolher entre sua integridade física e minha missão.
Não importa o que isso fazia de mim.
Eu era um soldado.
Acenei de volta para ela.
E cumpriria minha missão, custasse o que custasse.

SIRIU

— Isso não deveria acontecer.


Liémen riu ao lado de Siriu, aceitando mais uma taça do garçom que
passou entre os convidados.
— O casamento? Seu primo é um homem esperto, vai se divertir
enquanto trabalha.
— Não. — Siriu afirmou,
observando Demeron e Onira dançando. — Isso é pessoal para ele. Sabemos
que ele poderia fazer essa mulher falar em menos de cinco minutos. E olhe o
tamanho dessa festa. Ele quer que sejam vistos, quer que o mundo saiba que
ela está com ele. Eu não sei o porquê, mas vou descobrir.
— Siriu. — Liémen suspirou, ficando sério como sempre acontecia
quando estava tratando de negócios. — Você o deixou trancafiado por mais
de um ano, depois o torturou por meses até que ele aceitasse voltar à ativa
novamente.
— Não precisa me lembrar disso.
— Preciso. Por que como diabos você acha que vai descobrir os planos
de um espião que entrou no Kremlin como um soldado russo, colheu
informações e nunca foi pego?
— Ele é minha família.
— Ele te odeia. Eu também odiaria se fosse ele. — O traficante riu com
vontade dessa vez. — Inferno! Se eu fosse Siriu Konstantinova ia odiar a
mim mesmo.
Siriu fitou o gangster com seus olhos frios, mas o homem não se
abalava, assim como ele.
— Você não está atrás de uma cela debaixo do chão onde nem o ar puro
entra, porque eu livro você, então veja bem o que você me diz, Von Kimitch.
Rindo, Liémen bateu em suas costas.
— Vocês Konstantinova, sempre alegrando meu dia.
— Eu falo sério.
— Mesmo? Você não é o exemplo de moral e honestidade que prega,
Senhor X, então não me ameace. Você tem os olhos no governo, mas fora da
lei, quem assina sou eu.
Era um embate sem vencedor e sem perdedor.
Os dois viviam num pé de guerra que nunca teria fim.
Siriu devia a Liémen, e Liémen devia a Siriu. Dívidas que nunca
poderiam ser pagas.
No fim do dia, um precisava do outro para fazer negócios.
— Ele sabe? — Liémen perguntou por fim.
— É claro que não. Se soubesse, nunca aceitaria a missão.
— Cruel de sua parte, não acha? — O sarcasmo na voz de Liémen era
nítido, o que fez Siriu franzir a testa, refletindo suas ações.
— Não. Estou tentando salvar a vida dele.
— Certo, diga o que precisar para conseguir dormir à noite.
Sim, Siriu sempre fazia isso, mas nem assim o sono vinha com alguma
paz.

ONIRA

— Hoje eu dou as boas-vindas a uma mulher talentosa, gentil e


simpática, recebendo-a em minha família.
Essa primeira frase do discurso de Stark no meio do coquetel tanto me
amoleceu quanto deixou ansiosa. Apertei a mão de Demeron mais forte e ele
percebeu, porque colocou o braço em volta da minha cintura, meio que me
cobrindo.
— Eu fui indiretamente o cupido na vida desses dois. — As pessoas
deram risada, conquistados por sua simpatia. — Onira foi contratada para
criar uma coleção de peças raras para a próxima geração da minha família, e
acabou se tornando parte dela.
Eu respirei profundamente quando seus olhos bateram em mim,
olhando-me fixamente. Ele ergueu a taça, e todos o imitaram.
— Ao meu filho, e a futura senhora Konstantinova. Toast.
— Toast.
Eu abracei Demeron, deixando minha boca perto de seu ouvido.
— Ele mente tão bem que quase me comoveu.
— Não se preocupe, kleine unze. Agora nem ele e nem ninguém tocarão
em você. Nem sequer vão olhar em sua direção de forma errada. Você é
minha.
— Eu realmente não sei o que isso significa.
— Significa que nenhum deles está pronto para morrer.
Eu sorri e fiquei na ponta dos pés, selando nossos lábios.
Aquela era uma promessa que eu estaria feliz em vê-lo cumprir.
“...eu cheguei perto demais?
Oh, eu quase vi o que está realmente por dentro?
Todas as suas inseguranças
Toda a roupa suja
Nunca me fizeram piscar uma vez
Eu te amarei incondicionalmente”
KATY PERRY, UNCONDITIONALLY
— Hoje é seu aniversário. — Não foi uma pergunta, mas ele confirmou
do mesmo jeito.
— Sim, faço dezenove.
— Feliz aniversário. — Não havia emoção na minha voz, mas ele não
esperava isso. Desde que aprendeu a falar e ouvir recebia os mesmos
cumprimentos todos os anos.
Pelo menos lhe dei carrinhos na infância.
— Obrigado — respondeu no mesmo tom. — Eu estive pensando... será
que agora posso começar aquela investigação?
Um nó apertou meu estômago.
— Não.
— Mas venho guardando dinheiro para isso e...
— Heinrich, quando digo que não, quero dizer exatamente isso.
Ele cerrou a mandíbula, contrariado.
— Sim, senhor.
— Use seu dinheiro como um jovem adulto normal faria. Compre um
carro para se exibir, foda prostitutas ou qualquer coisa do tipo.
— Não, valeu — resmungou. — Só vou pra casa jogar videogame.
— As câmeras na casa da senhorita Ward estão instaladas?
— Sim, eu instalei assim que a deixei em casa.
— Ela não percebeu nada?
— Estava tão bêbada que depois que você saiu com Onira da boate ela
dormiu o caminho todo, acho que só acordou na manhã seguinte.
— Ótimo. Envie para o meu computador pessoal o link de acesso.
— Eu pensei que fosse querer vigilância vinte e quatro horas.
— Não, apenas quando Onira estiver lá.
Ficamos em silêncio enquanto eu observava os gráficos de estatísticas
que Stark havia me pedido. O silêncio entre nós era comum, as vezes
esquecemos que o outro estava na sala. Foi assim até que o garoto decidiu
que era hora de pegar suas coisas e sair da minha casa.
— Senhor, há algo que precisa ver na TV. — Heinrich disse de repente
agitado, tirou a TV do “mudo" e aumentou um pouco mais.
Era um canal sensacionalista, mostrava a plateia aplaudindo e o
apresentador Hans Suevk conversava com um homem.
Kurton Ward.
Eu o conhecia bem.
Mas, o que me chamou a atenção, foi a faixa na parte baixa da tela com
as escritas em letra maiúsculas.

“O BILIONÁRIO MAIS COBIÇADO DA


ALEMANHA KURTON WARD ABRE O JOGO SOBRE SEU CASO
COM ONIRA, A ARTISTA E FUTURA SENHORA DE UMA DAS
FAMÍLIAS MAIS IMPORTANTES DO PAÍS.”

— Demeron? — Temeroso, ele perguntou se deveria mudar de canal,


mas eu neguei, impassível, e comecei a assistir.
“Então foi um romance longo?”
“Hans, você pode dizer que ela quebrou meu coração.”

Assassina era o que eu me sentia.


Com uma fúria tão grande que quase me cegava! O que diabos aquele
imbecil estava fazendo? Quebrei seu coração? Se ele ao menos tivesse um!
Eu não podia acreditar no que estava vendo. Desde que terminamos, ele
fez o possível para me evitar. Me cumprimentava e fazia piadas
maliciosas, mas nunca nem em mil anos eu pensei que ele iria em umas
maiores talk shows do país e falaria sobre sua vida pessoal. Sempre foi
reservado. As pessoas podiam supor ou saber coisas sobre ele, mas ele nunca
confirmava, então agora depois de meu noivado ser capa das maiores
revistas, estar entre o top 10 das notícias, ele abriu o bico?
Kurton não precisava da força do nome dos Konstantinova, muito menos
do meu. E eu lhe conhecia o suficiente para saber que ele não
precisava daquele oportunismo barato, então se eu desconfiava o porquê
estava fazendo aquilo, meu palpite era: vingança.
— Oni, eu juro que não sabia disso — Slom falou, quase em prantos.
— Não pensei que soubesse.
— Eu não entendo, juro que não entendo o porquê ele está fazendo isso!
Ele nunca falou sobre uma namorada, e vocês nunca assumiram! Isso aqui
vai virar um inferno muito rápido.

“— Eu não tive a sorte de me casar com ela, fui lento demais e


Konstantinova pegou o lugar. Desejo sincera felicidade a ela.”
Fechei os olhos. Minhas mãos tremiam enquanto tentava responder as
mensagens que chegavam no meu celular.
A mais insistente era Belle, ela me ligava sem parar, e junto com os
veículos de imprensa que tinham meu número pessoal, meu telefone virou
uma bagunça.
Kurton pediu para mudarem de assunto e começaram a falar sobre seu
novo ramo de investimentos. Desliguei a TV, decidindo que se ele dissesse
mais alguma coisa, eu não ia querer saber.
Meu telefone vibrou em minha mão e atendi no automático,
murmurando meu nome.
— Não é assim que se cumprimenta um velho amigo.
Fiquei sem palavras por um momento, reconhecendo a voz, e meus
olhos lacrimejaram.
— Mic?
— Ei, menina... bom que se lembra de mim.
— Onde você se meteu? Pensei que já estava voltando!
— Eu estava, mas precisei ficar por mais um tempo.
— E não podia nem dar um telefonema? Ou pelo menos atender minhas
ligações? Inferno, só uma resposta em alguma das inúmeras mensagens que
mandei já estaria de bom tamanho!
— Fiquei impossibilitado de entrar em contato.
— Mic, você soa como Style. Não sei se ele aprendeu com você ou você
com ele.
— O moleque. — Mic riu. — Ele aprendeu comigo, é claro.
— Por favor, venha para a casa. Eu preciso da família agora.
— Eu não posso, menina. Ainda não.
— Por quê?
— Fui chamado para um trabalho, mas prometo que quando terminar
volto.
— Que tipo de trabalho?
Ele suspirou.
— Eu tenho pouco tempo, então chega de falar de mim e me conte que
história é essa de Demeron Konstantinova?
Frustrada, senti uma carranca formar em meu rosto.
— Você só ligou por causa disso.
— E pelo menino Ward fazendo bagunça com o seu nome na TV.
— Bem, sim, acho que ninguém está muito feliz com meu casamento
com Demeron.
— Menina, ouça-me com atenção. Você me conhece desde sua
adolescência. Alguma vez fiz algo que te machucasse, ou agi para seu mal?
— Mic... claro que não!
— Então preciso que confie no que vou dizer agora, me escute
atentamente. Eu não vou falar como e o motivo, mas preciso que evite esse
casamento o máximo de tempo que puder.
— O que?! Mic, que pedido é esse?
— O de um amigo que quer seu bem. Por favor, Onira, prometa-me vai
adiar a data o máximo que puder.
— Eu não quero e não vou fazer isso, Mic. Você foi um amigo de Style
e um protetor para mim, mas meu irmão se foi, e agora que eu finalmente
tenho alguém que se preocupa comigo a ponto de ir contra toda a família, não
vou deixá-lo ir por alguém que nem se deu ao trabalho de me responder. Eu
passei semanas me perguntando se você estava vivo! Então não, não posso
atender seu pedido.
— Onira...
— E quando nós anunciarmos a data, espero que você esteja aqui.
Eu desliguei, profundamente sentida com a conversa.
O que Mic me pediu era impossível. Já não bastava Kurton, que agora
havia me colocado no meio de um show indesejado.
Sabendo o que Demeron deveria estar pensando e sentindo, peguei as
chaves do carro, me despedi de Slom sem explicações e sai, meu destino
diretamente a Konstantine Business.

Quando cheguei, o lugar estava mais agitado do que a última vez que
estive ali. Sem contar que o tratamento dado a mim nada a tinha a ver com
aqueles dias. Agora eu era a futura senhora Konstantinova... ou pelo menos
eu pensava que era. Tudo ia depender de Demeron estar tão possesso com
aquela entrevista quanto eu estava.
Queria ligar meu celular, chamar Kurton e dizer algumas coisas que
fariam um marinheiro sentir vergonha, mas não faria isso, minha prioridade
naquele momento era meu noivo.
Esperei até que as meninas da recepção terminassem de atender os
visitantes, e elas me encaravam inquietas, eu sabia que podia ir até lá e pedir
para me informar sobre ele, mas eu odiava quem chegava se impondo no meu
trabalho, então estendi a mesma cortesia de educação a elas.
— Senhorita Tieko?
Eu virei o rosto, vendo o mesmo garoto que estava com Demeron na
boate de Kirina e acenei.
— Olá.
— Senhora, meu nome é Heinrich. — Ele apertou minha mão
rapidamente e deu um passo atrás, colocando os braços atrás das costas. —
Veio ver o senhor Stark?
— Na verdade não, vim ver Demeron.
— Entendo, ele está esperando pela senhora?
Enquanto ele falava, mais uma vez percebia como era parecido com os
Konstantinova, e decidi perguntar a Demeron se tinham parentesco.
— Eu não o avisei, mas aconteceu algo realmente chato e eu preciso
falar com ele urgente.
— Senhorita Tieko, não acho que será possível.
Eu ia perguntar o porquê, mas no mesmo momento, vi um homem
saindo do elevador e indo para a saída, dois outros caras o ladeavam. Tão
rápido quanto ele apareceu, sumiu.
— Padre Terry? — murmurei comigo mesma, confusa sobre o porquê
de o padre do meu bairro aparecer ali, ainda mais sem sua batina.
— Vou levá-la para vê-lo. — Heinrich falou, chamando minha atenção
de volta para ele.
Mas, eu ainda encarava o lugar onde o padre saiu, me perguntando se
era realmente ele.
— Acho que vi um conhecido.
Heinrich acenou minimamente para um dos seguranças na porta antes de
virar para mim.
— Deve ter se enganado. A senhorita quer ver Demeron?
— Ok, claro.
Nós entramos no elevador juntos e ele me levou silenciosamente até o
vigésimo quarto andar. Mais quatro acima ficava o de Stark, onde eu tinha
visto Demeron pela primeira vez. Quando aqueles olhos azuis gelo me
encantaram.
— Vou deixá-la na sala de visitas e avisar a Demeron que está aqui.
— Não precisa se incomodar, Heinrich, posso ir até ele.
O menino desviou o olhar, já saindo.
— Na verdade, preciso procurá-lo pelo prédio, mas não é incomodo
nenhum, ele estará aqui em alguns minutos.
Eu entrei, vendo a sala aberta e me sentei num pequeno sofá. Tinha um
quadro enorme que ia quase de parede a parede, com uma vista de Berlim.
Reparei que em cada andar tinha um daqueles com uma cidade do país. Eles
eram realmente patriotas.
Ouvi uma voz familiar se aproximando, e levantei, indo na direção
deles, mas parei quando estava quase saindo e do lado de fora vi Siriu se
inclinar, dando um beijo em Naya.
Eu suspirei pensando em Slom. Minha amiga era durona, mas estava tão
encantada por Siriu que eu não sabia como ela ia lidar com isso. Ele
claramente não estava sério sobre ela, e eu já estava escondendo coisas
demais dela. Não podia deixá-la se iludir, ia contar o que vi, mas a decisão
seria dela.
Eu bem sabia o que era querer alguém o suficiente para fazer loucuras.
Como me casar.
Naya olhou para cima e me viu, seus olhos arregalaram e ela corou,
sorrindo sem graça.
— Droga, eu não te vi aí.
Eu sorri, aceitando seu abraço.
— Não se preocupe, eu nem vi nada.
Ela riu, revirando os olhos.
— Viu sim, mas tudo bem, eu não sou tímida.
— Então... você e Siriu?
Ela me fitou com o canto dos olhos, mordendo a pontinha do polegar.
— Nós apenas... jantamos.
— Parecia bem íntimo.
— Parecia, não é? Ele é tão intenso.
Ela levantou os braços, prendendo o cabelo para trás e eu vi uma
marquinha fofa no pulso.
— É uma tatuagem?
Ela virou o braço, apontando para onde eu vi e sorriu.
— Sim, fiz a alguns dias.
Admirei o pequeno trio de corações em volta de um círculo em seu
pulso. Pouco acima, tinha outra, assim como nos dedos da mão. Eram
tatuagens delicadas, nada que poluísse a beleza dela.
— São lindas.
— Obrigada. São dos meus casamentos.
Eu dei risada da piada, mas quando ela me deu um sorriso constrangido,
percebi que falava sério.
— Me desculpe — pedi — Mas... casamentos?
Naya riu, dando de ombros.
— Sempre me apaixono rápido demais, namoro ou caso. Faço as
tatuagens quando a relação acaba.
— Não seria mais fácil escrever músicas sobre eles?
— Eu quero me lembrar sempre do motivo acabou e o que cada um
deles me ensinou. Além disso, adoro tatuagens.
— Posso perguntar sobre os três corações?
— Claro! — Ela me levou até o sofá, nos sentamos e virou o braço,
mostrando-me os traços finos da tinta — Esse foi Aron Cavins, o ator
daquela série de vampiros. Terminei quando ele me traiu com duas figurantes
da série. Dois corações são delas e um é o meu. Inclusive, ele era meu noivo
na sua exposição.
Quem em sã consciência traia alguém como Naya? Ela era perfeita.
— Ele me parece um idiota.
— Ele com certeza era. — Ela riu. — Mas, já superei, assim como todos
os outros, então talvez eu seja o problema.
— É claro que não! Acho que você só não encontrou o seu alguém
ainda.
Ela bufou, sorrindo sem se empolgar.
— E já sei que Siriu não é esse alguém.
— Por quê? O jantar foi ruim?
— Foi nosso primeiro encontro e eu encontrei duas mulheres com quem
ele saía.
— O que? Como isso é possível?
— Você não vai acreditar nisso nem em mil anos. Eu fui ao banheiro
quando estávamos prestes a ir embora, ele pagou a conta e foi tão incrível a
noite toda. Mas, quando fui retocar o batom, as duas estavam lá, sorrindo
para mim como se eu fosse a própria lua no céu e me deram um cartão,
dizendo que eu era bem-vinda ao clube quando ele terminasse comigo.
— Está falando sério?
— Sim! — Ela sussurrou com veemência, olhando a porta para garantir
que ele não estava vindo. — Ele praticamente tem um clube de ex-
namoradas! — suspirando, ela balançou a cabeça. — Eu o conheço há tantos
anos e só agora ele me chamou para sair. Meu padrinho ficaria nas nuvens
com isso.
Dei um aperto em sua mão.
— Não tive tantas experiências no setor homens, e já passei por uma que
foi e está sendo um problema. Mas Demeron aconteceu e por isso eu sei que
você vai encontrar alguém.
— Você acha?
— É claro. Depois dos idiotas sempre vem alguém para limpar a
bagunça.
Nós demos risada.
— Onira, você tem transformado o Demeron, eu nunca o vi proteger
alguém tão ferozmente. Nunca o vi desse jeito, nem mesmo em seu primeiro
casamento.
— Casamento? — Franzi a testa — Que casamento?
Ela arregalou os olhos, gaguejando nas palavras.
— E-eu pensei que... Você não sabe?
— Não, eu não sei.
O clima leve e descontraído foi imediatamente substituído por tensão.
— Pelos deuses, sinto muito, Onira. Pensei que ele tivesse contado.
— Me contou o que?
Ela olhava de um lado para o outro, engoliu em seco e levantou.
— Sinto muito mesmo.
Eu fui atrás dela, segurando a porta.
— Naya, diga-me!
Os olhos cheios de lágrimas me encaravam com firmeza.
— Eu queria, mas essa história não é minha para que eu conte.
Então ela saiu, deixando-me ali parada por vários minutos. Meu
coração acelerado, as pernas trêmulas e a garganta seca.
Eu queria ir até ele e sacudi-lo, exigir que me dissesse que droga de
história era aquela. Por que até então eu não sabia de nada?
Mesmo que ele deveria, mas nunca contou, um casamento não era algo
que ficava escondido.
Siriu voltou para a sala e olhou ao redor.
— Onde está Naya?
Eu não respondi. Ele me olhou mais de perto e algo em meu rosto deve
tê-lo alertado.
— Onira... está tudo bem?
— Demeron já foi casado?
A expressão de Siriu não se alterou, ele só me encarou por vários
minutos antes de responder.
— Sim.
Ele não parecia preocupado, nem tampouco magoado que Naya não
havia ficado. Talvez aquela falta de emoções estivesse no sangue deles.
Demeron por me enganar, e Siriu por enganar duas mulheres e sabe lá
quantas mais, ao mesmo tempo.
Eu respirei profundamente, o fitando com seriedade. Olhei para o
corredor que levava aos elevadores um segundo, onde Naya o devia
estar esperando-o.
— Nós não nos conhecemos muito bem, eu sei disso. Mas, Slom está na
minha vida a anos, eu sei que essa coisa de dormir casualmente não funciona
com ela, então, se você não estiver sério com ela... não machuque a minha
amiga.
Ele assentiu e olhou para o corredor também, talvez tivesse entendido
meus pensamentos sem eu precisar dizer.
— Tem razão, Onira. Nós não nos conhecemos.
Então ele tirou minha mão da porta e saiu, a fechando. Eu me afastei, e
cambaleei até o sofá, enfiando o rosto entre as mãos.
Onde foi que me meti?
Pouco depois, foi assim que Demeron me encontrou.
Ele entrou na sala com tranquilidade, passos calmos.
— Onira, o que houve? — Com a testa franzida, chegou perto de mim,
esticando a mão para me tocar.
Eu fiquei de pé, me afastando.
— Você foi casado?
Ele respirou profundamente.
— Quem te disse?
— Você não vai negar?
— Quer que eu minta?
Sua voz cínica e calma me tirou do sério. Eu estava fervendo.
— Como foi que escondeu isso de mim? Planejava nunca me contar?
— Vamos conversar.
— Proibiu a todos que falassem sobre isso? Porque agora eu estou aqui
me perguntando o que mais você tem escondido de mim!
— Onira.
— Mas o que eu esperava? Me casando com alguém que não conheço!
— Você me conhece.
— Mesmo? Eu não vejo como. Isso faz parte de um relacionamento
normal, você me conta coisas sobre si mesmo e eu devolvo te contando sobre
mim. Qual sua cor preferida, melhor viagem que já fez, que já esteve na porra
de um casamento!
No final eu estava gritando, e ele continuava ali apenas me encarando
com as mãos nos bolsos e aqueles olhos que nem piscavam.
— Como você me contou sobre Kurton Ward?
— Eu não me casei com Kurt.
— Então a gravidade dos segredos na nossa relação será julgada por
comparações? Eu escondo que fui preso por seis anos e você esconde que foi
presa por dois, mas eu estou mais errado porque fiquei mais tempo na
cadeia?
— Não é isso...
— Meu ex casamento não foi exposto para o mundo, com a pessoa se
declarando para mim.
— Ele não estava se declarando!
— Você assistiu até o fim? — Ele deu um passo mais perto, inclinando a
cabeça para ficar com o rosto incrivelmente perto do meu, precisei esticar o
pescoço para olhar em seus olhos. — Porque eu assisti. Eu vi como ele falou
de algo, meu como se lhe pertencesse.
Sua mão veio até meu rosto, acariciando levemente.
— Se ele falar sobre você novamente, serão as últimas palavras dele.
Eu ofeguei.
— Demeron! Você não pode controlar as coisas que alguém diz.
— Eu posso e eu vou. E se você falar com ele novamente...
— Não me ameace!
— Não estou ameaçando você, eu estou fazendo uma promessa a ele.
Uma que Kurton já está ciente.
— Você está sendo irracional. Eu vou me casar com você, não com ele.
Quem se importa com o que ele diz na TV?
— Eu me importo, porque ele fala como se você fosse um dos carros de
luxo em sua garagem que eu peguei emprestado para um passeio.
— Você me mostra uma personalidade a cada dia. Foi por isso que seu
primeiro casamento terminou?
Ele me deu um sorriso de dar arrepios.
— Não. Meu casamento terminou porque minha esposa era uma vadia.
— Eu espero que você não tenha falado isso dela quando eram casados.
— Uma vez.
Peguei minha bolsa, dando as costas a ele.
— Eu não posso lidar com você agora.
— Mas vai. — Ele passou por mim, fechando a porta e ficando na frente
dela, impedindo-me de sair.
— É a Kirina?
— Isso não importa, acabou.
— Deixe-me ir.
— Você não quer ir, quer que eu implore seu perdão por ter escondido
algo que acha que é sério.
— Eu não... E você não acha sério? Já dividiu sua vida com alguém,
Demeron, isso não é pequeno.
— Ouvir seu ex namorado falando que estreou a ilha dele com você
também não.
Meus olhos arregalaram.
— Ele disse isso?

DEMERON

— Sim.
Ele não tinha dito, mas a pesquisa que Drux fez sobre o cara veio a
calhar. Ela ia me deixar, eu sabia disso, levariam talvez dias para a
convencer a voltar para mim, então eu precisava pegar um atalho.
— Eu não vi essa parte — respondeu, e eu vi seus olhos amolecerem
enquanto ela engolia em seco.
— Onira, eu te quero comigo. Quero me casar com você, então se uma
fofoca do que aconteceu anos atrás é o suficiente para nos separar, como
vamos dar certo?
— Não é uma simples fofoca!
— Se está fazendo isso porque a declaração de Ward te fez mudar de
ideia, se quer voltar para ele...
— Não! — Ela gritou, deixando a bolsa e segurando meu rosto. — Não
é nada disso, eu quero me casar com você mais do que tudo! Mas tenho medo
de que esteja escondendo mais coisas e...
— Eu não me casei na igreja, nem dei a ela uma joia antiga da minha
família. — Segurei o colar em seu pescoço, dando o efeito na fala. — E não a
apresentei para o mundo. Foi algo de anos atrás, que acabou porque não
deveria nem ter começado. Diferente de nós.
Ela desviou os olhos de mim, amolecendo a cada palavra minha. Eu
segurei seu queixo, trazendo seus olhos para os meus.
Ela era bonita. Muito bonita.
Era minha, não de Kurton Ward.
— Acredite em mim, liebe. Nós vamos construir uma vida juntos.
Ela fungou, ainda insegura.
— Você tem algum contato com ela?
— Ela não é alguém importante na minha vida. — Beijei sua
testa — Ela não é você.
Eu selei nossos lábios, beijando sua boca enquanto ela me abraçava com
força, choramingando baixinho no meu peito.
— Nós ainda vamos falar sobre isso.
— Como você quiser.
— Mas, por agora, eu estou cansada. Então só... só vamos para
casa. — Ela disse por fim.
E eu concordei, no caminho, enviando uma mensagem a Heinrich para
dar o sinal na ordem que eu havia encomendado mais cedo.
“Fique no escuro
Os segredos que você mantém estão prontos
Você está pronto?
Sou o que sobrou, sou o que está certo
Eu sou o inimigo
Sou a mão que vai levá-lo para baixo
Fazê-lo ficar de joelhos”
FOO FIGHTERS, THE PRETENDER
“Meu irmão sofreu um acidente, preciso
ficar no hospital com ele hoje”

Eu olhava aquela mensagem de Slom a cada poucos minutos enquanto


esperava Demeron chegar no restaurante. Existia uma suspeita na minha
cabeça sobre o acidente muito conveniente, mas eu estava ignorando tudo
dentro de mim que levava a aquilo.
Nós completávamos dois meses de noivado.
Sua família pressionando para escolhermos a data, e ele tão ansioso
quanto Belle para isso, mas eu não cedia. Por algum motivo, eu fugia do
assunto todas as vezes, muitas vezes se tornavam até desconfortáveis. Além
das ofertas que eu recebia dos estilistas e de organizadores de casamentos ao
redor do mundo, Belle sempre aparecia com mais alguém para indicar.
Certo dia cheguei na mansão, sendo ignorada por Angelina que nem
sequer me disse um “oi”, e fui diretamente levada para a sala, onde cinco
modelos vestidas de noiva me esperavam, então Belle as fez desfilar, dizendo
que um deveria ser meu escolhido.
Eu não queria que ela organizasse meu casamento ao seu gosto, nem que
escolhesse o meu vestido e nem que fizesse a lista de convidados como tinha
sido no noivado. Eu disse isso a Demeron, e depois Belle não interferiu mais.
Ela ainda aparecia vez ou outra me dando “conselhos” e “dicas”, mas eu
aprendi que jogar para cima de Demeron resolvia o problema.
“Demeron vai escolher isso.”
“Belle, fale com Demeron.”
“O que Demeron achou?”
Ela mudava de assunto na mesma hora. Meu noivo tinha esse efeito
sobre ela.
Ao invés de acelerar mais ainda do que já tínhamos feito, eu o fiz me
levar para jantar, ele dormia na minha casa sempre que podia, e nós
batizamos cada cômodo da minha casa e da mansão. Descobri que ele não
tinha uma casa, apenas um flat que dormia quando não estava na mansão. Ele
não ria dos programas de TV que eu achava engraçado e não tinha paciência
para acompanhar séries.
Ele me comprou presentes, levava flores e me beijava quando eu falava
demais.
Eu não sabia coisas profundas sobre ele, Demeron não compartilhava
inseguranças, medos e sonhos. Ele sabia tudo sobre mim, desde os países que
eu já visitei até meu portifólio de esculturas, mas se eu sabia seu nome
completo era muito.
Ele não falava sobre o trabalho, sobre planos para o futuro e nem sobre
seu casamento, que era o que mais me assombrava.
Mas, ele me abraçava forte, me beijava com paixão e me protegia até da
minha sombra.
Eu sabia tudo o que precisava saber do homem que eu ia me casar. Me
acostumei com o fato de ser tão reservado e sabia que com o tempo se abriria
para mim.
– Senhora, posso servir mais uma taça de vinho? – O garçom perguntou,
atraindo minha atenção.
– Não, obrigada. Só me traga a conta. – Já tinha tomado duas, era o
suficiente. Eu avisei a ele que estaria esperando as 19h.
Eram 20h40 e ele não chegou.
Paguei e sai de cabeça erguida, como se tivesse realmente ido apenas
para tomar vinho em um dos restaurantes mais caros de Berlim e ir embora
pouco depois. Havia dois diabinhos em meus ombros.
O do direito, dizia que eu era uma completa idiota.
O do esquerdo, dizia que ele tinha algo mais interessante para fazer do
que comemorar uma data que deveria ser importante para nós dois.
Onde estava o anjinho para me convencer a conversar civilizadamente e
não erguer a mão para o meu futuro marido? Ou mudar de ideia sobre jogar o
anel caríssimo que ele me deu em seu belo rosto?

Ninguém me parou quando entrei na Konstantine Business com meus


saltos fazendo um estrondo no chão de tanta raiva. Talvez meu rosto dissesse
tudo. Eu não carregava uma expressão sorridente como eles estavam
acostumados a ver, e nem cumprimentei todos, e agradeci que ninguém me
interrompeu. Fiz meu caminho até o quinto andar, que era onde ele
costumava ficar e entrei em sua sala. Passando pela assistente, Katya e
deixando-a falar sozinha.
A porta estava fechada, mas eu entrei. Meu noivo e três homens estavam
debruçados sobre uma mesa, com uma cartolina esticada e escrevendo algo
nela. Eu não me importava.
– É nosso aniversário hoje. Ao menos se lembrou disso?
Ele me encarou por segundos que pareceram horas.
– Terminaremos mais tarde – disse, ainda me olhando com a expressão
séria.
Os homens saíram, acenando para mim, mas eu não tirei os olhos dele.
O último saiu sem fechar a porta e eu fui até lá e a bati com força, fazendo
um quadro na parede balançar. Ele ergueu uma sobrancelha clara.
– Responda a minha pergunta.
– Não.
– Não o que? Não vai responder ou não se lembrou?
– Não me lembrei.
– Você é inacreditável. – Balancei a cabeça, agarrando meus cabelos. –
Sabe como eu me produzi hoje, me arrumei para você, para essa noite!
– Você está sempre arrumada, Onira. Sempre está bonita.
– Era uma data especial! Nós ficamos noivos há dois meses.
– É uma data. Amanhã completamos dois meses e um dia. Continuamos
noivos, você ainda é minha.
– Demeron. – Lambi os lábios, tentando encontrar paciência e uma
forma de explicar como aquele tipo de coisa era importante para mim.
– Não comemoro datas, Onira. Isso não faz sentido.
O fitei, incrédula.
– Faz sentido para mim! Faz sentido para qualquer relacionamento.
– Não temos um relacionamento normal.
– Ah não? E o que temos então?
Cerrando a mandíbula, ele ergueu o queixo e me deu as costas e voltou a
mexer em seus papéis na mesa.
– Largue a bolsa, Onira. Deite-se no sofá e descanse. Essa crise passará
com um pouco de sono.
Eu pirei.
– Crise? – gritei, sem acreditar em como ele era... urgh!
Ele me olhou novamente, colocando as mãos na cintura.
– Tudo bem, desculpe-me. Estamos bem agora?
– Não, nós não estamos bem. Eu quero matar você. Me fez ficar
esperando num restaurante cheio, onde só casais vão e fiquei sozinha por
mais de uma hora! Você deveria ter ido ao meu encontro, jantaríamos juntos
e, então iríamos para casa depois, mas você estragou tudo! – Me aproximei
dele, batendo meus punhos em seu peito, louca de raiva que ele não reagia. –
Com sua insensibilidade, sua falta de palavras e seu desprezo! POR QUE
QUER SE CASAR COMIGO, DEMERON? POR QUÊ?
Ele segurou meus pulsos em uma mão e minha nuca com a outra,
puxando-me para a frente e tomando minha boca num beijo agressivo, que
ardeu meus lábios.
Eu mordi sua língua e ele rosnou, me empurrando para trás até que bati
na mesa, e no segundo seguinte estava em cima dela, meu vestido sendo
levantado e eu já não sabia se batia ou o abraçava. Mas, então ele estava lá,
me preenchendo e mordendo meu pescoço, beijando minha boca como se eu
fosse sumir.
As mãos grandes e ásperas puxavam meu cabelo, agarravam minhas
coxas e me puxava para mais perto, para meter mais forte, mais rápido,
fazendo a mesa raspar no chão e os objetos caírem de cima dela. Eu arranhei
seu pescoço, soluçando em meio aos beijos.
Ele não acalmou, me fodeu como na primeira vez e só parou quando eu
estava gemendo seu nome e gritando, e senti seu líquido correr dentro de
mim.
Fiquei ali por longos minutos, acalmando minha respiração, agarrada
nele enquanto meus sentimentos iam da raiva ao desejo, da vontade de
mandá-lo sumir, mas do desespero de estar longe dele.
De ficar sozinha outra vez.
Eu sabia que a solidão não era um problema. Os pesadelos, e a vida
solitária sempre foram fáceis de lidar, mas minha obsessão
por Demeron chegava a tal ponto que não importava o que acontecesse, eu
não sabia se podia me separar dele.
Eu queria deixá-lo ir.
– Sinto muito ter feito você esperar. Fiquei trabalhando em algo e não vi
a hora passar.
– Katya é sua assistente, use-a para o que ela é paga para fazer. Te
lembrar e te ajudar.
Seus braços ainda estavam em volta de mim.
– Sair com minha futura esposa não deveria ser algo que alguém precisa
me lembrar, não farei isso de novo.
Eu me afastei um pouco e olhei nos olhos dele.
– Compromissos, datas, palavras... são importantes para mim. Eu nunca
tive isso, Demeron. Estou sozinha. Se você acha que querer comemorar a
data que você se tornou a pessoa com quem vou dividir o resto da vida é algo
sem importância... então isso é um problema para mim.
– Não será. Eu prometo que vou ser melhor.
Nós nos arrumamos em silêncio e depois o ajudei a pegar as coisas que
tínhamos derrubado.
– Você está bem?
– Minha cabeça dói.
Ele me deu um pequeno sorriso fechado.
– É claro que dói. Ainda quer jantar?
Sorrindo, mas ainda magoada, assenti.
– Sim, quero.
– Então vamos. – Ele abriu a porta e me estendeu a mão. Eu aceitei,
deixando-o me puxar para perto. – Você está realmente linda.
Eu sorri de verdade dessa vez, o acompanhando para fora. Ele beijou
minha bochecha enquanto andávamos e Katya franziu a testa, inclinando a
cabeça para ele, mas disfarçou e sorriu para mim.
De repente, um barulho alto veio do outro lado do andar,
e Demeron segurou minha mão mais apertado, correndo até lá. Ouvi gritos e
algo que parecia um tapa, e fiquei um pouco aliviada por Katya ser
praticamente a outra única pessoa no andar com a gente.
Quando nós entramos na sala aberta que dava o final do corredor, eu
vi Kaladia pegando sua bolsa e dando um tapa na mão de Regnar quando ele
tentou puxá-la. Mas, ele não desistiu e a puxou de novo, a empurrando na
parede e ia falar algo, mas ela nos viu e parou de lutar.
– Está tudo bem? – perguntei quando Regnar a soltou e sorriu para
mim.
– Cunhada! É claro, tudo ótimo. Apenas conversando.
Eu fitei Kaladia, que tentava disfarçadamente arrumar o cabelo.
– Você está bem?
– Como meu marido disse.
– Vamos – disse Demeron, apertando minha mão para voltarmos e
esperar o elevador.
– Irmão, espere! – Ele nos seguiu e entrou no elevador conosco. –
Minha kleine hexe e eu vamos jantar. Por que não vão conosco?
– Temos planos. – Demeron respondeu e eu agradeci. Kaladia me
odiava, e eu começava a não me importar mais em tentar fazê-la mudar de
ideia sobre mim. E por mais que Regnar fosse engraçado, e junto com Siriu e
Belle, os únicos que tentassem me fazer sentir confortável, sua esposa parecia
querer arrancar meus olhos sempre que ele falava comigo.
Era um casal que eu não entendia e nem queria entender.
– Que isso, vamos! – Ele bateu nas costas de Demeron, rindo e
abraçando Kaladia pela cintura. – Seria ótimo tê-los com a gente, não é,
querida?
– É claro. – Os olhos azuis dela eram tão frios quando me encarou que
eu queria descer no próximo andar.
– Nós já somos irmãos, mas elas duas serão como irmãs quando vocês
subirem no altar. É bom que se acostumem uma com a outra.
Ele não ia parar, então ia fazer um inferno na minha vida a próxima vez
que fôssemos na mansão.
– Talvez possamos tomar um drink enquanto eles esperam a comida. –
Eu disse a Demeron, pousando minha mão em seu peito.
– Fantástico! – Regnar respondeu, beijando sua esposa como se nós não
estivéssemos ali.
Quando chegamos a garagem, combinamos de ir em carros separados e
nos encontrar lá. Os dois já tinham a mesa reservada, e Regnar insistiu que o
garçom não se importaria de proporcionar uma maior. Quando eu perguntei
como ele tinha tanta certeza, ele riu, e até Kaladia deixou um rápido sorriso
escapar, disfarçando depois.
A mesa era numa das salas privadas do restaurante e o maitre nos
acompanhou até lá, entregando o cardápio e trocando rápidas palavras com os
três.
– Como está a encantadora Angelina? – Perguntou a Kaladia.
Para a minha surpresa, ela sorriu.
– Ótima. Anda reclamando que eu não a trouxe mais aqui.
– Ora, essa! Diga a ela que vamos enviar um convite especial e o Chef
vai aguardá-la para servir a primeira refeição!
Kaladia riu, e eu observei como seu rosto se transformou de uma mulher
séria e fechada, para uma jovem bonita, estonteante. Não havia nenhum
brilho em seus olhos, mas o sorriso me deixou ver como era além de uma
beleza clássica. Regnar parecia ser descontrolado por ela, mas eu conseguia
entender de onde vinha aquele sentimento.
– Obrigada, avisarei a ela.
Nós ficamos em silêncio depois disso, eles lendo o cardápio e nós dois,
decidindo que bebida tomar.
– Algo rápido. – Demeron disse, colocando meu cabelo para trás com as
costas da mão.
– O que você me indica? – perguntei com um sorriso.
– Kaladia pode te dar as melhores dicas sobre isso – disse Regnar, antes
que Demeron pudesse me responder.
Eu olhei para ela, que continuava lendo como se não tivesse lhe
escutado.
– Não é, querida?
– Jägermeister puro é ótimo.
– Viu, ela entende.
Aquele era um dos licores mais fortes mesmo para beber misturado com
algo, eu nem queria imaginar puro.
– Já me decidi. – Ela disse por fim, pegando a taça de água.
– Vou querer o mesmo que você.
Regnar levantou a mão, chamando o garçom que estava no canto, um
pouco distante para nos dar privacidade e pediu para nós quatro. Um silêncio
desconfortável se instalou enquanto esperávamos e depois éramos servidos.
Eles com os pratos, e para nós, os drinks e aperitivos.
– Já decidiram onde vão morar? – Regnar perguntou.
– Ainda não – respondi, vendo que Demeron não se incomodaria em
fazer isso. – Amo a minha casa, e Demeron já se acostumou a ela, então
talvez ficaremos lá por um tempo.
– E você, irmão? O que acha dessa ideia?
– O que ela quiser será ótimo.
– Claro que sim. – Regnar sorriu, puxando a cadeira de Kaladia mais
perto da dele.
– Assim que os papéis do nosso divórcio saírem terá mais espaço livre
na mansão, talvez queiram se mudar para lá. – Ela disse, o que fez Regnar
sorrir mais ainda.
– Então vão realmente se divorciar?
Eu não queria parecer intrometida ou curiosa, mas eles eram o casal
mais incomum que eu já tinha visto e, além disso, falavam da separação com
tanta naturalidade, como se fosse uma piada.
– Vamos. Kaladia gosta da ideia de ficar se divorciando e se casando de
novo.
Demeron ficou tenso ao meu lado, deixou o copo na mesa e arrastou a
cadeira para trás.
– Devemos ir. Obrigado pela bebida.
– Por que tão cedo? – Regnar perguntou, o sorriso no rosto agora
sumindo, e ele ficou de pé também, olhando Demeron nos olhos. – Sente-
se, irmão. Vamos terminar o jantar.
– Regnar, já chega. – Kaladia pediu entre os dentes cerrados, puxando-o
pelo braço para se sentar novamente.
– O que foi, querida? Eu só quero terminar de jantar com minha família.
Percebendo como Demeron estava desconfortável, fiquei de pé, sorrindo
para o casal.
– Nós temos outro compromisso. Sinto muito, precisamos ir.
Regnar sorriu novamente, assentindo, como se os últimos tensos
minutos não tivessem acontecido.
– É claro, mas antes de ir, Onira, eu queria agradecer.
Franzi a testa, sentindo a mão de Demeron apertar meus dedos.
– Pelo o que?
– Quando almoçamos juntos e eu pedi que fizesse meu irmão feliz.
Eu engoli em seco, sentindo Demeron entrando em ebulição de tanta
raiva.
– Ele me faz feliz também.
Nós viramos as costas e demos dois passos, então ele deu o golpe final.
– Pelo menos agora tenho certeza de que ele não quer minha Kaladia de
volta.
Tudo aconteceu num único segundo.
Nós estávamos saindo, e no próximo, ouvi o grito de Kaladia e eu estava
encostada na parede mais próxima. Demeron estava voando em Regnar, não
sei como ele foi tão rápido, mas havia uma faca de repente em sua mão e ela
estava pressionando a garganta de seu irmão.
Eu estava anestesiada, em choque, enquanto observava os lábios
de Demeron se movendo no rosto dele, Regnar sob a mesa, e tentando
segurar o braço do irmão longe, para que a faca não seguisse o curso
que Demeron apontava. Um fio de sangue escorreu do corte e ao ver isso, o
rosto de Kaladia se transformou. Regnar soltou o braço de Demeron e a faca
aprofundou mais, diante dos meus olhos, Demeron começou a rasgar a pele.
Então Kaladia estava em cima dele.
Eu não sei como ela fez aquilo, de onde tirou força, mas deu um soco,
seguido de um chute calculado em Demeron, que o fez cambalear, ele
avançou para ela, erguendo os braços em frente ao rosto e ela continuou
parada, o fitando. Não havia medo em seu olhar. Os pés separados e as mãos
em punho ao lado do corpo.
Mas, antes que a alcançasse, Regnar entrou na frente dela, apontando
uma arma para ele.
– Acabou.
– Fale por si mesmo.
Então ele pegou minha bolsa do chão, segurou meu braço e me levou
para fora.
As pessoas no salão aberto, fora da sala VIP estavam olhando naquela
direção e os garçons do lado de fora pareciam temerosos sobre entrar ou
não. Demeron não parou, eu me sentia em transe sendo arrastada para o
carro, colocada no banco passageiro e indo através do trânsito.
Não falei nenhuma palavra e ele não quebrou o silêncio.
Dirigia calmamente, como se nada tivesse acontecido.
Mas, para mim aconteceu, e foi tudo muito real.
O sangue de Regnar, o ódio em seus olhos, a revelação sobre Kaladia.
Eu estava tão curiosa para saber aquilo, mas agora que tinha a resposta,
desejava que Naya nunca tivesse me contado.
A ex-mulher do meu noivo estava bem debaixo do meu nariz.
E ela era casada com o irmão dele.
"Sua presença ainda permanece aqui
E isso não vai me deixar em paz
Essas feridas parecem não querer cicatrizar
Essa dor é muito real
Há simplesmente tantas coisas que o tempo não pode apagar..."
EVANESCENCE, MY IMMORTAL
Eu sabia que ela estava em choque. Qualquer civil ficaria, qualquer
pessoa normal.
Foram muitas coisas para processar, e ela não estava falando, o que era
incomum para Onira.
O sucesso da minha missão estava por um fio, foi demais para ela e
agora, eu teria que ser cuidadoso e meticuloso para lidar com as
consequências. Ela era emotiva, emocional demais... humana
demais. Regnar, já havia me fodido muitas vezes, mas agora, sabendo o que
estava em jogo, foi a pior.
Eu o teria matado ali mesmo. Se não fosse Kaladia eu teria rasgado sua
garganta até assistir a vida escapar dele.
Estacionei o carro em frente à sua casa, onde ela visualizava nós dois e
pretendia que fosse nosso lar. Desci e abri a porta para ela, a puxando para
fora e a levando para dentro. Acendi a luz, ficando de pé um pouco distante,
observando enquanto ela olhava ao redor e parecia finalmente voltar a si.
Fui até a cozinha, pegando um copo d’água e a entreguei. Ela tomou
longos goles, deixou o copo na mesa de centro e a bolsa no sofá. Então ela
me encarou.
– Eu quero que você saia. E Demeron... não volte.
Contive um suspiro, sabendo o que precisava fazer.
E seria malditamente desconfortável.
O sentimento ao dizer aquilo foi pesado, me fez ter ânsia saber que ele
poderia sair pela porta e nunca mais voltar. Mas, como eu podia continuar
com alguém que mentia, aliás, escondia coisas como aquela?
– Onira... liebe, ouça-me.
Ele se aproximou, tentando segurar meu rosto.
– Outra vez? Eu não posso. Eu fui contra meus instintos, minha única
família, meus amigos, tudo por você. Porque não consigo voltar para casa e
não pensar em você, nem mesmo começar uma escultura e não imaginar o
que você pensaria dela. Então... eu vejo você atacando o seu irmão.
Eu solucei, incapaz de conter as lágrimas.
– Eu descubro que foi casado com a sua cunhada!
– É passado.
– É por isso que ela me trata dessa forma? Vocês ainda sentem algo um
pelo outro?
– Ela está morta para mim, não há ninguém além de você, Onira. Eu lhe
disse isso.
– Sim, você disse. Você realmente disse. Mas eu não sabia que
precisaria viver com ela diante dos meus olhos. Ou pensar que você pode
matar seu irmão sem hesitar, ou que vocês andam com armas e apontam um
para o outro como se fosse normal.
– Nós somos soldados, é claro que temos armas.
– Você tem uma aí agora?
Ele hesitou.
– Sim, mas se não preciso dela, não a pego. Você não está em perigo.
– Demeron – falei calmamente. – Você cortou a garganta do seu irmão.
Seu próprio sangue.
– Entendo que esteja com medo, mas o que você está pensando... se está
com medo de mim...
– Não estou. Por algum motivo, ainda acho que não vai me machucar.
– E está certa, então qual é o problema?
– Se fez isso com Regnar, só consigo pensar em dois motivos. Ou você
não tem um coração, empatia... ou o fato de ele estar com Kaladia mexe com
você o suficiente para que queira matá-lo. Então isso me leva a pensar que
você a ama.
– Eu não me casaria com você se amasse alguém.
– Quem é o homem com quem eu vou me casar, Demeron? Para quem
eu disse sim?
– Eu não sei como te dizer, kleine unze, mas nós vamos descobrir. –
Segurando meu rosto, ele beijou-me delicadamente, sem pressa, sem fogo, só
um beijo terno. – Mas, não desista de mim, Onira, não me deixe.
Passei meus dedos entre os cabelos macios, sentindo minhas próprias
lágrimas nos lábios.
– Essa é a última vez que você mente para mim. Juro, Demeron, se
houver mais alguma coisa, diga agora.
– Eu não vou mais mentir. É uma promessa.
– Tudo bem – sussurrei.
Ele me beijou, e eu aproveitei o abraço, o segurando firme antes de me
afastar.
– Vamos nos deitar um pouco.
– Não.
Ele franziu a testa.
– O que foi? Você está bem?
– Estou bem. Mas eu vou me deitar e você vai sair.
Ele ficou tenso, tentando me alcançar outra vez, mas me afastei.
– Não. Eu preciso de tempo. Tempo para saber se acredito em você, se
posso viver sabendo que a qualquer momento vão jogar uma bomba em cima
de mim.
Ele lambeu os lábios, cerrando a mandíbula e estreitando os olhos.
– O que você precisa que eu faça? Me diga o que quer para esquecer isso
e voltarmos ao normal.
Eu balancei a cabeça, deixando um pequeno sorriso triste escapar e fui
até a porta, a abrindo.
Ele não entendia.
– Tchau, Demeron.
– Onira. – A voz firme, controlada, continuava a mesma, mas havia algo
em seus olhos, algo que nem quando o confrontei pela primeira vez eu vi.
Abri mais a porta, e esperei por vários minutos até que ele visse que
estava falando sério.
Mas, quando ele saiu, eu a fechei rapidamente e fiquei ali encarando o
nada.
Estava sozinha outra vez.
“Durante toda a minha vida procurei algo
Algo que nunca chega, nunca leva a nada, nada me satisfaz
mas estou chegando perto da recompensa na ponta da corda
Me deixa com a sensação de vazio
A sensação ganha vida quando vejo seu fantasma”
FOO FIGHTERS, ALL MY LIFE
— Style. — O chamei baixinho, cutucando sua
bochecha. — Irmãozinho?
— Hum. — Ele resmungou, ainda dormindo, e tirou minha mão.
Mas eu podia ouvir as vozes ficando mais altas, seria diferente dessa
vez. Mamãe ia trazer seus amigos outra vez.
— Style, por favor.
— Não, Oni. Vá dormir.
Coloquei o dedo na boca, sugando e me sentei no chão. As vozes
aumentavam e diminuíam, papai estava lá também, ele estava tão sério como
sempre e mamãe parecia muito diferente.
— Eu vou perguntar a mamãe se está tudo bem ir lá fora — falei, mas
acho que Style não me ouviu. Ele tinha voltado tarde de onde quer que papai
o tinha levado de novo.
Levantei e saí do quarto dele, andei bem devagar pelo corredor, não
queria que mamãe ficasse zangada pensando que estava espiando. As vozes
foram ficando mais próximas, mais altas. Eu segurei meu urso com mais
força, sugando o dedo mais forte.
Eu sabia contar até quatro, então tinham quatro homens com mamãe e
papai. Mas tinham mais um e mais um lá também. Eu não sabia quantos
tinham então.
Quatro e mais... dois.
— Ele está na idade certa, Susha!
— Não vou separar os dois, não posso!
— Ela ainda não está pronta, levará dois anos até que chegue lá.
— Eles foram criados para isso. Nasceram para...
Meu ouvido foi tampado dos dois lados, assim como minha boca, e logo
estava sendo puxada para trás. Deixei meu urso cair e tentei me soltar, mas
então estava em meu quarto e Style segurando meus braços, me balançando.
Os olhos dele estavam arregalados, muito abertos, ele suava.
— Nunca faça isso! Entendeu? Nunca chegue perto deles!
— Eu te chamei, tentei te avisar, mas...
— Oni! — Ele me apertou com mais força. — Me prometa; não importa
as vozes, nunca deixe que vejam você!
Ela tinha pesadelos.
Observei pela tela do meu notebook, deitado, com a janela aberta e a
brisa entrando no forno que era o cubículo que separei para dormir. Aquele
era o meu flat, e por isso ela nunca foi convidada a conhecer minha “casa”.
Eu a ouvia chorar e resmungar quando dormia ao seu lado, e a acordava,
mas naquele momento não estava lá para fazer isso. Todas as noites ela tinha
aqueles sonhos que a faziam choramingar e se debater, suar e acordar
atordoada. Quando perguntei sobre o que eram, ela dizia que não se
lembrava.
Eu desconhecia a sensação.
Não me lembrava de um único sonho quando era criança, e continuava
não os tendo. Mesmo com anos de guerra, de missões que poderiam ser
perturbadoras, eles nunca vinham. Nem as lembranças das noites perdido,
com fome e ferido no meio do Iraque, Irã ou Paquistão, me faziam sonhar.
Sonhos eram uma fantasia de emoções, vontades e desejos. Eu não tinha
emoções o suficiente para ser digno de ter pelo menos um pesadelo.
Eu estava a poucos metros dela, exatamente na casa da frente. A
observava pela câmera instalada no quarto.
Drux era o vizinho dela.
Aquele que ela me dizia que era estranho. Quando eu perguntei se ele a
incomodava, ela disse que não, mas quando falava no telefone
com Slom Ward, ela dizia que tinha medo de estar tomando banho e ele
aparecer. Eu disse a Drux que não me importava se ele era da Liga, eu ia
matá-lo se a ouvisse falando sobre ele outra vez.
A casa era minha desde quando eu aceitei a missão, mas nós
a transformamos num espaço que eu, ele e Heinrich dividíamos.
Há duas semanas eu a acompanhava pela tela do notebook.
Eu a assisti sair de casa e voltar, a seguia para o trabalho e a assistia
enquanto estava no ateliê. Construir suas esculturas parecia acalmá-la, e com
os dias, começou a me acalmar também. Eu ficava curioso para saber o que
ela estava criando. Até um pouco ansioso.
Nossos trabalhos eram diferentes. Ela brincava com massa de modelar e
eu modelava situações, brincando com vidas. Com a vida dela.
Eu sabia tudo sobre ela. Já que ela não ficava mais me esperando
aparecer em sua casa com a minha chave e se sentia à vontade para fazer o
que quisesse lá dentro.
A vi descolorir os pelos da perna, mas só a metade, ela tirava os de
baixo. Cortar o cabelo sozinha e dançar enquanto limpava a casa. Aprendi
que ela sempre ia borrar a unha das mãos quando fosse pintar a dos pés,
ficaria xingando e ia acabar passando o resto da noite no sofá, vendo aquelas
séries sem nexo até dormir.
Às vezes ela segurava o celular e começava a chorar. Uma noite eu
entrei para descobrir o que era. Fiquei surpreso ao ver uma foto nossa, ela
encostada em mim e eu de olhos fechados. Meu primeiro impulso foi apagar,
mas mudei de ideia.
Percebi então que Onira tinha criado sentimentos profundos por mim,
então não entendia o porquê não me aceitava de volta.
Naya não se perdoava por ter contado a ela, e eu não fiz questão de
tentar consolá-la em sua culpa.
Onira se mexeu novamente, esfregando as mãos na cama e a balançando
a cabeça de um lado para o outro. Eu poderia ir até lá, e acordá-la, tirá-la de
sua angústia, mas ela tinha escolhido aquilo. Escolheu me afastar. Ainda não
estava na hora de voltar.
Ela precisava entender que para ela, eu era necessário, assim como eu
precisava dela.
— Slom, não comece com isso.
— É verdade! Você só precisa fazer sexo novamente e vai ver que ele
nem era tão bom assim.
— Ele era.
E como.
Ela revirou os olhos, bufando.
— Que seja. Encontraremos melhores.
Mordi o lábio, meio sem graça.
— Realmente terminou com ele?
Ela deu de ombros, jogando os cabelos para trás.
— Não terminei porque nunca começamos algo. Mas deixei claro que eu
não estava disposta a fazer sexo sem compromisso por um tempo longo
demais e arriscar pegar uma DST de seu clube de namoradas.
Eu suspirei, minha consciência ainda pesava um pouco, e aquela raiva
ainda surgia quando lembrava a reação de Slom quando contei sobre Siriu e
Naya, e as mulheres que ela disse ter visto no restaurante. Disse a Slom que
não sabia o que era, ou se estavam sérios, mas ela me cortou na hora, dizendo
que ele havia ido na casa dela pouco depois das duas da manhã.
Então nós sabíamos que ele simplesmente deixou Naya e foi para minha
amiga. Eu não queria lidar com um noivo que escondia coisas e ela não
queria alguém que não tinha respeito por ela em sua vida. Por isso nós
éramos melhores amigas, não existia drama entre nós. Eu falei e ela ouviu, no
fim, tomou a decisão por si mesma, mas não havia nenhum resquício de
mágoa por eu ter “acabado” com sua “relação” com Siriu.
— E Demeron, não te ligou mais?
— Terça de manhã.
Dois dias atrás. Eu estava arrumando a bolsa para sair de casa e depois
de duas semanas sem ouvir sua voz, resolvi atender. Interiormente, eu tentei
me convencer de que era uma atitude madura da minha parte, mas sabia que a
única razão era por não aguentar mais de saudade.
— O que ele disse?
— Conversamos pouco. — Dei de ombros. — Ele me chamou para
tomar café, disse que queria me ver.
— E você foi?
— Não. — Tive vontade de sorrir, lembrando que depois da recusa, ele
disse que poderíamos almoçar então, e quando neguei novamente, ele ainda
tentou me convencer a jantar.
Ele tinha um charme sobre sua casca dura, as palavras limitadas e o jeito
como falava comigo.
Slom me encarou por alguns minutos com o cenho franzido.
— Isso é algum tipo de castigo? Está dando um gelo nele e vai voltar
daqui algumas semanas?
— Eu não sei, Slom. Ele foi casado com a cunhada, ela me odeia e ele
atacou o irmão. Não consigo parar de pensar na possibilidade de que ele a
ama e estava comigo apenas para tentar esquecê-la.
Eu sabia que inicialmente ele queria ficar perto para me proteger de sua
família, mas, ainda assim, sempre houve algo entre nós. Uma química e um
desejo avassalador. Quando ele dormia comigo, era real. Cada minuto que
passamos juntos. Desde os sorrisos escondidos que eu conseguia raramente
tirar dele, até das vezes que ele tampava minha boca porque eu estava falando
sem parar.
— Sinto falta dele todos os dias.
— Talvez essa distância seja boa. — Ela me abraçou, apertando minhas
bochechas depois. — Você perdeu seu irmão e de repente estava sozinha. Faz
sentido que tenha se apegado a ele tão rápido. Me lembro que com Kurt foi a
mesma coisa.
— Não foi, Slom, nem de longe. Não sofri separada de Kurton, nem
lamentei como as coisas terminaram. O que eu sinto com Demeron... é, não
dá para explicar.
— Se realmente for, vocês vão se entender.
— Recebi um convite de Naya Pollintzi para a festa de Natal dela. Ela é
afilhada de Stark, então é provável que todos eles estarão lá.
— Isso é bom, nós vamos. Kurton vai para a Europa assistir ao desfile
de Natal de uma angel da Victoria’s Secret que ele está saindo e me chamou,
mas sinceramente... entre ficar de vela com meu irmão e sua namorada
temporária, e dar um apoio moral a minha melhor amiga, você sabe o que eu
prefiro.
— Como Kurton está?
Ela revirou os olhos.
— Tem várias enfermeiras dispostas a cuidar dele, não estou
preocupada.
Eu estava aliviada que seu irmão teve alta depois de dois dias em
observação para garantir que os ferimentos eram realmente
superficiais. Slom disse que ele tinha hematomas em quase todo o corpo, mas
eram só marcas. O mais grave foi o rosto, o olho ainda estava um pouco roxo
e ele ainda reclamava de dores.
— Siriu vai estar lá. Na festa.
— Melhor ainda. Assim ele pode ver como eu sou gostosa de longe.
Então eu vou encontrar um cara pra me exibir na frente dele e
beber o champanhe caro de sua família.
Eu dei risada, a abraçando de volta.
— E qual seu conselho sobre o que eu faço, já que Demeron estará lá?
— Deixe que ele veja a linda noiva que está a um fio de perder.
— Como?
— É Natal, Oni. Ele tem que fazer algo realmente grandioso se quiser
provar que é digno de você.
Voltando a encarar a tela do meu computador, terminei de responder um
e-mail de Sophi e sem conter o impulso, peguei meu celular, olhando nossa
foto juntos.
Se reatar com Demeron dependesse de algo grande e romântico de sua
parte, definitivamente nosso fim estava mais próximo do que nunca.
“É um jeito muito cruel de viver
Como se não houvesse sentido nenhum ter esperança”
ZAYN FT TAYLOR SWIFT, I DON’T WANNA LIVE FOREVER
— Não tenho certeza se essa foi uma boa ideia — disse Slom no pé do
meu ouvido enquanto caminhávamos direto para Stark.
Eu a fitei com uma advertência clara nos olhos.
— Por que é que você tem a maldita mania de me encorajar a fazer as
coisas e depois volta atrás, sua tirana?
— Posso pensar na resposta para isso? — respondeu com um
sorrisinho.
Revirando os olhos, eu forcei um sorriso para Stark, que também vinha
até nós.
— De qualquer jeito, se você não tem, imagina eu.
— Onira. — Ele cumprimentou, me abraçando rapidamente, e depois
beijou a mão de Slom. — Senhorita.
— É um prazer vê-lo de novo, senhor Stark.
Ele a fitou de cima abaixo e deu um sorriso mais do que encantador.
— Absoluto prazer, querida.
— Olá, senhor Stark. — Interferi, parando os olhares que ele jogava
para ela.
— Já disse para parar com o “senhor”. Nós somos família.
— Stark, já não somos mais.
Ele jogou a mão em desdém.
— Isso é uma crise, logo vai passar.
Aquela palavra de novo. Crise. Qual o problema dos homens daquela
família em admitir quando estavam errados, mas ao invés disso, chamavam
de “crise”, como se fosse uma tribulação conjunta ou algo assim?
— Nós terminamos, isso não é uma crise.
Ele me encarou por um momento, soltando minha mão.
— Acredite em mim, sei o que estou dizendo. É uma crise.
— Onde posso conseguir champanhe? — Slom perguntou, minha amiga
provavelmente sentia que eu estava a um passo de gritar com Stark. Ele mal
tinha feito alguma coisa, mas o fato de dizer aquilo como se o motivo da
nossa separação fosse tão banal e eu ia, com certeza, voltar para seu filho, me
irritava além da razão.
— Nenhum garçom ainda a serviu? Vou corrigir isso.
— Seria ótimo, Stark — falou, toda cheia de graça. — Não é uma festa
de Natal decente se eu não saio tropeçando.
Eu queria dar-lhe uma cotovelada. Ela estava realmente flertando com
meu ex sogro e tio do cara com quem ela estava dormindo?
E onde estava Belle, afinal, que ainda não tinha me interceptado para
falar de seus inúmeros planos? Coitadinha. Se Stark pelo menos a olhasse
como estava olhando para minha amiga, eu aposto que sua namorada seria
mais relaxada.
— Querida, você é das minhas.
— Onde está Naya? — interrompi antes que fosse mais longe.
— Estava acompanhando uma amiga até o motorista lá fora, a garota
está grávida e veio de Viena. Fiquei encarregado de receber os convidados
enquanto isso.
— Bem, obrigada, então. Nós vamos pegar algo para beber e esperá-la.
Ele me deu um aceno e passou para o lado, deixando-nos ir. Quando
estávamos longe o suficiente e já com nossas taças, eu dei um pequeno
belisco em Slom.
— Não se atreva a trepar com ele.
— Por quê? Ele é gostoso!
— Slom, pelo amor de Deus, se minha melhor amiga criar laços com
esses homens, como é que vou sair do meio disso?
Ela segurou meu rosto e virou para onde Stark estava.
— Observe esse homem. Ele deve estar na casa dos cinquenta. Vê o
terno bem preenchido?
— Slom...
— Oni, se Siriu é tão grande e Demeron faz tão bem como você diz,
imagine como é isso na versão experiente! Olhe aqueles olhos, o cabelo
grisalho, o sorriso perfeito. Cacete, tem gente que paga uma fortuna para ter
aquela mandíbula.
Eu a olhei com meus olhos implorando.
— Por favor, não durma com ele. Eu estou aqui em consideração a Naya
e espero que essa seja a última vez que vou vê-la.
Ela suspirou, deixando os ombros caírem e fez um beicinho.
— Nem uma vezinha?
— Não. E ele tem a Belle, ela é insistente, mas um doce. Não posso
compactuar com isso.
— Sortuda. Toda mulher deveria transar com um coroa antes de morrer.
Eles sim sabem apreciar uma mulher.
Eu estava prestes a responder quando fui interrompida.
— Onira! — Virei para encontrar Naya quase saltitando até nós.
Ela me abraçou, depois fez o mesmo com Slom.
— Estou tão feliz que veio!
— Obrigada pelo convite. Eu não perderia.
— Eu não fui convidada, mas tem tanta comida aqui que você
provavelmente nem se importará com uma penetra. — Slom disse e deu de
ombros.
Naya bateu palmas, soltando uma gargalhada.
— Inferno! Eu estaria num trono de nuvens se todos os penetras
quisessem só comida de graça. Não se preocupe com isso. A família e amigos
da Onira são sempre bem-vindos.
— Naya, essa é minha melhor amiga, Slom Ward.
— Bom te conhecer... Ward? De onde já ouvi esse nome?
— Provavelmente meu irmão.
— Kurton? Kurton Ward?
— Exatamente, e... Caramba! — exclamou Slom, cutucando nós
duas. — É aquele ator?
Naya riu.
— Rob? Sim. Eu chamei alguns amigos da indústria, mas por conta da
agenda poucos conseguiram vir.
— Você está brincando? Ele concorreu ao último Oscar!
— Ele é ótimo.
Slom enfiou um canapé na boca e terminou seu champanhe, pegando a
minha taça cheia depois.
— Eu preciso rodar por aí, quer dizer, é como se eu estivesse em
Hollywood.
Nós demos risada, acompanhando seus passos até ela virar a esquina. A
verdade é que nem eu e nem Naya sabíamos o que dizer. Eu a fitei com um
pequeno sorriso, elogiei a festa e trocamos palavras simpáticas, mas tinha
aquele incômodo, aquele elefante na sala que nem eu e nem ela
poderia ignorar mais.
— Olha, Naya...
— Eu não tinha certeza se você viria depois de... você sabe. — Ela fez
uma cara tão arrependida, tão triste. — Realmente sinto muito, Onira.
— Não tem motivo.
— Eu contei algo que não era da minha conta e por causa disso, acabei
com seu casamento. Destruí o amor de duas pessoas que gosto. Um, eu
conheço a vida toda, e a outra, quase não tive a chance porque falei demais.
— Nada disso. Mesmo se tivéssemos ido adiante, no momento em que
eu descobrisse que ele escondeu um casamento e que ainda foi... foi com
ela — suspirei. — Teria acabado. Economizamos tempo, dinheiro, convites e
lágrimas.
Ela fitou as próprias mãos.
— Realmente acabou?
— Sim. Eu vi coisas que realmente não queria ter visto.
A imagem dele rasgando a garganta de Regnar me veio à mente e me
arrepiei, a cena toda se repetindo em minha cabeça.
— Espero que mesmo depois disso, você saiba que pode contar comigo.
Mesmo meio que traindo um familiar, sinto que fiz bem em dizer a você.
Então... pode acreditar em mim.
Dei um aperto em suas mãos. Ela realmente tinha aberto meus olhos de
uma forma que nunca ia entender.
— Eu não o vi por dois anos, sabe? E agora que ele voltou sinto que
estraguei tudo.
— Por dois anos?
— Sim... ele estava numa viagem ou algo assim, você sabe como é,
missões do governo. Ele só tinha contato com Siriu.
Não, eu não sabia. Nosso “relacionamento” nunca teve muitas
revelações da parte dele.
— Só com Siriu?
— Sim. Ele sempre nos trazia as mensagens de Demeron, dizia que era
arriscado ligar, então alguns meses atrás ele voltou e eu fiquei aliviada. Mas...
só o afastei.
— Não se preocupe, Naya. Vocês são família, tudo se ajeita.
— É, acho que sim. — Ela riu e revirou os olhos. — Estou sendo
dramática, é só uma crise.
Eu franzi a testa ao ouvi-la dizer aquela mesma merda. Drama. Crise.
— Preciso receber alguns convidados, será que...
— Eu vou ficar aqui e esperar por Slom.
— Deixe-me levar você até uma mesa. Tem uma amiga que está sozinha
esperando o marido e assim vocês podem fazer companhia uma a outra.
— É claro, só preciso encontrar Slom antes.
— Eu a aviso, não se preocupe.
— Ainda não vi Belle por aqui.
Naya revirou os olhos e apertou os lábios enquanto andávamos.
— Não se acostume com as namoradas dele. Stark é um namoradeiro. A
próxima vez que nos virmos, ele estará com outra.
Ela segurou minha mão e fomos até a área do restaurante aberto, várias
mesas estavam postas perto, uma decoração natalina enfeitando todo o lugar.
Estava lindo. Eu não lembrava da última vez que tinha comemorado o Natal.
Mandei algumas mensagens para pessoas próximas durante o trajeto até a
festa, mas esse era o máximo que fiz.
Style e eu jantávamos como qualquer outro dia e assistíamos algum
canal de esporte ou filmes. Nunca sequer dissemos “feliz Natal” um ao outro,
porque realmente não sabíamos o porquê disso.
O trajeto até a mesa revelou vários rostos da TV, artistas de vários
cenários e eu fiquei espantada de como Naya conhecia tanta gente. Não era
uma surpresa, eu tinha mexido em seu Instagram e os mais de cem milhões
de seguidores já diziam tudo: ela era grande. Eu não era uma grande fã do
estilo pop, mas já tinha ouvido suas músicas por vários lugares. Era apenas
estranho estar dentro disso.
De todos esses rostos, o que eu mais ansiava e temia ver, não tive nem
um vislumbre.
— Aqui está ela. — Ela disse e colocou a mão no ombro de uma loira
que estava sentada de costas para nós.
Ela virou e sorriu para Naya, depois me olhou.
— Ei, chica. Você demorou.
Naya riu.
— Onira, conheça a minha amiga Aya Maria Herrera, Aya, essa
é Onira Tieko.
Ela ficou de pé e me cumprimentou com um sorriso discreto, olhos
avaliadores. Era tão bonita que fiquei impressionada. Uma loira alta, parecia
bem jovem, olhos claros e um sorriso deslumbrante. Seu marido com certeza
tinha sorte.
— Olá. — Ela falou em inglês, e eu respondi da mesma forma.
— Prazer em conhecê-la, Aya.
— Aya é do México. Incrível, não é? Quando a conheci não consegui
parar de fazer todas as perguntas possíveis! — disse Naya, rindo.
— Pelo pouco que conheço sei que é uma cultura bem diferente, mas a
minha também é, então sei bem o que você passa.
— Você é de onde?
— Tailândia.
Aya bufou, sentando novamente e me apontando uma cadeira.
— Então junte-se ao clube. Nós somos como um circo para eles.
Naya estreitou os olhos para sua amiga e se inclinou para mim, fingindo
que ia dividir um segredo.
— Aya pode ser um pouco... desmedida. Fique à vontade para mandá-la
ir passear.
Eu fitei a loira, não imaginando em alguém tão elegante sendo
“desmedida”. Pelo contrário, ela parecia se encaixar perfeitamente.
— Vou manter isso em mente.
Quando ela nos deixou, Aya acenou sua taça para mim e bebeu, olhando
ao redor.
— Então. — Comecei. — Eu fui abandonada pela minha amiga, e você,
pelo marido?
— Eu acredito que Siriu tem algum desejo secreto por Juan. Todas as
vezes que o vê, quer levá-lo para longe.
Dei risada, aceitando uma salada que o garçom ofereceu a nós.
— Vocês vieram a passeio mesmo?
— Gosto de pensar que somos amigos, mas não nego que as relações
entre meu marido e a Alemanha são boas para a campanha dele.
— Oh, vocês são políticos?
— Ele está concorrendo a presidência do México. — Encolheu os
ombros. — É cansativo, mas é o que ele quer, então nós estamos atrás.
— Uau... estou conversando com uma possível primeira-dama.
Ela se inclinou para mim.
— Parece incrível, não é? Mas, acredite... só de pensar que nunca mais
poderei nadar nua, acaba com todo a euforia. Mas, fale sobre você, é a noiva,
não é?
— Hm... a ex noiva? Sim, sou eu.
— Eu soube que vocês terminaram. Minha filha ficou feliz.
A encarei sem entender e ela sorriu, o batom vermelho manchando a
taça com seu sorriso.
— Maria é apaixonada por Demeron desde que o viu alguns anos atrás.
Disse que ia se casar com ele.
— Uma menina com expectativas altas.
— Uma criança inteligente, que aprende com a mamãe que o que ela
quer, ela pode ter.
Eu franzi a testa.
— Estamos mesmo falando sobre uma criança pegar um adulto?
— Não, estamos falando sobre ser capaz de pegar o que você quer e
agarrar isso, independentemente de qualquer outra coisa.
— É fácil falar, você é a esposa do futuro presidente.
— O que importa? Eu fodia com ele enquanto era o Governador do
Estado e sua esposa o esperava em casa.
Eu precisei de um momento para perceber que não era uma piada e que
ela falava sem arrependimento ou vergonha nenhuma.
— Você foi a...
— Amante? A outra? Sim, eu fui. E hoje eu sou a esposa, a mãe da filha
dele.
— Isso não te incomoda?
— Incomoda os outros com certeza, mas eu o amo, ele me ama e nós
estamos felizes. — Ela virou para mim na cadeira, encarando-me de
frente. — Você sabe... eu tenho uma amiga que sempre me perguntava como
eu conseguia encarar a vida com tanta transparência, porque eu fazia parecer
tão fácil. E o que eu disse a ela é o que vou te dizer agora. A vida é fácil, as
pessoas é que complicam.
— Eu não concordo com isso.
— É claro que não concorda. Você vê, eu tenho um grande problema
com ética e moral, geralmente passo por cima delas. Não levei nem uma
semana para perdoar Juan e voltar para ele quando nos separamos certa vez.
Ele tinha feito uma burrada fenomenal. Mas, eu coloquei na balança, eu o
amo, eu provavelmente irei perdoá-lo, então... por que nos fazer esperar se
daqui sete dias ou sete meses eu vou deixar que volte para mim?
— Orgulho? Respeito? Tempo para pensar? — argumentei.
— Você gosta do tempo que gasta pensando
em Demeron Konstantinova? Gosta de, sei lá, chorar por ele ou preferiria
estar em seus braços?
A resposta era óbvia, mas não verbalizei.
— As pessoas complicam, como eu disse. Pegue o que você quer, diga o
que você pensa, só... lide com as consequências depois. Quer dizer, eu estou
aqui agora, mas posso morrer no avião para casa, então por que porra eu
estou aqui sentada bebendo champanhe há duas horas se podia estar fodendo
meu marido em algum lugar da festa?
Eu não sabia o que dizer.
— O principal concorrente de Juan nas eleições tem algum ponto fraco,
eu vou descobrir qual é e vou usar para que meu bebê ganhe. Juan lidera as
pesquisas, mas eu prefiro me certificar de que saia exatamente como deve
sair.
— Isso é trapaça.
Seus olhos eram cínicos e frios quando me encarou e abriu um sorriso.
— Isso é a vida. O mundo é trapaceiro. Jogue ou você está
fora. — Ficamos em silêncio por um momento e ela aproveitou para pedir
algo mais forte a um garçom. — Kaladia tem as chaves da minha casa. Fora
duas amigas que tenho em meu país, ela é a única mulher em quem confio.
Mas, eu sou a única em quem ela confia, então acredite em mim quando digo
que ela não quer o seu noivo de volta.
Eu estava embasbacada, mas de qualquer forma, não tive tempo de
formular uma resposta, pois ela ficou de pé e ao ver algumas pessoas se
aproximarem, eu segui o movimento.
— Querido. — Ela cantou e abraçou um homem loiro, alto e
incrivelmente bonito que vinha ao seu lado. — Você demorou. — Dando um
tapinha no braço de Siriu. — Não se atreva mais a olhar na direção do meu
marido essa noite.
Ele ergueu as mãos.
— É todo seu. — Então ele me fitou e deu um aceno. — Onira, soube
que estava aqui. Fico feliz que veio.
— Olá, Siriu.
— Amor, essa é Onira Tieko, uma amiga de Naya. E Onira, esse é meu
marido, Juan Carlo Herrera.
Ele segurou minha mão e deu um aperto, tinha um sorriso simpático no
rosto. Político.
— Senhorita Tieko, como vai?
— Muito bem, senhor. Aya me falou sobre as eleições, desejo boa sorte.
Ele a fitou com os olhos brilhando de adoração.
— Enquanto ela e nossa filha estiverem comigo, já sou sortudo. E é
claro, há o fator de ser melhor que meus concorrentes.
Ali estava. Com essa fala eu podia entender como eles funcionavam
como casal.
— Onde está Maria? — perguntou Aya.
— Brincando com Blair. Esmeralda está com elas.
— Se vocês me dão licença, eu preciso estar em outro lugar — disse
Siriu.
— Siriu — chamei. — Uma palavra, por favor?
Ele assentiu, apontando para fora.
Me despedi de Aya e de Juan, sendo seguida pelo sorriso dela. Não era
nem ruim e nem bom, ela tinha uma presença marcante que eu não conseguia
explicar.
Nós fomos para o lado de fora, no jardim, que parecia estar ainda mais
lotado.
— Você precisa de algo? — Ele perguntou, chamando minha atenção.
— Não, está tudo bem. — Hesitei, lambi os lábios e respirei
profundamente. — É sobre ele.
— O que é que tem ele?
— Ele... está bem?
Com o rosto tão inexpressivo como sempre, Siriu deu de ombros. Fora
isso, não parecia se mover. Fazia mínimos movimentos. Me fitava com um
rosto sério.
— Ele nunca está bem.
— Eu quero dizer vivo.
— Até onde eu sei, sim.
Eu queria perguntar outras coisas, queria falar com ele, tentar entender o
que fazer a seguir. Ele pareceu entender meu dilema e suspirou.
— Você o viu surtando aquele dia na empresa. Não sei se ficou excitada
com a ideia de consertar um homem quebrado, foder um louco ou o quê. Não
julgo, tenho minhas próprias fantasias. Mas, você o abandonou, não pode vir
me perguntar como ele está. Fale com ele, responda as ligações dele.
Boquiaberta, me segurei para não desferir um tapa em seu rosto duro.
— Eu não fiquei excitada, você está louco? Por que é que eu estou sendo
bombardeada por escolher não perdoar não só uma, mas várias coisas que ele
fez?
— Se não quer perdoar, por que está interessada nele?
— Eu não...
— Você frequenta as festas da família de Kurton Ward?
— Não, mas...
— Esse é meu ponto. Boa noite, Onira.
Ele acenou mais uma vez e me deu as costas, saindo. Ignorou todos os
olhares femininos que recebeu e sumiu de vista. Eu sabia, então,
que Demeron não estava ali e nem ia aparecer. Voltei para dentro, procurando
Slom.
Íamos ficar até meia-noite e ir embora. De tudo o que aconteceu naquela
noite, eu sabia que algumas palavras ficariam na minha mente por um longo
tempo: as de Aya Herrera.
Eu não sabia se tinha adorado ou odiado aquela mulher.
“Às vezes me pergunto, enquanto você dorme
Será que você está sonhando comigo?
Às vezes, quando olho nos seus olhos
Eu finjo que você é meu todo o maldito tempo
É normal que você esteja na minha cabeça?”
TAYLOR SWIFT, DELICATE
Quase não atendi meu telefone quando tocou um pouco depois das 2
horas da manhã. Era Natal e as pessoas estavam aproveitando a data festiva
que nunca fez sentido para mim, assim como todas as outras, mas sabendo
que poderia ser sobre o trabalho tirei o telefone do bolso e fechei a porta
novamente, decidindo saber do que se tratava para retomar meu caminho e
sair de casa.
— Demeron.
— Ei cara, é o Bruce. Ligando para avisar que a mulher acabou de sair.
Siriu chamou um táxi para ela.
A ideia do meu primo tendo qualquer contato ou proximidade com
Onira fez minhas entranhas apertarem e uma sensação de sufoco na garganta.
Eu sabia que várias coisas poderiam acontecer dentro do tal táxi.
— Ela estava sozinha?
— Não, a loira do ateliê foi junto.
— Você as seguiu?
— Sim, ela deixou a amiga em casa e voltou ao carro, acho que está
indo para a casa.
— Certo.
Desliguei e peguei mais algumas balas na gaveta do armário. Fiquei
observando por uma fresta na cortina da janela o momento em que ela
chegaria.
Não demorou mais que 10 minutos e um táxi parou, ela entrou
rapidamente e fechou a porta. Esperei o carro cruzar a esquina e sumir, e
depressa voltei ao quarto que ocupava, abrindo o notebook para iniciar as
câmeras da casa da frente.
Ela andava pela casa conferindo se as janelas estavam fechadas e a porta
do fundo também, e estavam, pois eu mesmo as fechei mais cedo.
Satisfeita, ela foi para o corredor e enquanto andava, reparei na roupa
que vestia. Não fui a festa de Naya para deixar Onira mais livre, dar a ela
uma sensação de que eu não seria um incomodo, que havia desistido, mas é
claro que não era verdade. Mas, ao ver o vestido, quis me dar um tiro por não
ter ido. Imaginava a quantidade de homens ricos, e até famosos que teriam
mexido com ela.
Senti minha ereção crescer com o balançar dos quadris e as mãos
delicadas jogando o cabelo para trás. O vestido vermelho agarrava em cada
curva de seu corpo pequeno, indo até abaixo dos joelhos com uma fenda que
chegava perto do quadril dos dois lados, e aquele salto preto altíssimo me fez
ter fantasias que não tive desde a adolescência. Sem contar o decote que fazia
seus seios ficarem incrivelmente tentadores e mais deliciosos do que já eram.
Hesitei antes de fechar a câmera do banheiro quando ela entrou, mas fiz,
tinha pelo menos um pouco de ciência que observá-la nos banhos sem seu
consentimento seria algo que a faria sentir-se humilhada.
Esperei não pacientemente até que ela saísse enrolada em uma toalha.
Com os cabelos presos no alto e sem nenhuma maquiagem, pude ver as
olheiras debaixo dos olhos, olheiras que eu coloquei ali. Apertei as mãos em
punho, estranhando a vontade de ir até lá e tirar aquele olhar derrotado de
seus olhos.
Ela saiu do quarto vestindo no uma mini bermuda agarrada ao corpo e
uma camiseta mais larga, que olhando melhor percebi ser minha. Um sorriso
que eu não esperava dividiu meu rosto e a ideia de que ela precisava de
alguma parte de mim para dormir me fez sentir como a porra do dono do
mundo.
Ela ligou a TV da sala colocando naquele programa que gostava de
assistir que não fazia nenhum sentido para mim e deixou o controle na mesa,
seguiu para cozinha e fez um chá. O tempo todo olhava para o nada, parecia
triste e solitária.
Com o peito apertado, procurei a chave de sua casa. Uma cópia que fiz
quando ela pediu de volta aquela que tinha me entregado e fiquei de pé
quando ela tomou dois comprimidos com chá, sentou no sofá eu sabia que em
questão de segundos estaria dormindo.
Enquanto aguardava fazer efeito, fiquei observando seu rosto, cada
traço, a expressão de tristeza que não ia embora, e cada vez que ela olhava
para porta, depois para o celular e por fim, para o relógio. Eu sabia que estava
se perguntando se mesmo que tivesse me mandado embora eu não iria
aparecer, afinal, era Natal e um homem que ama alguém provavelmente faz
de tudo para estar por perto.
Esperei por 20 minutos enquanto ela lutava com o sono e apenas quando
sua cabeça tombou no encosto do sofá com a xícara encostada em seu peito e
uma manta cobrindo as pernas, eu me movi. Esperei para ver se havia mesmo
dormido e fechei as câmeras, decidindo num impulso que iria até lá.
Não sei o que me moveu, o que me fez tomar essa atitude, mas quando
dei por mim já estava entrando na casa e fechando a porta no maior silêncio
que consegui.
Ela não moveu um músculo, derrubada pelo calmante. Fui até o sofá
lentamente, tirei a xícara e coloquei em cima de um de seus livros na mesinha
de centro.
Novamente, movido por um arroubo que não sabia entender, sentei-me
ao seu lado e passei meus braços ao redor dela.
Respirei profundamente.
A puxei para mim.
Soltei o ar.
Sua cabeça pousou em meu peito.
Suspirei.
Encostei meu queixo no couro cabeludo e respirei seu cheiro.
Ela respirava com calma e seu corpo se movia junto ao meu pela minha
própria respiração com suas costas firmes em meu peito. Segurei as mãos
dela e puxei os dedos para meus lábios, beijando a ponta de cada.
Desliguei a televisão com o controle e fomos engolidos pelo escuro.
Tinha uma visão clara para o relógio, mas internamente torci para que
ela dormisse um pouco mais. Assim por algumas horas poderia ficar ali sem
que ela nunca soubesse e aquilo nunca interferisse na história que já estava
fadada a tragicamente acontecer.
A envolvi com mais força, senti sua respiração leve em meu braço e não
sai dali.
Não até que amanheceu e quando eu fui embora, ela ainda dormia.
“Lágrimas pesadas, um desfile de chuva do inferno
Eu sei que parte seu coração quando eu choro de novo”
ARIANA GRANDE, HOSTIN
Eu fechei a porta do ateliê e tranquei, ansiando chegar logo em casa.
Aquele sapato era tão desconfortável e ter ficado o dia todo nele só tornou
pior. A segunda semana do ano não estava mais tranquila que a primeira,
então Slom e eu estávamos nos desdobrando para dar conta de tudo. Até
entrevistamos algumas pessoas, mas tanto eu quanto ela não tínhamos sentido
que qualquer uma das garotas era certa.
No dia seguinte entrevistaríamos mais quatro e eu esperava que desse
certo. Não me lembrava da última vez que tive férias, e ter mais uma pessoa
para ajudar com tudo e poder sumir por algumas semanas era o que eu mais
estava precisando.
O Natal foi ruim, mas a virada de ano conseguiu superar.
Não houve nenhum convite para festa interessante o suficiente que me
fizesse sair de casa. Slom viajou com seu irmão e Maya era a principal
atração de um show da virada fora do país.
Eu assisti pela TV e quando bateu meia-noite, estava terminando minha
segunda taça de vinho sentada no sofá e enrolada num cobertor quente. A
neve caía do lado de fora e até pensei em colocar um casaco e botas e ir
observar mais de perto, ver se meus vizinhos estavam por ali, mas o
pensamento foi rapidamente embora e dormi logo que terminei a taça.
Saindo um pouco mais tarde do que o comum, decidi de última hora ir
visitar Style. O táxi já me esperava lá fora, e fui rapidamente para dentro. Já
havia começado uma temporada fria, o inverno se aproximava.
O caminho foi rápido até Marzahn. O cemitério estava coberto de neve,
os portões fechados, mas eu conhecia o rapaz que trabalhava ali e não foi
difícil que me deixasse entrar.
A lápide de Style estava como sempre. É claro que nada tinha mudado.
Eu era a única a ir ali. Deixei uma flor solitária em cima e toquei a pedra
gelada, passando os dedos pela gravura de seu nome.
Fiquei sentada por algum tempo, não sabia quanto. Pensando em nada
realmente. Foi a primeira vez que estive ali e não derramei nenhuma lágrima.
— Imaginei que a encontraria aqui.
Assustada, reconheci a voz e virei para ver Mic alguns passos atrás de
mim. Com alívio me inundando, fui até ele com passos rápidos e joguei os
braços ao redor do homem que conhecia há tantos anos.
— Mic... — suspirei. — Não acredito que realmente está aqui.
— Você ainda traz flores.
Dei de ombros quando finalmente me afastei.
— Acho que me acostumei. É a única coisa que me resta fazer.
— Ah, eu não sei, menina. Te conhecendo, pensei que faria uma
escultura dele ou algo assim.
Soltei uma risada baixa. Aquele era Mic, sempre me fazendo rir, me
deixando à vontade.
— Seria extremamente mórbido. Imagina só o rosto de Style em argila,
imóvel para sempre.
Ele torceu o nariz.
— Não dá nem para pensar. Continue com as flores.
— É. Ei, de todos os lugares de cidade, fomos nos reencontrar no
túmulo do meu irmão.
— Eu não tinha muita escolha.
Franzi a testa.
— Como assim, quer dizer... você estava me esperando?
— Eu a segui do ateliê.
Minhas sobrancelhas subiram em surpresa.
— Por que você faria isso?
— Era o único jeito de conseguir falar com você em particular. Estou na
cidade há alguns dias e acredite em mim, tentei de outras maneiras.
— Bem, você não foi em casa e não foi ao ateliê. Também não me
ligou.
— Justamente porque queria falar apenas com você.
Ergui as mãos, o parando.
— Mic, isso não faz sentido. Se era por causa de Slom, ela não vive
comigo e...
— Slom Ward não tem nada a ver com isso.
— Certo. Então você vai me explicar por que anda me seguindo?
— Demeron Konstantinova está vigiando você. Há câmeras e escutas na
sua casa, trabalho e celular.
Fiquei muda por um momento e encarei o homem que me conhecia
desde a adolescência. Era o melhor amigo do meu irmão, e após sua morte,
havia se tornado meio que meu protetor. Era um homem grande, alto e forte.
Estava na meia idade, mas nem de longe aparentava. A pele escura e os
cabelos mais escuros ainda faziam seus olhos castanhos terem um brilho
incomum. Eram olhos que sempre conseguiam me consolar. Me trazia
segurança.
Mas ali, eu não sentia isso. Não me sentia consolada e nem segura.
— Eu não entendo — sussurrei.
— Ele observa você. Está em cada cômodo da sua casa e do seu
trabalho. Escuta todas as suas ligações. Eu não conseguiria falar com você
sem que ele soubesse.
— Não é possível. Isso... isso tem uma explicação.
— Onira.
— Ele me contou! — Revirei minha mente buscando em nossas
conversas sobre aquilo, sobre ele falando de sua família, que queria me
proteger, que ia cuidar de mim. — Ele... ele fez...
— Ele instalou câmeras em cada canto de sua casa, ele a assiste e escuta
sem que você saiba. Eu quero ir até ele agora e arrebentar sua cara. — Mic
falava com calma, mas sua voz era séria como nunca vi antes.
— Ele estava tentando me proteger, ia cuidar de mim. A família dele...
— Quer se vingar por algo que Style fez?
Eu o fitei receosa, desconfiada.
— Como sabe disso?
— Essa história não é nova. Nas rodas de assuntos que ninguém se
atreve a questionar, eles dizem que seu irmão receberia a vingança vivo ou
morto. Que tirou algo deles.
— Então você sabe que Demeron está fazendo isso para ver se estou
bem e...
— Onira. Pare.
Meus olhos lacrimejaram, a ficha não caía.
— Não quero saber, Mic, por favor. Não posso aguentar mais nada.
— Ele se aproximou de você para usá-la. Está tão envolvido nisso
quanto o resto da família.
Ele enfiou a mão no bolso e tirou um papel amassado, uma fotografia.
Eu a peguei com dedos trêmulos e abri, temendo o que veria ali.
A imagem era antiga, um preto e branco desgastado, e nela, havia alguns
homens. Uns de pé e outros um pouco abaixados na frente. Usavam
uniformes do exército, as cores de serviço da Alemanha.
Eu busquei em cada rosto, sabia que Demeron estaria ali, só não
entendia o porquê Mic queria que eu visse. Demeron foi do exército, eu sabia
disso.
Então, quando estava prestes a lhe perguntar, passei os olhos pela
imagem novamente e ali estava. Ao lado de Demeron, com os braços sobre os
ombros dele, estava Style. Precisei olhar por um momento, certificando-me
de que o rosto era o mesmo. Era ele. Meu irmão.
Fitei Mic, que me encarava sem piscar.
— Isso não é possível. Style não era do exército, não trabalhava para o
governo. Ele era investidor de risco.
— Seu irmão deixou muitos segredos no túmulo, esse era um deles.
— Por que ele fez isso? Por que nunca me contou?
— Tinha suas razões, eu nunca questionei. Não pretendia te contar, mas
precisava que você visse por si mesma. Que entendesse que Demeron é tão
parte disso quanto seu pai e irmão. Se querem se vingar dele, usariam você.
— Ele morreu em serviço? — perguntei baixinho, passando o dedo pela
imagem velha. O sorriso do meu irmão era grande, parecia feliz.
— Sim, menina. E essa é a parte que eu quero chegar. Demeron
Konstantinova estava com ele.
— O quê? Mas então...
— Ele já te conhecia. Ele sabia quem você era desde sempre.
De repente tudo voltou para mim. Stark me procurando, a reunião... O
jantar na mansão e a visita que me fizeram no ateliê.
— Nada foi por acaso.
— Se queriam se vingar de Style, o que melhor do que atingir alguém
que sabem que ele ama? — Mic pressionou.
Alguém que sabem que ele ama.
Sabiam, porque Demeron sabia.
Sabiam, porque Demeron contou.
— Desculpe ter chegado aqui tarde. — Ele falava, segurando meus
braços. — Sei que ele já fez estragos, mas eu estou aqui agora. Vou cuidar de
você. Terminaremos isso tão rápido que não vai nem perceber e logo estará
longe daquela família. Tudo bem?
Eu assenti lentamente, era como se estivesse em câmera lenta, nada
fazia sentido.
Não sentia minhas mãos, minhas pernas e menos ainda meu coração.
— O que você precisa que eu faça?
“Se eu correr, não será suficiente
Você continua na minha cabeça, presa para sempre
Então pode fazer o que quiser, sim
Amo suas mentiras, vou engolir tudo
Mas não negue o animal
Que ganha vida quando estou dentro de você
Você não pode negar a besta que vive dentro de você”
MAROON 5 – ANIMALS
Bati à porta e esperei.
Depois de tocar a campainha pela segunda vez, conferi se era realmente
aquele endereço, confirmando que sim.
Não era um lugar ruim, mas vendo como sua família vivia, eu estava
surpresa. Demeron morava em um bairro duvidoso, numa área onde o luxo e
conforto de Berlim não era visto. O “apartamento” ficava num prédio de três
andares, lado a lado com outros e uma mercearia em frente.
Durante todo o caminho do escritório de Siriu até o endereço, pensei nas
palavras de Mic. Seria possível que aquele homem realmente queria me
machucar? Por que faria tudo isso? Por que criaria uma fantasia apenas para
me enganar e no fim, me prejudicar?
Casamento, todos os passeios, as conversas... ele mentiu sobre tudo.
Sabia que sua família queria algo contra o meu irmão e por conhecê-lo,
contou que eu existia, quem eu era. Então ele entrou na minha vida, se tornou
uma parte dela e me fez precisar dele.
Meu primeiro instinto foi jogar os punhos fechados em seu peito e gritar
com ele, exigir que me explicasse tudo. Mas, pensava em Mic, em Style.
Inevitavelmente, um pensamento me vinha à cabeça... e
se Demeron teve algo a ver com a morte de meu irmão? Os dois serviram
juntos e ele nunca disse nada, se fez de interessado e curioso quando contei
sobre Style, eu me lembrava bem. Mas, aquilo era tudo parte de uma cena,
um teatro.
Até ali, eu tinha andado ao redor dele seguindo as linhas que traçava. O
jogo era dele e nenhuma peça se movia sem sua autorização.
Mas aquilo havia mudado.
“— O que você precisa que eu faça?”
“— Finja. Finja e me ajude a descobrir o que eles querem com você.
Depois eu me vingo.”
“— Não — respondi entre dentes.”
“— Onira, sei que é difícil, mas eles terão uma vingança.”
“— Tiraram meu irmão de mim e me fizeram de idiota todo esse tempo.
Eu ia me casar com ele. Terão a vingança, mas ela não será só sua.”
A porta foi aberta na terceira vez que bati. E lá estava ele.
Se fosse possível ter ficado mais bonito, ele conseguiu. O cabelo estava
um pouco maior, a barba tinha sido aparada, mas continuava um pouquinho
grande... e os olhos, parecia que o mar inteiro se escondia ali. Me encarava
com a mesma profundidade de sempre, bem sério, silencioso.
Não estava surpreso que eu iria ali.
Sabendo das câmeras, Mic me deu instruções para não deixá-
lo desconfiar, então eu precisei continuar fingindo que estava sozinha
quando, na verdade, ele assistia cada movimento meu, e mais cedo, antes de
sair, falei com Slom no telefone, dizendo a ela que ia vê-lo.
— Demeron — cumprimentei, olhando pela porta aberta o pouco
que conseguia ver lá de dentro.
— Onira, não estava te esperando.
— Pensei em fazer uma surpresa.
Ele me observou um pouco e abriu a porta por completo.
— Entre.
Eu fiz e me surpreendi ao ver uma cama e um pequeno criado-mudo, do
lado, dois pares de botas, uma um pouco mais desgastada que a outra. Um
cabide pendurado numa arara segurava um único terno. Tinha uma porta com
a madeira lascada no canto, que imaginei ser o banheiro.
— Desculpe, isso não é muito.
— Devido a fortuna da sua família, pensei que você morasse num flat no
centro de Berlim com vista para a Ponte.
Ele encostou na parede, ficando distante de mim, mas seus olhos não me
deixavam.
— O dinheiro é superestimado.
— Quem tem muito sempre diz isso.
Seja sutil.
Sua boca contraiu ligeiramente no canto.
— Acho que dizem.
— Então... — Abri os braços, olhando ao redor. — É aqui que você
vive.
— Na maior parte do tempo.
— E onde come?
— Fora.
— Fora. — Repeti. — Entendi.
Ele suspirou, cruzando os braços.
— Até ontem você estava ignorando cada uma das minhas ligações e
mensagens, então sei que não veio aqui para conhecer minha casa.
Fitei profundamente seus olhos na esperança de ver algo lá, mas não
tinha. Nem arrependimento por ter mentido, nem felicidade por ver sua noiva
voltar, nem alívio por talvez ter outra chance. Eu precisava fazer isso. Era a
única chance de ter as respostas sobre o passado e acabar com as dúvidas do
futuro.
— Onde nós íamos morar? Aqui?
— Não. Eu comprei uma casa no Valle, perto das montanhas na Costa.
— Viveu lá antes?
— Não, Onira. Eu a comprei para você.
Ignorando as batidas desenfreadas do meu coração, tentei não
demonstrar nenhuma reação.
— Me leve até lá.
— Agora? — As sobrancelhas ergueram em surpresa.
Abri a porta e o fitei por cima do ombro.
— Já tem compromisso? — Sem esperar sua resposta, saí do
apartamento e desci os dois lotes de escadas, acenando para um táxi na rua.
Não importava o quanto meu coração ia doer, mas eu ia entrar com ou
sem ele. O destino sendo sua casa de ficção ou a minha própria. Mas, pouco
depois do táxi parar ele estava ali, sentou-se ao meu lado com um espaço de
distância e falou o endereço.
Eu conhecia a área, não era muito residencial, mas um dos lugares mais
bonitos de Berlim. E caros.
Eu esperava que ele não fosse escolher uma mansão, pois mesmo se
aquela farsa tivesse ido para frente, eu ia querer me mudar. Uma casa
espaçosa o suficiente e confortável para a família era tudo o que eu queria.
— Quando chegarmos lá, não se sinta obrigada a nada — falou depois
de um tempo.
— Eu não vou — respondi e olhei para fora, onde mantive minha
atenção até chegar.

Quando chegamos no fim da estrada, Demeron pagou o motorista antes


que eu pudesse e saiu, abrindo minha porta enquanto eu fechava o casaco e
ajeitava meu cachecol. Ignorei sua mão estendida e afastei também cada vez
que tentou me ajudar a seguir o caminho de pedras em meio a grama
molhada. Mesmo com a dificuldade em caminhar com o salto, tocá-lo seria
um caminho sem volta.
O cheiro de verde, floresta e natureza pairava no ar. Era delicioso. Eu
sempre fui uma pessoa que ama cidades, metrópoles, mas aquele lugar se
revelava a cada passo que eu dava.
— Ali está ela.
Ele apontou e eu olhei para frente, parando de andar quando vi uma casa
térrea, com o telhado escuro e uma chaminé. Contrastava com as pedras
brancas das paredes de fora, e o chão da varanda que se estendia a alguns
metros à frente era um tom mais claro.
Meu queixo caiu. Não era nada como imaginei.
— São três quartos, mas o terreno é nosso, então se você quisesse
aumentar estaria tudo bem. Cozinha aberta com a ilha separando da sala, não
está decorada, mas eu pensei que você ia gostar de fazer isso depois do
casamento.
Voltei a andar, o acompanhando.
Ele foi direto para a escadinha da varanda, tirando um molho de chaves
do bolso.
— Espera! — falei, meio atônita. — Não quero entrar.
Ele assentiu lentamente e voltou para perto, dando a volta na casa.
Tinham árvores, arbustos e pedras ao redor de praticamente toda a casa,
mas quando chegamos atrás dela, eu realmente perdi o ar.
Depois de metros de grama baixa estendidas sob o céu, havia uma
inclinação. Eu me aproximei, ignorando que Demeron ainda estava parado no
mesmo lugar. E lá embaixo, o mar batia sobre as pedras que desciam sobre
essa inclinação. Era um pulo de doze ou quinze metros direto para o mar
aberto.
Santo Deus.
Ele comprou uma casa numa montanha oceânica para mim.
O vento batia em meus cabelos, trazendo-os para o rosto e eu deixei, mal
podia me mover.
— Eu a imaginei criando suas esculturas ali, com essa vista.
Só com sua voz percebi como estava perto. Ele apontou para trás, na
casa, e fui mais uma vez baqueada pela parede inteira de vidro. Estava um
pouco aberta e lá tinha um espaço vazio, apenas uma cadeira de balanço que
dançava com o vento.
Mantive meus olhos abertos, sabendo que se os fechasse, veria o mesmo
que ele.
Eu não podia.
Aquilo não era mais uma fantasia. A fantasia do homem louco que me
perseguia, vigiava, que podia ter matado o meu irmão e que poderia querer
me matar também.
— Algumas épocas frias do ano são piores em casas altas, então lá
dentro tem duas lareiras grandes. Quando comprei, pensei que eram
espaçosas o suficiente para nos deitarmos na frente e dormir aquecidos.
Ele falava com tanta calma que me acalmava. Com tanto controle, que
colocava meus ânimos nos eixos. Olhava dentro dos meus olhos tão
profundamente enquanto contava suas mentiras, que era fácil acreditar. Antes
era.
Mas eu sabia.
Sabia que estava diante de alguém que nunca foi o que dizia ser.
Alguém que eu amava, e não conhecia.
Tentando soar convincente, acalmei minha voz e olhei para ele. Eu o
fitei por um minuto em silêncio, pensando que as próximas palavras que
sairiam da minha boca mudariam tudo.
— Uma chance, Demeron. A última. Isso é tudo o que você tem.
“Baby, serei seu predador essa noite
Te caçarei, te comerei viva
Como animais
Talvez você pense que pode se esconder
Mas consigo sentir seu cheiro de longe
Como animais”
MAROON 5 – ANIMALS
— O que vai fazer com ela? — Heinritch perguntou, fingindo arrumar
algo nas caixas da sala que eu usava na empresa de Stark.
— Ela quem?
— Senhorita Onira.
Continuei observando e riscando rotas do mapa da cidade, e ignorei sua
pergunta. Ele não tinha o porquê estar ali, mas o garoto era insistente, gostava
de ficar perto, achava que podia aprender mais. Jovem e estúpido demais. Ele
continuou parado na minha frente, mudando-se em seus pés enquanto
esperava minha resposta, sabia como funcionava. Se eu ainda não o tinha
mandado sair, era porque não estava incomodado a esse ponto.
— O que acha que vou fazer com ela? — perguntei sem desviar os olhos
do mapa.
— Machucá-la. Ainda me lembro de tia Kala...
— Quantas vezes já mandei parar de chamá-la assim? — O cortei,
grosso.
Desconfortável, limpou a garganta, mas não desistiu.
— Onira é inocente, sei que é boa.
— Está preocupado com ela?
— É claro que sim!
— Pois deveria mesmo. Ela está entrando num mundo perigoso.
— Por que, pelo menos, não para de a iludir?
Ele plantou as mãos na mesa, sua voz estava um pouco alterada, agitado.
Eu diria até... nervoso.
— Primeiro, isso não cabe a você, nada disso. E segundo, eu não a estou
iludindo. Nunca disse que a amo, nunca prometi coisas que sei que nunca vou
cumprir. Ela sairá disso como todas as outras.
— A enviando presentes?
Ele ia saindo, mas o chamei de volta, intrigado com aquela história.
— Que presente? Do que está falando?
— Ela ficou realmente tocada quando foi até a porta e pegou a
encomenda. Viu uma joia dentro e quase chorou. Entendo o porquê de tudo
isso, mas mexer com os sentimentos assim não se faz.
Ser repreendido por um adolescente era quase engraçado. Eu o criei,
mas ele nunca teve liberdade de falar o que quisesse comigo. Sempre deixei
os limites imaculadamente claros.
O assisti saindo com pesadas fortes e batendo a porta. Não me justifiquei
e não disse a ele que não tinha enviado nada. Mas, pouco depois de ele sair,
eu peguei minhas chaves e segui o mesmo caminho, disposto a descobrir de
que porra ele estava falando.

— Ei. — Ela disse assim que me viu. — Oi.


— Olá.
— Não estava te esperando.
Estava surpresa, claramente não me esperava. Eu costumava aparecer
em sua casa de supetão, mas nunca no trabalho. Não havia nada para eu fazer
lá. Ela estava sentada em frente a uma grande janela naquela sala enorme,
usava um vestido longo e branco, e sua pele mais clara ainda era tocada pelo
sol fraco do dia frio. Os pés estavam descalços e os cabelos presos em uma
bagunça que ela costumava fazer quando ficava distraída.
Uma coisa que sempre achei curiosa sobre ela, era o cabelo escuro. O
contraste que existia na pele branca, o cabelo escuro e os olhos escuros, mas
brilhantes.
Eu podia ser vazio, mas não era cego. Via sua beleza, era gritante.
Puxei uma cadeira para perto e me sentei. Sabia que deveria me
aproximar e dar-lhe um beijo, cumprimentar de forma carinhosa, mas estava
me sentindo instável demais para isso. Um sentimento estranho começava a
surgir. Uma fúria repentina que me fazia querer agarrar seu pescoço e forçá-
la a dizer quem seria estúpido o suficiente para enviar presentes a
minha dita noiva.
A maldita caixa estava em cima de uma estante cheia de esculturas
pequenas, quadros e outras coisas. Ela gostava disso, de enfeites.
Erguendo as mãos, mostrou que estavam cheias do material que usava
na forma reta e fina que começava a criar.
— Por que não me encontra em minha casa mais tarde? Mal vou
conseguir falar com você trabalhando nisso.
— Não me importo, faça o que tem que fazer. Te levo para sua casa
mais tarde.
— Você não tem que trabalhar?
— Não. Hoje eu só quero me sentar aqui e observar a minha noiva.
Ela desviou o olhar, voltando a mexer em sua coisa.
— Slom voltará daqui a pouco.
— Eu não acho que ela vá me expulsar.
— Não iria, mas ainda assim, não tem necessidade de ficar aqui até
anoitecer. Preciso adiantar essa coleção, então vou ficar até tarde.
Incapaz de resistir a provocá-la, me levantei e abaixei atrás dela,
sentindo seu corpo endurecer quando encostei minha boca em seu ouvido.
— Estou começando a pensar que está me chutando para receber
alguém.
— Nã-não seja ridículo! — Levantou e se afastou, limpando as mãos
num pano. — Não tenho nada a esconder de você.
Aproximando-me novamente, estranhei como estava tensa, geralmente
ela se derretia em meus braços. Jogava-se em mim. Mas ali parecia correr o
mais longe que podia.
— Tenho saudade, Onira. Venha aqui. — Meu tom de voz era firme e
decidido quando estendi minha mão esperando que aceitasse, mas ela não se
moveu.
Deu um passo à frente, seu lábio inferior deu uma tremida leve, que por
pouco não perdi. Mas, então balançou a cabeça levemente, olhando para o
chão como se estivesse em outro mundo e deu a volta em mim.
— Sinto muito, Demeron. Que bom que veio até aqui, mas realmente
não posso me distrair agora.
— Você está diferente. Isso é pelo que aconteceu? Eu já falei que ela...
— Não! — Interrompeu-me, erguendo a mão. — Não fale sobre ela para
mim. Nem fale sobre isso.
Ciúme. Uma emoção irracional e desnecessária, eu não sabia o
porquê Onira a sentia, mas ela não conseguia nem disfarçar. Ignorando seus
protestos, fui de vez para perto e a puxei para mim, segurando seu queixo e
erguendo seus olhos para os meus. Os dela tinham lágrimas não derramadas,
e isso me incomodou um pouco. Seria tão mais fácil se ela se desligasse!
— Kleine unze, não chore.
— Eu não vou — sussurrou.
Abaixei até tocar os lábios dela e fiquei ali por alguns segundos, senti
seu suspiro fraco em minha boca e a invadi, beijando-a como não fazia à dias.
A segurei com força contra mim. Uma coisa não era mentira: eu senti
saudade. Saudade do beijo, do corpo e do toque dela.
Várias foram as vezes que precisei ir para o centro de treinamento para
me impedir de invadir sua casa no meio da madrugada e fazê-la me aceitar de
volta. Eu podia. Com um toque ela já estava entregue. Mas, sempre
encontrava outra forma de conter o desejo por, pelo menos, algumas horas.
Separei nossos lábios e passei os dedos por seus cabelos que
desprenderam do laço.
— Agora por que você não senta esse lindo traseiro e volta a fazer suas
coisas? — Tentei sorrir.
Ela me encarou por um momento antes de desviar a atenção e ir para
onde estava. Mas, antes que pudesse chegar lá, eu a parei.
— Não me diga que minha noiva tem um admirador secreto? —
Calculei nossa posição e o que dizer a seguir.
Eu a tinha levado para próximo da estante intencionalmente, e ali, a
apenas dois passos da pequena caixa preta, eu a peguei e olhei para Onira.
Seus olhos arregalaram levemente e correu, tirando a caixa da minha mão.
Foi como se ela tivesse girado a minha chave. Uma chave que eu não
sabia que tinha.
Que porra ela estava escondendo?
A encarei por longos minutos, nenhum de nós dizendo nada. Eu esperei,
e quando ela abriu a boca, não deixei que falasse.
— Devolva.
— Isso é meu, é particular.
Em passos pesados, peguei de volta.
— Sob o meu cadáver você vai receber presentinhos e eu vou assistir
quieto — rosnei.
— Como se você se importasse. Devolva!
Ela bateu a mão no meu braço, tentando alcançar.
— Explique!
— Demeron! — gritou, quase arrancando os cabelos.
— Explique. Agora.
Recebendo apenas seu silêncio, abri a maldita caixa e quando vi o que
tinha dentro, por um momento fiquei paralisado, mal pude esconder minha
reação. Respirei várias vezes ainda olhando o objeto lá dentro, antes de
finalmente erguer o olhar para ela.
— O que é isso? — perguntei, fazendo-me de desentendido.
— Eu não sei.
Joguei de volta na prateleira e segurei seu rosto, travando seus olhos nos
meus.
— Que porra é essa?
— Eu não sei! — gritou, tentando me empurrar. — Não é grande coisa!
Começaram a chegar há algum tempo e venho recebendo desde então.
— Desde quando?
— Demeron. — Ela rosnou, me batendo pra valer. — Me solta!
Era isso. Era ele. Estava finalmente acontecendo. Depois de dois anos
infernais eu estava perto, perto demais.
— Me desculpe — pedi, segurando os dois lados do rosto dela e a
beijando repetidas vezes.
Também sentia um alívio, uma coisa estranha. Porque ela não estava
recebendo presentes de alguém. Não podia e nem conseguia explicar que
porra estava sentindo. Só precisava ficar longe. Tinha que ir para longe dela
naquele exato momento.
Enquanto a beijava, mesmo em meio aos seus protestos,
disfarçadamente peguei o objeto de volta e deixei a caixa.
— Vamos para casa.
Ela me bateu mais forte, estava surtando.
— Você não pode fazer isso, seu imbecil, idiota! Saia agora daqui!
Eu sorri quando acertou um tapa forte em meu rosto, segurando seus
braços, a encostei na parede e a beijei novamente. Quando ela tinha se
acalmado, a deixei ofegante e ainda me olhando com fúria nos olhos.
— Nós nos vemos mais tarde, pequena oncinha.
Dei-lhe as costas, saindo debaixo de seus gritos.
— Apareça só se quiser morrer, desgraçado!
Tranquei o ateliê ao deixá-la sozinha e parei no primeiro telefone
público que encontrei. Discando os números que sabia de cor, esperei ser
atendido.
— Identidade, por favor.
Lembrando-me do sotaque com o qual registrei minha voz, respondi:
— Shangai. Moto. Zero. Zero. Dois. Alfa. Quatro.
— Agente Konstantinova, confirme sua localização.
— Berlim, Alemanha. Ao sul do centro.
— O que precisa, agente?
Olhei o pequeno diamante em minha mão e fechei os olhos, batendo a
cabeça na parede da cabine.
— Preciso que confirme para mim se o agente Style Tieko era um rubi.
Deveria saber que seu amor era um jogo
Agora eu não consigo tirar você do meu cérebro
Eu tive uma overdose
CHARLIE PUTH - WE DON'T TALK ANYMORE
Mais cedo eu lhe chamei de desgraçado e mandei voltar apenas se
quisesse morrer, perdi o controle e não me orgulhava disso. Por um momento
pensei ter visto algo de verdade nele. Aquela fúria, a forma como me olhava e
como me questionava ansiosamente olhando nos olhos nunca aconteceu
antes. Mas, então pensei nas câmeras na minha casa, em tudo que Mic tinha
me contado e sabia que ele era um mestre em mentir e manipular. Se eu
permitisse me faria de idiota mais uma vez e não ia parar.
Mas ali estava ele.
Tocou minha campainha como se não tivesse a chave, como se nunca
tivesse invadido quando bem lhe dava vontade, como se não me observasse a
qualquer momento que quisesse. Ainda estava fingindo, ainda estava jogando
comigo.
— Posso entrar?
— Depende.
— De quê?
— Vai me empurrar contra a parede e me forçar a falar sobre coisas que
não quero?
— Provavelmente vou te empurrar contra a parede, mas não estou afim
de falar.
Aquele humor ácido era algo que eu irritantemente gostava nele. Nunca
o ouvi rir e duvidava que fosse ver algum dia, mas ele estava sempre fazendo
piadas irônicas e destilando seu sarcasmo seco.
— Você vai entrar com uma condição.
Erguendo as sobrancelhas, cruzou os braços, fazendo os músculos
contraírem contra o tecido da blusa fina e encostou no batente da porta.
— Não pensei que gostasse de fazer joguinhos, Onira.
— Você não me conhece totalmente.
— Conheço melhor do que você pensa.
Claro que sim.
Me conhecia antes mesmo de eu saber quem ele era.
— Talvez, mas eu não o conheço, então por hoje, só vai entrar se
concordar em responder honestamente todas as minhas perguntas.
— Feito. — Ele nem hesitou em responder, o que me irritou.
— Qualquer coisa que eu quiser saber.
— Qualquer coisa — concordou novamente.
— E não vamos fazer sexo.
Precisei segurar o sorriso que tentava escapar ao ver seu desagrado.
— Por que o cinto de castidade agora? Já te virei do avesso, que
diferença vai fazer?
— É pegar ou largar.
— Pego. Deixe-me entrar.
Abri mais espaço e depois tranquei, fechando a cortina das janelas. Me
perguntei se estando ali, tinha alguém nos vendo ou ouvindo pelas tais
câmeras. Sabia que ia ficar traumatizada para sempre com isso e nunca mais
me sentiria segura para ter privacidade.
— Quer uma bebida?
— Te acompanho no que você for beber.
Preparei um chá para mim e servi uma bebida para ele. Uma das poucas
coisas que sabia a seu respeito era que odiava chá. Não demorei, querendo
evitar que fosse atrás de mim e me pressionasse na cozinha mesmo. Voltei
para a sala, encontrando Demeron sentado na beira do sofá, cotovelos
apoiados no joelho e o rosto inexpressivo observava cada passo meu.
Coloquei o copo na mesinha a sua frente, evitando o contato de nossas
mãos ao lhe entregar a bebida, e sentei do outro lado da sala, na poltrona mais
confortável.
— Você já me dopou, já me sequestrou, já mentiu várias vezes, mas eu
ainda estou aqui. — Estava de coração, era verdade. Mesmo que quisesse
descobrir o que ele pretendia, nada me impedia de tentar entendê-lo.
— Sequestro é uma palavra muito forte.
— Alivia se eu disser que me levou desacordada para um lugar que eu
não conhecia sem a minha permissão e consciência?
Ele hesitou, erguendo uma sobrancelha clara.
— Sequestro é melhor.
— Sendo assim, tenho o direito de conhecer o cara que vou passar o
resto da vida.
Seus olhos faiscaram, mas ele apenas assentiu. Reunindo a coragem que
me convenci a tarde toda que tinha, deixei a caneca na mesinha e cruzei os
braços, dando-me uma sensação de segurança. Não funcionou.
— Você disse que sua ex mulher era uma vadia e agora sei quem ela
era.
— Engraçado sua primeira pergunta ser sobre algo que nos separou uma
vez. O que é isso, um jeito criativo de terminar de novo?
— Você a chamou de vadia porque ela traiu você com seu irmão? —
Ignorei sua pergunta e lancei essa de cara, sem filtros e sem pensar demais.
Ele não respondeu de imediato. Ficou me encarando por um tempo, não
sei se estava pensando nos prós e contras de me dizer a verdade ou se
considerava quanto tempo levaria até criar uma mentira convincente. Eu
estava prestes a pressionar por uma resposta quando ele recostou no sofá e
jogou uma perna por cima da outra parecendo ficar confortável, e respondeu:
— Sim.
— Sua família sabe?
— Sim.
Franzi a testa incapaz de não demonstrar meu incômodo ou qualquer
reação.
— E mesmo assim todos a acolheram?
— Próxima pergunta.
— Termine de me responder essa.
— Isso, minha querida noiva, não tenho como responder com
sinceridade porque não cabe a mim. Você teria que ir a Stark, depois
Angelina, e por fim a Siriu, e perguntar.
— Me fale sobre a sua família.
Ele suspirou. Não parecia irritado, nem tenso e nem frustrado, como
sempre, a menos que ele deixasse, eu não o podia ler.
— Por que quer saber essas coisas? Por que não pergunta coisas
comuns como quantas namoradas já tive, se fui de alguma fraternidade ou sei
lá, se pretendo ter filhos? Por que está cavando coisas profundas?
— Sua família é uma parte de você. Me caso com você e
automaticamente os aceito na minha vida. — Tentei parecer o mais neutra
possível, mas ele me conhecia e até eu mesma sabia que demonstrava
minha tensão da cabeça aos pés.
— Minha família é o que você já viu e o que você já conhece. Não
temos amor, não temos união e convivemos porque temos o mesmo
sobrenome e nos conhecemos a vida toda. Para ser sincero, nem sei porque
moramos juntos naquela mansão, talvez porque fica mais fácil fingir
quando é necessário mostrar em público.
Lembrando-me da cena com Regnar no restaurante, precisei respirar
fundo na próxima pergunta.
— Você já matou alguém?
— Fui do exército grande parte da vida. Já matei incontáveis pessoas.
— Alguma que você estivesse ciente de estar matando?
— Sim. Fui para a guerra sabendo que mataria. Próxima pergunta.
Ele era tão inteligente que me irritava. Fugia da pergunta depois de dar
uma resposta que não era exatamente o que perguntei. Será que sabia que eu
desconfiava e me perguntava dia e noite se tinha algo a ver com a morte
de Style?
— Com o que são os seus pesadelos?
O fitei surpresa e sem respostas diante do questionamento. Era tão cru e
honesto que percebi por sua testa franzida que talvez nem ele tivesse se dado
conta de como soou sincero e... interessado.
— Eu não sei, na maioria das vezes. — Decidi responder. — Sempre
vejo meu irmão e meus pais, mas nunca sei sobre o que é. Acordo e nunca faz
sentido, mas é sempre a mesma coisa, a mesma casa e os mesmos rostos. Só
muda a situação sobre o que estamos falando. Às vezes é tão estranho que se
alguém perguntar se foi realmente um sonho ou se havia sequer uma pequena
chance de ser uma lembrança, eu não saberia dizer.
Minha resposta foi tão honesta quanto sua pergunta, mas percebi que ele
se arrependeu de ter deixado as palavras saírem. Afinal, sempre nos manteve
num território neutro, sem conversas profundas ou até sentimentais, mas por
algum motivo parecia queria saber.
— Eu precisava descobrir o que atormentava seu sono, o que te faz
chorar de olhos fechados e derramar lágrimas no silêncio.
As palavras baixas e pronunciadas devagar me tiraram o ar.
Definitivamente estava me dando algo que nunca deu.
— É melhor você ir agora. — Ouvi minha voz, mas não estava ali, não
sentia minhas mãos. Estavam geladas, duas pedras. Permaneci no mesmo
lugar, sabendo que faria uma besteira enorme se levantasse.
— Também acho. — Ele disse de repente, levantando-se e me
encarando por alguns minutos. Tinha a testa franzida, os lábios numa linha
fina e as mãos abriam e fechavam num punho.
Comecei a ficar trêmula. Ele não saía, só ficava ali parado com os olhos
frios cravados em mim. Só o tinha visto assim uma vez: quando o conheci.
Durante aquele surto que vi os olhos azuis mais bonitos que já havia
encarado na vida.
— Demeron — chamei, minha voz entrecortada e baixa.
Talvez algo em meu rosto o tenha feito perceber que estava me
assustando, pois saiu num segundo. Estava ali e de repente, já não estava
mais. Como se tivesse evaporado. Enquanto tomava fôlego para levantar e ir
tomar um banho, tive uma conversa comigo mesma, tentando ignorar a
vozinha que dizia que ele nunca esteve ali. Era só o que faltava, estava
começando a perder a pouca sanidade que me restava.

Um barulho alto me despertou. Afasto um pouco as cobertas e estreito


os olhos após esfregá-los, estavam um pouco embaçados, mas não vi nada no
quarto. Com a névoa do sono dispersando, os eventos de mais cedo daquela
noite voltaram com tudo e fitei o relógio ao lado da cama, marcava quase
quatro da manhã. Não fui acordada como sempre, pelos pesadelos rotineiros,
mas sim por algum gato que provavelmente fazia festa lá fora. Preparei-me
para deitar novamente quando ouvi o mesmo barulho outra vez. Com o
coração acelerado, me perguntei se Demeron entraria ali para me assustar, se
deveria ligar para alguém, afinal, já o vi fora de si e daquela vez tinham
pessoas para segurá-lo, o que faria se estivesse sozinha com ele?
Desliguei o abajur da tomada e o segurei firme, daria na cabeça de quem
quer que fosse.
A porta do quarto estava aberta, coisa que eu não me lembrava de ter
deixado. Engolindo a saliva seca, entrei na sala com os olhos atentos, mesmo
que apenas a luz da rua iluminasse bem pouco o cômodo.
Será que estava ouvindo coisas?
Nesse pensamento, uma sombra surgiu na minha frente e minha boca
abriu num grito silencioso, apavorada, levantei o abajur para atirar na cabeça
do invasor, mas sua mão segurou meu pulso, impedindo-me, e quando
“Socorro” estava subindo pela garganta, ouvi a voz inconfundível que pensei
jamais poder ouvir outra vez.
— Desculpe aparecer assim.
Eu estremeci, um calafrio pesado passou pela espinha e me fez ficar
gélida, imóvel.
Ele acendeu o abajur da sala, tirando o que estava na minha mão e o
colocando no sofá. Quando fomos banhados pela luz, pude ver o rosto que só
via por fotos. Meu irmão. Style.
Era exatamente o mesmo, o rosto duro, mas com uma delicadeza que
sempre separou para dirigir a mim. Notei uma cicatriz em sua mandíbula, que
descia pelo pescoço, mas fora isso, estava igual.
Igual a quando pensei que o tivesse perdido.
Meu primeiro pensamento foi que Demeron saberia que ele estava ali e
viria para terminar seu serviço, então olhei ao redor, incapaz de pronunciar as
palavras.
— Já cuidei das câmeras.
— Demeron... — sussurrei, nem sabia o que estava dizendo,
mas Style parecia prever cada coisa que eu diria a seguir.
— Konstantinova está muito distraído no momento. Não acredito que o
desgraçado chegou tão perto de você. Juro que vou matá-lo por isso!
Sem palavras, espremi os olhos fechados na esperança de que, quando
abrisse, não veria nada a minha frente, só assim poderia explicar aquela
alucinação. Finalmente enlouqueci.
— Eu estou aqui, irmãzinha.
Cambaleei ao sentir sua mão no meu rosto, tentando me tranquilizar.
Me tranquilizar?
Ele estava realmente ali?
— C-como isso é possível? Eu enterrei você, eu... eu chorei no seu
caixão, os policiais vieram aqui, você morreu!
— Oni, tenho muito a explicar, mas me falta tempo. Você precisa fazer
uma mala, agora, rápido!
— Style... — falei, sem acreditar.
Era ele.
Meu irmão declarado morto, estava vivo na minha frente.
Ele foi até a janela e olhou para fora, me fitando por cima do ombro.
— Sei que temos que conversar, mas prometo que farei isso quando
estivermos longe daqui. Foi um erro ter deixado você e vou me arrepender
disso para sempre.
— Você está vivo.
A constatação não me fez feliz. Pelo contrário, me deixou furiosa.
Ele não parecia estar sofrendo, mal cuidado ou doente, estava muito
bem. Mais forte do que quando o havia visto há mais de dois anos atrás. Não
estava morto, apenas me abandonou.
— Você não viu os sinais? Os rubis? Eu enviei um a cada dia da data do
meu aniversário. Todos os dias 18!
Me dando conta de suas palavras, a raiva que começava a brotar em meu
peito explodiu para fora. Ele estava me cobrando por não desvendar sua
brincadeira doentia?!
— É claro que eu percebi que era a mesma droga de rubi da sua droga
de tatuagem esquisita, mas o que eu podia fazer? Esse pensamento ficou na
minha cabeça por um segundo e eu deixei pra lá!
— Deixou pra lá?
— Style! — gritei. — O que você queria que eu fizesse? Já estava
lidando com muitas teorias da conspiração para sequer cogitar que meu irmão
oficialmente morto estava me mandando! Eu... eu... Deus! Você tem noção
de como foi? Eu chorei por você, eu sofri por você!
Ele soltou um suspiro sofrido e veio para mim, me puxando em seus
braços.
— Eu sei, irmãzinha. Eu sei. Sinto muito, Oni. Sinto tanto.
Me afastei, colocando uma distância entre nós. Naquele momento, eu
não sabia se ele realmente sentia.
— Onde você estava? Mic sabia disso?
— Pedi para que ele voltasse e falasse com você.
O sentimento de traição queimou em mim, entendendo que mais uma
vez, fui enganada por confiar em alguém.
Demeron.
Mic.
Agora Style...
Será que todas as pessoas em volta de mim escondiam segredos e
participavam de um jogo da qual eu era uma espécie de café com leite? Era a
única idiota a quem não foi dada peças para jogar?
— Saia da minha casa. — Repeti a mesma frase que disse
a Demeron semanas antes e falava tão sério quanto.
Style passou as mãos pelos cabelos, estava nervoso e inquieto, mas eu
não me importava minimamente. Só queria que ele sumisse da minha frente e
levasse embora Mic, Demeron e toda aquela família de psicopatas e me
deixasse em paz.
— Tudo o que está acontecendo comigo é culpa sua. Você aparece aqui
como se pudesse brincar com a minha vida e não tivesse consequências...
— Não temos tempo, Onira! — gritou como nunca tinha feito
antes. — Porra, não temos tempo! Vá agora!
E como se os portões do inferno fossem abertos, a porta da minha casa
foi escancarada com violência, homens vestidos de preto, sem cobrir o rosto,
entraram. Só tive tempo de olhar para Style e ver seus lábios gritarem um
“corra” desesperado, mas no primeiro passo que dei, um dos homens me
segurou, tentei me soltar, me debatia, gritava, mas tudo foi tão rápido...
A última coisa que vi antes de outro vir em minha direção e me dar um
soco no rosto, foi uma arma sendo apontada para o meu irmão, e junto com
meu grito, o som dela sendo disparada.
"Me afogando em você
Estou caindo para sempre
Tenho que me libertar
Estou afundando"
EVANESCENCE, GOING UNDER
Encarei meu antigo parceiro sem piscar.
Regnar queria amarrá-lo para que não fugisse, e Siriu queria deixá-lo
morrer com o tiro que lhe foi dado. Stark também era a favor de deixar que se
afogasse no próprio sangue. Mas eu precisava de respostas e homens mortos
não falavam.
O observei de perto, em silêncio, enquanto a sala da mansão
de Stark virava um centro de comando da Liga. Aquela casa era o lugar mais
seguro que tínhamos para tratar assuntos daquele nível e não queríamos, por
enquanto, que ninguém soubesse que Tieko estava vivo. Stark havia levado
Angelina e Blair para longe assim que ligamos, avisando que chegaríamos
em poucos minutos.
Eu sabia que ainda ia vê-lo. Podia demorar o tempo que fosse, mas o
desgraçado ainda apareceria na minha frente. Eu só não esperava que
acontecesse como foi. Quando fui chamado por Mic, um ex agente da Liga, e
ele me levou para fora de Berlim dizendo ter algo a me mostrar, eu percebi o
que estava acontecendo. Ele havia treinado Style, e se tornara seu fiel
escudeiro fora dos muros. Eu descobri que ele tentava mandar um sinal de
vida para Onira e ele voltou para buscá-la.
Tarde demais.
Estava a meia hora da casa de Onira quando Drux me ligou, avisando
que houve um disparo na casa dela. Eu nunca poderia esquecer o que senti,
tampouco explicar. Não tinha com o que comparar. Nunca me permiti sentir,
nunca me permiti explorar emoções, mas o que aquela simples frase
de Drux fez comigo...
Ele estava maior, a expressão mais sombria. De nós dois, ele sempre foi
descontraído, até mesmo os olhos esticados ajudavam a fazê-lo parecer o
traidor que era.
Liémen Von Kimitch estava ao meu lado com seu cigarro que parecia
nunca apagar e um copo cheio. Eu não sabia como ele soube, mas pouco
depois de chegarmos com Tieko, ele apareceu. Não tirou os olhos do homem
nem enquanto Tieko continuava desacordado.
Regnar, de braços cruzados, observava tudo de longe e nas vezes que
peguei seus olhos sobre mim, piscou e sorriu.
Siriu resolveu aparecer como agente da lei, dizendo que
levaria Tieko sob custódia do Governo. Eu conhecia aquela história, sabia
onde ele pretendia levá-lo e não me importava, contando que tivesse minhas
respostas antes.
— Tire a camisa dele. — Ouvi a voz de Kaladia, só então lembrando-me
que estava ali.
— Vá com calma, querida — disse Regnar, sem sair do lugar. — Nosso
convidado ainda está meio desorientado.
Ignorando-o, ela levantou do sofá e largou sua garrafa na mesa, usando a
faca que tinha na mão quando cortava algo que comia, para segurar a
camiseta de Tieko e cortar, depois rasgou o restante. Ele nem se moveu. Não
tirava seus olhos de mim, mesmo que eu ainda não tivesse lhe dito uma
palavra.
— Sabe que a levaram por sua causa. — Finalmente falei, e como se
estivesse apenas esperando por isso, se levantou e quase voou em cima de
mim.
— Está se sentindo poderoso? Comeu a minha irmã, me fez voltar, e
agora?
— Estavam caçando você e quando apareceu na casa dela, eles a
levaram. — Deduzi calmamente, sem nenhuma dúvida do que dizia.
— Yakuza — Regnar falou de repente, chamando nossa atenção.
Kaladia apontou para as costas de Tieko e os braços completamente
cobertos, e só então eu também olhei.
— Eu sabia que tinha algo, traidor.
Ele sorriu sem humor quando a fitou.
— Olha quem fala.
— O que aconteceu com o
dedo, Tieko? — Liémen perguntou. — Desobedeceu ao chefe?
Style não tentou esconder ou disfarçar. A ponta de seu dedo mindinho
tinha sido cortada, e no nosso mundo, todos nós sabíamos o que significava.
As tatuagens eram um rito de entrada na máfia japonesa, a mais perigosa do
mundo, e o corte no dedo um castigo por ter quebrado alguma regra.
Durante anos eu quis saber o porquê ele havia feito aquilo. Por que
matou dezenas de mulheres inocentes se estávamos a um passo de acabar
com tudo? Por que traiu a Liga?
Por que me traiu?
E a resposta estava a minha frente.
— Foi um teste? — perguntei.
Ele ergueu o queixo.
— Te devo uma resposta, mas não direi nada além disso. Para provar
minha lealdade ao clã deles, eu precisava trair a Alemanha, o país que servia.
As palavras mal saíram de sua boca quando fechei a distância entre nós
e desferi um soco em seu rosto, abrindo um corte no lábio e depois outro que
começou a inchar o olho imediatamente.
— Dezenas de inocentes, seu filho da puta!
Ele se endireitou e me encarou de frente, recebendo mais um murro, sem
devolver. É claro que sabia que merecia isso. O único motivo para eu não
atirar no peito a bala que os homens de Kazel tinham errado, era porque ele
sabia o que estava acontecendo.
— Eu nunca teria voltado se você tivesse ficado longe
dela! — rugiu. — Minha irmãzinha, desgraçado!
— A única coisa que podia fazê-lo sair do buraco que se enfiou.
— Então a culpa não é apenas minha que ela está lá agora. Você se
lembra, Demeron? Lembra do que eles fazem com elas?
É claro que eu me lembrava. Nunca saía da minha cabeça. Os gritos, as
imagens, o cheiro. Se fechasse os olhos estaria lá outra vez.
— Hora de ir, Tieko — disse Siriu, aproximando-se como um predador
pronto para destruir a presa.
Ele finalmente conseguiu. Tornou minha vida um inferno para poder
colocar as mãos sobre Style. Mas, Onira nunca deveria ter sido atingida, e
quando me dei conta de que ele era a única chance de encontrá-la, percebi
que não podia deixá-lo nas mãos de Siriu antes de saber.
Me coloquei a frente dele e meu primo parou, estreitando levemente os
olhos azuis gélidos.
— Saia.
— Vou pegá-la de volta, então você pode tê-lo.
Tirando as mãos do bolso, ele rapidamente enfiou a mão no terno e tirou
sua arma.
— Saia da minha frente.
Apontava para mim sem nenhum traço de hesitação, se eu não saísse, ele
atiraria. Siriu não se importava. Fazia o impossível se tornar possível se fosse
ajudá-lo a conquistar seus objetivos. A fachada de honesto servidor do
Governo o servia bem, ele sabia fingir, mas os nomes que cresciam a cada dia
em sua lista não mentiam. Era tão perigoso quanto cada um de nós naquela
sala.
De repente, palmas foram ouvidas e como se fosse ensaiado, todos nós
tiramos nossas armas e as destravamos, cada um apontando em uma direção.
Mas só uma única pessoa adentrou, e com um sorriso no rosto, tirou os
óculos escuros.
— É bom ver que nossa família continua tão unida.
Pela primeira vez na vida me peguei sem reação, assim como todos na
sala. Minha boca aberta refletia o choque de todos os outros. Estava
estarrecido. Não podia ser...
— Harlen? — Kaladia sussurrou, em choque.
Ela mais do que ninguém tinha motivos para temer aquela volta.
— Querida cunhada... sua maldita. — O sorriso sarcástico não escondia
o olhar de ódio que dirigia a ela.
— C-como... o que...
— Imagino que seja demais, dois mortos voltando à vida num único dia,
mas ao saber que nosso traidor, Tieko, estava de volta, pensei... por que não
deixar minha amada família saber que estou vivo também?
Eu não podia acreditar nisso. Era realmente Harlen na minha frente.
Vivo. Como se não houvesse passado nenhum dia sequer desde que
enterramos um corpo e colocamos seu nome na lápide. Desde que eu estava
preso e soube que meu pai deu a ordem para eliminá-lo.
— Por que voltou? — Ela perguntou, engolindo em seco.
Eu conhecia Kaladia como a palma da minha mão. Ela estava nervosa,
preocupada. Quase em pânico.
Harlen olhou para cada um de nós, demorando um pouco em mim antes
de voltar-se para ela.
— Soube que meu irmãozinho perdeu sua amada da vez. Aliás — Deu
risada —, noiva? Pensei que um casamento de fachada seria o suficiente para
você.
Ignorei sua provocação e ficava cada vez mais impaciente.
— Como soube? — Liémen perguntou de longe.
— Você, mais do que todos nós aqui, conhece o submundo, fantasmas
falam mais do que os vivos.
— Então devemos acreditar que voltou com as mais puras intenções do
seu coração? — Regnar soltou a pergunta. Os dois nunca se deram bem,
combinando o que Kaladia fez só juntou ao pacote.
— Não. — Ele ergueu a mão, como se enfatizando a palavra. — Não
deve nem por um minuto acreditar nisso. Pense apenas que eu tenho tantos
interesses dentro daquela igreja quanto
vocês. — Encarou Kaladia novamente. — E quando voltarmos, teremos uma
conversinha.
— Eu não podia quebrar o protocolo! — esbravejou, quase desesperada.
Harlen se aproximou dela em passos rápidos, fazendo-a vacilar para trás.
Mas Regnar ficou em sua frente antes que chegasse mais perto. Notei que
instintivamente, também dei um passo à frente.
— Por isso me deixou ir para aquela armadilha? Cunhada... você era
minha preferida entre todas que meu irmãozinho usou. Te apoiei quando
trepou com o outro por vingança. Mas, ao invés de devolver a cortesia
contando que colocaram um preço na minha cabeça, você me traiu.
— Era para eu ter te matado! Eu fui encarregada de matá-lo, mas fingi
falhar. Atirei de raspão e quebrei meu próprio pé quando cheguei em
casa para fingir que lutamos. A Liga me considerou fora de circuito, porém,
você era um risco e precisavam te eliminar rapidamente.
— Um risco? — Bufou uma risada. — Então recrutaram outro.
— Sim.
Harlen fitou o acusado.
— Style.
— Eu mesmo.
— Mas, você falhou, assim como ela. Me deixou naquela cela
sangrando como um porco.
— Você me conhece. Um tiro não faz meu estilo. Se eu te quisesse
morto, teria matado.
— Já chega! — gritei, exaltando-me pela primeira vez. — Saiam daqui
para cuidar de seus assuntos pendentes. Escolheu um péssimo momento para
voltar, Harlen.
Ele deu de ombros, acendendo seu infame cigarro com o isqueiro
de Liémen.
— Blair vai gostar.
Eu tranquei as emoções que exigiam ser liberadas. Sabia que se ousasse
me envolver no lado emocional da coisa, tudo iria para o
inferno. Style aparecendo, Onira sendo levada por uma seita
satânica, Harlen — meu irmão que acreditávamos estar morto, aparecendo
vivo —. Uma parte de mim queria ir abraçá-lo e dizer “graças a Deus”, mas a
outra, exigia foco, exigia que eu fosse automático, que me centrasse no que
importava: recuperar Onira.
— Antes de solicitar os agentes da Liga que conhecem a missão
das Kambarys, preciso saber quem de vocês está disposto a acabar com essa
merda agora comigo.
Antes que qualquer um pudesse responder, Siriu enfiou as mãos nos
bolsos e foi à frente.
— Nenhum agente será liberado. — Ele olhou ao redor, para cada um, e
parou em mim. — Agentes... suas ações serão tomadas como um ato rebelde
e implicará consequências.
Ao ouvi-lo, viajei de volta para anos atrás, no meio daquele oceano,
quando estava prestes a encerrar o inferno daquelas mulheres, prestes a
eliminar o líder.
“Agente Konstantinova, abortar missão. Suas ações serão tomadas
como um ato rebelde e implicará consequências. Siga as ordens.”
— Foi você — declarei.
Em sua postura inabalável, ele me fitava sem piscar.
— Se eu deixá-lo entrar lá agora, vai desmantelar toda a operação.
— Siriu — rosnei. —, não faça isso. De novo, não.
— Anos de pesquisa, milhares de vidas inocentes por apenas uma? Não
posso deixar.
— Não é apenas uma vida, é ela. É Onira.
— Poderia ser Angelina, Kaladia e até mesmo Blair. A Liga investiu
demais para destruir uma organização que levou anos e mais agentes do que
contávamos perder.
— Ela é minha!
— Isso não é da minha conta.
Suas palavras não me surpreenderam, mas mexeu em algo dentro de
mim que não tinha tocado nem durante o tempo que ele me aprisionou e
torturou.
— Se não me der a autorização e apoio de campo para entrar... vou fazer
por minha conta.
Sem se abalar com minha ameaça, ele encolheu minimamente os
ombros.
— É por sua conta e risco.
Todos na sala podiam ouvir a conversa, mas eu não me importava.
Se Siriu não tivesse morrido para mim quando me apresentou o inferno, tinha
deitado na cova que cavou para si mesmo naquele exato momento.
— Obrigado... irmão.
— Demeron. — Ele chamou quando comecei a me afastar, decidido a
lidar com a situação eu mesmo.
Parei e olhei por cima do ombro.
— Lembre-se que toda ação tem uma consequência.
A ameaça clara em sua voz dizia tudo.
Foda-se! Eu não me importava.
— Alguma chance de que ela esteja grávida? — Tieko perguntou,
despertando em mim um pensamento que ainda não tinha aparecido.
— É claro que sim.
Ele chegou tão perto que eu podia sentir a raiva saindo dele.
— Então as chances de que ela possa estar bem longe acabam de subir
para infinitas.
Ao ouvir suas palavras, me lembrei de todos os rituais que havíamos
assistido durante os meses dentro das Kambarys, e num ato impensado, tirei
minhas duas armas do coldre e apontei para meus irmãos. Para minha
família.
—O que está fazendo? — perguntou ao meu lado. Estávamos de costas
para uma linha reta direto para a porta de saída.
— Salvando sua irmã. Saia, Tieko.
— Demeron, não faça isso. — Siriu alertou. Sua única preocupação era
que eu levasse Style e tirasse dele o brinquedo que vinha caçando
incessantemente.
Naquele momento, tornei verdade a mentira que eles me condenaram
por anos.
Me tornei um traidor.
Com as armas erguidas e prontas para puxar o gatilho, passei os olhos
por cada um. O rosto chocado de Kaladia, a inexpressão de Liémen, o sorriso
de Regnar e a surpresa de Harlen. Por fim, a fúria de Siriu. Eu o obedeci
daquela vez e me arrependi a cada dia desde então. Não cometeria o mesmo
erro de novo.
Não com ela.
Fomos de costas até a porta e Style a abriu. Saímos e entramos no
primeiro carro que encontrei, fazendo uma ligação rápida nos fios para ligar o
motor. As portas destravaram e dei partida, mas a porta traseira abriu
e Harlen estava lá, sentado, com uma expressão serena.
— O que está fazendo? — perguntei, olhando pelo retrovisor.
Ele acendeu um cigarro.
— Indo pegar essa tal de Onira... quem é ela, afinal?
“Quem vai te acompanhar pelo lado sombrio da manhã?
Quem vai te embalar quando o sol não te deixar dormir?
Eu levarei comigo
As polaroides e as memórias
Mas você sabe que eu vou deixar para trás o pior de nós dois”
SELENA GOMEZ, IT AIN’T ME
Eu queria abrir os olhos e ver Demeron. Queria que aquilo fosse mais
uma vez, uma tentativa distorcida de me proteger, mas de alguma forma, eu
sabia que não era isso. Eu não veria Kirina, nem Heinritch, ou meu noivo
apareceria para me explicar o porquê me apagou e levou-me para algum
lugar.
Então, quando abri os olhos, esperava Stark, Siriu ou Regnar. Sabia que
um deles finalmente havia me pegado. Talvez os três juntos. Demeron me
avisou que sua família queria me prejudicar, que fariam isso como retaliação
e vingança por algo que Style lhes fez, mas eu não ouvi. Talvez Demeron
finalmente fosse mostrar sua verdadeira face e revelaria que estava junto com
sua família naquele plano também. Só que não era isso. Eu ofeguei quando a
luz que vinha de uma pequena janela no alto da parede iluminou o espaço ao
redor de mim e fez meus olhos piscarem, sensíveis.
Alonguei meu braço, sentindo uma dor forte no que estava caído no
chão, e uma pior ainda ao ver que o outro estava erguido acima da minha
cabeça, preso numa algema e tão esticado que se eu ficasse sentada por mais
tempo, ele quebraria.
A dor era quase insuportável em todo o meu corpo. E ao olhar mais de
perto meu braço livre, vi manchas de picadas arroxeadas por alguns lugares.
Imediatamente lágrimas vieram aos meus olhos. Flashes de momentos que eu
não sabia se eram reais ou tinham sido fruto da minha imaginação passaram
pela minha cabeça. Eu me batendo e tentando escapar, depois acordando
grogue e sendo apagada novamente, não tendo tempo de entender quem
estava perto de mim, quem me transportava e até onde estava.
Estaria ali por apenas um dia ou teriam me deixado desacordada para
confundir completamente a minha noção de tempo? Lembrei
de Style aparecendo e que foi onde tudo desmoronou. Senti uma amargura
tão grande pelo meu irmão, meu próprio sangue, que chegou a doer
fisicamente, mas também me lembrei de não saber o que tinha acontecido
após ter sido levada. Ele teria sido atingido? O barulho do tiro sendo
disparado ainda ecoava na minha mente e juntou-se aos meus pesadelos, que
eram muito mais profundos do que os que eu já tinha antes. Eram
mais dolorosos e parecia que eu nunca poderia acordar.
Estiquei as pernas lentamente, franzindo a testa ao ver a roupa com a
qual estava vestida. Em frente aos meus olhos piscavam alguns
fracos pontinhos escuros e me perguntei o que estavam aplicando em mim.
A roupa era leve e transparente, e reparei que todo o meu corpo estava visível
através do tecido, minha pele nua por debaixo fez o pânico começar a se
alastrar.
— Você acordou!
A voz alegre despertou minha atenção e só então percebi que não estava
sozinha. A minha frente havia uma mulher sentada na mesma posição, tinha
os braços amarrados a sua frente e as pernas esticadas, porém, no seu
rosto havia um sorriso que eu não compreendi. Longos cabelos castanhos
claros escorriam para baixo e algumas mechas cobriam um pouco um lado de
seu rosto. Tinha a cabeça meio caída para trás, escorada. Ela usava a mesma
túnica branca que eu, mas numa verificação rápida percebi que enquanto a
minha estava branca, a dela estava um pouco suja, de terra, talvez, e perto das
pernas algo que fez meu coração bater ainda mais acelerado... havia salpicos
de sangue. Eu nem precisei pensar demais para saber o que tinha acontecido.
— Onde... — Comecei a falar, mas minha garganta arranhou tão forte
que parei, tocando meu pescoço. — Nós... — Doía demais! — Estamos?
Ela me observava atentamente. Depois de ouvir minha voz, inclinou-se
para frente, arregalando os olhos em minha direção. Me peguei surpresa e ao
mesmo tempo, um pouco fascinada com a cor de sua íris. Era de um âmbar
tão claro que parecia amarelo, nunca vi nada igual. Tinha um rosto simétrico,
que mesmo um pouco sujo eu podia ver. Parecia uma boneca.
— Numa Kambarys — respondeu tranquilamente. — Não sei muito.
Logo o mestre voltará.
Meu cenho franziu ao ouvi-la. Mestre? O que ela estava dizendo e o que
diabos era uma Kambarys?
— Ouça... — falei baixinho, me esforçando para ignorar a dor que
causava. — Você conhece Demeron? Siriu ou Regnar? Talvez Stark?
— Esses são os seus Mestres?
— Não! Eu não tenho... Mestres. Alguns homens me trouxeram para cá,
não sei onde estou.
Ela sorriu e se aproximou um pouco mais.
— Estamos na Kambarys. Está tudo bem, acho que você foi criada
diferente de mim. O meu Mestre permite que eu saia de sua casa e venha
servir os irmãos, mas acho que o seu te deixou sozinha por muito tempo.
— Servir? — sussurrei.
Ah, não.
Aquilo parecia cada vez pior e muito mais aterrorizante do que eu podia
esperar.
Por que ela estava sorrindo?
Além de tudo, falava comigo como se estivesse acostumada àquela
situação. Como se já tivesse passado pela mesma coisa antes. Quando me
disse “você acordou”, estava aliviada, mas não surpresa. Não estava
desesperada para sair dali e nem entendia o meu próprio desespero.
— Sim. Às vezes pode ser difícil, mas no final do dia nós sabemos que
tivemos a honra de servi-los. Eu sempre agradeço ao Senhor. Como eles te
chamam?
— Onira — sussurrei novamente, sem saber o que mais dizer diante de
seu discurso insanamente apaixonado. — Meu nome é Onira.
O sorriso que iluminou seu rosto quase me fez não perceber o barulho de
correntes fora do cubículo onde estávamos. Eu a fitei desesperada, esperando
que me dissesse o que aconteceria a seguir.
— Eu sou Freya.
Então a porta abriu, e com o vislumbre de um corredor ali, assisti dois
homens entrarem, um deles esticou a mão para... Freya, e ela aceitou sem
hesitar, me dando um olhar sereno enquanto o homem tirava a corda de seus
pulsos. O segundo, que havia me dado um soco em minha casa que me fez
desmaiar, veio em minha direção como se nunca tivesse me visto e tirou meu
braço da algema. Tentei me afastar, mas ele desferiu um tapa no meu rosto,
fazendo-me ficar zonza.
Vi Freya olhando os pulsos que, sem as cordas, tinham sangue, e depois
de me olhar uma última vez, tirou a roupa e saiu, acompanhando o homem.
Ela não lutava, não chorava, não gritava... estava em paz com o que
aconteceria.
Nua, machucada, presa e sangrando... como isso era possível?
— Por favor — sussurrei para aquele que me levou ali. — Trata-se de
dinheiro? Eu tenho, dou tudo a vocês!
Um sorriso torto e desalinhado surgiu no rosto dele.
— Escuta aqui, japinha. Viu como a outra saiu sem problemas? Siga o
exemplo e não será machucada por nós.
— Acha que não vi o sangue na roupa dela?!
— Quando eu digo nós... quero dizer os servos, não os irmãos. Não
espere misericórdia deles, pois nunca terá.
— Eu imploro! — Tentei me safar quando me levantou, mas ele parecia
não me ouvir mais. Levou-me para fora e quando me vi no corredor, ele
começou a andar, arrastando-me ao seu lado.
Ao longo do longo corredor havia outras portas, onde eu tinha certeza de
que havia mais como eu e Freya. A verdade sobre o que era aquele lugar
começava a cair como uma bomba em cima de mim. Via sobre aqueles
lugares nos noticiários, ouvia histórias, mas quando poderia imaginar que iria
parar ali? A gente nunca espera que certas coisas nos aconteçam, a menos que
estejamos na situação.
E como num filme de terror, o assisti abrir uma porta dupla e o inferno
se revelar diante de mim.
A primeira coisa que vi foram lenços pendurados no teto, todos eram
vermelhos, e o chão de pedra sob meus pés enquanto caminhei pelo enorme
salão cheio de pessoas, tinha algumas partes secas e outras molhadas. Me
obriguei a não olhar, a não querer saber no que estava pisando. Mas era pior
aquilo do que a visão... as visões diante de mim?
Havia mulheres... meninas... apanhando, sendo divididas, nuas, algumas
ajoelhadas de cabeça baixa aos pés de homens que conversavam.
Gritos, gemidos, barulhos inconfundíveis de sexo enchiam meus
ouvidos. E o cheiro no ar era repugnante, me fez querer vomitar. As lágrimas
me escapavam sem controle, eu já nem as sentia.
Travei no lugar quando vi uma baixinha, de no máximo quinze anos, de
mãos dadas com um velho que segurava uma taça de champanhe e sorria.
Acompanhei os dois e quando ele a jogou numa enorme cama redonda onde
havia outras pessoas, parei de olhar.
Uma criança...
Uma. Criança!
Lembrei de Freya, revivendo em minha mente suas palavras.
“...mas no final do dia nós sabemos que tivemos a honra de servi-los.”
— Onira! — Uma voz alegre cantou, e olhei na direção para ver um
homem alto, muito bem aparentado, se aproximar me olhando
fixamente. — Não sabe quanto tempo esperamos por você...
“Eu sempre agradeço ao Senhor.”
— O que é isso? — sussurrei, tão fraca que se não fosse o homem me
segurando, eu teria desabado.
O homem a minha frente, que segurava seu charuto, sorriu um sorriso
tão demoníaco que eu sabia... simplesmente sabia que tudo tinha acabado ali.
— Você pagará a dívida de seu irmão. E vai pagar do melhor jeito...
com sangue.
“Me dê um sinal
Abandone suas mentiras
Deite-se ao meu lado
Não escute quando eu gritar
Enterre suas dúvidas e adormeça
Descubra que eu fui apenas um sonho ruim”
APPARAT, GOODBYE
Meu tormento não tinha fim.
De joelhos e com as mãos amarradas nas costas, assisti durante horas
sem poder desviar os olhos. O mesmo homem que me esmurrou na minha
sala e depois me arrastou de dentro do cubículo quando acordei ali, estava
bem atrás de mim, e cada vez que eu abaixava a cabeça ou fechava os olhos,
ele me batia com um chicote.
Não era nem de perto tão sofrido quanto as dezenas de meninas
espalhadas por aquele salão infernal, mas minhas costas pegavam fogo, eu
sentia partes do tecido rasgado daquela roupa transparente esfregando na pele
sensível e as lágrimas não paravam de cair, silenciosas.
Não podia pedir, não podia implorar e nem fazer barulho. Uma mordaça
foi enfiada em minha boca, e o tecido era tão rústico, que o menor
movimento machucava meus lábios e gengivas além da dor.
— Olhe. — Ele disse, puxando meu cabelo com uma força que me fez
vacilar nos joelhos, levando-me a olhar para o lado.
Havia uma mulher deitada na mesa, eu nem sabia se era realmente uma
mulher já adulta, afinal, tinha visto tantas meninas lá dentro que não podia
mais dizer. Seus braços estavam amarrados um ao outro, presos em uma das
pernas da mesa e os pés levantados eram fixados por uma espécie de ferro
que os prendiam com uma corda. O cabelo era tão longo que espalhava por
todos os lados, assim como a de todas elas. Todas tinham enormes cabelos.
Estava nua e a única coisa que a cobria eram mãos que passavam por todo o
seu corpo.
Eu contei treze homens que repetiam algo, uma frase, e juntos parecia
como se estivessem cantando aquilo. Pela roupa, eu sabia que eram homens
da igreja, vestidos com batinas pretas, que tinham as faixas pintadas de
vermelho. Eles não tiravam os olhos da mulher na mesa.
Eu quis vomitar enquanto suas orações se tornavam mais altas, mais
claras, vibraram em minha mente.
A não ser os gritos e gemidos sôfregos, não ouvi a voz de nenhuma
delas. Nenhuma falava nada a não ser pelos ocasionais: sim, Mestre.
Mestre.
Aquela palavra maldita estava sendo fixada na minha mente a cada vez
que era proferida, e começava a despertar em mim um ódio tão grande, que
não sabia quanto tempo mais poderia ficar calada, parada e obediente.
O homem que disse que eu tinha uma dívida de sangue parecia ser
algum tipo de líder para eles. Eu estudei, lia jornais, ouvia histórias, e sabia...
tinha certeza, que estavam cultuando algo ali. Eles se cumprimentavam com a
saudação nazista de Hitler e adoravam um “Príncipe”.
Mas, na parede onde havia uma espécie de púlpito, tinha uma
cruz quebrada. E em cima dela, uma estrela de cinco pontas em volta de
um círculo, um pentagrama invertido.
O “Príncipe” deles não era Deus. Eu podia sentir.
No começo, duvidei que fosse realmente uma igreja, mas o lugar era tão
caracterizado, tão decorado, que começava a me sentir dentro de uma. Nem
de longe havia a paz e conforto, isso não existia lá dentro, mas era igual.
Havia os homens vestidos com roupas da igreja, cânticos nas outras línguas.
Apenas as cores diferentes, tudo era escuro, vermelho e preto, sempre.
Escuridão e sangue.
E no centro de tudo, havia uma única pessoa.
Aquele homem era o único vestido, era quem dava as ordens, quem
começava a cantar cânticos em idiomas que eu não reconhecia. E os outros o
seguiam fielmente. Brutalizavam meninas e mulheres e cantavam rezando
para o diabo.
Kazel... era esse seu nome.
O nome do meu inferno pessoal.
Do inferno de cada uma ali dentro.
— Príncipe das trevas! Nós te apresentamos essa oferenda, realizamos a
missa negra em teu nome! — Ele gritou, começando novamente a cantar.
— Heil. — Os homens responderam.
— Irmãos, recebam a hóstia consagrada.
O homem abaixou na minha frente e tirou a mordaça sem delicadeza
alguma, pude ver pontinhas de sangue por ela e imediatamente minha boca
começou a queimar.
— O que é... isso? — Minha voz era fraca, ridícula.
Ele olhou em volta, depois me encarou no fundo dos olhos.
— Não é isso. Somos nós. E nós somos o quarto Reich.
— Comam, irmãos! — Kazel gritou, rindo — Comam e bebam e cantem
comigo! O Príncipe está aqui nessa noite, vamos celebrar ao príncipe das
trevas!
De repente, a mesma porta pela qual eu havia saído antes — que
pareciam horas sem fim — abriu novamente, e um desfile de meninas
começou. Todas elas engatinhando, e em cima de suas costas, havia o pão, a
hóstia que era servida na igreja católica.
— O arcebispo de Roma e nosso sumo sacerdote a consagrou para nós.
Arcebispo de Roma? Sumo sacerdote?
— O que é um sumo-sacerdote? — perguntei, mesmo correndo o risco
de apanhar novamente.
— Aquele que faz magia negra para nós. — O homem respondeu,
sorrindo.
— Quem é você? — sussurrei, sentindo dor em cada parte do corpo.
Ele passou as mãos com uma estranha delicadeza em meu rosto, o
sorriso não saía da boca.
— Eu sou Mudié. E Onira... é finalmente um prazer conhecê-la.
— Finalmente?
— Ah, sim... nós caçamos o seu irmão por anos, mas então pensamos...
trazê-lo para sofrer e morrer rapidamente ou pegar a única coisa com que ele
se importa e deixá-lo saber que ela vai sofrer no lugar dele até o fim da vida?
Solucei, deixando a cabeça cair em derrota. O que mais podia fazer?
Meus joelhos estavam esfolados do chão, mãos presas atrás das costas, minha
boca inchada, minhas costas ardendo como se sanguessugas rastejassem por
cima.
— Venha cá, honre o nosso Príncipe.
— Saia de perto de mim. — Minha tentativa de resistir foi ridícula e ele
riu. — Não vou comer nada de vocês.
O sorriso dele cresceu mais ainda, os olhos escuros tinham algo tão
ruim... tão maligno, que era capaz de me deixar pior do que já estava. De
supetão, alguém segurou minha cabeça dos dois lados para trás, e ele enfiou
um pedaço do pão no fundo da minha garganta, fechou minha boca e ficou
me olhando, esperando que se dissolvesse.
Como se não fosse o bastante, ele inclinou-se e passou a língua pelo
meu rosto, levando uma das lágrimas que escorria.
— O sofrimento é sempre o melhor sabor. É salgado, mas depois de um
tempo posso sentir o doce. — Ele sussurrava perto do meu rosto, tão perto
que eu sentia sua respiração soprar em mim — É o que vai acontecer a você,
por agora, sofrerá, mas quando entender nossa causa, vai se alegrar a servir a
nós.
— A homens que cultuam o diabo e um dos maiores assassinos da
história?
Como qualquer fanático, ele não gostou de ouvir aquilo, bateu em meu
rosto, segurando-me mais uma vez para falar.
— Nunca... jamais desrespeite o Príncipe.
— Você é um completo idiota, sua ideologia é burra e o que vocês
fazem aqui dentro deveria ser pago com pena de morte!
— Seguimos os passos do Führer. Você vê... as pessoas acham que ele
era cristão, alguns juram que era evangélico. Mas ele sempre seguiu a uma
única crença: ele mesmo. Kazel — apontou para o louco que continuava
cantando no púlpito. — Revive essa chama em nós. Nós vamos de país em
país, a cada cidade e recrutamos pelo menos um, e ele recruta mais um, que
recruta outro. Vamos dominar o mundo. Sem essa de servir ao seu deus e
entidades. O príncipe das trevas sempre seguiu a uma única coisa, que eram
suas vontades. Nós passamos por cima do que for preciso para conseguirmos
o que queremos, nosso pai apenas nos ajuda nisso, então nós precisamos de
vocês... para agradecer a ele.
O discurso era tão absurdo que eu não sabia o que dizer. Como era
possível que algumas pessoas, como Kazel e Mudié, e todos aqueles homens,
não enxergassem o que estavam fazendo? Não... na verdade eles sabiam
muito bem, mas não achavam errado!
— Elas estão sofrendo, todas elas. Não sei se sairei daqui, se vou morrer
daqui a um dia ou um ano, mas desejo com todas as forças que vocês paguem
por isso.
Ele sorriu e ficou de pé.
— Se o Príncipe desejar assim. Que seja. Agora tire a roupa.
— Nunca.
Com uma sobrancelha erguida, ele voltou a me tocar, tentando levantar-
me para tirar a túnica. Lutei com ele o quanto pude, e quando estava quase
perdendo as forças, meu mundo parou de novo.
— Não toque nela. — A voz era mais rígida, mais firme, porém, não
irreconhecível.
Fechei meus olhos, tinha medo de ver. De olhar na direção e confirmar
que era exatamente quem eu estava pensando, mas não podia ser. Tinha que
ser minha cabeça pregando peças em mim. Minha imaginação perdendo-se,
já criando caminhos para seguir e tentar manter um pouco do que restava de
nós. Queria que minhas mãos estivessem soltas, então poderia bater na
cabeça. Tirar a voz dali.
— Padre. — Mudié repreendeu. — Já disse para não interromper nossas
iniciações.
Padre.
Nenhuma palavra explicaria o que senti ao ouvir aquilo e constatar que
não era fruto da minha imaginação, ele estava realmente ali e quando ergui
meus olhos, pude ver por mim mesma.
Padre Terry. Em carne e osso.
— Mudié... estou dizendo para que não toque nessa mulher.
Ele gargalhou e abriu os braços, soltando-me.
— Será que nosso santo padre finalmente resolveu usar o pau que tem?
As risadas altas subiram como se aquilo fosse uma piada que
compartilhavam há muito tempo. O padre ignorou e finalmente se aproximou
de mim.
— Padre Terry — sussurrei toda a minha mágoa, ódio e decepção
exposta. Eu o olhei, vendo exatamente aquele homem em quem confiava e
acreditava tanto.
Ele balançou a cabeça negativamente. Ou... Será que uma foi ilusão?
— A levarei de volta até a alcova. — Ele segurou meu braço com
firmeza, mas não machucava.
Eu não queria acreditar que aquilo estava acontecendo, que o homem
para quem me confessei, orei e chorei buscando consolo, fazia parte de algum
tipo de seita. Que tinha parte em tanta brutalidade, sofrimento e dor. Eu
nunca desconfiaria. Nem eu e nem a velhinhas da igreja que confiavam
cegamente nele.
— Espere! — Kazel falou em meio ao silêncio gritante.
Padre Terry parou, e dando-me um rápido olhar, falou tão baixo que tive
dúvidas se realmente disse algo.
— Siga meus movimentos.
Ele voltou seu olhar para Kazel.
— Sim?
Kazel acenou para Mudié com um sorriso, e voltou seu olhar para nós.
— Não vamos de fato tocar nela até termos certeza se está grávida.
Aquela história de gravidez estava me assustando em um nível fora do
normal. Eu tentava não associar minha conversa breve com Freya a tudo o
que diziam, mas era difícil. Ter certeza de que está grávida? Me vinha à
mente ela dizendo que foi “criada” para isso. Mas, a possibilidade e o
pensamento era tão condenável que não podia aceitar sequer a teoria.
Subitamente, padre Terry foi empurrado para longe, seus olhos
arregalados vieram para mim e tentou se soltar, mas havia três homens o
segurando firmemente. Ele olhou para longe de mim e soltou um “não”
estridente. Seguindo sua linha de visão, comecei a andar para trás ao ver do
que se tratava, mas um outro homem me segurou por trás, impedindo-me.
Mudié pegou o enorme ferro que seguravam e o alisou de cima a baixo.
Meu coração disparou, comecei a balançar a cabeça
descontroladamente, sabia o que era aquilo. Sabia que pela forma como me
olhava, o que estava prestes a fazer. Os homens riram do meu protesto e
aquele que me segurava tornou seu aperto mais firme. Eu podia ouvir os
gritos de Padre Terry, mas não conseguia entender o que ele estava dizendo.
Apenas a imagem de Mudié vindo em minha direção, caminhando com
passos tão lentos que pareciam calculadamente feitos para me aterrorizar
ainda mais, me fazia esquecer de todo o resto. Que aquilo era culpa do meu
irmão, que ele não estava morto, que voltou apenas porque o
meu noivo também o queria morto, e que meu padre
era um louco, fanático, parte de uma seita.
A única coisa que ecoava em minha mente junto a seus passos, era a
promessa de Mudié, de que eu sofreria lá dentro para sempre.
Ele parou a um passo de mim e inclinou a cabeça para o lado, parecia se
divertir. Tinha certeza de que estava se divertindo.
— Por que está chorando? Nós ainda nem fizemos nada.
— Por favor... por favor... por favor! Não faça isso! Não sei o que meu
irmão fez, mas não faça isso comigo!
— Deixe-a! — Padre Terry gritou. — Kazel, pare isso agora. Pare isso
agora!
— Não se preocupe, padre. Não vou desgraçar o templo das nossas
oferendas até saber se há um possível sacrifício aí dentro. Mas, ela precisa ser
marcada, precisa saber aonde pertence agora.
Eu não tinha mais voz para gritar. As risadas altas e escandalosas dos
homens que assistiam, e os olhares neutros das meninas ao redor já nem me
eram vistos mais. Mudié acariciou meu rosto devagar, fazendo-me encarar
seus olhos, e segurou meu pescoço firmemente e sem nem precisar colocar
muita força me fez ajoelhar.
— Irmão. — Ele chamou, apontando para um outro homem nu a nossa
frente, que veio como se soubesse exatamente o que fazer. Parou ao meu
lado, com seu membro duro a poucos centímetros do meu rosto, eu fechei os
olhos chorando baixinho, sem forças. Ele segurou meu cabelo e empurrou
minha cabeça até o queixo tocar meu peito.
Eles começaram a cantar outra vez enquanto Kazel falava naquele
idioma estranho, tudo estava tão distorcido, sem nexo.
Em seguida eu senti algo gelado, como se pedras de
gelo afiadas estivessem sendo esfregadas na minha pele, ouvi um barulho
lancinante, o típico barulho de algo queimando, então veio o cheiro. Num
segundo eu estava vomitando, sentindo um odor podre e as fincadas que
começaram a ficar mais fortes, e o que era um comichão gelado... explodiu.
Meu grito horripilante causou vários outros e eu não sabia se elas
gritavam por estar sendo machucada ou pelo reflexo do meu próprio
sofrimento.
Do nosso sofrimento.
Minha nuca estava em chamas.
Pegando fogo.
Uma dor tão forte, tão profunda, que fiquei mole, quase desmaiando. Os
gritos de fundo, as canções, os barulhos... tudo combinava para que a
dor enraizada tão profundamente em mim fosse a única coisa que eu pudesse
sentir. Não havia mais esperança, nem alegria de memórias felizes, nem
visões para me livrar do desespero de estar ali, onde a qualquer hora
a polícia, meu irmão ou Demeron entrariam para me salvar.
O cheiro foi ficando mais forte, impregnando em meu
nariz, embrulhando meu estômago mais ainda. O chão foi se aproximando
rapidamente do meu rosto, percebi que ia caindo e me desliguei.
“Se eu te dissesse que isso só iria machucar
Se eu te avisasse que o fogo iria queimar
Você andaria nele? Você deixaria eu ir primeiro?
Você me deixaria te guiar mesmo quando for cego
No escuro, no meio da noite, no silêncio, quando não há ninguém ao seu lado
Você se levantaria e viria me encontrar no céu?
Quando a tristeza deixa você quebrado em sua cama
Vou te abraçar nas profundezas do seu desespero
E é tudo em nome do amor”
MARTIN GARRIX FT. BEBE REXHA, IN THE NAME OF LOVE
— O que fizeram em mim? — sussurrei a pergunta para Freya.
Ela tinha trocado de roupa, estava limpa, com os cabelos molhados.
Tinha alguns machucados no rosto e algumas marcas nos braços. Não parecia
incomodada por fora.
Querendo que olhasse e me dissesse o que havia sido marcado na minha
pele, virei-me, soltando um gemido excruciante de dor e ela correu para o
meu lado, me segurando.
— Fique parada! Se você se mover, a dor dispara em todos os cantos do
seu corpo, a dor recente aflora a dor antiga. Precisa ficar parada até que
aprenda a lidar com os ferimentos, com o que está sentindo. Então fique
quieta até parar de doer. Venha cá, fique bem assim para que eu possa ver.
Ao meu lado, ela tirou os cabelos do caminho.
— Vou amarrá-los no alto da cabeça, assim não vai ficar encostando na
marca — falou.
Marca? O que ela chamava de marca eu chamava de terrorismo, de
tortura, de brutalidade, de falta de humanidade. Era uma queimadura
de ferro, como se eu fosse uma escrava, como se fosse um animal, eles não
tinham o direito e ainda assim faziam o que queriam com a vida delas. Com a
minha vida.
— Você tem isso?
— É claro. Todas nós recebemos quando somos reconhecidas por
um Mestre. É a primeira coisa que ele faz, nos marcar para que saibamos que
somos deles. Mas a sua marca é diferente da nossa.
Ela tocou um pouco abaixo da pele maltratada e eu me sobressaltei com
um grito.
— Perdão! Desculpe-me. Desculpe, Onira. — O arrependimento em sua
voz era forte, como se tivesse acabado de cometer um crime.
— Tudo bem — sussurrei. — Você reconhece a... marca?
— Não. Nunca vi antes.
— Eles vão fazer pior não vão? Farão de novo e de novo, e pior, até que
não sobre nada de mim. Só um zumbi.
— O que é um zumbi? — perguntou, assustada.
Suspirei, derramando mais lágrimas. Ela não sabia o que era um
zumbi, não sabia nada do que eu falava, não me entendia. Eu queria
perguntar mais sobre sua história, queria saber se tudo o que eu estava
pensando era verdade, se quando ela disse que foi criada pelo mestre quis
dizer literalmente.
Mas, seu jeito, seu modo de agir, de falar e sua concordância absoluta
com tudo que aconteceu ali dentro, na verdade, o modo como todas elas já
esperavam por isso... me fazia ter certeza agora, que não
foram sequestradas na adolescência e colocadas lá dentro. Aquele
comportamento estava enraizado tão profundamente em seus corpos, seus
olhos e em suas mentes, que quando ela dizia “criada”, significava apenas
uma coisa: ela nasceu ali.
Com quantas outras isso tinha acontecido?
— Respondendo o que me perguntou... — Ela falou depois de um
tempo. — Eles vão voltar, sempre voltam.
— Para... para fazer... — A imagem da menina deitada na mesa me
veio à cabeça.
— Uma pessoa virá para dizer ao Mestre se você está com uma criança.
Se não estiver, vai começar a servir ao príncipe das trevas como nós
fazemos.
Voltei meus olhos arregalados para ela, mas Freya continuou em sua
tarefa de rasgar a barra do vestido para poder amarrar meu cabelo. Mesmo tão
machucada, estava cuidando de mim. Nem me conhecia, mas cuidava de
mim, em meio àquela podridão de pessoas, Freya era boa.
— E se estiver?
— Seu primeiro bebê é sempre sacrificado para agradecer ao príncipe
pela vida e por tudo o que nos dá.
— O... primeiro?
— Sim, nós estamos aqui para gerar frutos. Depois do primeiro, sempre
teremos mais.
A naturalidade em sua voz era bizarra.
— E onde estão esses bebês?
— O Mestre os vende. Há homens que pagam realmente caro para ter
bebês. Mas, alguns ficam e são criados por pessoas de dentro, é o que meu
Mestre diz, mas não entendo muito. Ele não fala comigo dessas coisas,
apenas ouço aqui e ali.
Então aquilo não era realmente algo sobre crenças? Era como uma
fábrica? Minha cabeça estava dando voltas infinitas. Uma rede de tráfico
humano, de sexo. Kazel ganhava dinheiro forçando jovens a terem filhos para
vendê-los?
Estava ficando rico as custas de tanto sofrimento?
Para quem?
Pedófilos? Cafetões? Casais que queriam ter filhos do modo mais fácil,
e por isso, compravam daquela forma terrível?
Por que Style estava envolvido com aqueles monstros?
— Por que o primeiro é sacrificado?
Ela colocou as mãos nos joelhos e olhou para a porta, fitando-me com
calma e atenção.
— É uma prova de nossa devoção a ele e gratidão por tudo o que faz por
nós. Tudo o que nos proporciona.
Ela sorriu para mim, apertando minha mão. Parecia que queria me
deixar confortável.
— O-o quê? — sussurrei.
— Desde que nasci, tenho servido ao meu Mestre. Ele me criou e ele
cuida de mim. Deve haver um motivo para você ter vindo tão tarde, já é
adulta, posso ver isso, mas o Mestre sabe o que faz.
— Você... você está aqui desde que nasceu?
— Sirvo ao Mestre em seus desejos e necessidades. É a minha vida.
— Aquela mulher lá fora... isso já lhe aconteceu? — perguntei,
morrendo de medo do que receberia como resposta. — Já tiraram algum bebê
de você?
Ela franziu a testa, inclinando a cabeça e me fitando com curiosidade.
Seus olhos amarelos não tinham nenhum brilho, eram opacos e sem vida.
— Tiraram de mim? Não há o que tirar de mim, eles são do Príncipe.

Fui arrastada de volta para fora um tempo depois, de volta para aquele
salão. Usava uma roupa nova, limpa e sem rasgos, mas não tinha tomado
banho e nem comido nada. Era mais de um dia sem comida e tinha ganhado
apenas um pouco de água.
Em dois dias já existia em mim uma vontade de desistir sem tamanho,
de implorar pela morte apenas por saber o que me aguardava, mas a velha
Onira, aquela que lutou para sair da pobreza com o irmão e chegar ao topo
não deixava. Ainda existia um pouquinho da voz dela gritando dentro de mim
“Não desista”.
Mas, eu queria, queria parar de lutar.
Meus pulsos já estavam inchados da corda que os mantinha unidos, era
um aperto forte e seguro, que não importou quantas vezes tentei afrouxar, foi
em vão.
Me perguntava o que aconteceria agora que a médica já esteve ali, uma
mulher. Ela me olhava nos olhos e conversava com os homens como se os
conhecesse bem, sabia tudo o que acontecia lá dentro e simplesmente não se
importava. Ela entrou, me fez urinar ali mesmo, na frente de Freya, Mudié e
outro homem, depois esperou, e quando saiu o resultado, me deu um sorriso
que não pude interpretar.
E o pior era que eu não sabia se estava ou não. É claro que existia a
chance, mas nunca pensei em uma criança tão cedo, na verdade, nem sabia se
queria uma. Na perspectiva de que poderia tê-la e ela ser tirada de mim por
um culto religioso falso, que servia apenas como fundo para um traficante de
pessoas... isso me aterrorizava além do que eu já estava.
O que Demeron pensaria?
O pensamento sonhador no meio daquela selva foi inesperado, mas a
imagem dele com uma pequena criança, mesmo que fosse a realidade mais
distante, me acalentou.
Quando isso vai terminar?
— Assista, Onira, assista o que vai lhe acontecer. — Tremi ao ouvir a
voz de Kazel, e Mudié segurou meu rosto na direção que o homem segurava
a garota. Ele batia nela por trás incessantemente, seus cabelos longos e
cacheados balançavam com os movimentos, suas mãos escorregavam e ela ia
para cair, mas se segurava no último minuto. Estava mole, com os olhos
turvos, assim como todas as outras. Todas drogadas.
Freya era a única que estava constantemente sóbria, nada lhe era
aplicado, e ela não apanhava sem estar no salão. Mesmo quando não
obedecia em nossa cela ou demorava a cumprir uma ordem. Mas, fora ela, e
por enquanto, eu, e todas as meninas, vivíamos sob o efeito de algo.
Mudié colou seus lábios no meu ouvido, enquanto me fazia assistir a
garota sendo machucada pelo homem gordo e velho.
— Por mais que nós adoraríamos que tivesse um bebê para fazer muito
dinheiro com ele, felizmente você não está grávida — sussurrou. — O que
significa que sua boceta é nossa, até que alguém coloque uma criança aí
dentro. Isso te deixa feliz? — Acariciou meu pescoço. — Nunca saber quem
é o pai do seu bastardinho perdido pelo mundo? Mas não se preocupe. Se for
uma menina, vou me esforçar para que Kazel me deixe ficar com ela.
Ao passo de que a revolta me possuía pelo significado de suas palavras,
não tive tempo de reagir, pois uma faca brilhou na mão do velho e sem que
ninguém fizesse nada para pará-lo, ele passou a faca pelo pescoço da menina.
Um grito horripilante me escapou, rasgando a garganta e minhas entranhas, o
medo absoluto me corroía. Eu assisti horrorizada quando ele sorriu na minha
direção e começou a vir diretamente para mim. Era isso? Meu destino estava
selado?
— Não — implorei a Mudié, mais uma vez. — Por favor, não...
Me forcei para trás, mas ele me segurava firme, sem chances de escapar.
Quando o homem esticou a mão para meu rosto, fechei os olhos, desejando
morrer. Não tinha para onde ir... Mas ele nunca chegou a me tocar.
Senti um impacto em minha perna e olhei para baixo, vendo-o caído,
gritando, segurando a perna. Desnorteada com o que havia acontecido e pela
comoção que se causou, olhei em volta, buscando o que viria a seguir, mas
então, meu mundo inteiro parou.
Minha respiração travou.
Quase não sentia meu corpo.
Com o cabelo preto e as mãos nos bolsos da calça de
um terno, Demeron vinha em minha direção.
Eu não sabia se era uma miragem, se já havia morrido e era minha alma
tendo uma ilusão de esperança, se simplesmente estava vendo coisas.
Minha miragem parou a poucos passos de mim e virou para o palco.
Com uma reverência, portando-se como eu nunca o vi fazer antes, ele
levantou a mão.
— Heil! — Meus olhos encheram de lágrimas ao vê-lo fazendo aquilo.
Não.
Não podia ser...
— Sinto muito, irmãos, mas eu a quero para mim. — Franzi o cenho, ele
tinha um sotaque estranho, arrastado e um pouco travado. Mas era ele, era
ele!
— Ivanik Valuev. — Kazel aplaudiu lentamente, então desceu do
púlpito. — Depois de tanto tempo... é realmente você?
Encolhendo os ombros, ele... Demeron... tirou um maço de cigarros do
bolso e chamou uma menina que estava perto, ela imediatamente o acendeu
para ele.
— Estava um pouco ocupado.
— Para nós? Ocupado para seus irmãos?
— Ocupado para qualquer um que não estivesse na cadeia
comigo. — Ele riu. Realmente riu, e olhou ao redor como se contasse uma
piada, atraindo outros risos pela sala.
— Não me diga que estava preso...
— Depois de Oslo tudo desandou.
— Eu entendo, meu irmão — disse Kazel, jogou um braço pelos ombros
de Demeron e apontou para mim. — Mas você não pode chegar aqui depois
de dois anos e exigir minha melhor mercadoria.
— Pelo contrário, acho que mereço esse presente! — Demeron riu e
abriu os braços, como se pedisse o apoio dos homens. Ele parou e
abraçou Kazel de volta. — Ouça... deixe-me passar algum tempo com a
menina lá dentro, depois vamos colocar o assunto em dia.
Kazel sorriu de volta e bateu nas costas dele, dando-lhe um tapa fraco no
rosto.
— Não. Você sempre teve essa história de ir para um lugar privado, mas
isso acabou. Quero vê-la, então faça na minha frente. Quando terminar, eu
vou foder o rabo dela lubrificado com a sua porra.
Meu sangue gelou. O coração desnorteado, não sabia se parava ou
acelerava a ponto de um ataque cardíaco.
Demeron o observou em silêncio, fumou o cigarro calmamente para só
então responder.
— Não poderei acatar seu pedido.
Tudo aconteceu muito rápido. Freya estava ajoelhada ao lado de Kazel,
de cabeça baixa e de repente um tiro soou e ela estava gritando, tentando
estancar o sangue que saía da perna ferida. Kazel apontou a arma para mais
uma menina e atirou no peito, depois em outra e atirou na garganta.
— Você sabe que gosto do número quatro — falou para Demeron e
apontou a arma diretamente para mim. — A próxima bala será na cabeça
dela.
Comecei a tremer sem controle, sabia que Kazel não estava blefando. Se
aprendi algo o observando, foi que sua crueldade não tinha limites. As duas
meninas mortas na minha frente, e Freya agonizando de dor eram outras
provas disso.
Contrário ao meu desespero, Demeron riu.
Ele realmente estava rindo?
— Não posso ter minhas preferências?
— Seu sexo privado com essas garotas todas às vezes sempre se
escondendo nos quartos, me faz pensar que, ou você não tem um pau, ou não
está fazendo nada. Então eu me pergunto, Ivanik, você está me enganando?
Ou será que é a porra de um viado?
Sem se perturbar, Demeron prendeu o cigarro entre os lábios e olhando
para Kazel, começou a desfazer seu cinto. Abismada, boquiaberta, o fitei
enquanto ele abaixava o zíper e depois a calça, apenas o suficiente para
colocar seu membro de fora.
Minhas lágrimas voltaram com força.
Minha respiração vacilou ao ver que não existia uma centelha de
emoções em seus olhos, só um sorriso irônico, como se estivesse entediado
com tudo.
— Acha que eu sou uma bichinha?
Kazel deu de ombros, a arma ainda em minha direção.
— É sempre bom deixar claro o que o Reich acha de homens que
marcham para trás. — Ele me fitou e acenou com a arma. — Pegue no pau
dele.
— Kazel... — Demeron falou, parecendo um pouco tenso agora.
— Você não a queria? Vai ter.
A repulsa me veio com força no pedido. De Kazel, de sua perversão, de
saber que se eu não fizesse isso ele continuaria atirando nas meninas e depois
em mim... Repulsa por Demeron estar ali.
De terno, com um sotaque, um nome russo, fumando um cigarro e rindo
com aqueles homens, de fazer parte daquilo. De saber que foi para quartos
com aquelas meninas!
Oh, meu Deus...
Não era apenas padre Terry, Mic e Style... Demeron também havia
acabado comigo. Todos eles juntos contribuíram para que minha luta, minha
vontade de voltar para casa fosse embora. Me sentia fraca por não aguentar
dois dias o que aquelas meninas aguentaram a vida inteira, mas ter o homem
que eu amava estuprando mulheres e matando crianças... isso me matou.
— Anda, pegue. — Kazel pausadamente mandou.
Alguém cortou a corda que segurava meus pulsos, e as lágrimas da dor
lacerante começaram a descer, já nem sentia mais meus dedos, estavam
congelados do aperto sem fim.
— Pegue. Agora!
Soltei um soluço, incapaz de fazer o que ele pedia. Demeron estava ao
meu lado, apenas a um levantar da minha mão de distância, mas meus
músculos não entendiam isso. Não obedeciam!
— Não posso — sussurrei para mim mesma, mordendo o lábio inferior
em agonia. — Não consigo.
Ouvi passos pesados se aproximando, e meu cabelo sendo puxado,
depois, um tapa forte me atingiu. Os olhos demoníacos de Kazel estavam
estreitos, a arma passando pela minha mandíbula.
— Quando eu mandá-la fazer algo, você fará, puta! Transe com essa
vadia agora ou eu farei isso, e apenas pelo seu desrespeito, vou matá-la
depois. Então vou caçar a sua família, matar os homens e vender as mulheres,
entendeu, Ivanik?
Eu não queria que ele me tocasse, não ali, não com todas aquelas
pessoas vendo, não sabendo o que ele fazia. Mas, não adiantava desejar algo
naquele lugar, as esperanças eram as primeiras coisas que morriam ali
dentro.
Pela primeira vez, quando olhei nos olhos de Demeron, ele devolveu o
olhar. E não havia nada. Como uma tola, ainda me obriguei a sentir que me
ajudaria, a esperar que de algum modo impossível me tiraria dali. Fui atingida
novamente, o gosto metálico do sangue invadindo minha boca. Isso foi o
suficiente para ele afastar Kazel, empurrando-o.
No momento que fez isso, os barulhos de armas sendo destravadas
foram quase ensurdecedores. Todas apontavam na direção dele. Percebi
naquele minuto que por ter tocado o líder, todos iam matá-lo.
Mas ele riu novamente.
— Eu já te disse que gosto eu mesmo de machucá-las, mas você a
deixou sangrando.
Só que Kazel não estava mais achando engraçado, ele apontou para
outra menina e atirou sem hesitar. O homem que a segurava se afastou com
um pulo, quase correndo da sala.
Sabendo que ele não pararia, que ia matá-las até chegar a mim, forcei
meus músculos a reagirem e fiquei na frente de Demeron, ergui a mão direita
e olhando-o nos olhos, fechei meus dedos em seu pênis.
Sua expressão não alterou, ele desviou preguiçosamente os olhos para
cima da minha cabeça, onde Kazel estava, e tragou o cigarro, soltando a
fumaça naquela direção. As armas ainda apontadas para nós.
— Solte. — Não me olhou, mas eu sabia que falava comigo. Obedeci
imediatamente. — Traga-me uma venda.
Tive dúvidas se estava falando comigo, e ele viu isso em meus olhos.
— Ela não precisa fechar os olhos, deve se acostumar com o que verá e
fará aqui.
— Isso não é sobre ela, irmão, é sobre mim. — Senti de repente seu
toque discreto em minha cintura e me condenei por sentir uma rajada de
calor, conforto. — Você querer interferir nos meus desejos, isso não me
agrada.
Demorou um pouco, mas o ouvi responder.
— Pode trazer a venda. E sentem-se, pois o espetáculo vai começar.
O espetáculo...
Seria um show de horrores que durante o tempo que eu vivesse, ia me
lembrar. Ter minha intimidade exposta, explorada, desejada por pessoas tão
repulsivas... Isso jamais iria embora. A vergonha, o medo, a forma como eu
sempre me sentiria humilhada estariam gravados na minha mente.
— Olhe para mim. — A voz firme ordenou, relutante, obedeci. Os olhos
azuis gélidos que eu amava, aquele rosto perfeito que antes, havia dito tantas
vezes que ia me proteger, e estava prestes a me destruir. — Não tire a venda.
Lentamente, ele deslizou a faixa cobrindo meus olhos. O pânico
começou a crescer, mas segurei-me para não reagir. Kazel estava perto. Ele,
sua arma e sua violência que já me fizera sangrar e faria novamente.
Então, o que eu não esperava aconteceu.
— Posso? — O sotaque havia sumido, era apenas ele dessa vez.
Um alívio pesaroso me invadiu quando assenti. O que eu podia dizer?
“Não”? E morrermos ali, no meio daquela bagunça nojenta? Morrer ao lado
do homem que eu infelizmente amava?
Me consolei com o fato de que seria a última vez. Me imaginei num
mundo onde estávamos só nós dois, e que quando ele me inclinou sob a
cama, ficando atrás de mim, os barulhos eram da rua, ou que estávamos em
uma festa e loucos de paixão, resolvemos nos esconder num dos quartos
vazios e fazer amor. Que quando suas mãos subiram por minhas pernas,
levando o tecido transparente para cima até me desnudar da cintura para
baixo, os arrepios que correram pelo meu corpo foram de excitação.
Seu corpo caiu sob o meu, os lados o terno caindo aberto dos lados do
meu corpo, cobriram-me como uma cortina, senti seu hálito em meu pescoço,
sua mão acariciando-me, e mordi o lábio com força, rompendo a pele, ao
perceber que sim, pouco importava onde estávamos e quem ele era. Ivanik ou
Demeron, eu estava molhada com o simples toque de seus dedos.
Ele afastou meu cabelo para o lado, raspando a ponta dos dedos pela
queimadura e eu gritei. Ele travou. Kazel soltou uma risada estrondosa.
— Isso! — gritou.
Tinha pensado que Demeron havia me machucado de alguma forma.
— Lembre-se da montanha do diabo. — Sua voz, sem sotaque, apenas
ele, sussurrou no meu ouvido. — Não me odeie, por favor, liebe, não me
odeie mais.
Então eu o senti.
Senti seu membro escorregar para dentro de mim, suas mãos em minha
cintura e meu corpo afundado no colchão. Abri os olhos ao ouvir um gemido
feminino por perto, mas a venda só me permitia ver sombras. Os fechei
novamente, não querendo ver nada.
Lembrar da montanha do diabo? O que isso queria dizer? Em minha
mente perturbada, que tentava navegar pela situação que passava no
momento e buscar minhas lembranças, brevemente uma me veio. Comecei a
buscar mais fundo, tentando lembrar do que conversamos naquela noite.
Meus pensamentos foram imediatamente para aquele dia, quando nos
sentamos no lugar mais alto de Berlim e ele lamentou sobre não ser capaz de
desfazer as manchas de um passado.
“Nós estamos sentados sob a guerra. Os escombros de anos e anos da
reconstrução de Berlim depois da queda. Wehrtechnische Fakultät foi
construída aqui debaixo para treinar jovens nazistas. Soldados criados pelo
ódio e intolerância. Esse é o lugar mais alto de Berlim, vemos toda a cidade
daqui, mas, ainda assim, isso foi chamado de montanha do diabo. Acho que
foi merecido.”
Ele me segurava numa posição na qual eu mal podia me mover.
“Se você tivesse a chance de salvar alguém que sofre nas mãos de quem
ainda comete atos em nome dessa ideologia, você faria isso?”
Kazel e Mudié. Freya.
“Se estivesse a apenas alguns passos de salvar uma centena, mas
tivesse que quebrar regras para isso, ainda assim faria?”
Aos poucos, cada palavra fez sentido. Pelo menos, o que eu imaginava
ser certo. Mas, podia ser realmente aquilo, ou era ele mentindo de novo, me
manipulando outra vez? Sempre fez isso, aliás, sempre mentiu. Até ali eu
estava bloqueando o mundo lá fora, tranquei nós dois numa bolha onde a
sensação dele entrando e saindo de mim era a única coisa que podia sentir.
Mas, ao perceber isso, me senti doente.
Ergui minha mão, quase alcançando a venda para tirá-la quando ele
pegou meus dedos e segurou, impedindo-me de ver. Por quê? Não queria que
eu visse do que ele fazia parte?
Minha respiração entrecortada em meio às lágrimas não era porque ele
me machucava fisicamente. Não. O que ele estava fazendo era pior. Porque
eu sabia que estava ali como consequência de algo que ele fez. Ele e Style.
Era culpa deles. Todo o sofrimento e a dor era na minha alma.
Eu podia ver como se fosse uma imagem a minha frente, meu coração já
rachado, quebrando em pedacinhos que viravam pó.
Não havia explicação para aquilo.
Para o homem que eu acreditava amar e desejava passar o resto da
minha vida, alguém que considerei planejar meus votos de eternidade, estar
vestido como se estivesse pronto para participar de um ritual. Que
cumprimentava os outros presentes com uma saudação de morte, que olhava
através de mim, fingia não me ver. Era como se não me visse. Como se não
me conhecesse.
Nunca foi verdade. Tudo o que nós éramos se resumia a aquele lugar.
E isso era tudo o que era.
Uma noite que destruiu outras mil. Outras cheias de momentos puros
que estavam gravados em minha memória, encrustados em meu coração.
Onde o homem que eu amava com toda a minha alma se desfez diante
de mim.
O homem que eu adorava era nada além de um soldado.
Um soldado frio e calculista.
Um homem de pedra.
Um soldado de gelo.
E eu nunca fui nada para ele.
“Não tenho mais lágrimas para derramar
Então eu estou me levantando”
ARIANA GRANDE, NO TEARS LEFT TO CRY
— Onde acha que estamos? — perguntei a minha agora familiar
companheira de cárcere, mesmo já imaginando sua resposta, era bom
simplesmente falar.
Estava olhando aquela parede há horas e ela não ia cair com a força dos
meus pensamentos, tampouco me transportaria para longe.
— Na Kambarys, com o mestre e nossos senhores. — Freya respondeu
como se fosse óbvio.
Sim, claro que sim.
— Tem algum lugar que você queria ver? Queria visitar?
Seus olhos confusos piscavam sem saber como me entender, ela não era
burra, apenas provavelmente nunca tinha sido exposta a uma conversa com
alguém que conheceu o mundo. Continuei falando, quem sabe quando
chegasse a minha vez, ela pudesse começar a imaginar algo, qualquer coisa
com o que deixei em sua mente. Eu sabia que não ia aguentar muito, era só
questão de tempo.
Se não podia tolerar o sêmen seco de Demeron grudado em minhas
coxas e as marcas de suas mãos na minha pele, como suportaria qualquer
outro homem?
Se me oferecessem comida ou banho, escolheria o banho e ficaria mais
três dias sem comer. A vergonha era insuportável.
Depois de ele ter se retirado de mim, me fez ajoelhar e ficar aos seus pés
enquanto falava sobre o tempo perdido com outros homens. Não sabia quanto
tempo tinha ficado sobre meus joelhos, humilhada aos pés de Demeron.
Embora ele não tenha se importado. Quando terminou seus assuntos,
chamou Kazel para falar em particular e foram para um canto,
então Mudié foi ordenado a me levar de volta para o “quarto”. Eu me
perguntava se ele não pensava em mim, se nenhum dos momentos que
passamos juntos foi capaz de instigar algum sentimento nele.
Pelo menos culpa!
Ele não me olhava nos olhos, e depois de me usar no salão, deu-me as
costas como se fosse só um buraco qualquer onde se aliviou.
— Eu queria ter visitado Veneza, na Itália. Dizem que as estações do
ano por lá são diferentes. Que até mesmo o cheiro muda. — Ri sozinha,
pensando. — Daria tudo para me sentar numa praça de Veneza e comer
um arancino ou um cannoli.
— Onira — Freya sussurrou, e de repente, senti seu toque em minha
testa. — Você está bem? Está dizendo coisas estranhas... o que é estação? E
esse tal de Itália?
Se tivesse mais alguma lágrima, eu as teria soltado. Pobre coitada, pobre
menina coitada. Brutalizada por toda a sua vida, sequer disseram a ela o que
são os países, ou as mudanças de clima, coisas que até pessoas de lugares
menos desenvolvidos têm.
— Há quanto tempo está viva, Freya? — Tentei perguntar de uma forma
que entendesse.
— Tenho dezenove anos de idade. Sei disso pois é a data que recebo
presentes, o Mestre me disse que eu deveria contar cada ano. Me ensinou a
contar até vinte e cinco.
Franzi o cenho.
— Por que até vinte e cinco?
— Porque não precisarei contar mais anos depois disso, acho que minha
contagem termina aí.
O desgraçado abusava dela desde o nascimento, e a sentenciou à morte
simplesmente porque quis. Provavelmente sua fábrica só podia ter mulheres
jovens. Meu coração doeu por Freya e por pensar no que aconteceria a ela.
Mas, de repente comecei a rir, refletindo comigo mesma nos meus vinte e
seis anos de idade.
Talvez devesse dizer a Kazel que era hora dele finalizar minha contagem
também. Assim pelo menos, estaria longe daquele inferno.
Fechei os olhos, sugando uma respiração e soltando-a lentamente.
Você está realmente desejando morrer?
O “sim” estava na ponta da língua, mas então o barulho do ranger da
porta soou e Freya nem se moveu, acostumada a estar preparada, mas eu, de
cabeça baixa, no momento em que vi as pernas cobertas por uma calça social,
pulei no desgraçado. Fosse Mudié ou fosse Kazel, eu não me importava.
Podia morrer lutando, mas não ficaria parada. O pensamento de implorar pela
morte estalou algo em minha mente que até então, eu tinha deixado para lá.
Eu tinha uma vida, um trabalho, pessoas que se preocupavam comigo!
Mesmo que fossem apenas Slom e meus fornecedores, ou os clientes mais
próximos. Mas, mesmo que fosse sozinha não podia me conformar, eles eram
monstros, e iam saber disso.
Mas, não era nenhum dos dois, e depois de um surto socando onde eu
pudesse atingir, finalmente foquei nos olhos, já que os cabelos não eram mais
loiros, não pude diferenciar, mas aqueles olhos azuis jamais seriam iguais a
qualquer outro. Ele segurou meu braço, empurrou a porta e encostou-me na
parede.
— Pare com isso.
— Não me toque, seu desgraçado, tire as mãos de mim! — Eu gritava.
O odiava. Detestava seu rosto, sua voz e sua presença. Repudiava tudo o
que ele era. Doía tanto olhar para ele e lembrar de um amor que queria virar
ódio, que quase não me aguentei de pé.
— Pare de lutar comigo, liebe.
— Não vou voltar para lá, não farei parte do seu show infernal! Não
posso acreditar que faz parte disso, não posso! Quem é você? Hein?!
— Cale a porra da boca, você vai chamar a atenção e eu não tenho
tempo!
— Chamar a atenção? Você já fez isso quando me fodeu na frente de
todas aquelas pessoas, daqueles homens doentes!
Ele respirava com força pelo nariz, a boca travada.
— Está feliz, Demeron, não era o que você queria? Style está morto, eu
estou finalmente pagando o preço que sua família queria que pagasse e você
me quebrou. Está feliz? Eu me entreguei a você e agora vou pagar por isso.
Cada homem desse lugar vai me tocar e eu vou morrer um pouco cada vez
que acontecer.
— Ninguém tocará em você — rosnou, seus olhos faiscando.
— Mesmo? Como vai impedir isso, atirando em qualquer um pelado que
venha com uma faca para cima de mim no salão? Porque esse é realmente o
sonho de relacionamento que eu sempre quis. — Um sarcasmo amargo
embalava cada palavra.
— Vou tirá-la daqui agora.
Eu bufei.
— Você já me machucou o suficiente, não ouse mentir para mim agora.
— Liebe, escondi inúmeras coisas de você, mas nunca menti e não vou
começar agora.
A dúvida penetrou minha mente. Parecia falar sério, mas falava? Eu
aceitei me casar com esse homem, mas tudo o que houve depois... todas as
mentiras...
— Onira! — Ele chamou, me trazendo de volta.
— E as outras meninas? Não posso sair sem elas!
— Tenho um plano em andamento, elas não ficarão aqui por muito mais
tempo.
Engoli em seco, duvidosa, morrendo de medo de ter esperança.
— Vai realmente nos tirar daqui? — sussurrei.
Seu olhar de ferro se desfez ligeiramente, e algo que nunca vi lá,
apareceu. Não sabia o que era, pois nunca havia visto antes, mas foi como se
por alguns segundos ele tivesse tirado uma máscara e me deixado ver o que
tinha por baixo. Segurou meu rosto firmemente.
— Sim, liebe. Vou levá-la para casa.
Não sei o motivo, mas decidi uma última vez acreditar nele. Também,
que escolha tinha além dessa? Ficar sentada ali esperando até
que Mudié voltasse e Kazel colocasse seus planos em prática comigo?
— Certo. — Tentei falar com firmeza, então virei para Freya e estendi a
mão. — Vamos.
Ela arregalou os olhos e ficou de pé.
— Pensei que só voltaríamos ao salão ao amanhecer.
— Não voltaremos aquele inferno. Nós vamos embora.
— Ir... embora? Eu... eu não entendo.
— Existem outros lugares, Freya, uma nova vida, tudo bem? Nós
estamos indo para lá.
Não havia nenhuma possibilidade de nova vida depois de passar
pela Kambarys, mas convencendo alguém que ficou ali por anos, por sorte,
também convenceria a mim mesma. Seria bom acreditar em mentiras que
dessem esperança àquela altura.
Freya parecia perdida, e estava. Não sabia de nada além daquilo, esteve
dentro das Kambarys sua vida inteira.
— Não posso ir. — Balançou a cabeça negativamente, lambendo os
lábios e indo para trás.
— O que quer dizer com não pode ir?
— Não posso deixar o Mestre.
— Ele não é seu mestre, Freya... ele é um abusador. Um psicopata!
Todo o rosto se franziu.
— Um o quê? Ele... ele é meu criador.
— Não temos tempo — disse Demeron, e aproximou-se dela. — O
Mestre me pediu para levar vocês duas a outra Kambarys. Você não quer
desobedecê-lo, não é?
— Ele mandou? — Engoliu em seco. — Mas ele nunca me deixa ir para
outro lugar sem ele.
— Deixou porque hoje você foi uma ótima menina, muito boa. Então ele
vai recompensá-la quando chegarmos lá.
Eu vi seus olhos brilharem numa esperança tão honesta, que se meu
coração já não estivesse quebrado, teria sido ali mesmo. Ela estava
desesperada para agradar aquele homem horrível. Levantou prontamente e
assentiu.
— Então vamos!
Busquei os olhos de Demeron, mas já não havia mais aquela centelha de
sentimento. Novamente era como se eu não estivesse ali, como se fôssemos
nada um para o outro. Ele juntou minha mão na de Freya e nos mandou ficar
atrás de seu corpo. Então ajeitando uma arma em cada mão, abriu a porta.
“As rachaduras não vão se consertar e as cicatrizes não irão desaparecer
E me sinto como se estivesse afogando
Você está em meus pensamentos
Sempre”
GAVIN JAMES, ALWAYS
Nós vamos todos morrer.
Esse foi meu pensamento fixo enquanto passávamos pelo corredor.
Meus pés descalços eram maltratados pelas pedras e poucos cacos de vidro
que tinham no chão, podia ouvir alguns gemidos e barulhos que vinham das
meninas presas nos outros quartos.
Insisti a Demeron, implorando a ele se não havia como tirá-las dali, se
não podíamos resgatá-las e levar todas para fora. Aquele lugar era um
inferno que não podia ser descrito. Talvez nem inferno descrevesse tão bem,
e eu sabia que se realmente conseguisse escapar, nunca poderia esquecer cada
rosto que vi sofrendo naquele salão.
Chegando ao fim do corredor, Demeron pegou um tipo de rádio
pendurado em sua calça e falou algo que não entendi, mas não ouvi a
resposta e nem sabia se teve uma.
— Vamos, rápido! É por aqui. — Abriu uma porta e esperou que
entrássemos, então nos encarou. — Não soltem as mãos. Quando eu disser
para correr estejam preparadas, e vão direto para o carro do outro lado da rua.
Entenderam?
Eu assenti, mas Freya hesitava, não entendia o que acontecia, mas
claramente percebeu que tinha algo errado. Me preocupei com sua perna, mas
ela sussurrou que estava tudo bem, dizendo que não ousaria desobedecer ao
Mestre.
Eu já estava mais do que preparada.
Empurrando uma outra porta, ele segurava as armas e tinha os olhos
atentos à frente. Travei ao ver o salão a nossa frente, mas estava
completamente vazio, havia apenas um homem andando lentamente no meio,
todo de preto e logo foi para baixo quando Demeron disparou a arma
silenciosa. Atravessamos atrás dele, e virava e olhava para todos os lados sem
parar e abriu outra porta, mas dessa vez, estávamos fora da igreja, parecia um
armazém e lá, tinha apenas o padre Terry. Por um momento meus pés ficaram
travados, não pude me mover e Freya que parecia já me conhecer pelo menos
um pouco ou ao menos, reconhecer quando eu estava com medo, segurou
minha mão mais forte e me puxou, dando apenas um impulso para que eu
voltasse a andar. Padre Terry não me olhou nos olhos, via seus lábios se
movendo enquanto falava com Demeron e ao mesmo tempo andava ao lado
dele, mas não conseguia ouvir nenhuma das palavras que diziam.
— O carro está lá fora. — Demeron informou, dando uma das armas a
Terry.
— O plano é simples e silencioso. Kazel e Mudié estão indo para outro
local, vão comprar e vender suas garotas que acabaram de chegar de Madrid,
depois ficarão na Kambarys do Caribe e esperarão que algumas das meninas
que estão aqui sejam enviadas. — O Padre desviou o olhar para Freya. — Ele
vai enlouquecer quando ela não aparecer, vai caçá-la até o fim do mundo, sua
privacidade, intimidade, e o sossego acabou, sabe disso, não é?
— Já a deixei para trás uma vez e não farei de novo. Com a Liga nos
escondendo, ele não nos encontrará tão cedo.
— Quando você armou o circo do casamento, sua imagem foi exposta,
mas Kazel não te reconheceu, o que é uma vantagem para nós. Mas terá
que ficar escondido até terminarmos tudo e... — Padre Terry ia dizer mais
alguma coisa, mas sua frase foi cortada na metade quando tiros soaram ao
redor. Freya e eu fomos empurrados para o chão e de repente senti um peso
em cima de mim, fechei os olhos com força, sufocando com o impacto e
passei um braço em torno de Freya, que estava ao meu lado em posição fetal.
Uma guerra se iniciou a nossa volta.
Os olhos amarelos estavam grudados aos meus, arregalados. Era como
se ela tivesse se segurando em mim. Um tiro foi disparado e pegou bem
acima da minha cabeça, no segundo seguinte, fui posta em meus próprios
pés, ainda com uma chuva de tiros voando sobre nós.
Demeron gritava algo e me segurava firme pelo braço, levando-me em
direção a uma enorme porta e apontando a arma, atirando sem cessar.
Estávamos quase lá quando ele amaldiçoou e jogou a arma longe.
— Estou sem munição, porra! Sem munição!
Busquei seus olhos, aterrorizada, e continuamos correndo, apenas padre
Terry segurando os homens que tentavam nos atingir.
— Demeron...
Ele engoliu em seco e me fitou nos olhos.
— Onira...
Uma luz literalmente surgiu do nada e olhei para a frente, vendo que a
porta do armazém tinha sido aberta, e de lá, vi um homem com grandes
cabelos e óculos escuros que não reconheci entrar com uma arma atirando
para todos os lados e gritando, e ao lado dele... meu irmão. Não parei ao
ver Style, não podia. Demeron estava gritando em meu ouvido
e Freya dependia de mim. Mas o desespero que senti ao vê-lo entrar ali
enquanto eu saia foi grande. Mais dois homens entraram logo atrás, dois
japoneses. Style não me olhou, mirava e atirava sem nenhuma expressão em
seu rosto vazio, assim como cada um deles.
Passamos pela porta e chegando do lado de fora, os tiros continuavam lá
fora ficando cada vez mais altos. Fomos recebidos pela luz do sol e percebi
que realmente dentro daquele lugar não havia como ter noção do tempo, pois
eu pensava que era noite e lá fora continuava claro. Era feito para nos
enlouquecer.
Clareava e escurecia, e as pessoas viviam suas vidas sem ter ideia de
que ali dentro existiam dezenas de mulheres sofrendo pela ambição e doença
que a loucura de um único homem podia causar.
Olhei para trás enquanto corríamos e um carro foi aberto, assim
como Demeron disse. Antes de ser empurrada para dentro vi que estávamos
no meio do nada, aquele galpão enorme tinha apenas terras em volta, não
nenhuma casa, nem pessoas passando, sequer uma rua. Por isso ninguém
ouvia os gritos ensurdecedores, os tiros, os cantos... não importava quantos
barulhos nós fizéssemos ali dentro, as pessoas do lado de fora
continuariam alheias a tudo porque jamais poderiam saber.
Ninguém chegaria para socorrer.
— Abaixem a cabeça! — Meu ex noivo mandou. — Abaixem a cabeça.
Fiquem com a cabeça abaixada!
O ouvi gritar mais e mais e outro carro parou em frente ao prédio. Os
homens que entraram com Style pularam dentro e meu irmão entrou na
direção ao mesmo tempo que Demeron tomou o volante do nosso. Logo,
estava dirigindo numa velocidade que eu nunca tinha visto antes.
O aperto de Freya em minhas mãos machucava, era tão doloroso que eu
sabia que sentiria por alguns dias. Mas não me importei. Precisava sentir
algo. Seus olhos ainda não haviam desgrudado dos meus, mesmo quando eu
não a encarava. Eu não sabia o que ela procurava, mas não pedi que ela
soltasse o aperto e nunca pediria. Enquanto aquele galpão ficava mais
distante e os tiros não podiam mais ser ouvidos, eu não tinha nenhuma ilusão
de que o inferno tinha acabado e que nossas vidas voltarem ao normal.
Nunca mais existiria normal.
Apertei sua mão mais forte.

A última coisa que eu queria ver depois de sair daquele lugar, era aquela
mansão.
A mansão onde todo engano começou, onde eu me entreguei ao pior dos
homens. Mas não protestei quando nos levaram para dentro. Era a única vez
que estaria vendo todas aquelas pessoas, e mesmo tendo nos enfiado naquela
confusão, acabaram me salvando. Eu não sabia os motivos, mas pretendia
descobrir antes de ir embora. Mantive minha mão grudada a de Freya por
todo o caminho, mesmo quando íamos entrando. Ela era a única pessoa que
podia entender o que estava passando em minha cabeça e que sentia junto
comigo toda dor.
Andamos com calma para dentro, machucadas, doloridas, confusas e
com medo do mais leve suspiro soprado em nossa direção.
Lá dentro, na enorme sala, reconheci Kaladia, Regnar, Siriu e Liémen,
a quem Demeron tinha me apresentado em nosso noivado. As expressões não
revelaram nada, eu podia apenas reconhecer a fúria que emanava de Siriu.
Quando estávamos todos lá dentro as armas de meu irmão, o cara de
cabelos grandes e de Demeron foram jogadas ao chão. Franzi o cenho, sem
entender, então Siriu andou em linha reta direto para Demeron, desferindo
um soco tão forte em seu rosto que o fez tropeçar, mas ele não devolveu.
— O que você fez não tem volta! — esbravejou, segurando-o pela gola
da camisa social toda surrada.
— Eu não dou uma merda.
Eles começaram a lutar num piscar de olhos.
O de cabelos grandes se envolveu, logo armas estavam empunhadas
novamente e os gritos começaram. Vozes exaltadas que se tornaram gritos e
barulhos de móveis arrastando, quebrando. A mão de Freya suava e começou
a tremer contra a minha. Logo, seu toque se foi e vi de relance quando se
ajoelhou no chão, abaixou a cabeça e começou a cantar aqueles cânticos
que Kazel perpetuou em meus ouvidos. O pânico começou a reverberar da
minha mente para o corpo, e em questão de segundos era tudo o que eu
sentia.
As paredes me sufocavam.
Fechei os olhos apertando-os fortemente juntos pela impressão de que a
qualquer hora Mudié iria me buscar.
Meu irmão declarado morto.
Meu noivo mentiroso.
Sua ex-mulher e, também minha cunhada.
Meus cunhados que tentavam se matar.
Um criminoso amigo da família.
A mulher que havia passado por uma vida de tortura e que me buscava
como conforto, pois tudo em volta dela era desconhecido.
As vozes começaram a fazer minha cabeça zumbir,
pontos espalharam em frente aos meus olhos, uma tontura tão forte me bateu
enquanto meu coração disparava e minhas mãos suavam que não tive tempo
sequer de encostar ou me sentar. Em um momento estava ali e no próximo
tudo ficou escuro.

Quando acordei dessa vez, puxei meus braços para passar a mão pelo
rosto, mas ela, a dor ao me movimentar, me fez perceber que algo estava
preso. Abri os olhos lentamente, vendo uma intravenosa no braço direito.
Não queria fechar os olhos, não queria que o medo cegante e sufocante de
que seria levada outra vez me pegasse. Queria ficar acordada e entender tudo
o que estava acontecendo, mas ao mesmo tempo queria sumir e nunca mais
ver nenhuma daquelas pessoas.
Reconhecia o quarto enorme onde estava e o conforto da cama. Os
quadros nas paredes estrategicamente pintadas e desenhadas. Era a mansão
de Stark, estava recebendo os cuidados de sua família, os mesmos que me
fizeram ser machucada uma e outra vez.
Sabia que a qualquer momento alguém entraria para me questionar.
Me fariam contar coisas que vi e o que passei e quem estava lá. Eles
não tinham ideia de como isso te faz reviver cena após cena em detalhes do
seu pior pesadelo. Meu pescoço ainda queimava com a marca que foi
queimada em brasa na minha pele, as costas ainda ardiam de tanto
apanhar, meu coração estava quebrado, minha mente perturbada e minha
alma... eu queria que ela apenas saísse no corpo e tudo isso acabasse.
Fiquei deitada aproveitando meus últimos momentos sozinha, pensando
no que faria a seguir. Não existia muitas opções.
Eu estava rodeada de mentirosos e pessoas perigosas. Pessoas que me
usariam para machucar quem eu conhecia sem se importar que eu não era
culpada. Me perguntava se Style ainda estaria lá embaixo, se subiria para me
ver ou se já teve seu destino selado.
E se Demeron entraria ali, continuaria mentindo como se eu fosse a
mesma tola que enganou durante meses ou finalmente me diria algumas
verdades. Seria tão injusto se não pudesse fazer pelo menos isso por mim, me
dissesse pelo que eu sofri. Qual foi o motivo?
E Padre Terry eu nem sabia o que pensar, apenas que era tão perigoso e
culpado quando todos os outros.
Como se cada um dos meus pensamentos fossem projetados na
realidade, a porta abriu e Demeron entrou. Eu não sabia o que dizer
inicialmente, e por incrível que pareça ele também se mostrava sem palavras.
Fechou a porta e ficou parado ali por alguns minutos, apenas me
olhou. Olhou meus ferimentos, meu rosto machucado e meus cabelos sujos e
desgrenhados. Me fitou por inteira, mas sem dizer nada.
Eu queria desesperadamente ouvir algo que explicasse, mas ele não
parecia ter uma explicação.
— Onde está a Freya? — Quebrei o silêncio.
Por algum motivo sabia que ele não faria isso.
Demeron fazia tudo calculado, todas as suas palavras e ações eram
previamente definidas por ele. Mas ali, ele não sabia como agir, a situação
estava fora de seu controle. Perguntei sobre Freya por preocupação genuína.
— Está sendo medicada. Tivemos que dar um calmante para ela quando
percebeu que não estava indo encontrar Kazel.
Eu não disse nada por vários minutos, pensei que ele consideraria isso
como a deixa para sair e me deixar em paz, mas continuou no mesmo
lugar. Se eu tivesse forças teria gritado e jogado algo nele, mas a dor em todo
meu corpo não permitia.
— O que mais você escondeu de mim? — perguntei. Será que, pelo
menos naquele momento ele seria um pouco honesto, quando me olhava de
um jeito que eu nunca tinha visto antes e nem compreendia.
Aliás, vi aquele olhar uma vez, e foi quando disse que me levaria para
casa.
— Muitas coisas. — Foi sua resposta.
— O que eu vi naquele lugar... tudo que você faz... tudo o que você
é... me enoja. Me revolta e me faz ter ódio de você. Me faz ter nojo de mim
mesma por ter estado tão próxima de você. Todas aquelas mulheres sofrendo
lá dentro e você era cúmplice disso.
— Você não entende.
— Não. Eu não entendo, afinal, ninguém nunca me explicou. O meu
irmão estava vivo, você sabia disso e se aproximou de mim para
me usar. Fingiu que não conhecia Style e me encheu de perguntas quando eu
te contei sobre ele, quando te falei coisas que eu pensava que sabia sobre ele
e você já sabia de tudo. Serviu com ele no exército e me fez de idiota... a
maior idiota!
— Tudo isso era maior do que eu e maior do que você. Eu tinha um
trabalho.
— Sim, um trabalho que envolvia me quebrar, me levar para um lugar
onde eu seria constantemente abusada, vendida e humilhada. Você planejou
tudo desde o início, aquela história de que sua família queria me machucar e
por isso ia me proteger, que queria se casar comigo porque queria ficar perto
de mim... eu pensei que você me amasse! Demeron. — Segurei o
choro. — Me fez confiar em cada palavra que saía da sua boca, e nunca
sequer gostou de mim! Você pelo menos me suportava quando me pediu em
casamento?
Ele abriu a boca, fechou e abriu novamente.
Aos poucos, palavra por palavra, seus olhos iam se tornando aquele
mesmo opaco que eu conheci. O homem das palavras certeiras que dizia as
coisas que eu tinha que ouvir, não as que eu queria. Assisti enquanto ele se
fechava, como se um botão tivesse sido acionado nele, como se seu
subconsciente o alertasse que eu estava pedindo uma coisa: que fosse
honesto.
— Existem coisas que eu não posso te dizer.
— O homem que você era lá dentro...
— É quem eu sou. Você me viu pela primeira vez.
— Não...
— Todo esse tempo você queria me conhecer, Onira... agora conheceu.
Esse sou eu.
Suas palavras me tocaram no mais íntimo. Era como se tivesse
pegado com suas próprias mãos minhas entranhas e as esmagasse apenas para
garantir que eu sairia daquilo mais machucada.
Eu sentia tudo, a decepção, a tristeza, a dor... era quase um luto.
Tão machucada quanto podia ficar, as lágrimas que eu pensei
terem secado voltaram a cair e com uma força que não sei de onde veio, me
sentei. Ele não se moveu. Tirei meu cabelo das costas e joguei por cima do
ombro, evitando passar os dedos pelo pescoço e tentei esconder o embargo da
minha voz.
— Eu fui queimada a ferro quente. Eles me bateram, me deixaram
passar fome e me humilharam. Não bastam as lembranças, minha pele está
marcada e isso nunca vai sair. — Seu peito subiu com força, a mandíbula
cerrada e os olhos cristalinos fixos em mim. — Freya não soube me dizer o
que era, então ao menos me dê isso. Me diga o que é essa marca.
Levou um minuto, ou talvez dez, mas ele se aproximou, engoliu em seco
e parou a centímetros de distância.
— Vire-se. — A voz rouca me causou um arrepio de dor e saudade.
Culpa também.
Fiz o que pediu e senti seus dedos em meu ombro, meu
corpo tensionou.
— Não me toque.
Sua respiração saiu mais forte, quase bufando, mas ele seguiu o que
mandei.
— Deus... — sussurrou e pela primeira vez, ouvi sua voz fraca, não
como aquele trovão de quando falava comigo.
— Diga-me.
— É chamado de sol negro. Um dos símbolos do nazismo. É um
símbolo ocultista e do misticismo, eles acreditam nessas forças sobrenaturais
que os guardam e dão a eles poderes sobre-humanos. E em volta, tem um
símbolo de Vênus, que significa o sexo feminino. Porém, aqui ele está ligado
à o que eles acreditam que uma mulher significa: sacrifício, fertilidade e
desejo sexual. É a marca que as escravas da Kambarys carregam.
Ouvir cada palavra sem sentido, me despertou da raiva ao ódio, levando-
me ao nojo. Eu não era mais a mesma, nunca poderia ser. Não fui marcada só
por fora. Eu sabia disso e cada pessoa naquela casa também.
Me esforcei para levantar novamente, e me afastei dele.
— O que você fez comigo não tem perdão. Eu nunca vou esquecer o que
passei lá dentro, o que você contribuiu para fazer. Então se existe...
— Onira...
— Se existe — enfatizei, não deixando que me interrompesse.
— Qualquer resquício de humanidade em você, fique longe de mim. Garanta
que sua família ficará longe de mim. Me deixa em paz para
tentar consertar algo aqui dentro. Descobrir se posso seguir em frente mesmo
que eu saiba que as cicatrizes nunca vão embora. Mas, você é a pior
delas, então se pelo menos você sumir, um dia posso ter esperança outra vez.
Ele ergueu o queixo, recuando alguns passos.
— É o que você quer?
— Seu trabalho foi concluído, Demeron?
Uma batida, duas, três.
Levou um século até ele responder.
— Sim.
— Então fique longe de mim.
Dei-lhe as costas esperando que saísse, mas ao mesmo tempo lá no
fundo, onde eu sabia que ainda existia aquela imensidão
de sentimentos, desejei que ele explicasse tudo, que tivesse alguma
forma de ser inocente. Pela primeira vez me segurasse com honestidade e que
fosse recheado de verdadeiro afeto, que me consolasse, porque aquilo era
tudo o que eu precisava agora.
Mas, comprovando sua culpa, a porta abriu e fechou.
Me vi sozinha ali dentro outra vez e deixei que mais algumas lágrimas
caíssem antes de secá-las. Prometi a mim mesma que nunca mais soltaria
uma única lágrima por Demeron Konstantinova.
O homem que me curou e ao mesmo que me destruiu.
“Compartilhe da minha vida
Me aceite pelo que eu sou
Não posso fugir de mim mesma, não tem onde me esconder
Não se atreva a ir para longe de mim
Não tenho nada
Se eu não tiver você”
WHITNEY HOUSTON, I HAVE NOTHING
Quando a realidade de tudo o que tinha acontecido finalmente começou
a se infiltrar em minha mente pude pensar melhor, mesmo que duas semanas
mais tarde eu ainda acordasse ouvindo barulhos, suando e imaginasse coisas.
Estava vivendo um nível de paranoia preocupante e nem mesmo Slom sabia o
que fazer comigo.
Tentei passar os três primeiros dias em casa, jurando a mim mesma que
as cenas daqueles homens entrando e me levando embora era passado, que eu
estava começando outra vez, mas percebi com cada noite que pirava, com os
pesadelos e o medo incessante, que não iam embora.
Na quarta à noite eu liguei para Slom no início da madrugada e ela veio
como um anjo salvador. Não lhe contei tudo e nem achava que estaria pronta
para contar algum dia, na realidade nem queria. Fiquei afastada do ateliê e me
escondi em sua casa, deixei que ela resolvesse tudo.
Quando ela me perguntou onde diabos eu me meti por três dias,
confirmei a história de Demeron: que estava com ele.
Pelo menos, a história que ela disse que ele contou.
Que eu tinha ido visitar familiares na Tailândia, pessoas que tinham me
encontrado através da TV e entraram em contato comigo e fiquei tão
extasiada de rever alguém da infância que fui para lá com o celular desligado
e nem pensei em dar alguma notícia.
Ela gritou por horas seguidas, sem fazer ideia do que seus gritos faziam
comigo, da minha mão tremendo, da minha cabeça quase explodindo, e no
final disse que qualquer outro parente distante que surgisse, ela deveria ser
avisada na hora, porque eu a deixei sem nenhuma notícia com uma única
garantia de Demeron dizendo que eu estava bem.
Aquilo tinha sido outra coisa que me surpreendeu. Ele estava longe, mas
garantiu a quem me conhecia que eu estava bem, o que me fazia pensar com
toda certeza agora que sabia onde eu estava o tempo todo. E eu me
perguntava... Será que tinha planos de me resgatar desde o início ou
simplesmente me deixaria lá e manteria aquela história?
Se eu demorasse, Slom com certeza faria Kurton envolver dinheiro na
busca por mim, ela era a única pessoa que podia se preocupar e me procurar,
e eu sabia com todas as forças da minha alma: ela nunca se daria por vencida
se eu tivesse sumido de vez.
Agora enquanto eu encarava minha casa do lado de fora, estava
refletindo se podia voltar para lá. Ainda que não fosse hoje ou amanhã. Tinha
dinheiro para comprar outra casa, para mudar de país e continuar minha
profissão longe de Berlim, fora da Alemanha, mas a pontada no peito que
sentia cada vez que pensava sobre estar longe não me deixava comprar uma
passagem.
Demeron sempre invadia meus pensamentos, influenciando cada uma
das minhas decisões. Eu era tão tola por ainda considerá-lo, mas eu sabia que
isso era simplesmente porque ainda havia dúvidas, porque eu não tinha
escutado de sua boca porque ele fez tudo o que fez. Porque nunca tive uma
explicação.
Freya me disse para ficar com a dor, aprender a lidar com ela e ficar
quieta até que passasse. Mas existia um jeito de passar? Eu suspeitava que
essa espera levaria o resto da minha vida.
Eu não via mais sorrisos em mim, não tinha mais sonhos e nem vontade
de sonhar, minha antiga missão por querer aumentar minha lista de clientes e
deixar meu nome e minha marca no mundo da arte já não era mais viva. Eu
sentia como uma obrigação. Algo que fazia porque precisava.
Eu costumava dançar em meu ateliê, cantar enquanto criava minhas
esculturas, mas o medo de estar sendo observada era tão grande que meu
silêncio se tornou meu refúgio.
Slom perguntava e eu respondia com poucas palavras, ela aprendeu a
conversar com alguém que não devolvia suas discussões e praticamente
falava sozinha. Eu imaginava como era difícil para ela ter sua melhor amiga e
sócia, sua parceira de sonhos tirada e ser devolvida uma casca, onde tudo que
havia dentro, tinha sido esmagado até não sobrar nada além de
dor, lembranças ruins e uma loucura que crescia a cada dia. Mas é claro que
ela não sabia disso.
Já havia passado três meses e Style nunca apareceu. Nunca ligou e nem
mesmo mandou um de seus estúpidos diamantes para me dizer se ao menos
estava vivo e eu nem sabia se me importava. A traição de Demeron era
dolorosa, mas a de Style era imperdoável.
Eu não podia nem mesmo me dizer se me importava que ainda estivesse
vivo ou sofrendo numa cela fria e sozinha, tamanha era minha mágoa.
Nenhum deles me procurou. Não ouvi falar nem mesmo em Naya. E aos
poucos era como se nunca tivessem sido parte da minha
vida. Demeron seguiu à risca o que eu disse a ele: para sumir assim como
todos de sua família e me deixasse seguir em frente.
Não doía ser abandonada, doía que ele não se importou em precisar
fazer isso.
Foi por isso que na segunda semana do quarto mês, quando a campainha
do ateliê tocou, fui atender com uma faca na mão. A única pessoa que ia ali
era Slom, e os clientes só apareciam quando ela estava, já que eu não os
atendia mais pessoalmente, e ela tinha sua chave. Mas, quando abri a porta
e encarei a última pessoa que poderia imaginar ali, fiquei travada por vários
minutos.
— Angelina?
Ela olhou para meu rosto, desceu por minhas roupas que estavam um
pouco amassadas, minhas mãos manchadas de tinta e quando chegou
na faca presa em meus dedos, ergueu as sobrancelhas. Então, pela primeira
vez, falou comigo.
— É uma defesa e tanto essa que você tem aí. Mas seria mais eficaz se a
escondesse da próxima vez.
A faca estava escondida, mas o choque de vê-la foi tão grande que até
esqueci.
— O que você quer?
— Será que eu posso entrar?
— Eu disse a Demeron, que não queria mais nada com sua família.
— Você disse a Demeron, não disse para mim, então a menos que
também me diga, não sairei daqui até me deixar entrar.
Ela me surpreendeu, mas foi bom que de cara não começou a defender o
neto. Deus sabe que eu poderia usar aquela faca na primeira pessoa que
tentasse colocá-lo como um herói para mim e se nem ele teve coragem de se
defender é porque não estava certo.
— Eu tenho apenas alguns minutos.
— Só preciso de cinco.
Passei para o lado, dando-lhe espaço para entrar, e ela o fez. Era do meu
tamanho, mas os saltos a deixou ligeiramente mais alta, a bolsa elegante
estava pendurada na ponta dos dedos e o casaco de pele bem colocado fazia
jus a ela; uma mulher elegante fina e perigosa.
— É um belo lugar — elogiou. — Se eu trabalhasse, gostaria que fosse
em algum lugar tranquilo assim. — Observava o ateliê e as obras bem
selecionadas que decoravam espaço.
— Obrigada, mas sei que não veio até aqui para conhecer o meu
trabalho, não depois de nunca ter me dirigido uma palavra.
— Não, realmente. Tampouco vim aqui para sanar suas dúvidas. Eu não
sei que tipo de trabalho eles fazem na Liga hoje em dia, mas então isso
é algo que apenas Demeron pode contar a você.
Eu queria ser educada, não queria destratá-la e nem parecer ser grossa,
mas sua presença me deixava desconfortável, me fazer sentir como eu me
sentia dentro da Kambarys; como se fosse menos. Inferior.
— Angelina, se não está aqui para me contar a única coisa que quero
saber, então não vejo motivos para sua visita.
— Você já ouviu falar de yin e yang?
— Sim, já ouvi.
Não tinha como não ter ouvido. Pela minha aparência, as pessoas tinham
aquela imediata impressão de que eu era japonesa, então sempre me
envolviam em lendas e histórias e achavam que eu saberia contar cada uma
delas, pensando que China Japão, Coréias e Tailândia e todos os países
orientais eram um único pacote. Como se México, Colômbia e Brasil também
fosse tudo a mesma coisa.
— Eu sempre fui fascinada nessas lendas — continuou. —
Inclusive, passei minhas crenças para meus netos. É claro que você ainda não
sabe sobre essas coisas, afinal, a forma como Demoron se infiltrou na sua
vida não permitia que ele tivesse falado nada sobre sua intimidade. — Ela fez
uma pausa e suspirou, me encarando com uma estranha gentileza. — E isso
não está certo. Cumprir uma missão não está atrelado a estragar a vida de
outra pessoa, mas de alguma forma meus netos sempre foram assim. Sempre
colocando seu patriotismo e a vontade de cumprir seus objetivos acima de
todas as pessoas e todas as situações.
Liga. Missões. Objetivos.
Eram palavras que ela dizia e viajava na minha mente, sem entender.
— Nesse mundo há muitos segredos. — Ela continuou. — Mas, eu sei
reconhecer coisas que vejo a minha frente, e quando eu te vi na mansão
naquele jantar, preferi não falar com você.
— Eu percebi.
— Preferi não fazer parte da lista de pessoas que te envolveriam em uma
mentira. Por isso, mesmo que agora as coisas ainda sejam confusas e nem
tudo foi posto à mesa e explicado, eu apareci porque você sabe que no fundo
tudo era mentira.
Bufei, cruzando os braços.
— Então você veio aqui apenas para reforçar a crueldade que
fizeram comigo?
— Não. Eu vim para dizer que meu neto namorou duas mulheres, casou-
se com outra e noivou com mais uma, tudo para cumprir uma missão. Foram
quatro mulheres usadas a um ponto mais sério, onde ele fez promessas, criou
um personagem e essa é a função dele. E entre essas quatro, existe uma
grande diferença. Ele calculava cada palavra e cada ação diante delas, mas
com você algo foi diferente.
— Não! — discordei, balançando a cabeça com veemência,
não admitindo que começasse a mentir para mim, que tentasse enfiar algo em
minha mente. — Não quero ouvir nada disso.
— Yin, você encontrou seu Yang. Se há amor, cuide do amor, se há
respeito, lute para mantê-lo sempre e honre suas raízes.
Ela se aproximou, parando a dois passos de mim, e passou os dedos pela
fina corrente em meu pescoço, segurando pingente. Meu coração perdeu uma
batida ao reconhecer dolorosamente que eu não tinha me deixado tirar e jogar
aquilo fora, nem mesmo aceitei a ideia de enfiar no fundo da gaveta onde eu
nunca mais poderia ver.
— Ele fez muitas coisas ruins que jamais serão explicadas. E não apenas
com você, mas esse colar é a maior prova de que em toda mentira algo foi
verdade. Este colar comprova tudo o que estou dizendo. Falta algo. — Ela
soltou o pingente e recuou alguns passos. — Espero que você entenda as
verdadeiras razões dele. Não serão justificadas e nem poderão ser perdoados
com um pedido de desculpas, mas que merecem a chance de ser ouvidas.
— Como um colar prova algo? É apenas um colar! Você não pode vir
aqui me dizer que só veio falar comigo agora porque não queria mentir
quando ao mesmo tempo estava sentada ao lado de Kaladia, que foi alguém
que ele também usou, mas ao contrário do que fez comigo, você a tomou
debaixo dos braços.
Sua expressão não se alterou diante do meu desabafo.
— Sim... Kaladia. Tenho meus motivos e eles não têm nada a ver
com Demeron. Disse que meu neto fez muitas besteiras e ter feito o que fez
com você foi uma delas, mas mais uma vez, se o ódio que sente é o suficiente
para nem sequer buscar uma explicação, isso me mostra que é covarde, que
prefere aceitar que tudo foi culpa dele ao invés de reconhecer que algo muito
maior e pior rondava você.
— Eu busquei uma explicação, fui atrás dele, eu...
— Você o culpou. Fez acusações e depois perguntou. Ele é um homem
extremamente perturbado, Onira, é meu neto e eu mesma tenho medo dele.
Tudo o que ela dizia fazia sentido, mesmo que eu nunca fosse admitir.
Não tinha o que responder, mas nem precisei. Quando terminou o que tinha
de falar, olhou seu relógio, constatando que precisava ir.
— Antes que eu me esqueça, isso estava na sua porta.
Angelina me entregou um envelope um pouco sujo e molhado, que não
estava selado. Inevitavelmente a fitei, pensando se teria sido capaz de
abrir. Como se pudesse adivinhar meus pensamentos, foi até a porta.
— Ah, querida, eu não sou uma das mulheres mais bem informadas de
Berlim à toa.
E com última aceno, sem outras palavras, me deixou sozinha. Quando
ela entrou, meu primeiro pensamento foi que quando saísse eu respiraria
aliviada, mas ao contrário disso, o peso era maior ainda sob meus ombros.
O envelope com algumas partes transparentes da água, mostravam uma
letra que eu conhecia muito bem. Eu queria rasgá-lo e nunca descobrir o que
estava escrito ali, mas, ao mesmo tempo, sabia que me arrependeria para
sempre, que no momento em que fosse impossível de ler, eu me desesperaria
de curiosidade.
Será que finalmente teria minhas respostas?
Eu duvidava, afinal, se fosse isso, por que não tratou comigo
pessoalmente?
Inevitavelmente, meus olhos se fecharam ao pensar na última vez que
meu irmão tinha chegado até mim.
Seria uma despedida?
Tanto me aliviei, quanto me apavorei com o pensamento. Aquela
possibilidade deixava um amargo em minha boca que me fazia quebrar um
pouco a postura de tentar não sentir mais nada por Style, lembrando-me que
afinal, era meu irmão.
Havia me machucado, mas já me protegeu tantas outras vezes! Como se
perdoa isso?
Com dedos trêmulos, abri o envelope e tirei o papel amassado de dentro.
Me perguntei se ele havia repensado a ideia de me entregar aquilo e jogou
fora, mas depois pensou melhor e decidiu enviar de qualquer jeito.
Ao constatar que sim, com toda a certeza era uma carta escrita à mão em
nossa língua materna por meu irmão, uma lágrima rolou.
Oni,

Não ousarei pedir desculpas agora, pois sei que estaria pedindo o
impossível, portanto, vou te dar o que você sempre mereceu e que nunca
deveria ter sido tirado de você: a verdade.
Eu servi ao exército desde que completei a maioridade, e aos vinte e
dois anos fui recrutado para um trabalho especial, um novo departamento.
Quando aceitei, sabia que receberia melhor, que poderia nos dar tudo o que
sempre quisemos: uma vida melhor. Pensei em você, que teria que esconder
aquilo, afinal, você sempre teve um medo absoluto de tudo o que remetia à
violência. Por isso escondi o exército, e criei uma vida perfeita da qual
você poderia se orgulhar.
Minha maior felicidade foi quando te levei na faculdade e você estava
brilhando com a realização de que estava começando a trilhar seu caminho.
Era engraçado pensar que minha irmãzinha seria uma artista, que ganharia
a vida pintando e sentindo, porque você sempre sentiu tudo e muito mais
intensamente, e que eu passaria o resto dos meus dias fazendo o que me era
destinado: lutando batalhas.
Vi mais violência em meus anos do que gostaria que você soubesse,
cumpri missões que me foram dadas sem nunca perguntar o porquê estava
fazendo aquilo, e quando chegava em casa, via você, o sopro de ar puro que
eu recebia.
Por isso, quando entrei para a Liga, Stark me garantiu que cuidaria de
você se algo me acontecesse. Ele sabia que você era tudo o que me
importava. Eu estava levando a vida, mas sabia, sentia que faltava algo,
então comecei a investigar.
Minhas buscas me levaram de volta a Tailândia, lá naquela pequena
vila onde nós pensamos que nascemos. Eu queria estar aí para contar tudo
isso frente a frente, mas não posso e nem sei se um dia poderei. Dói pensar
que ficará sozinha com essas descobertas, e que não terá alguém para te
confortar.
Tudo o que fiz durante anos era somente meu, nunca deveriam ter
tocado em você, mas ver a marca em seu pescoço, saber o quanto a
machucaram e a dor que você sente, me fez ver que tudo o que aconteceu foi
culpa minha.
Eu traí Demeron, traí nosso país, e o mais importante, traí você, minha
pequena irmãzinha. Isso não tem perdão.
Eu vou atrás deles, não apenas por terem machucado você, mas por
tudo o que já fizeram a outras mulheres também, e terminarei isso. Durante
essa jornada vou pedir aos deuses que possa ter alguma chance de poder vê-
la outra vez.
Não é seguro que eu volte, por isso, permaneço morto.
Quando estiver pronta, vá até algum dos Konstantinova, eles vão
explicar tudo o que você ainda não entende, foi o meu último pedido.
Você é perfeita, Oni. Sei que minha apreciação não faz diferença, mas
você é meu maior orgulho.
A única mulher, e a única pessoa que tem meu coração. Eu te amo.
Então, a partir daqui irmãzinha, eu preciso que você seja forte e
corajosa. Preciso que respire profundamente. Consegui minhas respostas,
mas elas são suas também, e você precisa saber mesmo que seja difícil.

Inconscientemente, fiz o que ele disse; respirei profundamente.


E com uma coragem recém-descoberta, e o medo do que ia ler,
comecei.
“Meu bem, você é uma canção
Me faz querer fechar minhas janelas e viajar sem rumo”
FLORIDA GEÓRGIA LINE, CRUISE
— Tem certeza de que não quer que eu vá com você?
Negando, apertei a mão de Slom em um agradecimento silencioso e
suspirei, sabendo que quando saísse do carro estaria diante de verdades que
ansiava ouvir, mas temia descobrir.
— Não, quer dizer... sim. Tenho certeza. Preciso fazer isso sozinha.
— Se aquele bastardo fizer qualquer coisa novamente, você volte para
minha casa e sabe que sempre terá meu sofá, ou um travesseiro extra na
minha cama para você.
— Obrigada. — Eu sorri, apreciando a leveza de estar com ela.
Saí do carro do motorista de Kurt e com toda a firmeza em minhas
pernas, entrei no prédio, tentando parecer calma. Como da última vez que
estive ali, nem as recepcionistas e nem os seguranças me
pararam, talvez Stark ou até mesmo Demeron já soubessem que uma hora ou
outra eu apareceria. Ou o simples fato de eu ter aparecido feito uma louca na
última vez que estive ali explicasse eles me deixarem andar livremente.
Meus dedos ficaram sobre os dois números do elevador, entre o
de Stark ou o de Demeron, sabia que estaria mais paciente e até calma para
ouvir tudo do meu ex-sogro, mas algo me fez apertar o outro. Sozinha no
elevador enquanto subia até o andar de seu escritório, respirei
profundamente algumas vezes, buscando uma concentração que não existia
em mim e perguntava o que ele faria quando estivéssemos frente a frente, se
finalmente me olharia nos olhos como não fez na última vez.
Será que algo tinha mudado?
Não pude deixar de me perguntar, afinal, já havia passado quatro meses.
Depois da visita de Angelina, levei dias para afundar em cada coisa que ela
tinha dito e por fim, decidi que enquanto não resolvesse aquela história, uma
barreira invisível me impediria de continuar, de seguir em frente.
Será que tinha voltado para Kaladia?
Fechei os olhos, engoli em seco e me recriminei por pensar nisso. Não
era da minha maldita conta e na verdade, se isso acontecesse seria até bom.
Parte da minha recuperação se daria a ver que ele realmente não sentiu nada
por mim.
Talvez a aventura comigo, completar sua missão, o tivesse feito cair na
real de que não deveria ter terminado o casamento com ela, pois a amava, eu
sabia disso mesmo que ele negasse.
Sabia que...
— Onira?
Abri os olhos pelo susto, nem sequer ouvi o elevador apitando, mas a
voz deliciosamente rouca e grave me fez acordar de um transe num momento
de tortura que me permiti ter ao imaginá-lo com outra.
E ali estava ele, caramba! Os cabelos continuavam pretos, mas não
tanto, agora estava mais para um castanho escuro. O jeans, a camisa preta de
manga longa, as botas surradas e aqueles olhos me devoram minha alma.
— Onira, você está bem?
Balancei a cabeça, focando no momento.
— Si-sim, oi. Olá. — Minha voz era baixa, vacilante, e ele notou.
Vi que segurava a porta e dei dois passos à frente, silenciosamente
pedindo que saísse do caminho. Ele não tirava os olhos dos meus, e me
pegando completamente de surpresa, segurou meu pulso. O toque era quente,
caloroso e me fez reviver uma onda de lembranças, de quando aquele mesmo
aperto era para me manter no lugar enquanto me enlouquecia de prazer.
— Vamos conversar em outro lugar. — Me levou de volta para dentro e
me soltou, deixando um fraco frio onde seus dedos estavam.
— Demeron — comecei. — Não vim aqui para...
— Sei o porquê veio. Foi o último pedido de Style e vou honrar minha
promessa, mesmo que ele não mereça.
— Então vai me contar? Vai me contar tudo?
— Sim.
— Mas apenas porque prometeu algo a Style?
Ele me olhou novamente, o cenho levemente franzido e os lábios
cerrados.
— Não, lie... Onira, não é só por isso.
Liebe. Parecia uma eternidade que eu havia sido chamada daquele jeito.
— Como está Freya? — Fui pelo caminho mais seguro, além de que,
realmente queria saber como a mulher que foi como uma âncora para mim
estava lidando com a nova vida do lado de fora de seu tormento.
— Não posso dizer que está bem.
— O que houve? — perguntei com preocupação.
— Ainda não me desculpou por ter mentido. Acha que Kazel vai puni-la
pior do que nunca por ter ido com outro homem sem a permissão dele.
— Aquele desgraçado... ele a mudou para sempre.
Foram alguns segundos antes que falasse novamente, e
nós continuávamos ali, os dois dentro da caixa de metal, parada num andar
vazio e sua mão segurando as portas abertas.
— Mas e você?
— O que tem eu?
— Também mudou?
Suspirei, e imediatamente lembrei-me da carta de Style.
— Ainda é cedo para dizer. Mas não há como passar por uma
experiência como essa e tudo o que veio depois e esquecer facilmente. As
vezes ainda acho que vou acordar e estarei lá.
Em um segundo ele estava na minha frente segurando meu queixo e
grudando nosso olhar.
— Você nunca voltará para lá.
Eu queria acreditar em sua promessa, mas não era a primeira, e o medo
ainda não me permitia esperar um futuro bom.
— Você não tem como garantir isso.
— Sim, eu tenho.
— Não! Não tem! E mesmo que tivesse, isso não faz os pesados irem
embora.
Encarou o chão por vários minutos até que levantou a mão para
mim como se fosse me tocar, mas a deixou cair, mudando de ideia, e
suspirou.
— Tem uma coisa que você precisa ver. Vou te levar para dar um
passeio.
— Demeron. — Recuei dois passos. — Só estou aqui para ouvir e
depois vou embora.
— Não basta ouvir, você precisa ver.
Mesmo hesitando, algo em seus olhos me fez assentir, então ele apertou
o botão do subsolo. Franzindo a testa, estranhei, mas não quebrei o silêncio.
Quando chegamos lá embaixo, ele pegou minha mão, levando-me para
fora e atravessando o espaço enorme ocupado apenas por colunas. Tirando
uma chave do bolso, abriu uma das portas com um aviso de perigo e somente
pessoal autorizado e me deixou passar, a fechando atrás de suas costas. Não
soltou minha mão enquanto atravessávamos um pequeno corredor até outro
elevador, e eu não fiz um movimento para soltar a sua também. Por apenas
alguns minutos enquanto a verdade ainda não fazia parte, ainda não estava
entre nós, eu me permiti ter aquela despedida.
— Onde vamos? — perguntei quando me levou para dentro.
— Você queria a verdade e terá a verdade.
As palavras enigmáticas não fizeram nada para aplacar minha ansiedade.
No elevador havia outras seleções de botões que eu nunca tinha visto, eram
símbolos ao invés de números ou letras. Ele apertou o terceiro deles e nós
começamos a descer. Sobressaltada de surpresa, segurei seu braço com
força, encarando-o com o receio estampado no rosto. Queria me manter forte
e não deixar que nenhuma das minhas emoções transparecessem, mas quando
estávamos atravessando o chão isso não era fácil.
— Demeron, isso...
— Confie. Pela última vez... confie em mim.
Minha mente traumatizada dizia não, e meu estúpido coração
gritava sempre.
Suspirei de alívio quando finalmente paramos. Mas, foi por pouco
tempo, pois quando as portas abriram com um apito e ele me levou para
fora, fui colocada em frente de um enorme salão onde homens e mulheres
estavam espalhados em diferentes atividades.
Nossa chegada atraiu atenção, mas foram todos discretos, não acenaram
e nem nos cumprimentaram, só continuaram fazendo suas coisas que se não
tivéssemos chegado.
Alguns lutavam entre si, outros escalavam uma corda que ia de metros
do teto alto até o chão, subiam em uma escalada na parede sem nenhum
equipamento de proteção, nenhum capacete ou qualquer corda
segurando. Havia um homem e uma mulher lutando no ringue aberto e não
poupavam golpes. Ela o acertava e ele devolvia com força, e quando ela
vacilou, ele acertou seu estômago a fazendo pular para trás e se curvar com a
dor. Eu pulei junto, escondendo meu rosto no peito de Demeron, mas antes
que eu piscasse, a mulher estava indo para cima dele, dando-lhe um chute no
peito que o fez tropeçar e cair. Alguns gritos foram ouvidos em apoio a ela e
o homem se levantou com sua ajuda, rindo. Ela não comemorou, apenas
acenou para ele e começaram de novo.
— O que... o que é isso? — sussurrei.
Minhas mãos ainda agarravam seu braço e nisso, ele passou um braço
pela minha cintura, a boca grudou no meu ouvido.
— Isso, liebe, é a Liga dos Diamantes.
Uau.
Não tinha janelas, só paredes de concreto sólidas que prendiam aquelas
pessoas ali dentro. Era frio, impessoal, se não tivesse as poucas vozes e os
barulhos dos equipamentos usados, estaria completamente silencioso.
— Style me mandou... me mandou uma carta. — Engoli em seco,
rezando que não me pedisse para falar sobre a carta imediatamente, porque eu
falaria, mas não naquele momento. — Ele mencionou essa Liga, mas eu nem
levei em consideração, como podia imaginar isso? Não é como... um clube de
luta?
Ele respirou profundamente e hesitou, seus olhos averiguando cada
canto do lugar. Ficando em sua frente, coloquei minhas mãos em seu peito,
sentindo o movimento da respiração pesada.
— Demeron. — Respirei seu nome. — Preciso da verdade. Preciso de
uma explicação.
— Te darei uma.
— Uma verdadeira. Que me faça entender o porquê me envolveu nisso
tudo, porque mentiu e me fez te amar.
— Isso você não terá.
Me afastei um pouco, vendo alguns olhos sobre nós.
— Então porque me trouxe aqui, só para brincar comigo de novo?
— Deixe-me terminar. Te darei a verdade, mas não existe nenhuma
explicação que te faça entender o que fiz.
— Deve haver.
— Não. — Ele abaixou a cabeça e quando me fitou, pude ver nos olhos
sempre centrados, um misto de sentimentos. Era como um redemoinho nos
gélidos olhos azuis. — Quando logo eu começo a duvidar de minhas próprias
ações, significa que talvez não tenham sido tão certas, portanto, não são
justificáveis.
Desviei os olhos e esperei. Não demorou até que ele voltou a falar.
— A Liga é uma organização secreta de espionagem. Nós fazemos o que
a lei não pode fazer, aceitamos trabalhos que não há garantias de que
sairemos vivos. Posso ser mandado para o Iraque amanhã, ser pego e mantido
como refém, dado como um dos inimigos de guerra do país, e saberei que
nunca vou ser resgatado, ou posso ser enviado para entrar na Rússia e meu
governo vai negar que me mandou para lá, então serei preso pelo resto da
vida. Nós fazemos os trabalhos que ninguém tem coragem e capacidade de
fazer, os melhores soldados do exército são recrutados, assim como os mais
brilhantes estudantes também. Cientistas, engenheiros, pilotos... todos
aqueles que são altamente capacitados e aceitam entrar, aceitam que devem
dar suas vidas pelo país. Que vão quebrar a lei e segui-la também, assim
como usarão todos os métodos possíveis e impossíveis sempre em nome das
missões.
— Você já esteve em muitas missões?
— Mais do que você poderia imaginar. No começo era bom, eu tinha
energia de sobra e já foi como um desafio para mim, entrar. Stark é o diretor,
mas isso não garantia que eu teria passe livre, tive que conquistar meu lugar
aqui dentro e fiz isso.
Eu queria fazer perguntas, muitas, minha curiosidade era mais atiçada a
cada palavra, mas senti que agora quando ele estava se abrindo, pelo menos
naquela parte, tinha que deixá-lo falar tudo.
— Fui recrutado alguns anos antes de Style, sou mais velho que ele,
então saí do exército e vim para cá, assim como ele. Nos conhecemos em sua
segunda missão e Stark achou que fazíamos um bom time. Embora eu
gostasse de trabalhar sozinho, tive que concordar que mesmo jovem ele era
talentoso.
— Eu nunca poderia imaginar que meu irmão fazia parte de algo assim
— sussurrei.
— Ninguém imagina. Nós temos espiões infiltrados desde o alto escalão
do governo até uma escola primária. Por isso passamos anos treinando, todos
os recrutas vêm pra cá diariamente e se tornam os melhores.
De repente, uma suspeita me bateu.
— Você vem pra cá diariamente?
— Sim. — Ele parecia imaginar a direção dos meus pensamentos.
— Todas as vezes que vim aqui, sempre o encontrei em sua sala.
— Eu tinha câmeras em seu apartamento, escutas no seu telefone.
Sempre sabia quando estava saindo de casa. O rastreador só me confirmava
seu destino e eu podia...
— Armar o teatro lá em cima, como se estivesse trabalhando?
— Sim.
— Espera... — Franzi a testa. — Rastreador?
Ele se aproximou e segurou o colar em meu pescoço, aquele maldito
colar que eu sempre esquecia de tirar.
— Meu diamante.
Segurei a joia quando ele soltou.
— Sua avó foi me ver, ela disse que esse colar é importante.
— Depois de treinarmos e sermos aprovados, passamos pelos testes
finais e pela grande prova final. Assim como na escola, temos a
formatura e recebemos o primeiro símbolo da Liga. São joias que vão
aumentando seu valor em escala cada vez que você é... promovido, digamos
assim, aqui dentro. A hierarquia segue e aumenta pelos valores de pedras
preciosas. Esmeralda, Cristal, Safira, Rubi e a mais alta, Diamante.
— Você é um Diamante — constatei o óbvio. — Como se aumenta seu
valor? Como você é promovido?
— Completando missões. — Desviou o olhar e passou os olhos ao
redor. — Quando se alcança essa posição, você está apto a tudo. Quando me
tornei parte do último nível, recebi esse Diamante. Eu era apaixonado pelo
meu país, fazia e fiz qualquer coisa para provar minha lealdade, e quando
ganhei o símbolo máximo de respeito que foi esse... pendurado em seu
pescoço, ele era a única coisa valiosa em minha vida.
— E você me deu — sussurrei, não sabendo direito o que pensar.
— Algo estava diferente. Eu sabia que precisava cumprir a missão, mas
ao mesmo tempo olhava para você e não queria repetir o que já havia feito
antes. Tive várias namoradas, incontáveis casos, e até me casei para terminar
meus trabalhos. Kaladia é um exemplo real e claro de como a destruí no
caminho dessa ambição cega. Hoje tudo que você vê sobre ela são
consequências do que eu fiz e depois quando você era missão, eu
simplesmente não conseguia imaginá-la destruída no fim.
— Você me deu o colar naquele jantar, na nossa primeira noite juntos.
A sombra de um sorriso cruzou seus lábios.
— Em anos de carreira e na missão mais fodida encontrei meu maior
conflito... você.
Respirei forte, buscando algum apoio e me sentei. Os barulhos ao redor
eram muito altos, mas eu não queria sair dali. Era como um pouco de
realidade.
— O que aconteceu... por que... por que eu era uma... missão?
— Style e eu já estivemos em uma Kambarys antes, pouco mais de dois
anos atrás. Foi em Oslo, uma missão para eliminar Kazel, seria rápido e fácil.
Ambos tínhamos nos infiltrado há meses na rede dele e pela primeira vez
estávamos perto o suficiente do chefe, era a nossa chance de acabar com
tudo. Pelo menos até que a próxima cabeça surgisse.
— Bem... ele está bem vivo, não deu certo, vocês falharam. Por quê?
Eu perguntei mesmo que houvesse uma suspeita em minha mente.
— Siriu me impediu. Eu não sei o porquê e acho que nunca vou arrancar
essa informação dele, mas não pude eliminar Kazel naquela noite. O salão
estava cheio de homens ricos, poderosos e alguns
famosos, políticos e pessoas da realeza, mas eles não se importavam.
Lá dentro, com tudo fechado, era um seguro de que poderiam usar aquelas
mulheres como bem entender sem enfrentar nenhuma consequência.
— O que houve depois?
— Nós seguimos a ordem e saímos. A primeira Kambarys fundada fica
abaixo do oceano em Oslo, eles tiveram medo de que fossem descobertos,
então acharam que ninguém procuraria o que não podia ver. Riscos de
invasões eram mínimos e não podiam ser rastreados. Aquela imensidão de
água cobria tudo. Uma centena de meninas inocentes e seus abusadores, pela
primeira vez em muito tempo eu fiquei abalado. Precisava seguir meus
instintos e fazer o que sabia que era certo ou seguir em frente e ser o
soldado, o robô que fui treinado para ser, mas no fim não tive tempo de fazer
nenhuma das duas coisas.
— Style. — Foi um sussurro afirmando, não era uma pergunta.
Demeron assentiu uma única vez, os olhos vidrados à frente, sem ver
nada.
— Ele me aplicou um sedativo, mas antes me deixou ver uma bomba
explodindo o lugar. Quando acordei, estava no hospital federal algemado. As
duas mãos e os dois pés, e três soldados armados até os dentes. — Ele sorriu
sem humor, amargo. — Sabiam que eu escaparia das algemas facilmente,
mas das balas, não. O chefe de uma das agências do governo alemão
e Siriu estavam lá também, e fui questionado sobre o que
aconteceu, contei tudo e eles pensaram que estava mentindo, que tinha traído
o país e estava acobertando Style.
Ele fecha os olhos com força e para, por um momento não posso
imaginar o que as lembranças devem fazer. Ele nunca deixou seus
sentimentos tão claros como deixava agora, nunca se expressou tanto, mas
quando eu pedi sinceridade e ele prometeu me dar isso, nunca imaginei que
levaria tão a sério.
— Então ele traiu você e o deixou para pagar sozinho? — A
incredulidade em minha voz era nítida.
— Agora sei que ele tinha outras motivações. Seu irmão agora faz parte
de uma organização em outro ramo, em outro país. Me deu as costas para
conseguir entrar nela. Ele está livre novamente. Ele tinha uma dívida comigo
e eu cobrei, o fazendo me ajudar a resgatar você.
— Não deveria ser uma dívida para ele me resgatar quando foi ele que
me colocou naquela situação.
— Eu também a coloquei lá.
— Pode ser, mas os homens lá dentro diziam que eu estava pagando
pelas coisas que meu irmão fez a eles, e não você.
— Sua associação comigo fez Style voltar, essa era minha missão.
Precisava me aproximar de você a fim de descobrir se era cúmplice dele, se
sabia de sua fuga, e se de fato estava vivo. Eu não tinha certeza se ele estava
ou não, mas você tinha certeza da morte dele, nunca soube de nada. Eu não
tinha planos de chegar tão perto, de fazê-la se envolver comigo, meu método
é mais direto.
Eu podia imaginar o que ele queria dizer com o método mais direto.
— Mas seu pai tinha outras ideias.
— Siriu tinha. Stark não foi a favor, ele gosta de você, te admira. Sem
contar que a conhece desde que era jovem, todos a conhecemos há muito
tempo. Mas Siriu... Ele sempre foi teatral e achou que seria mais eficaz e as
chances de você admitir qualquer coisa seriam maiores se confiasse em mim
— Funcionou. — Soltei um riso triste. — Eu confiei, mas para o
desapontamento de vocês eu não sabia de nada.
— Sim. Descobri isso tarde demais, agora sei, assim como a minha
família sabe também. Nunca deveria ter te envolvido nisso.
— Não adianta nos lamentar agora. — Dei de ombros. — Já
aconteceu, eu só preciso saber que nada disso voltará a respingar sobre mim e
vou tentar seguir com a minha vida.
— Nada mais vai atingi-la. Não posso explicar como, mas vamos
manter Kazel longe... neutralizado. Ele não me reconheceu mesmo que fotos
nossas já tivessem aparecido na TV, por isso não é provável que venha até
mim. O homem que ele conhecia, o Russo Ivanik, sumiu do mapa.
— Bom... — Levantei, minhas pernas um pouco fracas. — Fico mais
satisfeita, assim posso... vou tentar me tranquilizar e voltar a viver meus dias
como se nada disso tivesse acontecido.
— Você acha que consegue?
— Eu não sei, mas vou tentar como se minha vida dependesse disso.
E realmente dependia.
Com nosso olhar fixo um no outro, ele pegou minha mão e repetiu um
ato que havia feito muito tempo atrás e que me fez reviver memórias que
pensei ter enterrado há um bom tempo.
— Sobre nós...
Puxei minha mão da sua, quebrando o contato físico.
— Agradeço que tenha me contado tudo, e aliás, espero que tenha sido
tudo, mas... nada mudou.
— Mudou para mim.
— Demeron. — Havia um alerta em meu tom. — Não comece a fazer
isso novamente, tentar me prender numa armadilha. Não vamos continuar
nisso.
Com o cenho franzido, ele me segurou pelos ombros, subindo para o
pescoço, segurando-me firme.
— Não é uma armadilha.
— Antes era. O que mudou? Seu objetivo já foi cumprido e o meu
também.
— Não. Foda-se meu objetivo, nada mais é a mesma coisa. Vamos
continuar de onde paramos, os preparativos do casamento não foram
cancelados, só adiados. Basta um telefonema e fazemos acontecer.
Ele estava brincando?
— Não está falando sério, Demeron.
— Nunca falei tão sério em toda a minha vida. — As mãos apertaram
meu pescoço, fazendo uma pressão e uma carga de adrenalina correr pelo
corpo inteiro. — Você teve seu tempo e foi mais do que suficiente, nós
vamos acontecer... agora.
Fechei os olhos, buscando forças do além para resistir àquele corpo
incrível, a boca irresistível e a voz de trovão que cantava as palavras que eu
pagaria para ter ouvido antes de ser levada por Mudié. Mas, era tarde e
depois de tudo o que descobri, sabia que o melhor era ficar longe.
Eu despertava nele... algo, como ele mesmo disse. Mas não havia
nenhuma certeza em seu tom. Ele não tinha esperanças ou expectativas, então
facilmente poderia pular para outra depois que percebesse que o encanto que
lhe causei era temporário, nada demais.
— Agora é tarde, não há mais nada para nós.
— Não diga bobagens. — Determinado a me confundir ainda mais,
beijou minha bochecha, depois o canto da boca. — Nunca é tarde, não para
nós dois.
Jesus!
Nós dois...
— A parte boa disso tudo é que sei que nunca fez parte daquele bando
de malucos.
— Não, nunca fiz. Enquanto estava infiltrado fiz tudo o que pude pelas
meninas lá dentro, e nunca fodi nenhuma delas. Quando as levava para o
quarto, nunca fazia nada.
— Não importa. — Menti.
— É claro que importa. Eu sei que ficou pensando sobre isso. — Beijou-
me novamente. — Te conheço tão bem, liebe. Tentar mentir para mim é um
tiro no escuro. Sempre vou olhar nos seus olhos e ver a verdade.
Era demais.
Havia um mundo sobre as minhas costas e de repente tudo o que
passamos desde que nos conhecemos me bateu com força. Por que eu estava
me derretendo nos braços de alguém que ia me quebrar sem se importar em
como eu ficaria depois?
Com esse pensamento, afastei suas mãos e balancei a cabeça, com um
pequeno sorriso forçado.
— Não me siga.
— O quê? — Franziu o cenho, tentando me segurar de
novo. — Onira! — Sua voz exaltada fez todas as cabeças virarem para nós,
alguns chocados, surpresos, outros estavam tão curiosos que quase caíam dos
equipamentos.
— Adeus, Demeron.
Ele começou a vir atrás de mim, ignorando minha ordem, mas de
repente parou onde estava com os punhos cerrados, a mandíbula rígida e o
queixo erguido, percebi que lutava consigo mesmo.
Eu entendia a sensação.
Ele até podia me agradecer quando o encantamento fosse embora, que
não o fiz se sentir obrigado a ficar comigo por pena ou culpa.
Um lado meu, aquele que eu temia, se sentia vitorioso por fazê-lo
experimentar algum tipo de emoção. Mesmo que fosse raiva, que estivesse
frustrado com minha recusa de voltar para ele como um cachorrinho. Mas
não mudei de ideia e me forcei a não olhar para trás quando saí de lá.
“Corra e conte a todos os anjos
Isso pode levar a noite toda
Acho que preciso de um diabo para me ajudar a acertar as coisas
Estou procurando no céu algo para me salvar
Procurando por algo que possa me ajudar a acender o brilho
Estou procurando por complicações
Procuro porque estou cansado de mentir”
FOO FIGHTERS, LEARN TO FLY
— Agente Konstantinova! — A voz de Stark me pegou desprevenido.
Olhei para frente onde a equipe de cinco agentes nos observa em silêncio e
limpei a garganta.
— Senhor?
— Precisa de uma água? — Seu sarcasmo me fez perceber que falava
comigo há algum tempo, e o desagrado devia-se ao fato de que eu não estava
prestando a mínima atenção no que dizia.
— Não, senhor.
— Então foque no aqui e agora. — Eu parecia uma criança sendo
repreendida pelo pai, mas acenei e permaneci em silêncio.
Ele me observou por alguns segundos, os olhos sérios e intrigados, antes
de voltar a falar:
— O primeiro comboio vai parar na rodovia 3, o segundo seguirá à leste
da fronteira e assim que o controle der o sinal, vocês seguirão em
frente. — Stark explicava a missão aos integrantes, apontando no quadro à
frente o esquema de como tudo funcionaria. — O agente Demeron será o
superior de vocês, portanto, vou deixá-los absorvendo todas essas
informações e passarei alguns detalhes para ele. Preparem-se, vocês vão
viajar em dois dias.
Os cinco saíram e eu segui atrás, mas antes de alcançar a porta, Stark me
chamou de volta.
— Sim, senhor. — Ajeitei a postura e o fitei nos olhos.
— Você tem estado meio fora.
— Minha cabeça está completamente focada.
Erguendo as sobrancelhas, ele chegou mais perto e colocou as mãos nos
bolsos da calça social. Era da minha altura, nossos olhos tinham a mesma cor
e os cabelos, antes que eu precisasse pintar, também.
— Não é o que parece. Seus relatórios na última semana estão em baixa
e recusou uma missão importante.
— Sim, eu não estava muito afim de me enfiar no Alasca por duas
semanas.
Stark sorriu, mas era um sorriso que eu conhecia bem. Segurou meu
ombro e me levou até a janela de sua sala, onde tínhamos uma
vista privilegiada de Berlim.
— Filho, você não tem que estar afim. Tem que estar disposto, a postos
e preparado. Se eu te dou toda a carga e trabalho que dou é porque confio em
você e acho que é o melhor.
— Regnar também é bom.
— Regnar tem uma esposa e uma filha.
— A esposa dele poderia muito bem acompanhá-lo e a filha pode ficar
com Angelina.
O sorriso foi embora e ele suspirou.
— Gosto daquela garota... Onira. Nunca ninguém causou tanta confusão
em minha família como ela, mas se soubesse que ela te deixaria assim jamais
teria permitido essa missão.
Cada osso do meu corpo ficou tenso com a menção de seu nome.
— Ela não me deixou de jeito nenhum. Como você mesmo disse, foi
uma missão, e como sempre eu a cumpri. Estou perfeitamente dentro do
jogo.
Stark não parava de me encarar, analisou meu rosto lentamente, parecia
ler cada pensamento meu. Na verdade, eu sempre tive a impressão de que,
mesmo rígido, meu pai não perdia nenhum detalhe de mim, Regnar e
até Siriu. Ele sempre estava perto, aparecia quando menos esperávamos, e
sabia exatamente o que fazer em todas as situações que podiam surgir.
— Naya ainda mantém contato com ela.
— Stark...
— Pai. Eu sou seu pai, Demeron. — Incomodado com meu silêncio, ele
balançou a cabeça. — Nunca pensei que teria que dar conselhos de
relacionamento, coração e essas bobagens aos meus filhos.
— Não há motivos e nem razão para fazer isso. Regnar está casado e eu
não pretendo abrir meu coração para nada além do trabalho.
— Se você diz...
— Posso ir?
— Filho...
— Eu. Posso. Ir?
Resignado, ele assentiu. Ia falar novamente, mas saí de sua sala antes
que pudesse dizer mais alguma coisa.
Passei as mãos pelos cabelos, engolindo em seco. Fazia exatamente uma
semana e um dia que não a via. Precisava voltar a minha sala e conferir se ela
estava em casa ou no ateliê.
Mas era apenas para garantir que estava bem.
Passei por todos de cabeça baixa até chegar ao elevador, evitando
qualquer possível conversa, e fui direto para minha sala. Mas, meu sossego
estava longe de estar lá, ainda mais com Regnar sentado em minha cadeira
com as pernas cruzadas em cima da mesa e olhando o notebook. Eu sabia o
que ele estava assistindo e isso me enfureceu como nunca.
— Saia da porra da minha sala. — Fechei o notebook com uma batida
que ecoou pela sala, e ele riu.
— Acalme-se, irmão. Fiquei sabendo que andava mais estressado que o
normal e vim te ver.
— Você não é bem-vindo, agora saia.
— Me responda uma coisa...
Puxei uma longa respiração, pedindo aos deuses um pouco de paciência.
Mas, era difícil, eu mal conhecia aquele termo.
— Sairá se eu fizer isso?
— Sim.
Cerrando a mandíbula, fechei meus punhos pronto para socá-lo até vê-lo
desmaiar.
— Pergunte.
Aquele sorriso desgraçado que não saía de seu rosto me irritava mais do
que sua voz, mais do que a própria presença ali.
— Você ficou mais nervosinho me vendo assistir sua japonesinha, ou
quando me pegou fodendo sua mulher aqui na sua sala?
Passei os últimos anos ouvindo provocações sobre a traição de ambos e
por costume, já ia começar uma luta, mas para minha completa surpresa... me
peguei refletindo em suas palavras. Como se percebesse isso, ele riu,
gargalhou.
— Caralho, você finalmente se apaixonou. Demeron Konstatinova é um
soldado derrubado.
— Não fale besteiras — rosnei, franzindo o cenho e ainda pensando.
— Irmão...
— Não me chame assim.
— Ora, pelos deuses! — Revirou os olhos. — Por quanto tempo mais
continuaremos com isso? Você com essa raiva perpétua, eu dormindo com
uma louca vinte e quatro horas por dia alcoolizada. Você fingindo que se
importa e eu me mantendo a longe para que você não perca o resquício de
sanidade que te resta. Foram anos, Demeron, já passou.
— Não interessa se ela era só uma missão. O fato de estar comprometida
comigo e você, o meu irmão tê-la comido pelas minhas costas é tudo o que
importa.
— Então eu deveria ter avisado? Pedido permissão? Você pouco se
fodia para ela!
— Não interessa, porra! — Bati o dedo em seu peito, àquela altura
estávamos quase berrando. — Enquanto estivesse comigo, você não deveria
ter tocado nela.
— Você a deixava trancada na mansão e saía para foder por aí, seu filho
da puta! Ela encontrou consolo na bebida e se eu não tivesse aparecido, nem
estaria viva hoje! E quer saber do que mais? Você nem ligou que nós
fodemos, só ficou ofendido demais pelo seu ego de supermacho. Talvez eu
devesse trepar com a japonesinha, assim você acorda e para de fazer merda.
Meu punho virou direto em seu nariz, arrancando-lhe um gemido e uma
risada.
— Filho da puta. — Ele devolveu o murro, rasgando meu lábio. — Isso
te incomoda, não é? Pensar em mim em cima dela, ela gemendo o meu nome,
soluçando de prazer embaixo de mim...
Fechei os olhos com força, respirando como um touro descontrolado.
— E sabe por que isso te incomoda? Porque ela não foi só uma
missão. — Ele riu de novo. — E enquanto você está aqui prestes a me dar
uma bela surra, ela está saindo com o perfeitinho Kurton Ward.
Congelei a meio passo, deixando as mãos caírem.
— O que você disse?
Regnar enfiou a mão no bolso e me jogou uma chave. A chave de sua
moto.
— Você ouviu bem, tire o dedo do meio do seu rabo e vá atrás dela,
porque eu te garanto, Kurt vai dizer tudo o que ela precisa ouvir agora e não
importa que por algum motivo insano ela te ame... ela não vai voltar para
você.
Os olhos idênticos aos meus estavam sérios, mesmo que ele continuasse
sorrindo.
— Por que está fazendo isso?
— Isso o quê?
— Me... aconselhando. — A palavra tinha um gosto estranho na minha
boca, amargo.
Ele deu de ombros.
— Só garantindo que você fique ocupado com alguém o suficiente para
nunca querer Kaladia de volta.
— Você é um psicótico completo.
— Somos irmãos, é de família. — Ele abriu a porta e saiu, mas antes me
fitou por cima do ombro — Ah... e traga a porra da minha moto inteira.

Devo ter batido todas as placas de velocidade, todos as sinalizações e


faróis. Foda-se.
Depois de Regnar sair, só me dei tempo de rever as filmagens das
câmeras e depois de procurar minuto por minuto, assisti Kurton indo buscá-la
pela câmera da porta principal de Slom Ward.
Vi vermelho sangue, imaginando mil formas de acabar com a vida do
desgraçado. Desconhecia as sensações, a fúria que tomava minha mente e
fazia-me agir como um lunático, o que era aquilo?
Inferno! Estava começando a achar que, mais uma vez, a ideia de ter
uma mulher que foi minha por um tempo, ser tocada por outro, me
incomodava. Era simplesmente meu orgulho falando alto demais. Mesmo
nessa constatação, pesquisei a placa do carro de Ward e encontrei em um
restaurante no centro de Berlim, a quinze minutos da Konstantine Business,
mas cheguei em nove.
Durante todo o percurso que pareceu durar uma vida, tentei acalmar
minha mente, mas foi em vão. Disse a mim mesmo que ia apenas conferir se
ela estava em segurança e a deixaria, e só então cuidaria do meu grande
problema.
Kurton Ward.
Saber que eles tinham uma história era o pior.
Só que quando estacionei e entrei no lugar sofisticado, toda a minha
conversa sobre agir no controle das minhas novas emoções foi para os
quintos dos infernos.
Uma possessividade estranha me dominou, algo que nunca senti, mas foi
despertada pela visão de ela e Ward sentados frente a frente, sorrindo um para
o outro e segurando as mãos.
Foda-se.
Maldito perfeitinho de merda.
Minhas mãos coçaram para tirar a arma da cintura e enfiar uma bala no
pau e depois na cabeça dele.
Mas não fiz isso. Ao contrário, fiz meu caminho em linha reta para ela e
a levantei pelos braços, ouvindo seu grito de surpresa e segurando os cabelos
da nuca com firmeza, a beijei com força, sentindo uma ardência leve em meu
lábio cortado, mas não havia nenhuma maneira de ser delicado e nem
suave, mas ela não se importou. Não me socou e nem me bateu como fazia
quando eu a tirava do sério. Me conheceu assim, bruto, direto, e sabia que
não existia uma única veia delicada em meu corpo.
O animal em mim queria deixar claro e marcado para Kurton e todos os
outros homens da face da Terra que o único maldito a tocá-la, seria eu.
“...me beije debaixo do luar
deixe-me traçar as linhas em seu coração tatuado
Porque você me tem
E vou te mostrar como quero estar em seu coração tatuado”
ARIANA GRANDE, TATTOOED HEART
— Não posso dizer como estou feliz que tenha aceitado o meu
convite, Oni.
— Viemos como amigos, e sou muito grata pelo que fez por mim nas
últimas semanas.
— Imagina. Freya tem se adaptado, tenho certeza de que logo ela se
lembrará de como é conviver nesse mundo louco.
Eu sorri para Kurt e fizemos nossos pedidos. Sabia que suas intenções
comigo não eram puras e inocentes, mas ia deixar isso claro para ele
conforme evitasse seus avanços. Infelizmente não pude escapar daquele
almoço, afinal, estava muito grata.
Eu o conhecia como um completo cafajeste e essa opinião não havia
mudado, também não confiava nele e em seus negócios que, por muitas
vezes, já vi Slom questionando das vias que vinham, mas quando ele me
ligou dizendo que tinha um emprego para a minha amiga, não pude recusar
voltar a ter contato.
A história que contei a Slom e, também para ele, era que Freya foi uma
amiga que reencontrei na Tailândia, e ela havia tido um acidente que deixou
sequelas, inclusive que ela havia meio que nascido de novo, pois perdeu
completamente sua memória. Não sabia nada sobre o mundo.
Difícil foi fazer Freya entender o porquê ela precisava mentir.
Ela nem sabia o que era Tailândia ou acidente, então eu me sentei ao seu
lado como se fosse uma criança pequena e expliquei palavra por palavra, até
que entendesse pelo menos o básico do que precisávamos fazer: construir
para ela uma nova vida. O primeiro passo era ganhar sua independência, ela
não entendia isso, mas eu queria que ela começasse a ter suas próprias coisas.
Tinha ido até o meu ateliê sozinha quatro dias antes e disse que não queria
voltar para a mansão dos Konstantinova. Quando eu perguntei o porquê, não
quis contar.
Mas, eu tinha uma suspeita do que poderia ser, já que surgiu uma
imagem de Siriu passou na TV e ela travou completamente, se fechando e
não falando absolutamente nada até cair no sono.
Ela não queria falar nada e no dia seguinte foi como se o episódio nem
tivesse acontecido, mas se o desgraçado tivesse feito algo para ela, ia se
arrepender quando eu descobrisse.
Depois disso, Kurton me ligou e disse que Slom havia contado o que
aconteceu, que ficou profundamente tocado e perguntou se podia ajudar de
alguma maneira. Eu passei horas e horas explicando a Freya o que era um
trabalho e como funcionava, e ela concordou em conhecer Kurt e saber o que
ele poderia lhe oferecer.
— Devo ajoelhar quando ele chegar? — Ela tinha perguntado.
— Não. Permaneça sentada. Eu vou estar do seu lado o tempo todo.
Me lembro de ela ter ficado calada por alguns minutos, mastigando os
lábios e depois sorriu para mim.
— Se tudo der certo, darei prazer a ele com minha boca!
Na hora que ela disse aquilo, eu quis desmarcar com Kurt e trancar
aquela menina em casa, protegendo-a do mundo e impedindo que qualquer
um chegasse perto, mas não podia ceder a essa vontade.
Ela precisava aprender a viver. E eu sempre fui paciente, lhe disse a completa
verdade: estarei ao lado dela o tempo todo.
— Slom me disse que estão planejando mudar o endereço do
ateliê. — Kurt comentou enquanto servia nosso vinho.
— Ainda estou pensando. No fim a decisão não é só minha, então nós
duas ainda temos muito a conversar a respeito.
— Sabe que se precisar posso indicar os melhores locais de Berlim, não
sabe?
Os intensos olhos cor de carvão me analisavam, ele não parava de me
dar aqueles olhares escorregadios e os sorrisos cheios de charme.
— Não sei se continuaríamos em Berlim.
— Onde quer se aventurar agora? Munique, Hamburgo...
— Pensei em Milão ou Veneza.
Ele parou o copo no caminho da boca e franziu o cenho.
— Quer ir embora do país?
Bebi o vinho, pensando numa boa resposta.
— Acho que seria o melhor.
— Tudo por causa do Konstantinova?
— Não, não apenas por ele. Às vezes penso que não tenho raízes, quero
me mudar e conhecer novos lugares, buscar novas inspirações.
Ele se inclinou e pegou minhas mãos, dando um aperto.
— Não precisa ir embora para se inspirar. Meu jato está à disposição
quando você quiser fazer um bate-volta na Itália, Londres ou Buenos Aires.
Foi inevitável não sorrir para ele.
— Sei que está preocupado que eu leve Slom para longe, mas talvez
possamos até manter o ateliê de Berlim aberto e ela fica aqui.
Ele me devolveu um sorriso deslumbrante.
— Você poderia ficar também, Oni.
A resposta estava na ponta da língua, mas só tive tempo de ver um vulto
se aproximando e depois fui levantada, meus lábios tomados sem nenhuma
delicadeza bem ali, no meio de um dos melhores restaurantes de Berlim.
Fiquei travada no primeiro segundo, olhos arregalados, mas então como
se presa em um encanto, além de reconhecer o rosto, ao sentir aquelas mãos
me segurando com tanta força, meus olhos fecharam e meus lábios abriram
involuntariamente para recebê-lo.
Que saudade daquele cheiro... do gosto... do toque.
Fui levada de volta para a nossa primeira vez juntos, de como
usou aquela mesma força para me dar tanto prazer, de quando me adorou em
minha cama na noite que lhe disse sim. Aquele fatídico sim que deu início a
toda nossa história.
A língua faminta passeava por cada canto da minha boca, os dentes
mordiam meus lábios e as mãos começaram a me apertar. Eu já estava mole,
pronta para arrastá-lo em qualquer canto e exigir que terminássemos aquilo
direito, mas um pigarreio me acordou.
As vozes, a música ambiente do restaurante e os talheres encostando nos
pratos.
O pigarreio de Kurton.
A contragosto, empurrei o peito de Demeron tentando tirá-lo e afastar
nossas bocas, mas ele imediatamente segurou meu rosto, afastando-se apenas
alguns centímetros para me olhar nos olhos.
— Liebe...
— O que está fazendo? — sussurrei. Tentei virar o rosto, mas ele
apertou mais, me impedindo.
— Não olhe para os lados, olhe para mim, mantenha seus olhos só em
mim.
— Por quê?
— Porque assim você não terá tempo de pensar ou considerar outras
opções. — Me beijou bem de leve. — Tenho um pedido a fazer.
— O-o quê? O que você quer?
Minha voz estava falha, eu nem podia raciocinar. Ele tinha razão.
Enquanto ficasse olhando para os dois pedacinhos do céu que eram seus
olhos, não conseguiria pensar direito. Ele tirava meus pés do chão com um
único beijo.
— Me deixe te contar uma última coisa. Te mostrar.
— Eu... eu não sei.
— É por ele? Você o quer?
— Ele é um amigo e...
— Se você quiser tê-lo, não poderá. Vou acabar com ele e com qualquer
outro cara que chegue perto. — Seus olhos inquietos iam de um canto ao
outro do meu rosto, como se estivesse desesperado. — Não entendo o que
está acontecendo, apenas sinto uma vontade louca de matá-lo. O que é isso?
O que você fez comigo?
Ele era uma tempestade. Me apavorava com seus raios e trovões e
acalmava meus pensamentos conturbados com seu barulho no telhado.
Molhava tudo ao redor, bagunçando, tirando a ordem, mas depois voltava
para limpar a sujeira.
Ele era um completo caos, mas era a minha calmaria também.
Contra todas as probabilidades, como poderia não ir com ele?
— Tudo bem — falei baixinho.
Ele assentiu, soltando um suspiro de... alívio.
Então, sem me dar tempo de me despedir de Kurt ou até olhar para ele,
me levou para fora, ignorando meus pés bambos e me mantendo firme com
um braço na cintura. Pegou minha bolsa e casaco no hall e praticamente me
carregou para fora.
Fomos recebidos com um vento frio e continuamos andando até a
esquina, onde havia a entrada de uma rua sem saída.
Ele parou em frente a uma moto preta e jogou a perna por cima,
enfiando a chave para ligá-la. Como se não pudesse ficar ainda mais bonito,
me olhou e estendeu a mão.
— Tire os sapatos, segure-os com você e passe os braços em volta da
minha cintura.
— Demeron, o que...
Vendo minha hesitação, ele desceu e veio até mim.
— Você quer que eu mate Kurton?
— O quê? Mas é claro que não!
— Então me tire daqui, liebe. — Passou a pontinha dos dedos do meu
pescoço até os lábios. — Me tire daqui.
— O que você sente por mim?
— Eu não sei. Queria te dar uma resposta, dizer palavras bonitas que
você quer ouvir, mas a verdade é que não faço ideia do que são as coisas que
estou sentindo, que estão passando em minha cabeça.
O rosto franzido me deixava ver que sua confusão era verdadeira, ele
estava perdido no que sentia. E mesmo que eu quisesse saber quais eram
aqueles sentimentos, conversar na rua não era o melhor lugar.
Decidindo num impulso obedecer ao que pediu, tirei os sapatos e subi na
moto devagar, com calma para não cair do outro lado. Demeron colocou um
capacete em mim e apertou meus braços em sua cintura. Eu queria espalmar
minhas mãos no peito duro, mas os saltos impediram o movimento.
— Segure-se, liebe.
Soltei um gritinho quando saímos do lugar e em segundos estávamos
praticamente voando pelas ruas, ultrapassando os carros e deixando poeira
para trás. A sensação era maravilhosa. O vento em meu rosto e cabelos, o
único barulho a ser ouvido era o da moto e, principalmente... estar amparada
por ele.
Não sabia o que aconteceria depois dali, mas segurei firme e fechei os
olhos.
“Aqui estamos nós, não vire as costas agora
Nós somos os guerreiros que construíram esta cidade
Do pó”
IMAGINE DRAGONS, WARRIORS
Irritado, bati a porta do carro e joguei meus óculos escuros no banco. O
maço de cigarro estava vazio, o que me irritou ainda mais.
— Senhor?
— O que é, Mic?
— Para onde vamos?
Fitei meu motorista e segurança e voltei meus olhos para a rua.
— Vá para minha pista de pouso. Tenho uma reunião com os Kings.
Ele assentiu e dirigiu silenciosamente. Ainda bem. Meu último braço
direito não sabia a hora de ficar calado e isso acabou muito ruim para ele.
Peguei o celular no bolso do paletó e deslizei a tela de bloqueio, vendo
uma foto tirada há muito tempo. Meu sorriso naquela curta época tinha nome
e sobrenome.
Onira Tieko.
Na foto, ela me pegou desprevenido, rindo de alguma piada que ela
tinha feito, estava deitado numa rede da minha ilha particular e curtindo as
primeiras férias que me permiti ter em anos de trabalho. A levei comigo, pois
depois de tanto ouvir minha irmã falar sobre sua amiga, a conheci e fiquei
fascinado. Era uma mulher linda, inteligente, talentosa e sensível.
Fui seu primeiro amor e seu primeiro homem.
Enquanto estávamos na ilha, isolados do mundo, me permiti imaginar
coisas, talvez um futuro, mas só durou tempo o suficiente de receber uma
ligação que me acordou para a realidade, lembrando-me que trazê-la para o
meu mundo era o mesmo que pintar um alvo em suas costas.
Fechei os olhos, controlando-me parar não deixar que as imagens de
poucos minutos atrás despertassem uma fúria em
mim. Demeron praticamente arrancando Onira do meu alcance quando eu
estava quase a tendo de volta.
— Chegamos, senhor.
— Espere lá fora.
Contei exatamente cinco minutos antes da porta ser aberta
e Dutch entrar. O homem me deu um aceno curto e acendeu um cigarro,
percebendo que eu estava sem, me ofereceu.
— Como foi seu voo? — perguntei, aceitando o cigarro.
— Para a infelicidade de meus inimigos, não caiu. Então estou bem.
Dei-lhe um sorriso torto, gostava do humor dele, fazíamos negócios há
um longo tempo e nunca tivemos problemas.
— Rezemos para que o carro não exploda durante o caminho também.
Dessa vez foi ele quem riu.
— Pelo que me foi dito, Alemanha é o lugar mais seguro para nos
reunirmos, por isso nos locomovemos para cá.
— Sim — confirmei. — Mas, estatísticas mudam o tempo todo, é
sempre bom ficar atento.
— Por isso eu digo, meu caro Ward, que só teremos um sono tranquilo
quando exterminarmos todos os nossos inimigos.
— Se nossos inimigos estiverem mortos, o jogo perde a graça.
— Tem razão, garoto. Tem toda a razão.
Não adiantava exigir que não me chamasse de garoto. Quando assumi os
negócios ainda jovem, ele já era presente e dizia que sempre ia me ver como
aquele menino que precisou vestir as calças de homem da casa cedo demais.
— Os italianos vão vir?
— É claro. Assim como Juan Carlo.
Dutch riu.
— Ótimo! Estou ansioso para ver mais uma briga de hormônios das
duas mocinhas.
Sorrindo de sua provocação, bati no vidro sinalizando que Mic podia
voltar. Dutch lhe deu um olhar rápido e subiu o vidro escuro entre o motorista
e nós dois.
— O cara novo é confiável?
— Ainda estou testando, mas parece ser. Foi das forças armadas nos
Estados Unidos e veio passar um tempo, buscando empregos novos.
Dutch bufou, apagando o cigarro quando entramos numa rua principal
movimentada do centro de Berlim.
— Isso é balela.
— Talvez, mas se for, irei descobrir. Se ele está trabalhando para mim,
sabe que se fizer qualquer merda, se arrependerá.
Seguimos em silêncio até o destino. Evitávamos falar sem estar em
determinados lugares, nossos assuntos eram mais do que sigilosos e se os
ouvidos errados sequer sentissem nosso cheiro, causaria uma montanha de
problemas e contratempos que nem eu e nem Dutch gostávamos de lidar.
— Olhe só a garotinha de Stark — disse ele, rindo e apontando para
fora.
Entediado, ainda levemente irritado, olhei para onde apontava e a vi. Em
um enorme telão, passava um clipe musical de uma garota dançando com um
grupo atrás dela. Ela sorria, dançava e cantava, e na rua, as pessoas paravam
para ver, cantavam junto com ela. Surpreendi-me ao ver algumas até
chorando.
— Quem é?
— Naya. Afilhada e protegida de Stark.
— É mesmo?
Eu já tinha ouvido algo sobre ela, sobre a menina dos olhos
de Stark Konstantinova, mas nunca me atentei.
— Uma delícia, se você me perguntar.
— Sim e provavelmente tem a idade de suas filhas — apontei o óbvio.
— É sempre a filha de alguém, Ward. Eles comem as minhas e eu como
as deles.
Ignorando-o, voltei a fitar Naya enquanto o carro continuava parado
pelo trânsito que a imagem dela causava e observei melhor. Os olhos eram
incrivelmente azuis, a pele bronzeada, e os cabelos negros como a noite. Era
pequena, mas mexia aquele corpo sarado com uma desenvoltura que me
impressionou e impressionou meu pau também.
Ela ficou de costas, colocou a mão livre na bunda e rebolou até quase
encostar no chão, olhando para trás, diretamente na câmera, diretamente para
mim.
Baby.
Foi a única coisa que me atentei a letra da música repetitiva e
provocante.
Bem, Naya... protegida de Stark.
Eu vou foder você.

A boate estava vazia, era meio do dia e só abriria dali a algumas


horas. Deixei Mic esperando no carro e Kirina nos recebeu com sua simpatia
de sempre, dispensando dois funcionários que estavam ali e o segurança da
porta. Ela sabia que precisaríamos de privacidade total.
— Olha quem deu o ar da graça — disse assim que viu Dutch — Olá,
papai.
Ele a abraçou, dando um beijo em seu rosto.
— Como vai, menina?
— O mesmo de sempre. Chegou agora? Eu disse que ia te buscar no
porto.
— Ward já estava no caminho. Como está sua irmã?
— Bem, Blair pergunta de você sempre.
— Diga a Kaladia que estou em Berlim e quero ver a minha neta —
pediu, sorrindo.
— Vou avisá-la. Venha jantar em casa antes de ir embora.
— Eu vou, contanto que você não cozinhe.
Ela revirou os olhos. Virou para mim e acenou.
— E aí, Ward. Vai querer algo?
— Olá, Kirina. Que tal uma dança particular?
Ela riu e eu pisquei um sorriso brincalhão. Dutch não achou engraçado.
— Flerte com a minha filha na minha frente outra vez e vou ensiná-lo
uma lição.
— Pensei que você podia comer quem quisesse, já que podiam comer as
suas filhas.
— Isso só se encaixa se eu for comer a sua irmã.
Kirina riu, apoiando-se no ombro do pai.
— Se minhas virtudes já acabaram de ser discutidas, vou me retirar.
— Que virtudes estão em discussão? — Uma voz bem conhecida falou
vindo em nossa direção e eu olhei para ver Luigi DeRossi entrando.
Ele tirou os óculos escuro na metade do caminho e desfez o botão do
terno, sorrindo abertamente.
— Sempre pensei que virtudes dentro de um bordel fosse proibido, mas
você sempre se supera, Kirina.
Ela riu e foi direto para ele, abraçando-o.
— Quando se trata de mim nada é proibido, você sabe disso.
Ele segurou as mãos dela e deu um beijo em cada uma, depois se
afastou.
— Bem, não posso dizer o mesmo. Agora sou um homem
completamente proibido.
— A italiana te laçou mesmo, hein?!
Ele piscou, rindo.
— Que nada, eu que a lacei. Aquela ali foi difícil.
— Saudade de você, Luigi DeRossi, apareça mais vezes. Traga a sua
esposa.
Ele gargalhou alto.
— Amor, existem poucas mulheres que gosto nesse mundo, você
realmente quer que eu coloque duas delas no mesmo espaço?
— Tenho certeza de que ela aproveitaria a festa.
— Já chega, Kirina. — Dutch declarou. — Vá para sua casa, vou
encontrá-la mais tarde.
Como uma criança birrenta, ela concordou. Kirina tinha uma
personalidade diferente de qualquer mulher que já conheci. Ela brincava com
todos, mas sabíamos que ninguém conseguia realmente alcançar o coração da
ruiva. Ela teve um passado difícil, e agora vivia a vida que derramou sangue
demais para conquistar. Nós a respeitávamos na mesma medida. Era
totalmente livre de amarras, sem nenhum pudor, mas também respeitava as
pessoas com quem convivia e todos nós sabíamos que aqueles flertes com
Luigi não passavam de brincadeiras.
Afinal, qualquer pessoa com olhos e ouvidos nos lados obscuros dos
países, sabiam que Anita DeRossi tinha um lado psicótico quando se tratava
de seu marido. Assim como ele tinha por ela.
Ela ia saindo e deu de cara com Lucca DeRossi e Dante. Ambos
acenaram brevemente, e diferente da liberdade que tinha com Luigi, ela foi
mais contida com os dois, apenas devolveu o aceno e saiu, dizendo que
ficassem à vontade.
Luigi finalmente veio até nós e apertou a mão de Dutch, depois a
minha.
— Como vai sua irmã? — Luigi perguntou, sorrindo.
— Como vai sua esposa? — devolvi, com um sorriso que competia com
o seu.
Ele fechou a cara na hora. Ele podia suportar uma mulher insinuando
fazer uma festinha com Anita, mas um homem...
— Perguntei com genuína preocupação, Ward — declarou ironicamente.
— Faremos assim... você não fala da minha irmã e eu não falo da sua
esposa.
Luigi riu.
— Está doidinho para conhecer minhas facas, não é?
— Já chega — disse Lucca, mal tinha chegado e já estava enchendo um
copo de whisky, sem se preocupar em cumprimentar ninguém.
Dante começou a fazer sua varredura, observando tudo em silêncio,
como sempre fazia.
— Você não está na Itália, DeRossi. — Stark de repente apareceu,
saindo por uma porta dos fundos da boate. — Não se esqueça.
— É uma ameaça?
— É um lembrete que ninguém fala mais alto que ninguém aqui.
Lucca sorriu e até eu sabia que aquele sorriso nunca era boa coisa.
— Naya esteve em Roma semana passada, lhe fiz uma visita.
O nome da americana protegida por Stark atraiu a minha atenção, e fitei
Lucca, interessado em saber se estava provocando ou realmente foi atrás da
garota.
Stark começou a ir até ele e nisso, Dante ficou no meio dos dois.
— Cavalheiros... podemos apenas dessa vez tentar pular o show inicial e
ir direto ao ponto?
O tal show inicial era o mesmo de sempre. Quando os Kings foram
fundados, ninguém disse que seria fácil, afinal, você não pode colocar chefes
de todos os tipos numa sala para coordenar situações ao redor do mundo e
esperar que fosse pacífico.
Stark tinha o controle de todas as cabeças do governo, a Liga era
descrita como uma sede governamental, mas quem conhecia, sabia bem que
quando era preciso, Stark mexia coisas por debaixo dos panos para conceder
favores e cobrar alguns também.
Dutch comandava o tráfico na Rússia, e estreitou relações com a
Alemanha quando suas duas filhas em situações trágicas, acabaram presas
aqui.
Os três italianos eram chefes da máfia, e eu precisava admitir, fazer
negócios com a Cosa Nostra foi vantajoso para todos nós.
Juan Carlo foi um acréscimo mais do que bem-vindo, afinal, podíamos
ter favores e chantagens para barganhar com políticos, mas ter um presidente
tão influente como ele e disposto a qualquer coisa para permanecer no cargo
foi bom demais àquela altura.
E eu, bem...
— Ótima ideia. — Intervi. — Ter todos nós no mesmo lugar é arriscado,
não vamos estender isso.
Mais uma vez a porta do corredor foi aberta e dessa vez Juan Carlo
entrou. Falava no telefone e se sentou numa poltrona, tomando seu lugar
primeiro do que nós.
— Aya — rosnou. — Não me faça voltar em casa... Foda-se, eu não me
importaria nem se ele fosse a porra do Papa... Aya... Não! Aya? Filha da
puta! — Desligou o telefone e o jogou em cima da mesa. — Caralho!
Ele levantou-se e foi até onde Lucca estava, tirando a garrafa de sua mão
e bebendo direto na boca. O italiano estreitou os olhos no desafio.
— Mulher teimosa dos infernos! Por que porra eu me casei de novo?
Inferno!
— Conheço a sensação. — Luigi murmurou, sentando-se.
— Você sabe que existem mais seis pessoas que iam beber dessa
garrafa? — Dante reclamou.
Juan franziu a testa e largou a garrafa em cima da mesa, sentando
novamente.
— Peguem as garrafas de vocês. Eu não tenho tempo, vamos começar
essa porra.
— Se você não consegue controlar sua esposa, fique em casa como o
cachorrinho dela, mas não venha até aqui para descontar sua merda em
nós. — Foi a vez de Lucca falar.
Eu peguei minha própria garrafa e me sentei, brindando com Luigi num
olhar silencioso. Ambos sabíamos que colocar Lucca e Juan na mesma sala
era pedir para ter problemas.
— O que você sugere para que eu acalme a minha mulher? Aponte uma
arma para a cabeça dela?
— Eu diria que é uma boa solução, se for resolver. — Dutch comentou,
rindo.
— Parece resolver com dona Abriela DeRossi. — Stark brincou.
O olhar de Lucca se tornou assassino e em um segundo, ele estava em
cima de Stark.
— Respeito você e gosto dos negócios que fazemos juntos. Mas, se
voltar a falar na minha esposa, vou levar Naya e sua neta também, e não
haverá um sobrenome da famiglia que te dirá onde elas estão.
Stark sacou a arma e eu bebi um gole maior, sabendo que quando
puxavam armas uns para os outros, demoraria ainda mais.
— Que porra está acontecendo aqui? — Dessa vez foi Siriu, e ele entrou
tão silencioso que não ouvimos nem a porta batendo e nem seus passos se
aproximando.
Ele fitou Lucca e Stark com olhos sérios.
— Podemos começar ou vocês vão querer mijar pela boate inteira?
Lucca deu um sorriso a Stark.
— O aviso está dado.
Todos nós nos sentamos. Tensos e incomodados. Como sempre.
— Eu começo. — Juan jogou uma pasta em cima da mesa. — O
contrabando de vocês pelo meu lado do Pacífico Norte está me dando
prejuízo. O cruzamento com o Pacífico Sul é caro, e o pessoal do Chile está
arrancando minhas calças de tanto dinheiro para nos deixar atravessar.
— E o que você quer? — Luigi questionou com as sobrancelhas
erguidas.
— Que vocês limpem a minha bunda com mais euros, porque essa porra
está começando a ficar cara para mim.
Lucca se inclinou para frente, observando Juan de perto.
— Você quer me foder por trás sem nem lubrificar, mio caro?
A famiglia não gosta de ser extorquida.
Juan sorriu.
— Eu não preciso te extorquir, DeRossi, mas quem está me fodendo é
você, tirando mais dinheiro de mim do que minha esposa faz numa tarde no
shopping.
Dutch gargalhou, levando a cerveja aos lábios.
— Eu avisei que fazer negócios com italianos nunca dava certo.
— É claro. — Luigi devolveu. — Porque vocês russos são um poço de
honestidade.
— Vamos analisar melhor a situação. — Dante, sempre o mais
observador, comentou.
— Se o Chile está querendo mais dinheiro de você, é natural que você
queira mais de nós.
— E o que fazemos? — Luigi perguntou.
— Damos ao Chile uma mensagem. — Dante concluiu.
— Vamos ver se querem mais o dinheiro do que suas vidas. — Lucca
concordou.
— Escute. — Dutch, já levemente embriagado de ter bebido desde a
hora em que acordou, falou. — Você não é o presidente do seu país?
Juan estreitou os olhos.
— Sim, há um mês.
— E está negociando com a Cosa Nostra, a Liga e os chefes do crime da
Rússia e da Alemanha. — Ele gargalhou e apontou
para Siriu. — Até juiz corrupto tem na jogada.
Siriu não era de se importar com piadas e provocações.
— Talvez você devesse ir tirar uma soneca, Dutch — falou
simplesmente. — Está muito emocionado.
— Não, prefiro ficar. — Recostou na cadeira após encher o copo
novamente.
— Então fique, mas de boca fechada.
Eles se encararam por alguns segundos, mas Dutch talvez
reconhecendo que estava na hora de tratar de negócios sérios, recostou em
sua poltrona e voltou a beber, mas ficou quieto.
— Escute — disse Luigi, inclinando-se para Juan. — Está realmente
tendo problemas com Aya?
— Ela é difícil.
— Todas elas são, mio amico.
— Você não conhece a minha esposa, Luigi. Aya faria você andar de ré.
— Então saiba dobrá-la.
— Dei a ela um diamante de setenta milhões antes mesmo de nos
casarmos, acha mesmo que não sei amansar minha fera?
Luigi estava boquiaberto. Eu dei risada, desacreditando que uma
conversa que deveria girar em torno de negócios, estava virando uma terapia
em grupo. Houve um tempo em que eu, Luigi e Juan virávamos cidades de
cabeça para baixo. Mas, um se casou, depois o outro e eu sobrei. Graças a
Deus.
— Bem — disse Lucca. — Você é realmente um otário.
— Não julgo. — Dante retrucou. — Dei a Alessa uma ilha.
— Anita ficou contente com bebês e uma casa enorme.
Eu estava resignado e sentindo um pouco de pena de todos eles.
— Estou feliz por não ter me casado.
Siriu me fitou e ergueu seu copo silenciosamente, concordando comigo.
Nós continuamos discutindo pelas próximas duas horas, e quando o
horário calculadamente planejado bateu, sabíamos que era a hora de ir. Sem
palavras ditas, combinamos de marcar o próximo encontro.
Eu brindei com os Kings e de um em um, com intervalos diferentes,
fomos saindo da boate até que eu fosse o último.
Então coloquei meu copo no balcão e saí. Do lado de fora, voltei a ser
um importante empresário que pagava seus impostos e seguia as leis.
De dia, eu era apenas Kurton Ward, mas de noite, me tornava um dos
Reis do submundo.
“No lugar que sentimos as lágrimas
No lugar para se perder os medos
Nosso comportamento imprudente
Um lugar que é tão puro, tão sujo, tão bruto
Transando e brigando
É nosso paraíso e nossa zona de guerra
Meu inimigo, meu aliado
Prisioneiros
Luz e escuridão
Me segure forte e calmamente
Estou vendo a dor, estou vendo o prazer
Ninguém além de você, além de mim, além de nós”
ZAYN, PILLOWTALK
Eu devia ter desconfiado que íamos para lá, reconheci o caminho, mas
nem me importei de pedir para parar. A verdade é que àquela altura, não tinha
muito que eu pudesse negar. Ele estacionou a moto em frente a linda casa que
me apresentou como nossa meses atrás e me deu a mão para me ajudar a
descer.
Hesitei, porém, no momento em que segurei, ele praticamente me
arrastou para dentro, meus protestos ficaram perdidos ao vento, pois ele ainda
parecia tão descontrolado como quando me levou para longe de Kurton.
— Demeron! — Sendo ignorada, o chamei mais duas vezes, mas na
terceira, minha voz sumiu e sua boca estava na minha.
Houve apenas o barulho da porta sendo fechada com força atrás de nós,
a força de suas mãos segurando o meu rosto, os olhos dele espremidos, me
beijando com uma voracidade diferente de outras vezes no passado. Parecia
querer me engolir, me devorar.
Não tive sequer um vislumbre da casa, ele não me deu tempo para isso.
E mesmo tentando rejeitá-lo de primeiro momento, não havia muito em
mim que quisesse resistir. Sentia falta dele desesperadamente, de seu
beijo, de seu toque, do perfume e das mãos grandes que tinham o aperto mais
firme que já senti. Saudade de tudo o que fazia comigo e todas as formas
como ele me dominava. Existiam questões infinitas por trás de nós, mas
naquele momento nenhuma delas parecia suficientemente boa
para quebrar aquele beijo.
Mas, o beijo cresceu, nossas línguas ficaram mais vorazes e peça por
peça, nossas roupas foram tiradas e espalhadas pelo que deveria ser a sala.
Suas mãos não me deixavam, ora segurava meu cabelo, ora apertava meus
braços e me puxava para ele com uma força que deixaria hematomas no dia
seguinte, mas eu não me importei também. Me sentia tão sobrecarregada e
necessitada quanto ele.
— Não posso acreditar que estava com ele — murmurou e fechou os
olhos com força, suas mãos juntas bateram na cabeça. — Aquele sorriso que
dava para ele, segurando as mãos... inferno! Preciso tirar isso da minha
cabeça.
Fui responder, mas seus lábios colaram nos meus novamente, meus
protestos viraram lamúrias quando sua calça, por fim, foi parar no chão e seu
membro rígido encostou em minha coxa. Me dissolvi em desejos e
vontades, gemi alto e ele também. Não encontrando nenhuma superfície
próxima, me encostou na parede.
— Demeron... — Estava pronta para implorar, mas não foi
necessário, pois ele me invadiu com uma determinação e uma força de aço.
Minhas costas batiam na parede e nossos lábios não desgrudavam.
Agarrei seu cabelo, arranhei seus ombros, o puxei para mais perto
cravando as unhas no pescoço, e foi a primeira vez que estive em seus
braços, com ele dentro de mim, que senti todo o seu prazer.
Fui ao céu, voltei à Terra e desci ao inferno nos minutos em que ele
bombeava fortemente dentro de mim. Lábios inchados, dentes batendo,
línguas entrelaçadas e mordidas por todos os lugares.
Seu pau bateu no lugar certeiro dentro de mim e não escondi meus
gritos, que foram engolidos por ele enquanto também rosnava seu
prazer, batendo ainda mais forte lá dentro, e finalmente se derramou. Mesmo
que eu estivesse trêmula em seus braços, ele não me soltou, me segurou até
que os espasmos diminuíram e minha respiração acalmava.
Eu estava completamente lúcida sobre o que tinha acontecido. Não
haviam reservas. Ele beijou cada canto do meu rosto de olhos fechados, era
como não pudesse acreditar que eu estava ali. O deixei fazer o que quisesse,
aproveitando daqueles minutos e sabendo que algo deveria ter acontecido
para despertar alguma emoção, algum sentimento verdadeiro nele.
— Me desculpe — declarou, com a voz rouca e entrecortada. — Não
fique com ele. Faço o que você quiser, mas nunca mais deixe nenhum homem
tocá-la e nem sorria para eles.
— Demeron...
Ele abriu os olhos, mostrando-me uma chama ardente e tão viva
naqueles pedaços do céu que parei de falar imediatamente.
— Seus toques são meus, seus sorrisos são meus e seus beijos são
completamente meus. Não há outra forma. Não posso mais ficar longe.
O que tenho sentido nas últimas semanas não é normal. O que foi que você
fez comigo?
— Não fiz nada com você — respondi calmamente.
— Não consigo me concentrar, estou recusando trabalhos e agi feito
louco quando soube que estava com o filho da puta do Ward. Nunca senti
nada disso.
Meu próprio coração falhou uma batida.
— O que você sente?
Seus olhos se tornaram frenéticos, não parando em lugar nenhum.
Parecia perdido, confuso e completamente vulnerável.
— Aqui. — Colocou a mão no peito. — Dói. Sinto um aperto, fico
pensando em você o tempo todo. Parece que se não te ver, se não chegar
perto, vou ficar louco! — Fechou os olhos com força. — Pensar que você
poderia estar com outro homem... isso me fez ficar cego. Só conseguia pensar
em chegar até você e tirá-la de perto de quem quer que fosse.
Passei as mãos pelo rosto incrivelmente bonito, sentindo o
formigamento de lágrimas querendo escorrer.
— Eu disse para ficar longe de mim. — Ele abriu os olhos e franziu todo
o rosto, os olhos levemente arregalados. — Mas como posso te mandar fazer
isso novamente se você me ama?
— Eu não sei...
— Não foi uma pergunta, Demeron Konstantinova. Você. Me. Ama.
— Como... — sussurrou — Como você sabe disso? Como sabe disso e
eu não sei?
— Porque sinto exatamente a mesma coisa e amo você. E você não sabe,
porque nunca se permitiu amar.
Havia infinitas formas de amar, e eu sentia que com Demeron, eu estava
aprendendo cada uma delas.
O amor doloroso, o que mente, o que trapaceia, o que finge. Tipos de
amor que enganam e fazem mal. Que agarra na pele e machuca até a alma.
Mas, ainda assim, eu o amava.
Pudera... era um homem divino.
Quebrado. Fraturado. Despido de sua própria alma.
O corpo forte era apenas uma casa para o frágil coração.
Ele estava me demonstrando uma fragilidade que não imaginei que
possuía, uma inocência quase engraçada, perguntando-me como eu tinha
certeza de seus sentimentos por mim. Sempre sonhei que o homem dos meus
sonhos me faria declarações bem planejadas e diria que me amava, mas aqui
estava eu, voltando atrás quando disse a Demeron para me deixar em paz e
explicando coisas do coração para ele.
Demeron engoliu em seco, afastou-se o suficiente para nos separar e
colocou sua camisa em mim, vestindo a calça silenciosamente. Como uma
criança insegura, pegou minha mão e abriu uma porta de correr que dava para
o lugar onde havia me apresentado como o meu estúdio.
Havia apenas um colchão no meio do enorme espaço.
Vendo minhas sobrancelhas erguidas numa pergunta silenciosa, ele
encolheu os ombros.
— Eu só pensei na cama.
— Sério?
— Prioridades.
— Então você já tinha algumas segundas intenções quando foi me tirar
de Ward.
— Não... fale esse nome. Não pelos próximos meses se não quiser ver
uma tragédia acontecer.
Suspirei, soltando sua mão, e sentei na beirada do colchão.
— Tragédias demais já aconteceram. Não posso sequer pensar em mais
uma.
Ele ficou em silêncio por vários minutos, depois se acomodou ao meu
lado e ficamos ambos olhando para o céu do lado de fora. Eu tinha quase
esquecido como a vista era esplêndida. Se tivesse morado ali, com certeza
teria feito esculturas incríveis.
— Siriu não foi quem tomou a iniciativa — falou de repente. — Quando
fui preso eles pensavam que estava trabalhando com Style o tempo todo, que
era um traidor.
— Mas, se ele te deixou para trás, como puderam continuar acreditando
nisso?
— As evidências diziam tudo. Seu irmão me drogou e me deixou lá,
pouco antes de tudo explodir eu saí com ele, então parecia claramente que
entramos com a intenção de plantar explosivos e acabar com tudo. Eles
disseram que Style me traiu e fugiu para que eu fosse o único a ser tido como
culpado.
— De certa forma eles estavam certos — murmurei.
— Sim, estavam, mas eu não queria acreditar que o meu amigo, ou que
eu pensei que fosse um amigo, teria planejado tudo tão friamente. Agora sei
que aquela Kambarys nunca explodiu, já que tanto Kazel quanto Freya
estavam lá e continuam vivos. Me peguei muitas vezes durante o cativeiro me
perguntando o que tinha acontecido. Até tentei me convencer de que Style
acreditava que quando o governo visse que eu não sabia de nada durante as
torturas, iam me deixar livre declarando minha inocência.
— E isso não poderia ter acontecido?
Ele balançou a cabeça, suspirando.
— Fui treinado para me fechar durante tentativas de arrancar
informações. A dor é canalizada e com o tempo, passo a me acostumar com
ela. Eles aplicaram em mim formas de tortura que eu mesmo apliquei em
outros agentes, conheço cada uma delas. Eles achavam que eu sabia de tudo,
mas como castigo por nunca conseguirem me fazer falar, decidiram que me
manteriam lá. Sofrendo dia após dia.
— Até que tudo mudou.
— Sim. Eles precisavam encontrar Style. Siriu estava obcecado com
isso e o governo não tinha nenhuma pista de onde ele podia estar. Queriam
ter colocado as mãos em você muito antes, mas Stark não deixava. Ele jurava
que você nunca soube de nada sobre a vida que seu irmão mantinha, sobre a
verdadeira profissão. E ele conseguiu te proteger durante dois anos, mas
quando eu entrei no jogo, ele não podia mais fazer isso.
Entendi o que ele quis dizer. A partir do momento que ele se envolveu,
ninguém podia me proteger.
— Siriu queria que você fosse intimada e ficasse em custódia até
arrancarmos algo de você, mas a lei não pode infligir os direitos civis dessa
forma.
Ficamos em silêncio porque eu já sabia o restante da história e ela não
precisava ser contada novamente. Se a lei não podia atropelar meus direitos,
Demeron podia e assim ele fez.
— Nunca vou poder dizer o quanto me... arrependo disso. Quando te
levaram...
— Eu estou aqui. — Passei meus dedos pelos traços firmes de seus
olhos e sobrancelha. — Olhe para mim.
— Eu não posso. Não consigo. Quando te olho, volto ao passado e te
vejo lá dentro, lembro-me de tudo o que te aconteceu.
— Ficar se condenando pelo passado não mudará nada. Nós estamos
aqui agora.
— Foi minha culpa. Você estava lá por minha culpa.
— Isso não é verdade. — Respirei profundamente, dizendo cada palavra
com verdade absoluta. — Eu estava destinada a conhecer aquele lugar desde
que nasci. Sei que uma hora ou outra teria ido parar lá, isso apenas foi adiado,
e no fim você me encontrou. Você me salvou.
— Acredito em destino, sempre acreditei. Mas, se não fossem as minhas
escolhas e de seu irmão, você teria ficado longe de tudo isso.
— Você nunca vai entender que me salvou — disse mais para mim
mesma que para ele.
— Como pode dizer isso? Como pode dizer que a salvei quando a tomei
lá dentro, quando sabe que menti. Te avisei que planejava fazer pior e
te usei para completar meus objetivos?
— Nós não estamos juntos para sermos o lembrete doloroso do passado,
mas sim uma forma de conforto para seguir com o futuro. — Beijei seus
lábios levemente, depois o peito e o pescoço. — Você é tudo que eu tenho
agora, tudo o que quero ter.
Ele balançou a cabeça, uma expressão dolorosa assumindo o rosto.
— Você teria gostado de mim antes de tudo.
— Ah, é? Você foi um universitário bêbado que pegava todas?
Decidi fugir do assunto. Estava sendo hipócrita, pois pedia honestidade
a ele, mas vinha escondendo um segredo que afetava a nós dois.
— Não cheguei a tanto. Não fiz faculdade, mas queria ter sido piloto.
— Você podia, ainda pode.
— Estou velho demais para começar de novo. Tenho um divórcio e um
noivado de mentira, uma carreira exemplar cheia de medalhas, muito dinheiro
guardado, mas se me perguntar qual dessas coisas me fez feliz... não consigo
responder. O noivado foi o mais próximo que tive de querer fazer algo para
mim mesmo, porque eu quis me casar com você. Naquela época dizia a mim
mesmo que era para não deixar que você tivesse escapatória, mas hoje
entendo que queria tê-la por perto.
— Não me arrependo de ter dito aquele sim a você.
— Eu sei — suspirou. — Por algum motivo você gosta de mim.
Realmente gosta, e por isso eu sinto muito que não nos conhecemos antes de
tudo. Que eu não te dei essa chance.
— Podemos fazer tudo agora. As coisas serão diferentes.
Decidida a provar que falava a verdade, resolvi tentar algo.
— Tenho muito medo do mar.
Para minha completa surpresa, ele soltou um riso diferente dos poucos
que já havia dado antes. Não era forçado, nem irônico, parecia real.
— E eu te comprei uma casa bem em frente ao mar aberto. Praticamente
em cima.
Dei de ombros com um pequeno sorriso escondido.
— Você não sabia. Mas, não foi algo que me incomodou, aquele tanto
de água lá embaixo.
— Eu acredito nos deuses. Não no seu Deus. Nos deuses que aceitam
minhas ofertas e sacrifícios. Acredito que quando eu morrer irei para Valhala.
Vou brindar com os deuses enquanto o resto de nós está aqui lutando a
grande batalha.
Virei lentamente para encará-lo e dei risada, achando a piada engraçada,
mas para a minha completa surpresa, ele estava sério. Vendo minha
descrença, ele sorriu torto, ainda afetado pela culpa.
— Rezo para Odin, agradeço a ele pela vida. Bebo para honrá-lo e faço
meus trabalhos sabendo que ele me protege.
Eu não sabia o que dizer e isso o fez rir um pouco.
— Está me olhando como se eu fosse de outro mundo.
— Bem. — Tentei me explicar. — É algo... diferente.
— Odin, protetor do Sol e do oceano, defensor da Lua, Pai de Tudo.
Possuidor da sabedoria oculta. Caçador selvagem do céu, regente do inferno
e encruzilhadas. Eu o invoco e peço sua ajuda na grande obra. Hoje busco
com o seu auxílio a sabedoria das runas que estão sob sua proteção.
Fiquei em silêncio, ouvindo o que me parecia uma oração.
— Foi o que pedi aos deuses quando você me disse para deixá-la em
paz.
— E o que eles responderam?
— Odin me protege. Ele sabe dos meus pensamentos e que se você não
voltasse, eu morreria indigno de entrar em Valhala. Então ele a mandou de
volta.
Ele pegou minha mão e deu um aperto forte.
— Não entendo muitas coisas. Nem meus sentimentos e nem meus
pensamentos, mas vou tentar fazer algo certo agora, porque ele te mandou de
volta para mim.
"Seus olhos são os olhos que transmitem tudo que sabem
Que ele é o seu líder
E ele é o seu guia
Juntos na jornada estupenda vocês viajarão"
THE WHO, AMAZING JOURNEY
Eu podia ouvir a voz de Slom Ward mesmo a alguns passos de distância
de Onira.
Ela devia estar gritando do outro lado da linha e eu sabia que era porque
Onira confessou estar comigo. Não sabia o que elas haviam conversado sobre
mim, mas aparentemente o desagrado da melhor amiga de Onira comigo era
bem grande.
Estiquei o lençol no colhão e fechei as portas da casa toda, sem me
preocupar em desviar os olhos dela. Não tinha, porque parecer
desinteressado, ela sabia que no momento em que desligasse a chamada, eu a
faria me contar tudo. Não podia manter meus olhos longe dela. Passei meses
fazendo isso e pretendia não alongar ainda mais aquele tempo nada
agradável.
Ela mordia o lábio inferior e franzia a testa ouvindo os discursos
acalorados da outra e quando vi sua expressão ficar triste, decidi que bastava.
Fui até ela e peguei o celular.
— Onira falará com você em outro momento — falei na linha. —
Adeus, Slom Ward.
Devolvi o telefone a ela e a puxei para mim.
— Você foi extremamente mal-educado.
— Eu não me importo.
— Você precisa aprender a viver em sociedade, Demeron. Meu telefone
é meu e quando estou falando com alguém, você não pode tirá-lo das minhas
mãos para...
Segurei sua nuca com uma mão e a trouxe para perto, beijando-a. Ela
podia reclamar da minha má educação depois, mas eu tinha muito tempo para
compensar depois de tanta distância imposta. Não sabia como ela ainda
estava ali, que tipo de milagre havia acontecido em sua mente, mas nunca
perguntaria o porquê ficou. Não importava.
Balançando a cabeça, ela espalmou meu peito, suas mãos quentes
fizeram-me estremecer, e meu pau já semiereto ficou duro de vez quando
mordeu o lábio inferior e olhou para baixo, descendo seus dedos lentamente
pela minha pele.
— Há algo que senti muita falta de fazer, querido. E como você foi tão
mal-educado com minha amiga, acabei de ganhar o direito de fazer o que
quiser com você.
Franzi a testa, concentrando-me para não gozar na simples visão dela se
ajoelhando a minha frente e levando minha calça junto, livrando meu
membro rijo, pulsante e inchado.
Ela suspirou e me agarrou, dando um beijo na cabeça, que fez minha
excitação vazar. Um simples beijo, que inferno! Foi melhor que qualquer
chupada.
— Senti tanta, tanta falta, amor...
Eu também. Pelos deuses! Só percebi o quanto agora, quando ansiava
pela sensação da boca pequena envolvendo o meu pau.
Acariciei sua cabeça, tirando alguns cabelos da testa.
— Então mate a saudade, liebe.
A pele branca suave ficou levemente rosada e ela sorriu antes de me
obedecer, passando a língua de cima abaixo, dando-me um gosto do que
quase perdi.
Fechei os olhos, mas as imagens dela sendo machucada e daquele
homem quase encostando nela com seus dedos cheios de sangue invadiram
minha mente e por um segundo estive lá novamente, podia sentir o cheiro
da Kambarys, meu mais vívido pesadelo, onde a minha menina era torturada.
Abri os olhos, gemendo quando seus lábios envolveram a cabeça
inchada e ela chupou com gosto, seus murmúrios vibrando pela minha carne
dura e as mãos acariciando onde a boca não chegava.
Me condenei mais uma vez sabendo que todo seu sofrimento era culpa
minha. Da minha fraqueza e minha obediência cega que fez com que aqueles
homens ficassem livres e pudessem alcançá-la.
Segurei seu queixo, olhando profundamente nos olhos marejados e
brilhantes de prazer.
— Isso, liebe... bem assim...
Ela gemeu e se afastou, ainda acariciando com as mãos.
— Faça amor comigo, agora, por favor. Quero tanto sentir você de novo.
Parece que nunca é o suficiente.
Não, nunca era. Eu podia ficar dentro dela a vida inteira. Parecia, na
verdade, que a vida acabara de começar.
— Você não precisa pedir por isso. — A puxei deixando-a em pé,
beijando-a enquanto a levava para a cama.
— Eu sou sua, não posso mais negar isso... então faça o que
quiser comigo.
Rosnei em aprovação e a sentei no colchão, ficando em cima de seu
corpo inclinado para trás.
— Não me diga essas coisas, Onira. Levo palavras literalmente ao pé da
letra e não volto atrás.
Ela sorriu, beijando meu queixo e me olhando nos olhos.
— Eu não esperava algo diferente de você.
A beijei e segurei a camisa para tirá-la, mas no momento em que nossas
bocas grudaram novamente, a campainha tocou.
Todo meu corpo paralisou por apenas um milésimo de segundo, para
então, em sincronia com minha mente treinada, começar a trabalhar. Fitei os
olhos arregalados de Onira e levei o dedo indicador aos lábios, sinalizando
que fizesse silêncio absoluto. Ela assentiu enquanto eu arrumava sua
camisa, colocando minha calça rapidamente.
— Vamos voltar para a sala e vou colocá-la num esconderijo na lareira.
Ficará segura lá dentro até que eu volte.
Ela balançou a cabeça freneticamente.
— Não vá lá, não posso deixar que saia — sussurrou.
— Confia em mim, Onira. Passei a vida toda lidando com essas
situações. Sou treinado para isso.
— Mas e se forem eles?
— Faça silêncio absoluto e eles nunca vão te encontrar.
A puxei para cima, levando-a de volta à sala. Puxei uma alavanca
pequena entre as várias que serviam de enfeite para a esconder e a pequena
porta abriu, acenei para que entrasse. Com lágrimas escorrendo por seu
rosto, não lhe dei tempo de protestar e inevitavelmente precisei empurrá-la
com toda minha calma para dentro, acomodando-a sentada.
— Mas... mas tocaram a campainha... por que tocariam a campainha?
— Fique aí.
Fechei a porta e desci a alavanca, acendendo a lareira. Ela ficaria
protegida lá dentro. Em um dos esconderijos espalhados pela casa, atrás de
um quadro, peguei duas facas e duas pistolas automáticas
silenciosas, caminhando lentamente até a porta.
Haviam diversos motivos para que tocassem a campainha.
Distração, nos fazer pensar que era algum conhecido nos levando a abrir a
porta e não ter nenhuma defesa, ou até mesmo começar um jogo como aquele
de me fazer ir até lá armado até os dentes e pronto para uma luta. Essa que
com certeza viria. Eu conhecia diversas formas de confundir um alvo.
Apontei a arma para a porta, desativei o alarme e ao destrancar girando a
chave lentamente, dei um segundo e abri a porta com o dedo no gatilho.
Pronto para atingir meu alvo.
Porém, tudo o que encontrei foi um par de olhos azuis familiares
amedrontados e cheio de lágrimas não derramadas.
— Blair? — sussurrei, desacreditado do que meus olhos viam.
— Tio Demeron, será que posso entrar? Está tão frio aqui fora.
O corpo pequenino tremia no pijama fino que não a protegia de nada,
e um urso de pelúcia estava firmemente agarrado ao peito. Percebi que ela
desviava atenção de meu rosto para arma ainda apontada em sua direção e me
dei conta de que devia estar aterrorizada pela situação. Rapidamente guardei
a arma nas costas. Passei para o lado, dando espaço para entrar e conferi o
lado de fora constatando que estava vazio
— Blair — chamei quando fechei a porta e ativei o alarme. — O que
está fazendo aqui?
— Papai e mamãe não estão em casa. Mamãe fugiu e papai foi atrás
dela.
— Eles a deixaram sozinha?
— Papai disse que voltaria logo e que o senhor cuidaria de mim
enquanto isso.
— Como chegou aqui? — perguntei.
Ela encolheu os ombros, parecendo ainda menor.
— Papai me deixou na porta, mandou contar até o número cem e tocar a
campainha.
Regnar era um filho da puta desgraçado e Kaladia era uma cadela
egoísta.
E eu não fazia a porra de ideia do que fazer com a criança a minha
frente.

ONIRA

Eu nem tinha mais fé, mas estava rezando por aquela menina.
Ela estava sentada há quarenta minutos em cima de uma caixa,
segurando o urso de pelúcia num aperto firme e olhando ao redor com os
grandes olhos azuis, e Demeron estava de pé, imóvel, olhando-a.
Quando menos de cinco minutos depois de me
esconder, Demeron apareceu de novo, fiquei aliviada. Mas, então, saí e vi
Blair no meio da sala e soube que algo estava muito errado. O alívio
imediatamente foi embora.
— Você vai assustá-la.
Ele franziu o cenho.
— Essa história está mal contada.
— Ela é uma criança, Demeron, praticamente um bebê, jogada nessa
confusão.
Minha raiva por Regnar alcançou novos picos e a vontade de bater
repetidas vezes no rosto de Kaladia para fazê-la acordar também.
— Eu sei. Não entendo o porquê aquele estúpido ia jogar a menina na
nossa porta e sair.
Eu também não entendia, mas um pensamento vinha me assombrando e
eu não podia guardar por mais tempo.
— Existe alguma possibilidade de ela ser sua?
Ele virou para mim com olhos saltados.
— O quê?!
— Sua filha.
— Inferno, não! É claro que não! — respondeu, mas voltou a olhar para
ela de uma forma diferente dessa vez.
— Demeron...
— Não pode ser. — Me olhou novamente. — Você acha que... acha que
pode?
Eu quis rir escandalosamente, mas de desespero.
— Como é que eu vou saber? Você deveria ter certeza disso.
— Eu tenho.
— Não parece.
Ela olhou entre nós dois em silêncio. Coitadinha. Parecia tão assustada
que me fez lembrar de mim mesma naquela idade.
— Ela não é minha. Sei disso.
— Certo — retruquei.
Havia a mulher ciumenta e louca dentro de mim que queria surtar com
sua incerteza, mas tinha também a mulher com a consciência de que naquele
momento, alguém mais importante estava no meio da história. Blair era só
uma criança negligenciada, que não tinha ideia do que estava acontecendo
ou da família maluca em que nasceu.
Ele suspirou, passando as mãos pelo cabelo.
— Vou tentar falar com Regnar, pode ficar com ela por alguns
minutos?
— É claro — respondi cegamente, muito concentrada no rostinho
perdido diante de mim.
Quando Demeron se afastou, lentamente cheguei perto e abaixei a dois
passos dela.
— Ei, menina. Você se lembra de mim?
— Sim. — Sua voz era firme e fiquei surpresa. Uma pitada de orgulho
por ver que mesmo em uma situação completamente descabida, ela não
estava se comportando como uma criança birrenta, malcriada e
chorona. E teria todo o direito e motivo se estivesse.
— Sou uma amiga do seu tio Demeron, então se quiser pode confiar em
mim.
— Eu sei, papai falou que você cuidaria de mim.
Franzi a testa.
— Seu pai disse isso?
— Sim, ele disse que você me entenderia e que não me deixaria passar
pelo que você passou.
Em silêncio e rejeitando todas as possibilidades de pensamentos e
teorias sendo criadas em minha mente, fiquei olhando para ela. Engoli em
seco e lhe ofereci um sorriso reconfortante, afastei-me, indo para o outro lado
da sala. Ela balançava os pés, batendo o calcanhar na caixa e eu quis mandá-
la parar para que não se machucasse, mas suas palavras ainda ecoavam em
meus pensamentos.
Seria possível que...
Não, não podia ser. Ele não tinha como saber daquilo.
— Não consigo falar com Regnar. — Demeron disse quando
voltou. — Ninguém sabe dele, nem de Kaladia. Falei com o Stark, mas ele
não pode vir buscar a menina e Kirina não atende o telefone. Ela terá
de passar a noite aqui, mas pela manhã vou cuidar dessa situação.
Assenti em silêncio e olhei para Blair.
— Você está com fome?
— Não, obrigada, Onira — respondeu gentilmente.
— Tem outro colchão em um dos quartos — disse
ele. — Venha, Blair, é melhor você tentar dormir um pouco.
Ela assentiu e foi na frente, seguida por ele alguns passos atrás.
Eu voltei ao cômodo do estúdio e abri as cortinas escuras das portas de
vidro, sentei-me no colchão e esperei por sua volta. Enquanto isso, olhava
para fora e observava a escuridão da noite.
Se aquilo era uma mensagem eu não sabia, mas percebi que tinha
chegado a hora de falar o que tanto havia evitado, o que no fundo, no meu
subconsciente não me permiti entender e nem reconhecer que era verdade.
— Ela dormiu quase imediatamente. — A voz de Demern veio por trás e
pouco depois o colchão afundou atrás de mim, seus braços me envolveram e
senti os lábios tocando minhas costas, a nuca e pescoço.
Eu me perguntava qual seria a sua reação, o que ele diria
quando soubesse de tudo. Quando percebesse que não era o único culpado
pelos rumos que minha vida tomou, que o destino teria sido cruel de qualquer
forma para mim. Não havia nenhuma garantia, mas eu o amava e acreditava
que ele me amava de volta o suficiente para entender e continuar me amando
quando soubesse o grande problema que seria estar comigo.
— Eu tinha oito anos quando minha mãe morreu — falei de
repente, surpreendendo a mim mesma com a revelação repentina. Parecia
que eu estava fora do corpo, sentada de frente para nós dois observando a
cena se desenrolar diante de mim.
Demeron demorou para responder.
— Eu deveria dizer que sinto muito, mas é estranho, porque não sinto.
— Eu gosto que você não diga coisas ensaiadas, como “meus pêsames”,
“sinto muito”, “adorei o presente”. Não faça isso, seja apenas você.
— Mas era a sua mãe.
— Não de verdade — sussurrei.
— O que quer dizer? — Hesitou.
Respirei profundamente, sabendo que era o momento de deixar o último
segredo entre nós para trás. Ele podia não querer arriscar sua vida quando eu
contasse, mas não podia continuar mantendo-o no escuro.
— Eu cresci em uma pequena vila na Tailândia. A história que foi
contada a mim e a Style era que tínhamos nascido lá, meus pais
eram órfãos e não existia mais nenhuma família além de nós quatro.
— A história que foi contada?
— Sim, você vai entender. Não me lembro de muito da minha
infância, mas tenho esses pesadelos praticamente todos os dias onde Style me
leva embora. Estou sempre com sangue nas mãos e nos pés e ele tira uma
arma na minha mão, isso nunca havia feito sentido, mas o contei uma vez e
ele me disse que não podia ser uma lembrança, que era um só
pesadelo provocado pelo trauma da morte de nossos pais.
— Como eles morreram?
— Até pouco tempo atrás eu pensava que havia sido em um
incêndio, pois quando fomos embora a casa estava pegando fogo, mas agora
eu sei que não foi assim. A coisa é que quando eu te disse que estava
destinada a conhecer a Kambarys não estava mentindo. — Tomei um novo
fôlego. — Style me escreveu uma carta e eu recebi semanas depois de você
me resgatar. Nela ele descreveu uma viagem que havia feito depois de anos
de desconfiança, sobre estar inquieto e desesperado para descobrir mais sobre
nós. Eu não sabia, mas ele também tinha os pesadelos, como era mais velho
tudo era mais claro, ele sabia o que tinha acontecido, só precisava ter
certeza e entender tudo antes de me contar.
— Te contar exatamente o que, Onira?
Fechei os olhos.
— As pessoas que pensávamos ser nossos pais eram guardiões de
crianças das Kambarys. Eu e Style fomos criados para sermos escravos da
organização.
Ao receber o silêncio de Demeron por vários minutos, olhei para
trás buscando seus olhos e o peguei de olhos fechados, respirando fundo
silenciosamente, o peito subindo e descendo com força e as mãos em
punhos.
— Demeron?
— Isso não é... não pode ser possível.
— Na noite em que nós fugimos, eles iam levar Style. Um dos três
homens que sempre ia nos visitar em casa para falar com o homem e a
mulher que nos criavam, estava tocando Style. Meu irmão não gostava,
tentava sair, eu o vi se debater e nossa mãe fazendo coisas com ele. Coisas
que uma mãe não deveria fazer com um filho. Agora sei que aquilo era
rotineiro, nunca me tocaram porque era proibido, se eu tivesse sido violada
de qualquer forma perderia o meu valor dentro da Kambarys. Mas isso não
importava na situação de Style. Eles continuariam fazendo-o sofrer e quando
eu vi que o levariam para longe de mim, longe... é um borrão. Não sei o que
aconteceu, mas na carta ele disse que os cinco estavam tão concentrados que
não me viram chegando, a primeira em quem eu atirei foi na nossa
mãe, depois nos outros três e por último em nosso pai, mas ele teve tempo de
reagir também e antes que pudéssemos fugir ele atirou no meu irmão.
— Onira, isso é impossível.
— É irônico, eu sei. — Soltei um riso sem graça. — Nos conhecemos
apenas porque o meu irmão estava tão determinado a encontrar a verdade por
trás dos nossos pesadelos e de suas memórias fragmentadas. Talvez a vida
poderia ter tomado outro rumo e você teria me visto junto com Freya na
missão em Oslo. Isso teria acontecido se eu não tivesse ficado acordada
naquela madrugada e entrasse em pânico, matando quem pretendia nos
machucar. Eu teria passado a vida servindo aqueles homens, Style estaria
preso e quem sabe até mesmo morto.
— Não diga isso. — Ele segurou meu queixo, olhando nos meus
olhos. — Nem sequer pense nessa possibilidade.
— Mas é verdade! E eu estaria conformada, veja por Freya. Ela sofre
por não estar naquele lugar.
— Como ele descobriu tudo isso?
— Eu não sei. Ele disse que queria me poupar dos detalhes, mas não são
os pequenos detalhes que importam e sim que eu sempre estive condenada.
Condenei você por meses quando na verdade você me salvou do que teria
sido a minha vida inteira.
Quando os braços me envolveram de novo, toda a força que agarrei
para contar a história pareceu ir embora, e eu estava flutuando em um abismo
tão alto quanto o penhasco atrás de nossa casa, e um choro assíduo começou.
Demeron me acalmava em silêncio, ele não sabia o que dizer, mas
apenas o conforto dos seus braços já era mais do que qualquer palavra.
— Você vai me deixar? — perguntei, expondo o que era meu maior
medo.
— Por que diz isso?
— Porque eu pertenço a eles e você está comigo. Um risco que você não
é obrigado a assumir.
Seus braços apertaram mais a minha volta.
— Não — rosnou em meu ouvido. — Você não pertence a eles,
você pertence a mim e eu nunca vou abrir mão de você.
— Eu não te julgaria se abrisse.
— Já disse que não vou te deixar. Acalme-se.
— Você não está horrorizado — constatei.
— Já vi demais nessa vida, o destino é uma merda, então é claro que os
deuses iriam me testar, me mandando uma mulher tão fodida quando eu
para... amar.
Toquei seu rosto com os dedos trêmulos.
— Então... você me ama.
Ele me deu um sorriso fechado, segurando meus dedos em sua mão. Me
puxou para cima do colchão e deitou-me em seu peito, acariciando minhas
costas e cabelo.
— Durma, pequena onça.
— Não posso — respondi e de repente bocejei. — Tenho mais algumas
perguntas.
— E você pode fazer cada uma delas amanhã.
Sem força emocional para debater ou insistir em ficar acordada, fechei
os olhos inchados, sentindo-o me apertar em seu corpo e dormi em segundos.
Pela primeira vez tive um sonho diferente, e nele, o cheiro de Demeron
penetrava meus sentidos dando a tranquilidade que nunca tive antes.

Antes de abrir os olhos eu sabia que algo estava errado. Eu senti.


Virei na cama, procurando por ele, mas a única coisa que encontrei foi o
lençol bagunçado, deixando à mostra alguns pingos de sangue no colchão.
Meu coração disparou e eu sabia que algo ruim havia acontecido.
Não adiantava chamar por ele, Demeron não estava ali.
“Um dia destes o chão vai cair debaixo de seus pés
Um dia destes seu coração vai parar e dará a sua batida final
Um dia destes os relógios pararão e o tempo não vai significar nada”
FOO FIGHTERS, THESE DAYS
Irrompi pelas portas da mansão e olhei em volta. Na sala escura,
iluminada apenas pelas lâmpadas do jardim da casa, tive o vislumbre de um
homem em frente a grande janela. No momento em que percebi que estava
sozinha em casa, soube o que aconteceu. Deixando Blair com Slom, fui o
mais rápido para a mansão num golpe de sorte, sem saber se o encontraria lá.
Mas, como se me esperasse, ele estava ali, imóvel, uma fumaça em volta
dele e a noite quase o tornando invisível.
— Você! — gritei, segurando-me para não avançar nele com toda a
raiva que sentia.
Siriu estava de costas, fitando o lado de fora, e virou para mim
lentamente.
— Por que fez isso? Traga ele de volta. Eu quero que me leve
até Demeron agora mesmo!
— Talvez você queira parar de gritar antes que os vizinhos em Munique
lhe escutem.
— Eu não me importo se o presidente me ouvir, aliás, seria bom, assim
eu pouparia tempo de ir até as autoridades e contar sobre o monstro que você
é!
Os olhos incrivelmente vazios me deram um arrepio de medo, sentia um
frio inexplicável em sua presença. Ele apagou o cigarro e chegou a minha
frente em passos lentos.
— Vejo que Demeron te contou coisas confidenciais, então devo alertá-
la de que essas informações podem ser perigosas, principalmente quando
você ameaça quem não deve ameaçar.
— Não tenho medo de você, Siriu — desafiei. — Vou fazer o que for
preciso para provar que o levou. Provavelmente o dopou como fez na
empresa no dia em que conheci vocês, e agora o está mantendo preso em
algum lugar.
— Você tem provas do que diz?
Soltei um riso sem humor, balançando a cabeça.
— Sério que vai se fazer de desentendido? Ele não lhe deu nada além de
anos de obediência e é assim que você devolve o favor. Como uma serpente
traiçoeira que o ataca enquanto ele dorme e o leva para sofrer, se acha que ele
é culpado de alguma coisa, lhe dê um julgamento justo!
Ele fechou completamente a distância entre nós, intimidando-me com
seu tamanho. Não importava que eu disse não o temer, aquilo era uma
mentira. A adrenalina me fazia corajosa, e o medo de perder Demeron me
deixava sem filtros, mas ver Siriu tão perto, tão... cru, me fez vacilar.
— Não acho que ele é um traidor, tenho certeza disso. Ele é cúmplice
de Style Tieko. — Ele praticamente cuspiu o nome. — Seu irmão nos traiu.
Fez parecer que Demeron matou duas centenas de pessoas e falhou numa
missão para promover um ato terrorista. Eu consegui um tempo para ele fora,
deveria ter sido o suficiente para ele rastrear e trazer Style para enfrentar a
justiça, mas ele esqueceu suas prioridades — disse cada palavra acusando-me
com os olhos.
— Ele não se esqueceu de nada, essa situação é...
— Style estava de volta, Demeron poderia ser livre, mas ele fez uma
escolha e pagará por ela.
— Você se esqueceu que foi o único a obrigá-lo a fazer isso? A ser um
prostituto de informações para o seu governo? Você tem consciência do
quanto ele sofreu naquela prisão?
— Ele é um soldado. Ele sobrevive.
— Ele é sua família! — gritei.
— Que eu joguei num buraco por causa da sua família, porra! — gritou
de volta, fazendo-me tropeçar para trás.
— Tudo o que você fez com ele foi absurdo. Não deve culpá-lo por se
sentir culpado e querer me resgatar.
— O único motivo para ele não ter entregado Style quando ele voltou à
Alemanha foi por você. Por saber que você o deixaria se ele fizesse seu irmão
pagar pelo que fez.
— Isso não é verdade!
— Mas, ele acha, e eu concordo.
Olhei no fundo dos seus olhos, eu não queria parar, queria que aquele
homem enxergasse o quanto era tóxico.
— Quando eu te conheci e pensei que fosse alguém bom e honrado, te
admirei. Te respeitei. Pensava que Demeron era sortudo por tê-lo como um
irmão. Mas, agora... sabendo como você o abandonou, o torturou... isso me
enoja. Você me enoja!
A casca dura dele rachou por apenas um segundo, e eu reconhecia o
peso das minhas palavras, mas ele merecia. Por cada dia que Demeron passou
sendo abusado físico e psicologicamente. Por cada chance que Siriu teve de
intervir, de salvá-lo, mas ao invés, o deixou para trás. Para pagar um erro que
ele não cometeu.
— Você errou com ele — afirmei. — E eu também. Mas isso acaba
agora. Diferente de você — olhei ao redor —, de cada um que mora nessa
casa, ele é minha prioridade e eu vou fazer o impossível para que ele não
passe nem mais um minuto naquele lugar.
A expressão impassível voltou em um instante, e assim que fiz menção
de sair, ele me segurou. O aperto em meu pulso fazendo-me engolir em seco.
— Nem sequer pense em fazer qualquer besteira.
— Me solte.
— Onira — falou lentamente, e mais uma vez, me assustei com o quão
parecido era com Demeron. — Pessoas que me ameaçaram ou cruzaram o
meu caminho já pagaram por menos, eu garanto que se você ousar interferir
nos meus planos, caçarei o seu irmão e o farei pagar dia após dia por cada
hora que passei o procurando. E quando o encontrar, vou fazê-la assistir.
Arfei, puxando meu braço e colocando distância entre nós.
Ele não se moveu. Um pouco mais longe, seu rosto já não era visível e
contra as luzes que vinham da janela, ele estava coberto pelas sombras.
— Eu vou pagar para ver.
Desejava cada minuto de sofrimento para ele em dobro.
Saí da casa correndo como se fugisse de uma cena de filme de terror e
peguei meu celular para chamar um táxi quando cheguei do lado de fora.
Busquei nos contatos o número de Slom enquanto esperava. Precisava
garantir que a sobrinha de Demeron estava bem.
Coitadinha! Era a única inocente no meio daquele antro desgovernado,
uma família tão destrutiva quanto a minha. Ironia do destino Demeron e eu
termos acabado juntos, ou uma piada de muito mau gosto.
Fechei os olhos, desejando que tudo fosse só mais um dos meus
pesadelos, mas eu sabia que não era. As sensações eram reais demais, o medo
absoluto de não conseguir encontrá-lo, de passar os próximos dois anos sem
saber onde estava, das palavras de Siriu serem reais, de ser a única
responsável por colocá-lo naquela situação.
— É uma merda, não é?
Soltei um grito, virando-me com a mão sobre o peito.
— Jesus Cristo! — Respirei profundamente. — Você é idiota em
aparecer assim.
O homem alto e de cabelos na altura do ombro usava um conjunto de
roupa preta, e pela claridade de onde estávamos, pude ver seu rosto, mas não
o reconheci.
— Desculpe não me apresentar formalmente primeiro, mas pensei que
não se esqueceria de um dos rostos que te salvou.
Franzi o cenho, olhando mais atentamente, e, por fim reconheci, era o
cara que entrou com meu irmão na linha de tiros no dia do resgate
da Kambarys. Aquele que atirava e dava risada como se estivesse se
divertindo.
— Lembro-me de você — respondi em alerta, não havia muito o que eu
pudesse fazer se ele estivesse ali com más intenções, mas não cairia sem uma
boa briga.
— Sou Harlen. — Estendeu a mão, mordia um palito na boca e manteve
o sorriso intacto. — Harlen Konstantinova.
O sobrenome automaticamente me fez erguer a mão, mas parei no
segundo em que me lembrei de onde vinha aquele nome.
“É o nome do tio Harlen. Ele morreu cumprindo dever, morreu pela
nossa nação. Tio Harlen é o nosso orgulho.”
As palavras de Blair me bateram com uma pancada forte e meus olhos
arregalaram. Só podia ser uma armadilha ou brincadeira. Harlen estava
morto!
O homem em questão riu.
— Imagino que te disseram sobre minha morte, hein? — Deu de
ombros. — Faz parte do trabalho, mas é claro que você já sabe disso, depois
da confusão que Tieko arrumou.
— Só pode ser brincadeira — sussurrei.
— Eu sou jovem e bonito demais para estar morto, então se você puder
deixar o choque inicial um pouco de lado e me escutar, acho que vamos nos
dar bem.
— Você é irmão de Demeron.
— Da última vez que chequei, eu era sim.
— Então não tenho motivos para te ouvir.
Dei as costas e ouvi sua gargalhada ecoar pela rua.
— Espera aí, Mulan! Quero ajudar.
— Eu não acredito nem por um minuto nisso.
— Gata... eu te ajudei, lembra? Quase levei uma bala por você.
Inclinei a cabeça para o lado, observando-o. Tinha os olhos azuis, mas
não eram tão intensos e profundos quanto os de Demeron, tampouco frios
como os de Siriu.
— E vai me dizer que me ajudou só porque apoia meu envolvimento
com seu irmão? Que não ganhou nada para entrar lá e colocar sua bunda no
fogo cruzado?
— Nesse mundo, serviços são pagos com favores, então é claro que
ganhei algo.
— Pelo menos você é honesto.
De longe vi meu carro se aproximando e suspirei de alívio. Nem
consegui chamar Slom e estranhamente, estava bem ansiosa para ver se Blair
tinha ficado bem.
— Gata, vamos fazer assim. Sei como resolver a situação com o meu
irmão e vou te ajudar.
Mesmo duvidosa, ele conseguiu minha atenção.
— E o que você quer em troca?
— Por que acha que quero algo para ajudar o meu irmãozinho?
— Porque conheço a sua família e sei que vocês nunca dão um ponto
sem nó.
Seu sorriso ficou mais contido, atrevido... meio descarado.
— Tem razão. Vou querer algo, mas não é agora e prometo que quando
a hora chegar, estará ao seu alcance.
Pensei um pouco, olhando seu rosto que não se alterava. Ele parecia
confortável em ser analisado.
— Ok. Mas, se não me ajudar a livrar Demeron, irá embora de mãos
vazias.
Ele estendeu a mão novamente, e dessa vez eu aceitei.
— Entre no carro, Mulan, vou dizer o endereço.

Nós paramos em frente a uma delegacia dez minutos depois. O caminho


foi silencioso. Ele colocou uns óculos escuros antes de entrar no carro e o
capuz sobre a cabeça, e pagou a corrida quando saímos.
— Não acho que ele esteja preso aqui.
— Relaxa, gata. Sei o que estou fazendo.
Eu o parei no meio da escada da entrada.
— Não é hora para brincadeiras. Demeron está em perigo real!
Ele ergueu a mão e passou pelo meu rosto, então, surpreendendo-me,
selou nossos lábios numa rapidez que mal pude piscar.
— Que bom que se preocupa com o meu irmão, isso significa que estará
disposta a enfrentar o próprio diabo para tirá-lo daquele inferno.
Sem palavras, me recompus e o segui para dentro, decidindo que ele
conhecia Siriu melhor do eu, e é claro, se estávamos ali, havia um motivo.
Quando entrei, o encontrei numa conversa nada amistosa com um homem um
pouco mais velho.
Fui até lá, parando ao seu lado e atraindo de imediato a intenção do
cara.
— Onira, esse é Erike Ditz.
— Boa noite — cumprimentei. — Eu tenho uma denúncia a fazer.
Ele ergueu as sobrancelhas, aparentemente surpreso, então fitou Harlen.
— Isso é sério?
— Pare com a palhaçada, Erike. Você sabe bem quem é ela e quem é
seu irmão. Assim como sabe porque estamos aqui.
O homem deu um longo olhar a Harlen, olhou ao redor disfarçadamente
e por fim, negou.
— Harlen, eu já disse para ficar fora desse jogo.
Harlen sorriu, cruzando os braços e encostando-se no batente da porta.
— Diga isso para a noiva do meu irmão.
— Você conhece Demeron? — Franzi a testa. — A vida dele não é um
jogo — respondi.
— Aconselho que dê meia volta e saia por onde entrou, menina.
— Isso é uma autoridade se negando a receber acusações sobre um ex-
agente? Ou você é tão responsável quanto Siriu por manter o meu irmão
preso?
Erike cerrou os olhos, respirando forte pelo nariz.
— Vá embora e leve a garota com você.
Então de repente eu entendi tudo o que Demeron me contou voltou de
uma vez só. Aquele era um dos homens que o prendeu e torturou, ele fez dois
anos de sua vida miseráveis.
— Eu acho bom você me ouvir, Erike — falei de súbito, atraindo sua
atenção.
— Onira... — Harlen tentou me segurar, mas eu já estava muito além de
ser aconselhada.
— E se você não me ouvir — continuei — e no final do meu
depoimento, considerar Demeron isento de acusações, eu vou usar meus
contatos e conseguir entrar em rede nacional para contar sobre a marca em
meu pescoço e a forma como o diretor da maior agência de espionagem do
país em parceria com um dos maiores juízes, lida com tortura não autorizada.
Como vocês têm conhecimento das Kambarys e não fazem nada para acabar
com isso. Quando eu terminar, você estará tão desesperado para fugir
quanto Kazel.
Ele fitou Harlen sem palavras por um momento, os ombros visivelmente
murcharam e me encarou sem reação. Então eu tinha sua atenção, que bom.
Ainda havia muito para falar.
"Expire, para que eu possa te respirar
Segurar você dentro de mim
E agora, sei que você sempre esteve"
FOO FIGHTERS, EVERLONG
Eu só recebi notícias duas semanas depois. Os dias foram intermináveis.
As respostas que eu recebia eram sempre as mesmas.
Estão analisando o caso.
Você fez tudo o que podia.
A justiça vai agir.
Mas quando realmente começariam a agir?
O que ele estaria passando atrás daquelas celas durante esse tempo?
Harlen me mantinha informado na medida do possível e me peguei
confusa sobre sua presença. Às vezes, gostava de seu senso de humor ácido e
sarcástico presente o tempo todo, e em outras, queria que ele sumisse do
mapa. Até imaginei que seria um alívio se tivesse realmente morrido, e
quando admiti isso para ele, recebi uma risada estrondosa.
Também tive uma distração com Blair, que ficou comigo como se fosse
uma criança abandonada por mais três dias seguidos e depois Angelina
apareceu para buscá-la. Me agradeceu por ter cuidado de sua neta e sumiu
sem nenhuma explicação. A menina apareceu na minha porta no meio da
noite, alegando que seus pais loucos a tinham deixado e eu nunca soube o que
aconteceu.
Na verdade, duvidava que até mesmo Angelina soubesse.
Mas, naquele dia, quando acordei e me preparava para mais vinte e
quatro horas agonizantes, meu telefone tocou. E quando Stark me falava do
outro lado da linha que estavam com Demeron no hospital, fiquei pálida,
trêmula e duvidosa. E se estivessem brincando comigo? Mentindo ou me
atraindo para dar a notícia ruim pessoalmente?
Minha sorte foi que Slom estava lá e prontamente pegou o telefone,
assumindo o controle de nos enfiar em um táxi e me levar para fazer o que eu
estava inquieta a dias sem fim: ver o meu amor.
Quando chegamos no hospital a ficha finalmente caiu, então comecei a
correr feito louca, desesperada para poder vê-lo e comprovar com meus
próprios olhos que estava vivo e bem. Que estava de volta para mim.
— Moça, ei! Você não pode entrar aí!
— Tente me impedir — murmurei sem parar de correr.
Dei um breve olhar para trás e vi Slom alcançando a mulher com um
sorriso simpático.
Finalmente teríamos a nossa chance.
Esperava ver a sala vazia, mas conforme passava pelos corredores
correndo até seu quarto, vi alguns homens também e policiais pelos arredores
e soube imediatamente que ele não estava sozinho, a mulher apaixonada
e justiceira em mim quis entrar lá e mandar quem quer que fosse sair
imediatamente. Que direito eles pensavam que tinham de estar ali depois
de o terem feito sofrer tanto?
Engoli em seco e quando virei o corredor entrando diretamente em seu
quarto, precisei parar por um momento, mas foram apenas dois segundos e
quando passei meus olhos nele minhas pernas firmaram, fui em linha reta
para o homem dos olhos azuis opacos que tinha me conquistado e
conquistado o meu coração. Apoiei-me na cama e sem conseguir mais
segurar as lágrimas, o abracei. Ele me recebeu meio sem jeito, mas passou
imediatamente os braços em volta de mim, dando-me um aperto firme e
seguro, daqueles que eu estava acostumada a receber.
Estava ciente dos olhos em nós. Mesmo tão focada em Demeron, vi de
relance os rostos familiares. Vozes que antes falavam, calaram-se
imediatamente, o que foi bom, pois eu não estava afim de
ouvir Kaladia e Stark e tampouco Kirina.
— Liebe, pare de chorar.
Afastei-me minimamente e analisei seu rosto, buscando os estragos
feitos, e ao não ver nada, franzi o cenho, confusa. Era um alívio que ele não
estivesse machucado, mas fiquei realmente confusa.
— Você... Você está bem?
— Sim, mas isso não importa. Quero saber como é que você está.
Quase dei risada, eu estava no limite de perder o resquício de sanidade
que ainda tinha.
— Senti sua falta desesperadamente. Quando estávamos separados, pelo
menos eu sabia que você estava bem, mas agora, desaparecido, não havia
como imaginar o que poderia ter acontecido.
Alisei seu rosto, estava tão feliz de poder tocá-lo novamente que não
queria nem desviar os olhos.
— Você não me esqueceu.
— Mas é claro que não. Demeron Konstantinova não é um homem que
se esquece facilmente.
— Quer dizer que você já tentou.
— Mesmo não querendo, sim, eu já tentei. Achava que seria o melhor
para nós dois.
— Achou errado. Estou aqui e não pretendo ir para longe novamente.
— Onira. — Stark chamou, nos interrompendo. — Gostaria de falar
com você por um minuto.
— Não — respondi.
Durante aquelas duas semanas longe dele havia decidido não ter contato
com ninguém de sua família. Não importava o que fosse, a não ser que se
tratasse de vida ou morte no estilo de eu ser a única pessoa compatível, então,
além disso, eu não queria saber deles. Algo que eu nunca pediria
que Demeron também fizesse, mas até mesmo ele a essa altura me
entenderia.
— Não tenho nada para conversar.
— Essa cadela entra aqui e nem fala um boa-tarde. — A voz quase
gritante chamou minha atenção e vi atrás de Harlen uma mulher toda vestida
de couro, usando um colete com várias insígnias e um cabelo vermelho fogo
mascando chiclete e alisando os braços dele. — Se é desse mundo que você
veio, querido, agora entendi porque foi embora.
— E conhecendo você, entendo o porquê ele resolveu voltar.
— Kirina respondeu.
Não vi nem Regnar e nem Siriu na sala, o que foi um alívio. Não me
dava com nenhum dos dois e ter Kaladia ali já era difícil o suficiente.
— Sai fora, cadela. Não olha para o meu homem! — A mulher
praticamente rosnou.
Kaladia ergueu as sobrancelhas bem-feitas e Kirina riu.
— Se eu quisesse seu homem, você acha que teria algum problema em
pegá-lo?
— Deus. — Kaladia murmurou. — De que fim de mundo saiu esse
tipo?
A mulher extremamente ofendida saiu detrás de Harlen e tirou a
jaqueta, evidenciando um par bem avantajado de sutiã, depois jogou a
jaqueta nele. Stark observou a cena em silêncio, de cenho franzido,
alternando seu olhar do filho para a possível namorada.
— Segura o meu casaco, bebê. Vou dar um jeito nessas barangas
frescas. — Ela ergueu o punho e andou direto para Kirina, ameaçando bater.
Arregalei os olhos, me perguntando se aquilo realmente aconteceria,
mas então, como se percebendo seu equívoco na companhia, Harlen segurou
a mulher.
— Vá lá fora pegar uma cerveja para mim, Barbie — disse ele, batendo
na bunda dela como se a dispensasse.
Eu estava assustada com a mulher, entre achá-la corajosa e sem noção.
Mas também estava em completo choque com a atitude daquele homem.
Ouvi um riso baixo e profundo e virei para ver Demeron fitando meu
rosto.
— Ele costumava deixar uma melhor primeira impressão.
— Bem, ele perdeu o dom.
Demerom me encarou por alguns segundos, fazendo meu coração
disparar com aquela mesma ansiedade que me tirava do chão.
— Se importam de nos dar um tempo sozinhos? — perguntei sem olhar
ninguém.
Ninguém se moveu.
Demeron tirou os olhos de mim e passou pelo quarto.
— Saiam todos.
Todos saíram em silêncio, com exceção de Kirina, que foi ao lado dele e
deu-lhe um beijo rápido na bochecha. Foi necessário um esforço louco para
não empurrá-la e agir tão territorial quanto a tal Barbie tinha feito.
— Então — falei quando ficamos sozinhos. — Nossos irmãos voltaram
dos mortos, mas o seu apareceu com uma companhia excêntrica.
— É só um passatempo para ele.
— Gosto de Harlen.
Demeron rosnou.
— Não goste dele. Diga-me em detalhes como essa aproximação
aconteceu.
— Não foi nada demais. Ele é meio perturbado.
Como todos nós.
— Não se engane sobre ele, liebe. Harlen foi um dos maiores agentes
que a Liga teve.
— Para mim ele parece aposentado.
— Não, liebe. Isso é apenas o que ele quer que você pense.
— Ele é engraçado, me distraiu um pouco nos piores momentos sem
você.
Demeron olhou para a porta e lambeu o lábio seco.
— Onira... sei que muitas vezes fui errado e aos poucos venho
entendendo o porquê, então o que vou dizer pode parecer hipócrita, mas...
não confie no meu irmão, em nenhum deles.
Assenti.
— E Siriu? Ele não deve estar nada feliz.
— Isso não importa. — Ele fechou os olhos com força, segurando meu
rosto próximo ao dele — Tudo isso já passou.
Eu assenti e para espantar as lágrimas, acariciei seu rosto.
— Estou tão feliz que não te machucaram. Conte-me depois o que
houve, mas não precisa ser agora, apenas quando se sentir bem. Não se sinta
pressionado.
Como se a menção de machucados o tivesse feito perceber algo, ele
torceu o nariz e se moveu, fazendo o lençol escorregar um pouco. Foi quando
eu vi o primeiro hematoma e o começo do que ia se tornar uma cicatriz.
Segurei a ponta do lençol e a desci, ficando sem ar com a quantidade de
hematomas que cobriam debaixo do peito e alguns cortes espalhados pelo
corpo todo.
— O que foi isso? — sussurrei.
— Eles não podem marcar o meu rosto, não há como esconder.
Assim como antes, minhas lágrimas desabaram novamente. Mas dessa
vez por lamentar a dor que sofreu.
— Sinto muito ter demorado tanto para chegarmos lá e pelo que sofreu
durante a espera.
— Não se lamente, não foi culpa sua. Havia coisas em aberto que não
estão nem próximas de serem resolvidas, mas você foi a única que me tirou
de lá. Erike não podia arriscar que você falasse e eu deixei claro meus planos
caso você sumisse desde que estou aqui. Você está segura e se algum dia algo
lhe acontecer, segredos de guerra que a Liga escondeu a palmos do
chão serão desenterrados. Erike sabe que eu cumpro minhas promessas.
Solucei, abraçando-o com cuidado para não provocar dor. Mesmo em
um momento tortuoso ele me defendeu, buscou ser o melhor para
mim e tentava cumprir sua promessa.
— Eu sei... e eu te amo tanto. Não posso nunca mais ficar sem você.
Ele me fitou sem piscar, o cenho franzido naquela expressão de
concentração.
— Amor não define o que eu sinto por você.
Engoli em seco, tentando disfarçar meu desapontamento.
— Você não precisa dizer o mesmo, isso é algo que vem com o tempo
e...
— Você é Valhala.
— O quê? — sussurrei.
— Quando fiquei preso pela primeira vez, implorei por Valhala, meu
paraíso, meu lugar de descanso. Sonhei com Valhala para receber conforto
em meio às torturas, mas dessa vez... pensei em você. Implorei por você, para
descansar ao seu lado e ser confortado por você.
— Demeron...
— Você me ama, mas para mim, você é Valhala. Majestosa, meu
domínio e tudo o que eu sou é para você. Amor nem sequer chega perto.
"Você sabe que nosso amor estava destinado a ser
O tipo de amor que dura para sempre
E eu quero você aqui comigo
A partir desta noite até o fim dos tempos
Você deveria saber, todo lugar que vou
Você está sempre no meu pensamento, no meu coração, na minha alma"
CHICAGO, YOU'RE THE INSPIRATION
— Estamos correndo risco? — perguntei a ele numa tarde, algumas
semanas depois de termos voltado a nossa casa.
— O único risco nessa relação é você descobrir que fez a maior besteira
me dando uma chance, e então me abandonar.
Ele adorava essa palavra: relação. A incluía em quase todas as nossas
conversas. Era um pouco culpa minha também, vendo que eu o infernizei
tanto sobre como era estar em um relacionamento, como imaginava ter um,
como queria estar em uma relação normal, que agora ele aderiu a palavra que
antes lhe era tão temida.
Mas, se teve uma coisa que aprendi com isso, foi que nossa relação nem
de longe era normal. A maioria dos casais em nosso lugar não teria aguentado
um mês. Aquele cara era o amor da minha vida, não havia nada de normal em
nós e eu não tinha problema em admitir isso.
— Demeron Konstantinova... a mosquinha da insegurança masculina
pousou em você?
Ele ficou em silêncio, observando o mar a nossa frente.
— Demeron?
— Kurton Ward tem te ligado com frequência. Por quê?
— Eu nunca o atendi e quantas vezes já te disse para não mexer no meu
celular?
Com a mandíbula travada, ele me fitou.
— Você não tem moral para falar, liebe. Verifica a agenda da esposa do
meu irmão antes de me deixar sair de casa todos os dias, para garantir que ela
não virá atrás de mim.
— Tenho motivos.
— Sim, na sua cabeça.
Revirei os olhos.
— Ela não te esqueceu. Como poderia? Vive num casamento cheio de
violência com o psicótico do seu irmão, deve ser duro lembrar que te trocou
por algumas horas e as consequências levaram a um casamento.
Ele suspirou e antes que eu pudesse olhar, estava debaixo dele, seu rosto
a centímetros do meu.
— Pare de ficar falando merda, Onira — falou baixinho, beijando meu
pescoço.
— Você não gosta de ouvir a verdade. Acha que eu não sei que ela deixa
bilhetinhos com a secretária de Stark e pede que entregue a você.
Ele parou, e de repente seu corpo tremia, rindo. O rosto enterrado no
meu pescoço.
— De que lugar no inferno você tirou isso?
— Tenho minhas fontes.
Ele me observou calado, com um sorrisinho sacana no canto dos lábios.
— Deveríamos fazer terapia de casal — falou.
— Você acha?
— Sim, liebe... somos fodidos.
Fitei o céu que eram seus olhos.
— Acho que seria capaz de matá-la se ela tentasse voltar para você —
sussurrei.
— Eu torturaria Kurton Ward por dias se ele ousasse chegar perto —
sussurrou de volta.
— Talvez precisemos de terapia, então. — Dei risada, mas fiquei séria
logo. — Eu estava falando sobre eles.
Sua expressão mudou, ele fechou os olhos tentando voltar ao
controle. Eles, era um assunto proibido, algo que ele não falava e não
admitia.
— Onira...
— Só me diga se estamos bem.
— Sim, estamos bem. Eu já disse que eles não vão te encontrar, e se
encontrarem, não chegarão perto de você.
— Eu amo esse lugar, mas talvez devêssemos nos mudar para uma casa
fechada, mais segura.
— Onira. — Ele segurou meu rosto, fazendo-me prestar atenção em
cada palavra. — Eu sou um fantasma, a porra de um fantasma. Eles não vão
te encontrar. Kazel está escondido em algum lugar na África. Sabe que se
tentar alguma coisa, ou nós o pegamos ou a Yakuza pega.
— Siriu não deve estar feliz com isso.
Ele desviou os olhos, seu primo era um assunto tão delicado, sempre o
deixava para baixo, mesmo que ele tentasse esconder.
— Isso não é relevante. O que importa é que fiz e continuarei fazendo o
que for preciso para te manter segura. Você confia em mim?
— É claro que sim. — Beijei seus lábios. — Eu te amo tanto... mas tanto
que dói!
— E eu amo você da mesma forma.
O abracei, sentindo os braços fortes me apertarem de volta, o calor do
corpo que era todo meu e o conforto que chamava de casa. Ele era meu
sonho, minha realidade e minha sanidade. Eu amava aquele homem
desesperadamente e ele me amava da mesma forma.
— Quer ter filhos algum dia?
Ele ficou tenso.
— Só se você quiser.
— Não acho que quero.
— Então não teremos.
Pensei um pouco, tentando visualizar Demeron como um pai.
— Você acha que a criança teria os olhos puxados e azuis?
Os olhos dele faíscaram. Um brilho de divertimento que eu amava ver
nos meus diamantes.
— Só tem um jeito de descobrir.
— Ah, é? E como... — Ele me cortou com seus lábios, suas mãos
invadindo a camisa larga e passando da minha cintura para minha
intimidade.
— Coloque meu pau para fora e eu vou te mostrar.
Gemi com as carícias de seus lábios em meu pescoço e obedeci,
desfazendo o cinto e abrindo o zíper do jeans. Pouco depois, ele estava dentro
de mim. E realmente me mostrou. Mostrou até a escuridão cair sobre o céu.
“Estou machucado, querida, estou destruído
Sou apenas uma coisa fraca
Você me faz implorar
Estou de joelhos
Você une meus pedaços
Você é a única coisa que me faz viver”
MAROON 5, SUGAR
EMIRADOS ÁRABES, CINCO MESES DEPOIS

Ela estava deslumbrante.


Não só pela roupa extravagante que escolheu entre todos os vestidos
mais extravagantes ainda, que chegaram para ela de vários lugares do mundo,
ou pelas joias que, pelo que eu pouco entendia, havia joalherias na fila para a
ter usando. Mas sim por ela.
Só ela, aqueles olhos esticados e brilhantes e os cabelos escuros.
Mais cedo, nossa casa havia sido invadida por pessoas que falavam
gritando e corriam pelos cômodos, dizendo estar lá para deixá-la perfeita. Ela
já era perfeita, portanto eu não sabia o que mais eles podiam fazer para
acrescentar.
Eu fiquei de longe observando ela fazer sua mágica, encantar a todos
com suas esculturas e com tudo o que ela era. O terno que seu amigo designer
famoso de algum lugar da Itália me fez vestir, era patético. Me incomodava e
a cada hora eu queria tirar uma peça. Primeiro as abotoaduras, depois a
gravata, e por fim o terno. Então eu gostaria de abrir o primeiro botão da
camisa bem passada e dobrá-la até meus cotovelos. Tirar a porra do sapato
também seria um alívio.
Inferno! Ir para a casa com a minha mulher seria perfeito.
Mas, ela tinha uma centena de convidados para entreter, para falar de
arte e cultura, coisas das quais eu não entendia nada. Siriu teria sido
bom, Regnar seria perfeito, mas inferno, não havia nenhuma chance de eu
pedir algum conselho a eles e mais do que isso, de os deixar cumprir meu
papel.
Seus amigos elegantes, os convidados e as pessoas que pagaram caro
para poder ir vê-la aquela noite também viam a mim. Sempre tinham olhos
sobre mim, mesmo que eu tentasse ficar escondido. Onira dizia não se
importar, e cada vez que a acompanhei, inseguro e fechado em suas
exposições, ela estava brilhante. Me apresentava com uma nota sônica de
orgulho na voz e um sorriso que quase não cabia em seu rosto.
Eu era um sortudo filho da puta do caralho.
— No fim da noite o fotógrafo vai tirar aquela foto rotineira de vocês
dois. — Slom falou quando veio correndo para o meu lado. — Tente sorrir
dessa vez.
Onira me fitou de onde estava e piscou para mim. Eu soltei o ar.
O cara com quem ela conversava tocou seu braço, chamando sua
atenção e instintivamente eu rosnei. Incomodado não era a palavra para
descrever. Odiava quando ficavam a tocando, a abraçando.
Ela era minha.
Por que naquele inferno não entendiam isso?
— Calma aí, buldogue, esse é o Sheik trilionário de rico que vai acabar
comprando tudo o que Onira fizer pela frente.
Franzi o cenho, irritado.
— Você faz de propósito?
Ela riu.
— Às vezes. É bem engraçado ver você se remoendo.
— Não se esqueça que posso jogar cada parte do seu corpo em um
continente diferente e ninguém ia descobrir.
Ela revirou os olhos com minha ameaça e riu novamente.
— Com licença, preciso vender esculturas.
Respirei profundamente, concentrando meus olhos em Onira outra vez.
Sempre foi muito fácil, para mim, fingir, cumprir um papel. Mas ela me
pediu para não usar máscaras quando se tratasse de nós. Mesmo depois de ter
resolvido me dar outra chance, ela ainda temia que eu pudesse tentar enganá-
la outra vez. Eu entendia, e se ela não tivesse pedido para eu ser
completamente eu mesmo fora do trabalho, eu estaria encenando com
maestria o noivo polido e culto. Inteligente e simpático.
Mas, por algum motivo, ela gostava de olhar para mim e dar um
daqueles sorrisos, sabendo que eu estava me segurando para não a
levar embora e nos esconder em nossa casa outra vez.
— Boa noite, senhoras e senhoras. — Slom chamou a atenção de todos,
e relutante, também a fitei.
Fiquei mais tranquilo quando Onira foi para o lado de sua amiga.
— Essa noite, nossa artista nos introduz a um novo mundo. Traz a vocês
a visão que ninguém nunca teve e despertará sensações que nunca sentiram.
Ela era boa em causar suspense. As pessoas cochichavam de olhos
arregalados, quase salivando para descobrir o que minha linda mulher tinha
criado dessa vez.
— Com vocês, Onira Tieko.
Os aplausos foram fervorosos. Ela pegou o microfone e sorria para seu
público, parecia Frigga, amada e adorava, venerada por seus súditos.
— Obrigada por terem vindo essa noite — começou quando as palmas
cessaram. — Hoje é um dia um pouco mais especial do que os outros, e
embora eu já tenha criado coisas que amei, sinto que essa definitivamente
supera todas elas.
Eu ainda não tinha visto a tal obra que ela preparou dessa vez. Tanto ela,
quanto Slom Ward, me impediram de entrar no ateliê. Fosse o que fosse, elas
queriam segredo absoluto. Mesmo não gostando de não saber algo sobre ela,
achei um pouco de determinação em mim para respeitar aquela vontade.
— Ele não gosta de atenção, mas eu quero que todos saibam que isso é
para ele. Na peça mais valiosa que já criei em minha vida, minha inspiração
para recriar o espírito do paraíso dos deuses foi o meu
noivo, Demeron Konstantinova. Ele continua me inspirando todos os dias,
mesmo sem saber. Tem uma fé sobrenatural sobre coisas das quais não
entendemos.
Sem reação e nem conseguindo esconder o choque, observei quando ela
segurou o pano de proteção da escultura enorme e me fitou diretamente.
— Meu coração... seria impossível transformar meu amor por você em
arte de uma forma que a explicasse. Mas, sei que com isso, você entenderá.
Ela puxou o pano e eu parei de respirar.
Diante de mim, estava Valhala.
Ele havia dormido depois de me agradecer por horas e dizer que eu era
sua Frigga. Que não sabia o que fazer sem mim, que eu era tudo. Já havia se
passado uma semana desde a minha exposição e ele continuava agradecendo.
Eu suspeitava que Demeron nunca ia parar de me dizer aquela palavra.
Obrigado.
Da janela de vidro, os ventos que vinham do oceano naquela época fria
eram violentos, mas fiquei ali observando a lua enorme que se sobrepunha
em cima de nós. Da nossa casa eu podia ver o sol melhor, a lua e
constantemente havia estrelas enfeitando o céu. Algo que lá do centro de
Berlim ou qualquer cidade, não seria tão fácil de ver.
Pensei em Freya, instintivamente. Ela sempre me vinha a mente em
momentos como aquele. Quando eu ficava tranquila ou até pacífica
Depois pensei em Style. Meu irmão procurado no país e condenado em
alguns outros. Ele era um assassino, assim como eu.
Eu me perguntava todos os dias como Demeron podia me amar.
Como ele se sentiria se soubesse os pensamentos que vez ou outra,
possuíam minha mente. Ainda se sentiria um homem tão mal quanto agora?
Ele dizia que sua alma iria para o inferno, atormentado de culpa e tristeza
sempre que bebia demais e dizia que não seria aceito nos portões de Valhala.
Eu não acreditava nos deuses dele, tampouco acreditava em outros, mas ele
fazia, e meu papel era lhe dizer que Odin seria estúpido se não o aceitasse lá.
Quem melhor do que o meu soldado para vencer a tal batalha de
Ragnarok?
Às vezes era até engraçado ouvi-lo contar as histórias da mitologia com
tanto fervor. Parecia católico rezando para Deus, evangélico orando para
Jesus Cristo e umbandista pedindo aos santos.
Eu não tinha fé em nada, apenas no que via e ouvia. Vi demais nessa
vida para crer em qualquer coisa além da realidade.
Braços me rodearam em silêncio, e na quietude, nós olhamos para o céu
que naquela noite estava sem estrelas.
Escura como nós. Sombria, temera e dolorosa.
— Volte para a cama, liebe — disse ele, beijando meu pescoço.
Eu me virei em seus braços e sorri para ele, escondendo minha angústia.
— Sim, vamos. Mas eu não quero dormir agora.
— Eu também não.
Espalmando minha mão sobre seu coração, eu olhei para o homem que
amava com cada parte da minha alma.
— Você deve dormir, H̄ạwcı k̄hxng c̄hạn. — Segurei sua mão, levando-
o de volta para a cama. — Deite-se. Vou me esforçar para que você tenha
bons sonhos.
— Mein schmuck — disse ele carinhosamente. — Você nunca precisa se
esforçar para isso.
Eu sorri e tirei minha camisola, beijando-o em seguida.
Com nossa querida escuridão nos envolvendo, nos permitimos ficar em
paz por apenas aquele momento. Mesmo sabendo que quando voltássemos a
dormir, os pesadelos de sangue e morte voltariam para me assombrar. Mas
ele estava lá para me acordar.
E de manhã, quando ele tivesse pesadelos acordado, eu o faria esquecer.
Mas, até lá, éramos apenas nós.
Nossos olhos que viram a morte e não piscavam diante do mal. Nossas
bocas que clamaram pelo pecado e nunca rezaram para Deus. Nossos ouvidos
abertos aos cantos do diabo que não reagiam ao desespero de vozes
quebradas.
Duas almas escurecidas por dias ruins que se encontraram, apagando
tudo o que já foi escrito e começando uma nova história.
Um único toque foi a nossa ruína.
E mesmo que estivesse escrito nas paredes antigas que a bondade
intocada não servia e não havia sido feita para os mensageiros da morte, nós
nunca deixaríamos o outro ir.
Eu nunca fui definida em bondade e ele nunca levou a morte.
Ele era minha vida. Meu protetor. Meu coração. Meu anjo.
Essa era a única profecia que valia para nós.

Eu acordei na manhã seguinte com a voz de Demeron esbravejando pela


casa. Vestindo o robe comprido, bocejei, esfregando os olhos, e fui até ele.
Mesmo que tivesse fechado a porta eu podia ouvi-lo. Depois que parou de se
conter, ele descobriu que era bom gritar quando estava irritado ou
impaciente. Fazia muito isso.
— Que porra você quer que eu faça?! — Parou e ouviu do outro
lado. — Não, eu não posso. Ela não podia também.
Ele passou a mão livre pelo cabelo, exasperado.
— Fale com Harlen, com Kirina... Eu não me importo!
Desligou o telefone e grunhiu, eu consegui chegar e segurá-lo antes de
ser atirado na parede.
— Acalme-se, o que houve?
Ele hesitou, fechou os olhos e jogou a cabeça para trás.
— Demeron?
Soltando o ar, voltou os olhos para mim.
— Kaladia foi internada na reabilitação, Blair está sozinha, precisam de
alguém para cuidar dela por um tempo.
— Oh... — Eu não sabia o que dizer. A garotinha era uma fofa, é claro,
eu não me importava, mas ele tinha um problema com ela e qualquer outra
criança que eu não conseguia entender.
— E Freya acabou de ser presa. Tenho que pedir para Siriu tirá-la de lá.
De olhos arregalados e boca aberta, mal acreditei no que ouvi.
— Freya o quê?!
— Ela foi pega em alguma atividade ilegal.
— Mas... Siriu? Sério?
— Tem que ser ele.
— Sim, eu sei — concordei, contrariada.
Pobre coitada.
Depois de tudo o que passou ainda teria que lidar com Siriu.
Eu esperava que ele a tirasse da cadeia e fosse para o mais longe
possível. Freya era como uma pétala de flor, tão delicada que eu sabia que o
menor deslize poderia rasgá-la.
E Siriu Konstantinova com toda certeza a rasgaria sem dó e nem
piedade.
Sempre tenho uma ordem para escrever; primeiro o Epílogo, depois a
dedicatória e depois os agradecimentos, mas dessa vez, já editei o livro todo e
ainda não sei como agradecer por aqui.
A ideia dessa série era tão louca que quando contei para a minha mãe – a
primeira pessoa a saber das histórias gerais da Liga – ela disse “Que horror,
meu deus do céu”, então, agradeço a ela, pois foi só por essa reação que segui
em frente e continuei escrevendo.
Obrigada a todas as leitoras que me acompanham em qualquer coisa que
eu escreva e por todas as mensagens bonitas que me fazem querer continuar.
Espero que tenham amado, e usando essa palavra pela trigésima vez só
nesse textinho, eu espero vocês em Cavalheiro das Sombras.

Se você gostou do livro (ou não), não deixe de avaliar, sua opinião é
importante para que outras pessoas leiam!

Instagram: @nanasimonss
Wattpad: NanaSimons
Grupo no facebook: Romances da Nana Simons
Página e Perfil do facebook: Autora Nana Simons
Olá, leitor(a).
Este livro é o segundo de uma série (A Liga dos diamantes), sendo o
primeiro “Soldado de Gelo”, a história de Demeron e Onira. Os livros estão
cheios de referências um do outro, personagens e situações em comum. Para
facilitar caso você esqueça algo ou se confunda, decidi colocar os dois livros
nesse box. Caso precise refrescar sua memória, basta pesquisar na lupa do
Kindle dentro do próprio livro.
Sua avaliação ao finalizar a leitura é muito importante, seja ela qual for.
Por fim e mais importante, leia os avisos abaixo. Recomendo que leve
em consideração antes de iniciar a leitura.

De um livro para o outro é preciso encarar mudanças.


Para escrever Siriu e Freya, eu precisei me desconectar da Nana que
escreveu O Governador e Império, e me conectar com a Giovanna, que
escreveu O Monstro em mim e Por você, Cobain James. Ela foi claramente
mais criticada e obviamente amadureceu em seus pensamentos, em sua
escrita, e eu gosto de pensar que ela amadureceu como pessoa também.
Mas, entre a Nana e a Giovanna, ela ainda é a mais sensível. Ela ainda
chora por tudo, ela ainda sente na pele dos personagens. Ela esquece o mundo
quando vai contar uma história.
Você se lembra quando eu escrevi o Dante? A Elena? Se lembra do
Capítulo 24 da Anita?
Eu gosto de pensar que guardei a Giovanna para algum momento
especial. Amo imaginar que a peguei de volta para escrever a Freya. A
Giovanna é uma leitora voraz de Colleen Hoover e Tillie Cole, então ela
nunca vai cansar de escolher poucos e certos livros para colocar uma nota
bem pessoal no início, e isso é o que Siriu precisava.
Eu estou preparada e ansiosa para as opiniões, sou masoquista como a
Freya, esperando que me critiquem para que eu melhore e sádica (?) como o
Siriu pronta para defender meus personagens como se eles nunca errassem.
Mas eles vão errar. Nesse livro, eles vão errar profundamente. E eu realmente
não me importo porque amo como eles são.
Erros. Acertos. Bom e mal.
Então, vamos lá.

AVISOS

Esta história se trata de um romance dark. Personagens corrompidos,


anti-heróis, “mocinho” possessivo, homem mais velho e temas de
consentimento duvidoso.
Romantizado? Não, sim, talvez. Vamos descobrir.
Cenas que podem conter gatilhos. Abuso físico. Abuso psicológico.
Cenas sexuais consentidas e não consentidas. Palavras de muito baixo calão.
Seitas. Temas religiosos distorcidos.
A autora não concorda ou apoia as situações problemáticas do livro. A
opinião religiosa, política e pessoal da autora não se expressa nesse livro.
Você foi avisado(a).

FORTEMENTE AVISADO.
Para o meu ex namorado.
Física e mentalmente.
Porque ele nunca imaginou que toda a dor que me causou me faria tão forte
um dia.
"Dentro do coração de cada homem há muita coisa para se entender
Quando todo o amor for embora e a paixão me encarar
Eu poderia ir embora?
Você me ajudará a ser corajoso?
me salve agora
eu não quero me desviar do solo sagrado
eu driblarei a tentação
eu estou pedindo para você me levar para a segurança agora..."
HURTS, DEVOTION
Mãos na minha cintura.
Um sopro no meu pescoço.
Unhas cravadas na minha pele.
Sangue escorrendo pelas minhas pernas.
— Oh, Mistress.... ela é tão gostosa!
Eu reprimi um gemido de dor quando ele se tornou mais violento, suas
coxas batendo por trás nas minhas tão forte que as palmas das minhas mãos
tornaram-se insuportavelmente doloridas enquanto tentava me impedir de cair
e meus joelhos sequer estavam protegidos pela fina camada da túnica branca
transparente. Meu cabelo escuro caia cegamente na frente dos olhos,
balançando com o ar que soprava da minha boca e os movimentos brutos que
ele me empurrava a fazer.
A fila de homens finalmente estava no fim, todos foram agradados.
Todos tinham sorrisos no rosto e pareciam felizes. Permiti um suspiro de
alívio escapar, os convidados dele estavam satisfeitos, isso era tudo o que
importava.
Meu cheiro já começava a ficar forte, eu havia acordado e ficado na
água perfumada por horas para a preparação da cerimônia, mas ainda assim,
quando a orgia acontecia no salão aos olhos dele, seus líderes e conselheiros,
não havia como impedir o suor, o sangue e o líquido de satisfação dos
homens misturados que ficavam sob o meu corpo que já começava a cheirar.
Apesar de tudo, minha boceta, como eles chamavam, estava escorrendo
pelas pernas, não apenas dos fluídos de cada homem do lugar, mas porque eu
apreciava cada toque, cada mão que passava por mim, cada membro que se
introduzia em meu corpo.
Sim, meu mestre havia me ensinado bem.
— Goze, prostitutka, eu quero que você goze comigo dentro de você.
Vamos — pediu, e instantes depois eu senti o gelado da faca pressionando
meu pescoço. — Agora, escrava!
Ele nunca poderia me machucar realmente, a menos que ele deixasse ou
ordenasse isso.
Ele.
O meu mestre.
Apertei meus músculos em volta dele, forçando seu membro duro a
arrancar o orgasmo de mim. Um grito agoniado me escapou, o que o fez
ainda mais animado. Muitas vezes, quando eu era desobediente, o mestre
achava que as punições precisavam ser em diferentes níveis. Embora mesmo
que eu fizesse tudo perfeitamente, havia sempre meios para me punir,
ele apenas gostava.
Te deixar com medo faz sua boceta ficar apertada como um punho,
Freya. Eu deveria te manter sempre aterrorizada, ele dizia.
Eu me lembrava da última punição o suficiente para não errar nunca
mais.
Nós havíamos passado por um corredor acinzentado, onde barras de
metal formavam caixas uma ao lado da outra, mas estavam vazias. Foi
quando entramos num grande campo aberto e vi tantos homens. Era uma
lembrança constante do último castigo. O mestre havia chamado de presídio,
e quando fomos embora, imaginei que os homens que viviam naquela
comunidade presídio não deveriam receber mulheres para agradá-los com
frequência, mas fiz como meu mestre pediu. Eu agradei cada um.
Com meu corpo.
Minha boca.
Minhas mãos.
Minhas lágrimas.
Principalmente com os gritos que eles gostavam de ouvir. Não falei por
vários dias depois.
Eles foram muito duros com a minha pequena feiticeira. Todos os
homens te desejam, Freya, não é culpa deles, você foi esculpida em
perfeição. A sorte é minha que sou seu dono e a tenho ao meu lado pelo o
resto da vida, meu mestre dizia.
Ele me amava.
Ele cuidou de mim desde que me lembro e eu entendia que tudo o que
fazia sendo bom ou ruim era para o meu próprio bem. O mestre me possuía e
tudo o que eu era foi feito unicamente para o seu prazer.
Eu o amava também.
Quando o último homem me deixou, esperei por ele para me chamar e
depois de alguns minutos, ouvi meu nome. Apenas ele me chamava
de Freya.
Ele dizia que assim como a deusa, eu fui feita para o sexo. Nascida da
luxúria e criada da beleza. Que eu era sua, que havia lançado um feitiço nele,
e continuava amarrando os corações dos homens que passavam por mim. Que
eu valia todo o seu ouro e por mim, ele causaria uma guerra.
Por mim, ele causaria mortes.
Eu não sabia o que tudo aquilo queria dizer, mas obedecia mesmo
assim.
Caminhei até o mestre, tentando não demonstrar a dor entre minhas
pernas quando ele me segurou a sua frente, me enfiando três dedos grossos e
mordendo meu ombro. Quando os retirou e segurou meu rosto, o rastro de
sangue molhado foi sentido em minha bochecha quando o sopro de sua voz
veio.
— Você foi uma menina tão boa essa noite, minha feiticeira. Cada
homem nesse lugar quer ter você, mas eles não podem, não é?
— Não, Mestre.
— E por quê?
— Porque pertenço a ti — sussurrei fracamente, dando tudo de mim
para permanecer de pé.
— Sim, você me encantou e enfeitiçou. E agora, me pertence.
O Mestre levantou de sua cadeira dourada e vermelha, chamando a
atenção dos homens que festejavam abaixo do degrau. Do seu pedestal.
— Senhores, não há dúvidas que a mais bela criatura está presente nesse
lugar. Minha feiticeira, minha bela Freya. Hoje, darei a vocês o prazer de tê-
la e fazer com ela o que quiserem.
Eu olhei para o mestre, mesmo sem sua permissão. Não entendia suas
palavras. Ele havia acabado de permitir que eu estivesse com todos os
homens dali, a fila incontável de homens atrás de mim, me tomando um por
um e o rastro de sangue saindo pelos dois buracos mais íntimos do meu corpo
provavam isso.
— Meu senhor? — sussurrei.
Ele não me ouviu, tentando acalmar a multidão que vibrava após seu
anúncio.
— Bem-vindos a caça à bruxa! Não a machuquem permanentemente, o
castigo para quem fizer isso será fatal.
Virando-se para mim com um sorriso maligno, Mestre segurou meu
rosto, me beijando com uma delicadeza que não condizia com as suas
palavras, antes de me soltar e apontar para a porta que abria o caminho de sua
floresta.
Minha respiração era ofegante, o coração martelando no peito e visões
daquela última cerimônia me inundando de uma só vez.
Não era uma caça às bruxas. Era uma caça A bruxa.
Sua feiticeira.
Freya.
Eu.
— Corra. — A voz firme do mestre ecoou em minha cabeça e
tropeçando para trás, olhei para o corredor de homens que se abria até as
portas para a floresta. Sem hesitar, virei-me e corri, quando bati nas portas,
saindo para o ar fresco, o sol já caía, mostrando-me que logo ficaria tão
escuro quanto a alma do meu Mestre e não haveria nenhuma chance de eu
não ser encontrada com todos os homens procurando por mim.
Flashs da última caça às bruxas passaram pela a minha mente enquanto
eu corria, atravessando as árvores e tentando colocar a maior distância
possível entre mim e a masmorra. Perdi Aphrodite naquele dia, a única
escrava permitida perto de mim. A única outra Mistress além de mim. A
única pessoa com quem eu conversava e me permitia colocar em palavras
dúvidas que surgiam em minha mente, como o que havia além das árvores do
Mestre, de onde vinham os homens que falavam diferente de nós, suas
roupas, porque eram tão diferentes uns dos outros.
Ela queria conhecer mais pássaros, o pequeno ser que pousava em nossa
janela e voava. Aphrodite disse que se chamavam asas. Asas de pássaros.
Mas, ela se foi, e agora não havia mais dúvidas, nenhum riso, ninguém
além das serventes do Mestre para cuidar das minhas feridas.
E agora era a minha vez.
— Venha aqui, feiticeira!
As vozes começaram a vir de todas as direções.
Eu corri.
A diversão do Mestre era me machucar, me fazer sangrar, me ver fugir.
Apenas para me alcançar e mostrar que não havia nada para mim além de
seguir suas ordens. Me coloquei a correr mais rápido, ouvindo sua voz em
minha mente quando me ensinou a oração de agradecimento que eu lhe
deveria enquanto vivesse.
Porque dele, por ele e para ele são todas as coisas.
“Sempre louve a mim, Freya”.
Gritos, passos estalando nas folhas secas e risadas atrás de mim
começaram a ecoar pela floresta, aumentando o fluxo de lágrimas que caia
pelo meu rosto, tropecei quando a dor no meio das minhas pernas ficou quase
insuportável e soltei um grito abafado, olhando ao redor em desespero.
Levantei, com sangue nas mãos e meus pés ardendo dos cortes feitos de
galhos e pedras.
Voltei a correr, corri até que a noite caiu.
Até que o sol desceu ao céu outra vez.
Mas, como todas as vezes, eles me alcançaram.
Com o sol subindo ao céu, flutuei nos braços dos serventes. Meus olhos
ardendo de ficar horas e horas deitada no mesmo lugar. Fitei as nuvens se
movendo, a lua sumir, a noite abandonando-me até que tudo ficou claro outra
vez. Me perguntei se era o fim, se acabaria daquele jeito.
Deitada em algum lugar perto do rio, a túnica rasgada e salpicada de
sangue, minhas pernas abertas e machucados que não deixariam cicatrizes,
porque o Mestre me queria perfeita para seu olhar e prazer. Meus olhos
vidrados enquanto eu jogava a dor, as lembranças e os machucados para uma
caixinha no fundo da memória. Aquela em que eu me forçava a nunca pensar,
me obrigava a fingir que nunca aconteceu.
Logo, as mãos que me arruinavam me tomaram nos braços, acariciando-
me durante o banho e me colocava para dormir. Então me lembrei porque
esquecia a caixinha das lembranças. Para lembrar que cumpri meu dever
e seria recompensada. Eu sobrevivi.
O Mestre estaria pronto e feliz para me receber.
“Porque dele, por ele e para ele são todas as coisas. Gloria a ti, Mestre,
eternamente.”
“Boa menina, Freya. Muito bem.”
"Você está pronto?
Inflamando
Sexo enlouquecido cheio de dinamite
Está crescendo
Está queimando dentro de mim"
THE STRUTS, DIRTY SEXY MONEY
ANTES - 21 ANOS DE IDADE

— Não, não! Eu quero ouvir essa de novo! — Bati no balcão, rindo e


derramando cerveja pela madeira desgastada.
— Perdoe o meu amigo, senhor do bar. Ele gosta de beber além da
conta.
Olhei para Kazel e segurei seu rosto com as duas mãos, beijando sua
testa suada.
— Você é a porra do melhor cara que eu conheço nessa vida, seu grande
desgraçado!
Ele levantou o copo batendo junto ao meu.
— Somos uma bela dupla, meu irmão. Uma bela dupla.
— Me deixe adivinhar, vocês são do exército? — O garçom sugeriu,
dividido entre continuar nos servindo ou chamar o gerente do hotel.
Kazel cuspiu a cerveja, achando graça e me encarou.
— Merda, não parece engraçado quando ele fala?
— Ele é inglês. — Ri junto.
Estávamos em um hotel em Las Vegas, quase concluindo nosso primeiro
negócio grande. Meu tio Stark, ofereceu bons empregos para o resto da vida
na Liga, mas eu não queria e Kazel também não. Queríamos algo maior, algo
nosso. Ser nosso próprio chefe. É muito fácil trabalhar para alguém até que
eles enfiem no seu rabo.
Na Liga, tínhamos que seguir ordens e trabalhar quando éramos
chamados. No nosso negócio, faríamos o que diabos quiséssemos.
— Sou irlandês.
— Os irlandeses são os novos ingleses rejeitados.
O barman ficou vermelho de raiva, eu apostei comigo mesmo quanto
tempo ele levaria para perder o emprego se continuássemos ali tirando sarro
de sua vida miserável.
— Ouça, amigo. — Segurei seu ombro. — Essa vida pode ser dura,
então relaxe um pouco. Se quer uma dica beba antes de começar o
experiente.
Kazel se empoleirou no bar e agarrou uma garrafa de vodka, tirando
todas as notas variadas de sua carteira e colocando em frente ao homem.
— Se quiser mais pode ir ao meu quarto essa noite.
Acenei para o cara, deixando-o para trás enquanto levava Kazel até o
elevador.
— É tentador largar você aqui e ir atrás de algumas bocetas
sozinho, freund — provoquei, tentando apoiá-lo no canto.
— Não faça isso comigo, drug. Eu gosto delas tanto quanto você gosta.
— Sim, mas você é o único bêbado além da conta, filho da puta.
Ele começou a rir.
Uma risada bêbada, escandalosa, sem previsão de parada.
Segurei o elevador para duas moças que vinham entrando e acenei com
um sorriso quando me olharam. Segurava Kazel na parede, firmando-o de pé
nas pernas moles, e ele tinha um sorriso de merda no rosto.
— Senhoritas — cumprimentou.
As duas riram, nos olhando como se topassem qualquer parada.
— Vocês não são daqui, são? — A loira perguntou, abraçando sua
amiga.
— Conversas no elevador são proibidas. — Abaixei a cabeça para
esconder o sorriso quando o ouvi, porque já ouvi antes e sabia o que viria
depois. — Teremos que subir pro quarto afim de matar essas curiosidades.
— Eu nem te conheço. — A ruiva com um vestidinho rosa falou me
olhando, mas já estava sorrindo, enrolando o cabelo na ponta do dedo. —
Nunca vi mais gordo.
Kazel segurou a bainha da minha camisa e subiu, mostrando
seus abs trincados.
— Nem veria, isso aqui está longe de gorduras. E acredite, o meu é
melhor que o dele.
Elas deram risada.
— Já chega, palhaço,
— Bati na mão dele. Quando chegamos no nosso andar, acenei para as
duas. — Boa noite, mädchen.
Saí do elevador carregando meu amigo e peguei o cartão no bolso, mas
antes que pudesse colocar na porta, alguém o tirou da minha mão.
— Deixe-me abrir para você, alemão. — A ruiva brincou, piscando. O
carpete no corredor me impossibilitou de ouvir os saltos aproximando-se,
mas não rejeitei a oferta.
E sua amiga veio logo atrás.
— Primeiro as damas.
— Por isso eu sou seu amigo. — Kazel murmurou quando entramos no
quarto. — Você as ganha pra nós dois com esse sotaque bonitinho.
Cambaleando, ele foi até a loira, tirando a garrafa de champanhe de sua
mão e abrindo.
Fechei a porta, só observando a cena se desenrolar. A ruiva tomou a
iniciativa de ligar o rádio do quarto, começando a dançar junto com sua
amiga, que já dividia uma garrafa com Kazel. Ela não tirava os olhos de mim,
apreciando. Eu gostava de mulheres, principalmente quando elas me olhavam
como aquela ruiva fazia.
Tinha acabado de sair do exército, passei três anos lá, vi coisa pra
caralho, mais do que a maioria dos homens mais velhos não tinham visto a
vida inteira. Eu merecia a diversão antes de tudo ficar sério outra vez.
A chamei para perto e ela veio dançando, parando apenas para pegar
uma outra garrafa de champanhe para nós dois.
— Você é lindo.
— Danke, schatz.
— Promete que vai falar alemão no meu ouvido a noite toda? — Ela
sussurrou, enfiando a mão por dentro da minha camisa e indo para a barriga.
A amiga estava tão envolvida quanto ela e meu amigo sorria para mim
como um louco. As duas não estavam a fim de esperar mais um minuto. Já
passavam das quatro da madrugada, deviam ter farreado a noite inteira e para
finalizar o dia, procuravam uma boa foda.
Eu nunca fui homem de dar para trás numa missão, então...
— O quanto você quiser.
A envolvi em meus braços, puxando para perto e de encontro a minha
boca.
Kazel gritou, aumentando mais a música. Seríamos expulsos, eu tinha
certeza, mas não seria a primeira vez.
Olhei meu irmão da vida por cima do ombro da ruiva e sorri, ele me
brindou com sua garrafa e começou a tirar a roupa da loira em seus braços.
Melhor vida que um homem podia querer.
“Eu sou uma bagunça, eu sou uma perdedora
Eu estou obcecada, eu estou envergonhada
Eu não confio em ninguém ao nosso redor
Eu sou uma bagunça para o seu amor, não é nenhuma novidade"
BEBE REXHA, I'M A MESS
DIAS ATUAIS

O telefone na mesa de cabeceira tocou por volta das nove da manhã. Eu


sempre sabia quem ligava, ligações eram sempre agendadas e nos mesmos
horários em sua maioria, mas daquela vez foi um mistério. Ninguém me
chamava as nove em uma quarta-feira. Esse era o dia que eu tirava para mim
mesmo e todos sabiam disso. Inclusive o remetente desta ligação, pois foi
direto no telefone da mansão, não em meu celular.
Atendi após perceber que a pessoa não desistiria, mas não tive tempo de
dizer algo quando a voz do meu primo soou alta e aflita.
— Preciso de um favor. Sim ou não?
Encarava o teto, deitado na enorme cama como se do lado de fora do
quarto não houvesse uma guerra estourando em minha porta. Inimigos, a
agência, o governo, até mesmo sua família, que decidiu de repente que
continuar ao meu lado talvez não fosse tão benéfico assim.
Mas se havia algo que aprendi com o passar dos anos, foi que aceitar um
favor rendia outro em troca. Demeron sabia que teria que pagar um dia
também.
Não hesitei.
— Sim.
Ouvi meu primo suspirando do outro lado da linha, o que me
surpreendeu. Demeron não era tão claro em suas emoções e respostas. Esse
era o simples efeito de alguém tão próximo em sua vida. Onira.
— Freya foi presa. Eu não tenho como tirá-la da cadeia rápido o
suficiente.
— Quem? — perguntei, confuso.
— Freya. Jesus, Siriu! Você só lembra das mulheres com quem dorme?
Não, essas eu sequer tentava lembrar o nome.
— Vá direto ao ponto.
— A mulher que foi libertada quando recuperei Onira, não com sua
ajuda, é claro. Pequena, olhos amarelos, cabelos escuros e longos pra
caralho.
A imagem veio a minha mente como um relâmpago num dia ensolarado.
Eu não podia esquecer do rosto, tinha um talento para querer o que não
deveria, mas era óbvio, já que em minha visão, nada estava além dos limites.
— Eu me lembro. Por que ela foi presa?
— Conduta pública imprópria. Não me deram detalhes sem um
advogado.
— Devo me surpreender por você ainda não ter chamado Kirina?
— Kirina está fora da cidade.
— E você não tem nenhuma outra opção?
— Kaladia, mas ela só ajuda quando a interessa, como você bem sabe.
Entre dever um favor a ela ou você, escolho a opção mais fácil.
Quando Kirina, a cafetina do bordel mais bem frequentado do estado
não estava, as pessoas geralmente procuravam por sua irmã. Eu quis rir da
comparação entre nós dois. Onde eu pesava mais de 100 quilos de puro
músculo, a pequena loira não devia passar dos sessenta, ou sequer chegava ao
meu queixo em altura, saber que era menos temido do que ela por ele, foi
engraçado. Meu primo realmente estava amolecendo. Ou apenas perdeu o
resquício de respeito que por mim que ainda lhe restou depois de tudo.
Não podemos culpá-lo.
— Sua mulher está te transformando em um homem com vagina.
— Seu linguajar formal é repugnante. Você precisa ajudar Freya agora.
— Ela foi solta a meses. Tenho certeza de que pode lidar com uma sala
na delegacia por algumas horas — disse, enquanto levantava da cama e me
vestia.
Por um momento refleti nas próprias palavras, enquanto uma fantasia
invadia minha mente perversa. Imaginei-a nua, algemada, de quatro em cima
da mesa do delegado sendo surrada por mim e mais alguns oficiais.
Perguntei-me como ficaria com marcas por todo o corpo, gritando por não
conseguir mais aguentar a pressão de tanto prazer.
— Ela ainda não está nem perto de conviver em sociedade normalmente,
inferno! — Demeron gritou na linha. — Ela passou a vida inteira seguindo
ordens e ainda o faz. Imagine isso dentro da cadeia. Pensar no que pode estar
sendo feito a ela agora mesmo, me deixa em pânico. Ela não sabe nada, não
tem noção do que é certo e errado e vai tentar agradar cada pessoa que
atravessar seu caminho.
Cogitei sequestrar e prender meu primo novamente ao ouvi-lo dizer que
estava em pânico. Um agente treinado, alguém que deu o maior golpe em
uma rede terrorista estava se sentindo em pânico porque uma menina foi pega
fazendo besteiras na rua. Ignorando o comentário ridículo e auto-humilhante
de Demeron, abotoei o sobretudo cinza chumbo enquanto saia da cama.
Ao mesmo tempo, a lembrança de que a pequena mulher havia ficado
presa como escrava da Kambarys por toda a vida me bateu. Era minha
obrigação ajudá-la.
— Tirá-la da cadeia me custará cobrar favores. E para cada um que eu
cobrar de alguém, vou cobrar de você, e cada um que eu ficar devendo,
colocarei na sua conta.
— Eu não esperava que seu bom coração ajudasse de bom grado —
rebateu ironicamente.
— Você me conhece bem, soldado.
Desliguei e sai do quarto com duas armas empunhadas para serem
guardadas. Já amanhecia, o que me incomodou. Pensei que Demeron fez o
pedido naquela hora de propósito, afinal, todos sabiam bem que o Senhor X
preferia resolver seus assuntos ao anoitecer.
Às quartas-feiras, sempre quartas, eu me fechava em minha casa na
periferia de Berlim onde todos sabiam quem eu era pelos motivos obscuros
que rodeavam minha vida. Sem família, sem empregada, sem a agência em
meu pé. Um lugar onde eu não podia ser rastreado.
Meu paraíso no meio do inferno.
Por vezes acordei com tiroteios, outras, alguém tentando invadir a casa.
Via drogas e armas sendo repassadas e vendidas como se fossem balas no
metrô.
Eu não me importava.
O terror que se espalhava por Berlim a cada dia me fascinava. A
sensação de que a qualquer momento um purgatório podia ser iniciado e no
fim dele, ficariam apenas os loucos e sequelados como lembrança.
Eu sabia que tinha o poder de sair dali a qualquer momento e voltar para
a segurança de minha casa em Frankfurt, a mansão que morava com minha
família perturbada. Meu tio corrupto, a cunhada traidora, meu primo volátil,
minha avó que a cada dia beirava mais a loucura, caindo nas profundezas de
sua demência. Os anos de terror que ela espalhou levando a palavra da Liga
pelos países que passou vieram cobrando com juros em sua velhice. E a
pequena Blair, que não inspirava em mim um pingo de simpatia, apenas um
reconhecimento de que se precisasse salvar um estranho ou ela, a salvaria.
Meus motivos eram meus, assim como as consequências de cada ato que
já tomei na vida.
O senhor X, eles diziam.
Há sempre um alvo.

— Senhor Konstantinova. — O delegado Erike Ditz apertou minha mão


quando entrei delegacia, depois limpou um pingo de suor que lhe escorria
pela têmpora. — A detenta está esperando em minha sala.
— Como ela está?
— Sim, sobre isso, bem, muito bem... Eu só... — Ele parou e imitei o
gesto. — Ela andou falando sobre as Kambarys, sobre Kazel.
Demeron, condenado seja. Sua protegida andou falando demais e agora
eu teria que dar um jeito.
— Para quem?
— Duas prisioneiras que estavam em sua cela. Estava contando como
vivia.
Assenti e voltei a andar por conta própria, sabia o caminho.
— Dê um jeito nas duas.
— Acho que não será necessário. As duas pensam que a menina é louca,
as coisas que ela diz não fazem muito sentido para quem é de fora.
— Então se elas falarem as palavras chave “Kambarys” e “Kazel”, você
se responsabiliza?
Erike nem hesitou.
— Foda-se, não. Para o inferno as duas. As envio para a Liga?
— Mande Kaladia vir buscar.
— Certo. Ah, e Siriu? — Parei novamente, virando-me para fitar
meu colega de trabalho. — Alguma chance de ela ser mandada para Kirina?
Me enervou, mas cobri o sentimento.
— Por quê? Está interessado em abusar da menina mais do que Kazel já
fez?
Erike riu.
— Ela nem se importa. Quando entramos na cela para tirá-la e levar a
minha sala ela já estava com a camisa fora do corpo mostrando os peitos para
as duas companheiras.
Eu não ri e não era engraçado. Mas, Erike sempre foi um idiota, com
uma vida tão miserável que não tinha sequer importância para que eu me
preocupasse em colocar uma bala em sua cabeça.
Presenciei a decaída de antes meu melhor amigo, Kazel, para se tornar o
mestre e já o vi cometendo muitos atos em nome da seita que abusava e
matava meninas todos os dias, portanto, mesmo amando a violência cometida
contra quem merecia, eu não conseguia achar graça em ver como a cabeça de
uma escrava sobrevivente estava fodida.
Principalmente quando eu tinha grande parte nisso.
Ignorando-o, segui meu caminho atravessando a delegacia, sentindo o
efeito que minha presença causava enquanto passava pelas salas e o salão
aberto onde os oficiais ficavam.
Finalmente alcancei a sala principal, e sentada num enorme sofá preto,
vestida com uma camiseta simples branca e uma saia que ia até o pé toda
rodada, também branca, estava uma mulher.
Não, uma menina.
Uma menina sentada enquanto esperava por mim. Pequena demais.
Baixa, magra.
Pelo volume na frente da camisa, vi os seios grandes. No rosto que
eu tinha colocado os olhos apenas uma vez antes, os olhos arregalados e sem
brilho se destacavam e tinha os lábios inchados que eu sabia
que Kirina pagou uma pequena fortuna para ter. Meus quarenta e três anos
fizeram-me sentir um pervertido por olhá-la e conseguir sentir mesmo um fio
de atração. Aquela sensação estranha que senti no dia em que a vi na mansão.
Não podia resistir. Se não fosse a protegida de Demeron e
completamente confusa da cabeça, não iria. Seduziria a menina e a levaria
direto a algum hotel.
Como não era...
— Vamos embora — disse e virei as costas, dirigindo-me a saída. Pelo
vidro de uma porta aberta no corredor, garanti sem olhar para trás que ela
estava seguindo.
— Espere, meu senhor, espere!
Meu senhor.
Fodido inferno, o que essas palavras faziam para mim...
Cheguei ao lado de fora e finalmente parei, desligando o alarme do carro
enquanto a esperava. Ela apareceu pouco depois, colocando as mãos no
joelho e inclinando-se um pouco, respirando várias vezes. Depois, com a
camisa folgada mostrando boa parte do decote, olhou para cima, quase
ajoelhada em minha frente e eu jurei que voltei a adolescência, quando a
primeira garota ficou nua em minha frente.
Essa foi a sensação, como se aqueles olhos amarelos pertencessem a
única mulher que já vi nua. Eu queria tantas coisas naquele momento. Queria
realizar tudo.
Menina, me corrigi.
Uma menina.
Inferno, eu não era melhor que Erike.
— Quase não o alcancei... — Ela explicou. — Pensei que ia partir sem
mim.
— Vim buscá-la, entre.
— Demeron avisou. Quer dizer, ele disse a aquele homem que o senhor
viria. Vocês são... — Ela fez uma pausa, como se tentando lembrar de algo.
— Amigos?
Continuei olhando, tentando obter meu próprio controle de volta.
— Meu senhor, fiz algo errado? — perguntou, expressando quase um
tipo de desespero no rosto e na voz. — Ainda estou aprendendo as coisas,
então se disse algo que o incomodou...
— Entre no carro. — A interrompi. Entrando eu mesmo no veículo e
dando partida. Não olhei quando ela correu para dentro e seu perfume tomou
conta do ambiente fechado.
Abri as quatro janelas e vi pelo canto dos olhos ela virando para me
analisar. Passou a língua pelos lábios, sua respiração audível. O peito subindo
e descendo. Ela parecia feita de porcelana. A pele clara, com apenas algumas
poucas sardas claríssimas abaixo dos olhos. O nariz pequeno e arrebitado, a
boca num círculo. Uma boneca.
Desviei o olhar.
— Eu sei que Onira estava muito assustada, mas nada me aconteceu, na
verdade, estou tão feliz por todas essas pessoas! Eles vivem em comunidade,
como eu e Aphrodite costumávamos fazer. Um ao lado da cela do outro,
todos juntos e perto como uma enorme família. Imagine só como deve ser o
Natal?
Desviei o olhar das ruas para fitá-la por um momento, percebendo que a
menina em questão estava mais danificada do que todas que eu já tinha
conhecido fora da Kambarys depois de resgatadas ou terem conseguido fugir.
Me questionei se menina estaria perdendo a cabeça de vez, algo que já
aconteceu antes. Eu rastreava todas as sobreviventes da seita e ia atrás delas
para descobrir se sabiam algo sobre Kazel. Alguém tinha que ter chegado
perto o suficiente para saber onde ele se escondia. Eu sabia que ele viajava
demais espalhando a palavra da Kambarys, coletando meninas novas,
buscando mulheres que tentassem todos os tipos de homens. Um incentivo,
ele dizia. Assim todos os níveis de poder poderiam ser convencidos a aderir a
causa.
— O que você disse?
— Esse lugar onde eu estava. Tenho aprendido sobre o Natal, foi a
última coisa que Onira me ensinou.
— Você sabe o que é esse lugar?
— Eu acredito que uma comunidade, como a Kambarys.
— Não. — A interrompi. — E você não deve ficar falando sobre
a Kambarys para outras pessoas.
— Oh... por quê?
— Porque as outras pessoas são leigas sobre isso. A Kambarys é um
segredo.
— O que é leiga? E... e o que é um segredo?
Aproveitei o farol fechado e a encarei. Os olhos amarelos e opacos
estavam fixos nos meus, arregalados. Ou seria o rosto dela pequeno demais
para olhos tão grandes?
— Elas são burras, as pessoas aqui fora não sabem de nada.
— Eu não sei de nada. Também sou burra?
Suspirei.
— Quantos anos você tem? — Voltei a dirigir.
— O mestre disse que vivi por dezenove anos.
Aquela palavra tinha um poder sobre mim que nenhuma outra possuía.
Mestre.
Quantas vezes lutei com isso, depois matei por isso, e por fim, a aceitei?
— Você não tem um mestre, menina. Não repita isso.
Dezenove fodidos anos. Uma criança. Demeron estava pior da cabeça do
que eu havia imaginado. Me mandar para salvá-la? Logo eu, entre todos os
homens que podiam facilmente fazer isso e ir embora?
— Meu nome é Freya.
Claro que era.
Para me castigar, Odin tinha que colocar a representação em nome e
imagem da deusa do amor, do sexo, da beleza, da luxúria em meu carro e
fazer-me ser obrigado a ter bolas roxas por ela. Olhei para o céu através do
vidro e condenei meu Deus.
Acelerei o carro.
— Segredo significa não contar algo, guardar com você. — Voltei a o
que era importante de fato. — Significa que você não deve falar com
ninguém sobre a Kambarys além da família de Demeron.
— É a sua família também, meu senhor, não é?
Meu senhor.
Algemas. Cordas. Velas. Vendas. Chicotes. Açoites.
Isso era tudo o que permeava minha mente quando me chamava daquele
jeito.
Acelerei mais o carro, passando os poucos faróis restantes até a casa que
Demeron resolveu se esconder na beira de um penhasco com sua
namoradinha.
— Sim. São minha família.
— Eu queria isso, uma família. Onira diz que já sou parte da de vocês,
mas não me sinto assim.
— Você vai sobreviver — murmurei.
Ela ficou quieta, mas eu sentia seu olhar.
— É, acho que sim — respondeu baixinho depois de um tempo. —
Quero entender tudo aqui fora algum dia. Tem coisas que penso, mas não sei
explicar e coisas que quero explicar, mas não sei como pensar o suficiente
nisso.
Não importava que eu a ignorasse, ela continuou falando como se fosse
um diálogo de duas pessoas interessadas numa conversa. Eu só queria seu
silêncio, mas não podia deixar de entender o que dizia.
— Meu mestre nunca me disse muito.
— Kazel não era seu mestre, pare de se referir a ele dessa forma. — O
comando veio naturalmente, sem me surpreender, mas irritou-me não
conseguir segurar.
Minhas emoções estavam exaltadas, e a ingestão de ar seguida de um
sussurro rouco dela parecia um grito para acordar meu pior lado. Meus dedos
ficaram brancos com tamanho o aperto no volante, segurando-me para não
reagir a isso, forçando-me a manter-me num sono profundo.
— Sim, senhor.
Depois disso, ficamos em silêncio. Ela continuava olhando de pouco em
pouco tempo. Estava curiosa sobre mim, mas guardou as palavras para si
mesma.
Agradeci aos deuses por isso.
— Chegamos — disse olhando para a frente, evitando encará-la e
encontrar aqueles olhos enormes outra vez. — O lugar onde você estava era
uma prisão. É onde pessoas que fizeram coisas ruins estão para pagar por
seus erros.
Ela ficou em silêncio. Eu teria que expulsá-la? Finalmente a olhei depois
de dois minutos de um silêncio onde apenas o para-brisa se movia, limpando
os pingos da garoa.
— Deixe-me agradá-lo, meu senhor.
— O quê?
— Agora entendo que na verdade me salvou. Deixe-me agradecer.
— De nada. Pode sair.
De repente, senti a mão pequena em minha coxa. O movimento foi tão
repentino que não a impedi de tocar meu pau por cima da calça. Quando
senti, por reflexo bati a mão tão forte em cima da sua que a assustou,
fazendo-a pular. Imediatamente tirei, mas afastei a dela junto.
Fechei os olhos. Inferno. Tinha noção da minha força, mas não era
programado para me controlar quando queria algo e nem sabia por que estava
fazendo isso. Dando ouvidos a uma consciência que na maioria das vezes
ignorava.
— Me deixe te dar prazer com a minha boca, meu senhor. Sou boa
nisso.
Kazel. Fodido. Do. Inferno.
— Saia do carro. — A olhei com uma fúria que não era dirigida a ela,
mas sim àquele que ajudei a construir o império de sangue que abusou dessa
menina desde seu nascimento.
Kazel.
— Meu senhor...
— Saia! — vociferei e dessa vez, Freya abaixou a cabeça se
atrapalhando com a maçaneta antes de correr para fora. Continuei olhando,
dizendo a mim mesmo que só queria garantir que ela entraria na casa antes de
ir. Assim, não teria sido um tempo perdido se resolvesse não entrar na casa e
sumir de novo.
Mas Freya não seguiu em frente de imediato. Ela parou a poucos metros
e ficou me olhando, mesmo que pelo vidro escuro do lado de fora não
pudesse me ver. Parecia que olhava em meus olhos.
Buzinei.
Isso a despertou. Ela pulou e correu para a porta. A menina tocou a
campainha e olhou para trás, para mim. Acenou. E inferno... sorriu.
Pouco depois, a porta foi aberta e Onira Tieko saiu, abraçando-a
imediatamente. Ela deu a mim um olhar sério, enquanto empurrava com
delicadeza a menina para dentro e entrou em seguida. Então, Demeron saiu
também, andando rápido em direção ao automóvel. Desviei o olhar, olhando
para a frente quando dei partida e acelerei o carro, impedindo qualquer
conversa entre nós dois. Passei pelo segundo farol tendo certeza de que meu
primo não me seguiria antes de diminuir e pegar o celular.
— Você me ligando numa quarta-feira. Bem incomum
— Kirina respondeu no segundo toque.
— Preciso de alguma coisa.
— Maconha? — Ela riu. — Meu maior traficante está aqui agora, posso
ver o que ele tem para você e mando alguém levar.
— Não. — Eu não queria drogas, já tinha entrado nesse caminho e
consegui sair. Preferia ficar lúcido. Não bebia, não fumava, não cheirava.
Minha mente estava sempre em ação, pronta para o jogo. — Mande sua
melhor puta pra mim.
— Isso é impossível, moya lyubov. Não posso sair da boate agora.
— Cansei de comer você, schatz. Quero algo novo.
Ela gargalhou como eu sabia que faria. Tudo para Kirina era festa, tudo
sempre estava bem. A mulher que mais magoei em minha vida, era também
aquela que mais me amava. Um amor que nunca aconteceria, então ela
aprendeu que se quisesse ficar perto, seria como uma amiga.
Um relacionamento nunca daria certo. Eu quebrei seu
coração, destruí todas as esperanças que ela tinha de uma boa vida antes de
me conhecer e por fim, se tornou o que era hoje. Antes uma puta cara, hoje
uma cafetina, uma empresária do crime, como ela gostava de dizer.
Eu assumi minha culpa e toda a responsabilidade do que havia feito com
ela e nos livrei do problema, mas Kirina nunca me perdoou. Ela me amava,
mas as vezes quando gozávamos juntos olhando nos olhos um do outro, é que
eu via a mágoa, o ódio dirigido a mim.
Ela gostava de sua própria dose de depravação.
Seria fadado ao fracasso, isso se ela não me matasse antes, ou eu não a
engolisse.
— No Adlon? — perguntou, sabendo que o Hotel mais refinado e
histórico de Berlim era também o lugar onde eu levava minhas companhias
femininas.
— Como sempre.
"Eu nunca vou romper o silêncio
Quando olho para dentro
Eu não tenho que me esconder
Se você está procurando, você não vai me achar
Quem é o inimigo?
Não sei no que acreditar vivendo nas sombras"
MATTHEW PERRYMAN JONES, LIVING IN THE SHADOWS

— Siriu?
Ouvi Blair chamando e virei para ver o que a menina queria. Ela tinha
estado em silêncio atrás de mim por uns bons cinco minutos, e eu sei que
costumava ficar me observando. Tinha uma personalidade que vagava entre a
escuridão de sua mãe e a luz que seu pai tinha um tempo atrás. Tão falante
quanto Regnar, tão crítica quanto Kaladia. Voltei a olhar para fora da janela
do terceiro andar da mansão, apreciando a manhã nublada, nada de sol por
hoje.
— O que foi, Blair?
— A bisa está chamando para tomar café.
A matriarca de nossa família nunca chamava, era sempre uma ordem,
pelo menos ela gostava de pensar que ainda funcionava assim.
— Comecem sem mim.
— Ela disse que só vamos comer quando você aparecer.
Suspirando, assenti para meu reflexo no espelho e enfiei as mãos nos
bolsos, dirigindo-me a escada onde a miniatura me esperava com um sorriso
no rosto. Ela sabia que eu não me importava em ser o tio legal, mas ainda
assim, gostava de ficar por perto. Regnar nunca estava, e de uma forma
distorcida Blair buscava em mim o que seu pai deveria oferecer, mesmo que
eu nunca tivesse dado uma grama do que procurava, a menina insistia.
Quando me aproximei, ela estendeu a mão.
— Vamos.
Sabendo que a filha de Kaladia só sairia da frente quando eu desse o que
ela queria, assim o fiz. Dei a mão para a menina e descemos as escadas o
mais brevemente possível. A coisa boa é que Blair nunca foi daquelas
crianças que falavam sem parar, ela apreciava o silêncio tanto quanto eu.
Angelina insistia em fazer todas as refeições em horários contados na
mesa, eu não via o porquê disso, mas obedecia às regras para não ser o
culpado de uma possível morte por ataque cardíaco ou pressão alta. Ela ainda
sabia atirar e ainda tinha um poder de influência incrível onde eles atuavam.
A idade lhe trouxe problemas físicos e mentais, mas ela ainda era Angelina
Konstantinova, a maior agente que a Liga já teve. A melhor arma que já
trabalhou para o governo.
— Ora, bom dia, meu neto. Pensei que ficaria lá em cima por mais um
tempo comendo ar — ironizou, piscando para Blair.
A menina parou ao lado da cadeira, rindo para a bisavó.
Quando fui me sentar para acabar logo com aquilo e sair para começar
meu dia, Blair limpou a garganta e cruzou os braços. Inclinei-me sabendo do
que se tratava e a peguei, sentando-a na cadeira. Ela me deu um sorriso
esperto.
— Obrigada, Siriu.
Kaladia levantou e serviu o café para Angelina.
— Adoçante?
— Não, querida. Vou querer o suco.
— Eu quero café, mamãe.
— Peça a Siriu colocar para você. — Kaladia me fitou com ironia. Ela
gostava de ver sua filha me testando.
— Siriu...
— Suco? — Meio rosnei, meio resmunguei.
— Café, por favor.
Peguei o bule, mas antes que alcançasse seu copo, a voz estridente
de Kaladia me parou.
— Não seja estúpido, Siriu. Ela não pode beber café.
— Por que diabos não?
— Ela fica agitada o dia todo e crianças não devem ingerir cafeína.
— Então por que você me mandou servir?
— Porque sempre imagino que vai se importar um pouquinho em fazer a
coisa certa.
Fitei Blair.
— Onde está seu pai?
— Eu não sei. — Deu de ombros, tirando um pedaço do bolo e enfiando
na boca. — Ele não dormiu em casa.
— Não dormiu? — Angelina perguntou a Kaladia.
— Não. — Kaladia ofereceu a resposta a contragosto, claramente
querendo evitar o assunto.
— Mamãe disse no telefone que ele está com uma vagabunda.
— Não repita isso, Blair!
— Mas, mamãe, você disse! — A menina rebateu, franzindo o cenho.
— Sim, eu disse, mas você não pode repetir.
— Tá, tá. Tudo bem.
— Onde ele está? — Angelina insistiu.
— Com a vadia.
— Blair! — Kaladia quase gritou, batendo sua xícara na mesa.
— Você disse que não posso falar “vagabunda”, mamãe. Mas, falou que
papai estava com uma vadia também, daí eu não falei vagabunda, falei
vadia!
— Bem, você não pode repetir nenhuma das palavras que eu disser
sobre o seu pai!
A menina pulou da cadeira e parou em minha frente.
— Obrigada pelo café, Siriu. Eu vou ver o vovô no escritório dele.
Ela saiu correndo, batendo os pés propositalmente mais alto no chão.
— Ela vai pegar Stark trepando com Belle, vá atrás — alertei antes que
fosse acusado de não me importar mais uma vez, o que de fato, eu não fazia.
Kaladia balançou a mão em desdém.
— Stark mandou Belle embora ontem, não tem ninguém trepando em
nenhum lugar.
— E eu ainda insisto em um café da manhã. — Angelina murmurou.
— Então acabou os meses de Belle e suas reformas e festas todo final de
semana?
— Parece que sim, até ele encontrar outra.
— Regnar está fora a serviço da Liga, Kaladia. — Mudei de assunto,
sabendo que Stark não gostaria de saber que sua vida sexual estava em
discussão na mesa. Não que eu me importasse com seus desgostos, mas
tampouco me agradava continuar batendo na tecla. E achei melhor acobertar
Regnar, ciente que o mal humor da mulher era o resultado do sumiço do meu
primo.
— Eu quero que ele se foda. Uma recepcionista do Adlon me ligou e
avisou que ele estava lá com uma das meninas de Kirina. Então foda-se você
também por tentar aliviar a barra dele e foda-se minha irmã por continuar
enviando prostitutas ao meu marido traidor.
— Ele está passando por um momento estressante, minha querida. —
Angelina interveio.
Kaladia abriu a boca para responder, mas não disse nada. Abaixou a
cabeça e assentiu após alguns segundos. A avó era a única pessoa a
quem Kaladia respeitava. Se Angelina a mandasse ir embora e decretasse que
Blair ficaria, Kaladia acataria. A submissão total dela me excitaria em
qualquer outro momento, mas não nesse.
Quando via o pé de guerra que era o casamento dos dois, eu me tornava
ainda mais consciente da minha decisão certa em ficar sozinho.
Achava Demeron corajoso por ter resolvido tentar ter alguém
novamente. Ao mesmo tempo um completo desgovernado, brincando com
coisas que não foram feitas para jogar. Como sorte, coração e destino.
Quando a Liga determinou que Dutch era um alvo, Demeron foi enviado
para conseguir provas que deixariam o russo em nossa mão para sempre, e
para isso, usou uma de suas filhas, Kaladia. Mas ela se apaixonou pelo falso
amor dele. Eu presenciei a linha tênue que a mulher viveu quando descobriu.
Beirava a loucura, a paranoia, a depressão que a qualquer momento a
faria cometer um ato sem volta.
Então Regnar se envolveu. Se apaixonou e a seduziu, fazendo-a se
apaixonar também.
Nenhum dos dois fez segredo do caso. E eu, é óbvio, estava junto
quando Demeron chegou depois de meses fora em uma missão e pegou sua
mulher pulando no colo de seu irmão. Regnar sobreviveu a um tiro e
enquanto os dois brigavam, Kaladia assistiu sentada no sofá onde
antes Regnar estava e bebia direto na boca da garrafa quase vazia de run.
Depois, os dois se casaram.
Blair chegou.
Kaladia nunca aceitou fazer o teste. Blair era de Regnar, assim ela dizia.
Pela força do ódio, Demeron nunca quis saber se o fruto da traição era
dele. E Regnar aceitou a palavra dela como se fosse escrito por Odin.
— Soube que você ficou de babá ontem. — Ela mudou de assunto.
— Sim. Não me fale sobre isso.
— Tão ruim assim?
— Ela está fodida da cabeça, como todas as meninas que saem
da Kambarys.
— Quem? — A avó perguntou.
— Freya, a protegida de Demeron — Kaladia explicou, sem esconder o
sarcasmo.
— A menina passou por eventos traumáticos, Siriu. Não seja indelicado.
— Angelina me repreendeu, bebericando algo em sua xícara de cinquenta
anos.
— Demeron vê esperança. — Kaladia disse. Ela dizia o nome
do ex como se nunca tivesse sido nada para ela. E agia como se não fosse
também.
— Ela me ofereceu um boquete.
Kaladia riu. Os cabelos extremamente loiros balançaram sobre os
ombros com o movimento.
— Você parece indignado, Siriu — disse ela. — Estou surpresa.
— Não fique tão surpreendida, a recusa não seria a mesma se a oferta
viesse de você.
Ela revirou os olhos.
— Passo. Dois irmãos é o suficiente para mim.
— Adicionar um primo pode dar sorte, pense sobre isso.
— Já chega! — Angelina bateu a mão na mesa. —
Respeite Regnar, Siriu! E Kaladia, não de corda a esse tipo de assunto, você
já não fez o suficiente no passado? E se Demeron salvou a menina e quer que
ela tenha uma vida normal, deixe-o tentar. Contanto que todos nós fiquemos
longe.
Eu achava engraçado que minha avó tenha criado um tipo de
consciência depois de anos a serviço do governo e depois, da Liga. Tinha
certeza de que era um mecanismo de atuação. Fingir ser a vovó amorosa e
restituída do passado, mas eu sabia bem como funcionava. Ela era
exatamente como Kaladia, se não pior. Eu a respeitava como autoridade
máxima da minha família. Comprava o teatro por fora, mas por dentro, sabia
quem ela era.
Também não diria nada sobre o assunto. Existiam coisas que não
precisavam ser ditas, principalmente quando estavam sendo vistas.
— É claro — disse por fim, recebendo um olhar duro dela como se
soubesse cada linha de pensamento em minha mente.
— Mas Demeron deveria ter sido mais esperto, não deveria deixá-la
com você...
Eu sorri com o apontamento e tinha que concordar.

Naquela noite, envolvido pela escuridão, a única coisa que iluminava o


quarto na mansão era um computador aberto em minha frente, enquanto
analisava um caso do tribunal. Meus casos eram graves, ficava por minha
conta julgar os maiores criminosos da Alemanha. O que com o passar dos
anos, me mostrou ser a melhor escolha de profissão, me dando uma lista de
contatos sinistra, altamente comprometedora e os benefícios de receber
favores das mais variadas pessoas e níveis de poder.
Eu observava um médico já condenado por matar uma série de pacientes
onde o Estado pedia pelo aumento da pena, visando que por bom
comportamento ele podia continuar entrando com recursos.
Os parentes, revoltados pelos distúrbios psíquicos do doutor terem o
levado a matar pacientes durante cirurgias plásticas, queriam pena de morte,
mas isso foi proibido há décadas, então queriam que ele penasse na cadeia até
morrer.
Eu o condenaria. O júri o condenaria.
Mas, havia algo mais no caso, algo que me intrigava no doutor.
Ele nunca contou o motivo que fez tudo isso.
Nenhuma filosofia maluca, nenhuma ideia radical. Ele apenas se sentava
e esperava para ver o que aconteceria, e fitava-me fixamente nos olhos
durante os julgamentos que seguiram por semanas após sua prisão.
Para mim, ele era um dos mais fascinantes. Desgraçadamente, o tipo de
homem com quem eu me sentaria para tomar uma dose.
De repente, houve uma batida na porta.
Levantei, não respondi quando bateram mais uma vez na porta e a abri.
— Você nunca tem o suficiente? — Perguntei ao ver Kaladia lá fora.
Ela fitou meu peito nu, ergueu as sobrancelhas e tentou passar por mim,
mas segurei seu braço e a puxei para traz novamente, a colocando para fora.
— Não vamos fazer Regnar ver o que Demeron viu, schatz. Não dessa
vez.
— Você é ridículo. — Cuspiu — Só quero pegar Blair.
— Antes me pergunte se ela está aqui.
A mulher suspirou. Sabia que todos eles eram cheios de joguinhos e
charadas, mas eu conseguia superar.
— Blair está aí dentro?
— É claro que não. Por que sua filha estaria aqui?
— Porque ela não está em nenhum lugar da casa e porque ela te idolatra
a ponto de vir dormir aqui nas quartas, e passar o dia brincando no seu quarto
enquanto você sai. Óbvio que você não vê isso, mas ela o faz.
Franzi o cenho. Que absurdo era aquele?
— Por que a deixa fazer isso?
— É um tipo de lugar seguro, eu não sei. Regnar e eu brigamos uma vez
e eu a mandei ir para um lugar seguro, depois a encontrei aqui, dormindo
naquele seu sofá do closet. Ela vem pra cá desde então.
Não era possível. Eu nunca dei abertura para a menina, a tratava como
se ela fosse uma mosquinha, uma adulta. Era grosso, nada afetivo, não sabia
lidar com crianças e não estava tentando aprender.
Para comprovar por mim mesmo que Kaladia finalmente perdeu a
cabeça, a deixei falando sozinha e fui para o closet. Quando acendi a luz,
porém, pequei contra Odin.
— Valhala seja amaldiçoada — praguejei.
A menina estava encolhida no sofá agarrada a um ursinho de pelúcia,
usando uma blusa preta de moletom como coberta que eu costumava vestir na
época do exército, que inclusive a cobria por inteiro.
— Eu disse. — Kaladia avisou, suspirando, passou por mim e com
esforço pegou a menina. Blair era pequena para sua idade,
mas Kaladia estava mais magra do que já esteve antes.
A mulher seguiu para fora e eu a segui.
— Diga a ela para parar de fazer isso — ordenei.
Kaladia ignorou.
— Kaladia, porra!
— Eu não tenho como impedir. — A mulher rebateu, olhando-me. — Se
quiser que ela pare, comece a trancar sua porta.
Eu faria isso. É claro que faria. Meu quarto não era baderna e nem
berçário.
Ia fechar a porta quando Kaladia me fitou novamente, séria dessa vez.
— Mas, Siriu, não faça isso. Ela não vai ter para onde ir.
Ela se foi. Eu fechei a porta.
E aquilo não era problema meu.
"...Eu fico pronta
Eu me visto toda para ir a nenhum lugar especial
Não importa se eu não sou o bastante
Para o futuro ou para as coisas que estão por vir
Porque eu sou jovem e apaixonada..."
LANA DEL REY, LOVE
Eu sentei aos pés do Mestre e abaixei a cabeça, em silêncio esperei
enquanto ele conversava com seu colega de trabalho. Ele era alto e falava
diferente do Mestre, falava diferente de mim também.
Eu falava diferente da maioria das pessoas, foi o que o Mestre disse. Eu
era... especial demais para ser igual a todos.
Eles comeram, eles beberam e eles falaram durante horas, mesmo
quando as outras mistress tiraram a mesa e apagaram a luz que vinha de
uma bolha no teto, deixando apenas a luz daqueles palitinhos que Mestre
usava para derreter em meu corpo algumas vezes.
— Quantos anos ela tem?
Mestre me olhou de cima, não que eu pudesse ver, mas senti seus olhos
em mim. Eu sempre sentia. Conhecê-lo a minha vida inteira fazia-me
reconhecê-lo como ninguém mais. Pouco depois, senti sua mão acariciando
meu cabelo. Ele o adorava.
— Freya viveu por quatorze anos agora.
— Ela é sua desde quando?
— Desde seu nascimento. Eu a tive com poucos meses.
— De onde ela veio, Kazel?
Kazel...
Eu sabia seu nome, já ouvira antes, mas nunca o falei em voz alta. Não
faria isso. Conhecia o toque da fúria dele, assim como sabia melhor do que
provocá-la em mim.
— Porque está tão curioso sobre a minha menina, Soka?
— Estou impressionado. Ela parece estar em sincronia com você.
— Ela está. — Mestre riu. — Eu não a tirei da Alemanha e
principalmente me arrisquei ao tomá-la de seu pai para receber menos do
que isso.
A palavra me soou estranha.
Sincronia.
Pai.
Alemanha.
Eram três das coisas que nunca ouvi.
Coisas novas que eu anotava em um lugar da cabeça e visitava quando
Mestre saia por longos dias, então eu me permitia falar e não me deixava
esquecer dessas palavras.
Mesmo que jamais fosse usá-las.

— Eu tive um pesadelo. — Experimentei a palavra ao contar a


doutora Katýa o que aconteceu.
— Um pesadelo?
— Sim.
— Na última sessão você disse que teve um sonho ruim.
— Onira me ensinou que posso abreviar várias palavras em uma só de
vez em quando.
— Me conte alguns exemplos disso.
Eu fitei o teto, procurando nas memórias algo rápido e que fizesse a
doutora entender o que eu queria dizer, mas ela sempre entendia. Era a
mulher mais inteligente que já conheci, e depois de Onira, a mais bondosa.
— Bem, ao invés de dizer que eu comi uma comida antes de sair de
casa, posso dizer que me alimentei.
Ela sorriu.
— Muito bem, Freya.
— Sei que é pouco, mas aprendi outras coisas também. Já sei muitas
comidas e... o alfabeto! Decorei por completo de trás para frente, também
estou avançando nas contagens, já sei contar acima de mil até três mil e
quatrocentos.
A doutora abaixou a cabeça, levando um momento para me encarar
outra vez.
— Estou muito orgulhosa de você e isso não é pouco. Esses progressos
são essenciais, para avançar e se tornar aos poucos a pessoa que você deveria
ter sido enquanto crescia.
— Talvez eu pudesse aprender mais rápido, eu não sei, pode ser que
tenha algo errado na minha cabeça.
— Freya... você tem dezenove anos de idade. Pode não entender isso,
mas há alguns anos ainda era uma criança. As pessoas aprendem durante toda
a vida e ainda assim erram. Você só está tendo essa chance agora e já sabe
mais do que muita gente.
— Você acha?
— É claro! E o mais importante, tem vontade de aprender.
— Eu tenho.
— Então, querida, confie em mim. Você vai fazer coisas grandes.
— Obrigada doutora — sussurrei. Ela sempre acreditou em mim, desde
o começo, quando meses atrás comecei a contar a ela minha história.
— Agora me fale sobre esse pesadelo.
— Bem... Mest... Kazel. — Me corrigi. — Kazel e eu tínhamos passado
a manhã na cama.
— Vocês dormiam?
— Fazíamos sexo. Ele estava animado sobre ter convencido um homem
a ir visitá-lo em nossa casa.
— Esse homem era mal como Kazel?
— Eu não sei, doutora.
— Tudo bem, porque você acha que Kazel ficou feliz?
Pensei sobre.
— Ele queria que Soka fosse nos ver há algum tempo.
— E quando essa visita aconteceu? O pesadelo era sobre isso?
— Sim, era. Soka estava curioso, perguntando a minha idade e de onde
eu vim.
— E quantos anos você tinha na época?
— Quatorze.
Katýa parou mais uma vez e anotou algo em seu tablet. Eu percebia que
algumas vezes a doutora hesitava, até se chocava com o que eu contava.
— Porque esse momento foi importante, Freya? O que você acha que
engatilhou o pesadelo?
— Kazel deixou que ele se alimentasse, perguntou a ele se queria fazer
sexo comigo e ele disse que sim.
— Vocês fizeram?
— Sim, era o que o convidado dele queria. Ele gostava de ver alguns
homens comigo de vez em quando.
— E o que aconteceu depois?
— Estávamos fazendo na mesa como Kazel pediu. Eu olhava para ele o
tempo todo, mas Soka havia fechado os olhos, eu estava sentada em cima
dele. Ele não viu quando Kazel chegou perto e cortou sua garganta —
lembrava-me do momento. Do sangue espirrando em mim, do Mestre
segurando minha cintura e me fazendo continuar moendo em cima do corpo
morto. Caso esquecesse, Kazel tinha fotos para relembrar. — Depois nós dois
fizemos sexo em cima do corpo dele, então fomos dormir e quando voltamos
para jantar mais tarde o corpo havia sido retirado. Tudo limpo.
Ela puxou uma longa respiração. Eu sabia que as coisas que dizia, na
maioria das vezes a chocavam, nunca fiz de propósito, mas ela disfarçava e
continuava como se fosse cotidiano. Ela queria minha história e eu estava
dando.
— Freya, você fala sobre sua antiga vida com uma naturalidade tão crua,
que às vezes me pergunto se estou sendo clara diante da gravidade disso.
Você entende que as coisas pelas quais passou, não são normais?
Sim.
— Eu sei. Eu entendo.
Eu realmente o fazia, mas qual era o grande problema?

Quando sai da sala vinte minutos mais tarde, Onira levantou-se e veio
até mim. Ela sempre estava pronta para me alentar. Sempre imaginei que ela
achava que eu sairia em prantos, muda ou finalmente mostrasse sinais de que
enlouqueci. Mas não havia isso em mim. Eu vivi com tudo o que aconteceu, a
vida com Kazel não me faria quebrar, a vida aqui fora... talvez sim.
— Ei, terminamos por hoje? — Ela perguntou com um sorriso inseguro.
Eu sorri de volta, um bem verdadeiro.
— Sim. A doutora disse que a próxima consulta com o psiquiatra será
daqui à duas semanas.
— Ok, querida. — Ela acariciou meus braços, e olhou para a doutora
por cima do meu ombro. — Tudo bem?
— Sim, Onira. Freya está fazendo progressos impressionantes. Quero
vê-la na próxima sexta no mesmo horário.
— Certo. Pronta para ir, Freya?
— Sim, vamos, estou morrendo de fome.

— Então... — Onira começou assim que nos sentamos na mesa do


restaurante.
— Minha barriga está fazendo aqueles barulhos. — Eu disse e ela sorriu,
balançando a cabeça.
— Quer mudar o horário das sessões? Talvez encaixar para almoçarmos
mais cedo.
— Não, está bem assim.
— Ok. — Nossos pedidos chegaram. Para ela salgado e para mim,
doce. Onira riu. — Algum dia você vai começar a comer primeiro a comida e
depois a sobremesa?
— Precisamos apreciar as coisas boas da vida.
— Nisso você tem razão, mas precisamos ser saudáveis também. Vou te
dar um desconto, mas vamos ver uma nutricionista em breve, está bem?
— Tá legal. — Sorri, feliz em ter ganho mais uma batalha contra a super
mandona Onira Tieko.
Nós comemos enquanto falávamos da semana, ela me contando coisas
da galeria e que Demeron ficaria fora por alguns dias a trabalho, também
que Slon andava em pé de guerra com seu irmão, Ward, mas não revelou o
motivo.
Falei sobre o meu interesse em ir visitar uma igreja e recebi uma reação
tensa, afinal, já tínhamos tido essa conversa e diante da recusa de Demeron,
eu deixei pra lá, mas agora com a viagem dele acontecendo, eu faria isso.
— Por que quer fazer isso?
— Eu fui abusada dentro de igrejas, não fui? — A palavra ainda soava
estranha. Abuso. Mas, eles se referiam daquela forma, então passei a fazer o
mesmo.
— São diferentes ambientes, Freya querida. Igrejas aqui fora são outra
coisa. — Ela hesitou. — Pelo menos a maioria. Elas são boas e fazem o bem.
— Eu quero conhecer isso.
Onira se sentia minha irmã mais velha e às vezes, uma espécie de mãe,
mesmo sendo poucos anos mais velha que eu. Eu não sabia qual a sensação
de ter uma mãe ou uma irmã, então não tinha com o que comparar como me
sentia por ela. Nosso tempo juntas era importante, nossas conversas me
acalmavam e ela me dava uma sensação de conforto que nunca conheci.
Ela me encorajou a começar a visitar uma psicóloga e eu não vi motivos
para recusar; na época, nem entendia o que era isso. Eu me sentei no sofá e
ela perguntou em que podia me ajudar, eu disse que estava tudo bem. Ela só
precisou dizer: tem algo que queira me contar?
E eu comecei a falar como se a conhecesse a vida toda.
A verdade era que na minha cabeça, não importava de quem se tratava,
eu entendia que quando me fosse perguntado algo, eu deveria responder.
Sempre foi assim. Apenas aqui fora comecei a entender que tenho direito a
dizer “não”, contudo, ainda digo mais “sim” do que a negativa.
A psicóloga ajudou, ela entende o que quero dizer, mas não entende o
que passei. Todos veem como algo absurdo, mas para mim, não há nada mais
normal.
É estranho que os homens aqui fora não me puxam na hora que bem
entendem e tirem minhas roupas para fazer sexo comigo.
É estranho estar há meses sem fazer sexo.
É estranho ser olhada com horror ao oferecer qualquer tipo de prazer a
uma mulher.
Ninguém aqui fora se paga com sexo. Ninguém aqui fora me deseja.
Então... qual o meu propósito?
Se meu Mestre cruzasse meu caminho, eu iria embora com ele sem
pensar duas vezes. Se ele apenas aparecesse, eu imploraria para ir.
— Você se lembra daquele homem que foi te buscar na cadeia? — Ela
perguntou de repente. Meu garfo parou no caminho da boca e a encarei.
A imagem que permeava em minha mente, do Mestre, tomou outra
forma. Um homem gigante, o maior que já tinha visto. Mais bruto, mas ao
mesmo tempo, incrivelmente educado. De uma forma estranha, ele se
encaixava. Os olhos dele, eu sentia que por mais que tentasse esconder algo,
ele ainda conseguia transparecer. Mostrava sem saber que havia algo
enterrado querendo sair.
Siriu. Siriu Konstantinova. É claro que eu sabia quem ele era.
Vivi por alguns dias em sua casa, onde Demeron pensou que seria mais
seguro para mim, mas no dia em que ele chegou naquela mansão eu senti
algo tão forte que precisei ir embora. Pedi a Demeron que me levasse a
qualquer outro lugar e não falei mais sobre aquilo. Mas estava lá. E Siriu era
a razão do meu silêncio.
De uma forma estranha, aqui do lado de fora ele era o que eu precisava e
naquela época, tão decidida a servir fielmente a meu mestre, eu não soube
lidar com a realização de que queria a outro mais do que já o quis.
— Sim, o primo de Demeron?
— Ele. Ouça, ele te disse algo?
— Tipo o quê?
— Algo que te deixou confusa, que você não entendeu.
Sim.
— Não.
Ele disse. Cada uma de suas palavras me deixou confusa, mas não pelo
significado e sim pelo o que senti ao escutá-las.
— Ele é um homem... estranho. Sabe? Entende o que quero dizer?
— Em que sentido?
Eu não conhecia muitas coisas ditas, mas reconhecia
expressões. As vezes, um olhar ou um movimento discreto foi o que salvou
minha vida, portanto, quando Onira hesitou, cruzando e descruzando as
pernas, eu percebi que havia algo que não queria me dizer.
— Me diga, Oni.
— Ele é um homem ruim, ok? — Os olhos estreitos, esticados fecharam
por um instante. — Ele é realmente ruim, Freya. Ruim como Kazel, ou pior.
Eu o quero.
A vozinha no fundo da minha mente ecoava o que eu queria esconder.
Mas não havia como mentir para mim mesma.
— Por que diz isso?
— Sabe quando você olhava profundamente nos olhos de quem te fazia
mal? Você se lembra da sensação? — Eu assenti. Onira soltou uma
respiração trêmula. — É exatamente o que eu senti quando olhei para Siriu e
tive a prova de quem ele realmente é.
Desviei o olhar dela. Desviei para que não visse a verdade. Para que não
soubesse que eu me lembrava da sensação. E eu a queria de novo.
— Ele e Demeron são do mesmo sangue, não é?
— Eles são, mas são completamente diferentes. Você nunca precisa ter
medo de Demeron. Sabe disso, não sabe?
— Claro. Ele é muito gentil, não entendo o porquê, mas ele é.
— Ele é gentil porque nem todos os homens são ruins, Freya. Você
entenderá isso com o tempo, mas por agora, basta saber que Siriu não se
encaixa nesses poucos.
— Ele não me fez mal.
— Não fez porque não teve chances. — Ela agarra minhas mãos por
cima da mesa, fixando nossos olhares — Eu jamais vou deixar que te façam
mal. Nem Siriu, nem qualquer outro homem.
— Talvez você só não o conheceu ainda.
— Eu conheci o suficiente.
Seu tom de voz deixou claro que o assunto estava encerrado, mas eu
precisava saber mais. Estava só começando para mim. Em meses Siriu foi o
único sinal de ar fresco no que eu conhecia da vida. Estava sufocando e
parecia que ele era o único que poderia me tirar daquilo.
Ou melhor...
Estava correndo em um campo ensolarado, com pássaros cantando e
com os pés descalços. Exatamente como a princesa Branca de Neve. E
precisava desesperadamente de algo que me tirasse do chão novamente. Algo
para me sufocar outra vez.
— Mas é impossível que eu não o veja novamente e...
— Não é, não. — Ela me interrompe — Nós nunca o vemos e agora isso
se tornará ainda mais regrado. Ele nunca vem até nossa casa e nós não vamos
mais até a casa de Stark.
— É lá que ele mora?
— Sim, quer dizer, eu acho que sim.
— Não pode mudar sua vida por mim, Onira.
— Não será nenhum sacrifício me afastar completamente daquela casa.
— Você fala como se tudo lá fosse horrível.
— Na verdade, é. — Ela disse baixinho, fazendo uma pausa como se
pensasse em algo difícil. — Sabe quando estávamos presas na Kambarys,
antes de Demeron chegar?
— Sim. — Assinto, interessada.
— Quando entro naquela casa me sinto como se estivesse
na Kambarys outra vez. Sinto um medo, um desespero que não deveria se
sentir na casa da família do cara com quem moro, entende?
Engoli a saliva seca, pegajosa. Perdendo o apetite para meu doce
suculento.
— Entendo.
Eu realmente entendia, e agora, mesmo sem entender muito das coisas,
comecei a pensar em formas de fazê-la me levar até lá. Era inevitável. Queria
vê-lo. Queria vê-lo outra vez.
Sabia o porquê. Eu sabia exatamente o que me chamava até Siriu.
Mas, o que sentia com Siriu, nem meu Mestre despertou em mim. E não
podia continuar naquele mundo vago sem ir atrás da única coisa que me fazia
sentir algo novamente.
A vida pacífica de Onira não era para mim. Ela deveria saber disso antes
de ter me tirado de onde estive desde o nascimento. Porém, por um lado a
agradecia ou nunca teria colocado os meus olhos sobre Siriu Konstantinova.
Como pode desejar o que está sendo esfregado à sua frente que é ruim?
Porque o bom me assustava e o ruim era tudo o que já conheci.
"Descubra que eu fui apenas um sonho ruim
Deixe o lençol secar as lágrimas
E veja a única saída desaparecer
Não me diga o porquê
Dê-me um beijo de adeus"
APPARAT, GOODYE
Despertei sentindo uma dor nas costas e quase sem conseguir virar o
pescoço completamente. A mesa dura abaixo apoiando metade do corpo não
foi feita para dormir, mas acabei pegando no sono enquanto lia algumas
coisas que Onira separou. Eu gaguejava um pouco menos na leitura agora e já
via sentido em como as letras juntavam-se para formar as palavras. Números
ainda eram estranhos, as coisas mais estranhas e difíceis que enfrentei no
mundo novo. E por isso, de um lado precisava agradecer ao meu mestre por
não me torturar com tal coisa como Onira fazia.
Ajeitando o caderno, lápis e borracha em um cantinho da mesa, me
levantei, espreguiçando todo o caminho pelo corredor até as escadas.
— Não me olhe assim, Onira.
Ao ouvir a voz de Demeron vindo lá debaixo, parei no meio da escada,
interrompendo a decida até a cozinha.
— Como quer que eu fique?
— Não estou dizendo que ela tem que ir embora, você sabe que eu sinto
que preciso protegê-la. Mas não podemos continuar vivendo com medo do
que acontecerá a seguir.
— Querido, ela está se adaptando!
— Eu sei, mein schmuck. Mas, ela pode fugir, pode se colocar em
perigo. Precisamos tomar precauções para que isso não aconteça.
— Ela já vai a um psicólogo.
— E você sente que isso ajuda?
Onira abaixou os olhos, hesitando na resposta.
— O tratamento não é imediato, é claro que ela ficará desconfortável no
começo, mas sei que depois vai avançando.
— Já tem meses, liebe, e eu ainda a pego olhando para o nada muitas
vezes. A chamo e não há nenhuma resposta.
— Precisamos lhe dar tempo, Demeron, ela viveu isso por toda a sua
vida!
— Eu sei e não a estou culpando. — Ele a puxou para si, beijando sua
testa — Mas não há nada que possamos fazer se ela sente falta daquele lugar
e de Kazel.
— Não diga esse nome.
— Você não ficará em negação, liebe, sei como é viver entre o mundo
real e algo que eu criei para mim mesmo. A mente humana é um lugar
catastrófico, cheio de armadilhas. Se ela não melhorar, vamos precisar tomar
outro tipo de caminho. Uma clínica não é a pior opção.
Esperei Onira negar. Esperei que fosse contra ele e aquela decisão, mas
ela apenas assentiu, enterrando o rosto no peito de Demeron.
Eu voltei ao quarto que me foi cedido e deitei novamente. Tentei ficar
com os olhos abertos, esperando para ouvir mais alguma coisa dos dois, mas
o silêncio reinava na casa. Ao mesmo tempo meus olhos começaram a fechar,
cedendo ao sono interrompido. Não resisti mais, porque embora estar
acordada fosse algo que precisava fazer, era quando meus olhos fechavam
que eu encontrava os meus pesadelos.
E me deixei cair no sono com louvor, porque era na escuridão das
lembranças que encontrava minha paz.
De tudo o que eu tinha conhecido no mundo, filmes foram algo que me
impressionaram muito. Como algo pode ser contado sem ser verdade, como
pessoas fingem por um longo tempo e se esquecem que estão sendo gravados.
Como eles me fazem questionar se aquilo é verdade, se alguma vez
aconteceu, se há algo parecido acontecendo em algum lugar no mundo.
Meus preferidos eram os de ação.
Romances me deixavam com um sentimento estranho, como se tudo
aquilo fosse bonitinho demais.
Dramas me davam sono.
Terror parecia bobo e comédia parecia mais bobo ainda, como os de
terror.
Mas, filmes de ação me faziam ficar acordada, me deixavam curiosa, me
faziam querer embarcar em aventuras que antes eu nunca pensaria. Os carros
em alta velocidade, as quedas livres, os tiroteios. Tudo era vida real para
mim. Era até engraçado ver a dor dos tiros. Eu já levei alguns e em certos
momentos, os atores não fingiam muito bem. Mas, eu entendia, eles
provavelmente nunca sentiram aquilo para valer.
Encontrei uma coleção de espionagem, o que era mais engraçado do que
terror e comédia juntos. Demeron sendo um espião ter aquilo em casa me
deixou curiosa e eu assisti.
Não consegui parar de encarar Daniel Craig como Siriu em nenhum
momento e me peguei assistindo a sequência dos filmes, todos os dias. Era
doentio.
Doentio.
A palavra nova se encaixava com muito do que eu vinha descobrindo de
mim mesma.
Descobri que quando gostava de um cantor escutava suas músicas
repetidamente até decorar as letras, e quando decorava, acabava por enjoar,
pois não aguentava ouvir mais. Então parava e seguia para o próximo, até
decorar e enjoar de novo.
Trancada pelos seguranças que Demeron colocou na frente do terreno da
casa todos os dias, me peguei sentando na beira do penhasco que apoiava a
bela casa dos dois e ficava horas observando o mar. As ondas quebrando
longe. Dias furiosas, dias calmas... e me peguei familiarizada com suas
diferentes faces. Descobri meu temperamento confuso, dias em que batia de
frente com os homens que não me deixavam passar do portão e perdia a
cabeça a ponto de querer experimentar a queda para aquele mar lá embaixo.
Vivi dias calmos, como as ondas tranquilas, onde oferecia meu mais
amoroso comportamento a eles, esperando que esquecessem sua lealdade
a Demeron e me deixassem ir, e quando ouvi um não, me contentei em voltar
a rotina de ver os filmes de sempre.
Um pensamento era sempre constante em minha mente... ele.
Eu queria tanto saber mais.
Não só sobre a vida e o mundo, mas sobre ele. Mais do que saber sobre
ele, queria que ele soubesse tudo de mim.
Obsessão foi a palavra que minha psicóloga usou.
Eu gostava disso.
Obsessão, doentio, compulsivo. Me peguei num círculo pontilhado,
onde contornando as três bolinhas eu ligava uma coisa à outra, e se
continuasse rabiscando as mesmas coisas, cairia sempre no mesmo lugar.
Do compulsivo ao obsessivo, do doentio ao compulsivo, do compulsivo
ao obsessivo novamente.
Eu me perguntava se esse caminho em algum momento levava a ele.
Perguntei isso a psicóloga também, e ela não soube o que me responder.
— Freya?
Demeron chamou pouco depois da porta bater e seus passos pesados
anunciarem sua aproximação da varanda nos fundos, onde eu estava sentada.
Não olhei para trás, sua voz ainda estava meio apagada com minha atenção
focada no céu escurecendo.
— Freya?
Eu já ia responder, precisava de apenas mais um segundo até o sol se
esconder. Ele continuou chamando, alheio a o que acontecia a nossa frente.
Isso foi algo que me encantou desde que sai da Kambarys. De casa.
Eu só conhecia a noite mesmo quando estava de dia. Antes de sair,
nunca vi o sol, sequer sabia de sua existência. Mas, o que me encanta não é
ele, é como a lua o toma. Como a noite o apaga. Como a escuridão facilmente
cega a luz, mesmo que leve um dia inteiro.
— Sim? — Eu levantei, fitando-o pouco depois do meu acontecimento
favorito do dia.
— Não me ouviu chamar? Está tudo bem?
— É claro. Só estava ocupada. — Ofereço um sorriso que ele não
devolve, mas não porque não gosta de mim, mas porque ele não acredita em
minha “recuperação”.
Ele não acha que sorrio de verdade, tampouco que sou sincera quando
canto minha alegria com a liberdade. E está tão certo que me faz sentir mal
por não lhe verbalizar a razão. Ele sabe que Onira está lutando uma batalha
perdida e eu sabia disso quando me tiraram do Mestre.
Então por que fizeram isso?
— Onira chegará um pouco mais tarde do que o normal — explicou. —
Eu vou pedir comida e você fique à vontade, tenho trabalho a fazer lá em
cima.
— Por que não vamos jantar na casa de sua família? Será melhor do que
gastar, não é?
Ele me observou por um momento sem transparecer nada no rosto,
portanto, eu nem sequer imaginava o que se passava em sua mente.
— Coma e descanse, Freya. — Foi a única coisa que me disse quando
finalmente desistiu do silêncio, virando as costas e entrando na casa logo em
seguida.
Em pensamento, desejei boa noite e decidi que não jantaria, talvez isso o
fizesse mudar de ideia.
Sentei-me novamente, esperando a luz que estranhamente acendia com
movimentos se apagar e quando aconteceu fechei os olhos, respirei fundo e
escolhi uma memória do passado.
Então me senti em casa.
"Vi os mais sombrios corações dos homens
E eu me vi olhando para trás outra vez
Agora eu estou sozinho e os incêndios crescem"
THE SILENT COMEDY, BARTHOLOMEW
Poucas coisas me surpreendem nessa vida, menos ainda me
impressionam, mas Harlen conseguiu fazer as duas em uma tacada só. Ter se
escondido durante anos, construído uma vida e voltado com a maior frieza,
agindo como se nada tivesse acontecido não era algo que antes eu pudesse
ver meu primo fazendo. Principalmente não debaixo do meu nariz. Ele
sempre teve um fraco por não terminar o que começava, ou se sentir culpado
quando passava dos limites da moralidade que empunhava em si mesmo,
desistindo antes de chegar a qualquer resultado.
Crescemos em quatro. Juntos.
Eu, mais velho, vi os três se desenvolverem e os deixava perto até onde
podia, ainda tentando protegê-los de coisas que na minha idade, já podia
fazer, mas suas cabeças não entenderiam. Nenhum de nós éramos ingênuos,
nossa infância, adolescência e começo da vida adulta não permitiu isso,
mas Harlen conseguiu salvar o resquício de algo bom. Ele ainda ria e podia
fazer as pessoas a sua volta rir, ainda conseguia andar pelas ruas sem pressa,
sem olhar por cima do ombro esperando que alguém fosse atacá-lo, mesmo
que a possibilidade fosse viva e certeira.
Ele não colecionou inimigos a cada esquina como Demeron e eu, e não
se tornou odioso a ponto de colocarem um preço em sua cabeça apenas
por respirar, como Regnar orgulhosamente fez.
Desci do carro com calma, até mesmo um pouco entediado de precisar ir
até ali fazer com que o imbecil esquecesse a fase de rebeldia contra Stark e
voltasse para a casa, então Angelina me daria algum sossego. Não demorei a
ser visto e analisei o único homem — ou melhor, garoto — guardando o
portão. Apoiado em uma moto, ele estava vestido em jeans, bota e um colete
que dizia “novato”. Típico. Não era a minha primeira vez visitando um clube
de motociclistas, mas a primeira que me aventurei a fim de fazer algo a mais
que tomar uma cerveja e me misturar.
Me aproximei devagar, recebendo uma análise completa do sujeito. Com
um erguer de sobrancelhas e uma arrogância que com certeza não cabia em
sua posição ali dentro, ele ergueu o queixo para mim.
— Você tem um convite? — O mal encarado cruzou os braços,
avaliando-me dos pés à cabeça.
Se tratava realmente do fim do mundo se o rapaz não sabia quem eu era.
Sem responder, olhei para além dele, vendo o enorme depósito que meu
primo usava como o seu clube. Pelas câmeras, em breve eu chamaria atenção
de quem estava lá dentro. Pelo o que eu sabia, Harlen conquistou o posto
como vice-presidente, e ninguém tinha tanto a confiança do presidente quanto
ele.
A periferia de Berlim, entre outras por onde já havia passado deixaram
sua marca em minha mente, portanto, a fachada velha e descascada não
mentia sobre seu interior. Janelas com vidros quebrados, paredes com marcas
de tiro, piches e grafite artístico, grades de ferro e fileiras de motocicletas
para todos os gostos e estilos não deixavam muito para imaginação.
— E aí, malandro? — O prospecto reforçou a pergunta com uma dureza
mais firme na voz. O fitei, imaginando que deveria ter idade para ser meu
filho. Pouco mais de vinte e bem longe dos trinta.
Ninguém o avisou que sua jornada em busca de poder fácil terminaria
em dois caminhos: morte ou cadeia?
Houve um tempo que eu me preocupava com as crianças do país. Ainda
no exército, acreditava em nação, em bem maior, em proteger aqueles que
não podiam proteger a si mesmos. Ouvi e gravei na cabeça que as crianças
eram o futuro, mas parei de colocar fé nessa crença ao cair na realidade de
que eu e meus primos também fomos os chamados “futuro” da nação quando
crianças, e tendo em vista quem nos tornamos, sabia que o país cairia em
desgraça se dependesse de nós.
Crianças são crianças até que conheçam a vida, após isso, se tornam
máquinas. Seja de fazer dinheiro, sexo ou correr atrás de ambições. Ninguém
é bom demais e ninguém é tão mal que não se veste de bondade.
— Diga a Harlen que X está aqui.
Ele me observou com calma, sem ter consciência de quem estava à sua
frente, sem saber que eu estava a um passo de colocar esse clube para baixo
afim de ter Harlen sob nossas asas novamente.
— Está com hora marcada? Ele sabe da sua visita?
— Passe a mensagem e vai descobrir.
O garoto começava a me irritar, o que não é tão difícil, mas ele fez com
uma rapidez impressionante.
— De uns passos atrás e espere. — Ele me virou as costas e me
perguntei se ninguém o ensinou a nunca fazer isso quando se tem alguém que
não é da sua confiança atrás, ou então, até que estivesse pronto para lidar com
o que poderia vir.
Eu não era o tipo de homem que atirava pelas costas, gostava de olhar
nos olhos quando levava minhas desavenças ao chão, sorte a dele.
Mais uma vez me tornei consciente de que Harlen não estava protegido.
Aquela desculpinha forjada de segurança era ridícula, e com a possibilidade
de a Liga saber de sua volta a qualquer momento se tornava ainda mais claro
para mim que precisava fazer algo antes que sua morte se torne real dessa
vez.
O garoto levou menos de um minuto, mas quando voltou sua postura era
diferente. Mal me olhava nos olhos, provavelmente, agora sabendo o quão
perto esteve de nem sequer se tornar um membro oficial do clube. Ele corria
tantos riscos aqui fora e nem sabia disso, comigo por perto a porcentagem
aumentava mais ainda.
— O senhor será recebido.
O senhor.
Aquela mudança de ares me fazia querer rir como eu só fazia na
companhia de Kirina em momentos onde as endorfinas e toxinas falavam
mais alto do que nossa realidade.
Esse poder, a autoridade, o conhecimento de que quando não for meu
rosto, meu nome me levará onde nem os homens mais limpos, ou mais podres
entravam, me faziam respirar fundo e acreditar que o garoto ainda tinha algo
a aprender.
Não se devia empinar o nariz antes de saber com certeza que não há
riscos de alguém poder enfiá-lo em seu rabo.
— Olhe para mim.
Hesitante, ele obedeceu, a mão trêmula foi para onde escondia a arma,
ele não sacou, mas era como um aviso.
— Eu quebraria seus dedos antes que conseguisse encontrar o gatilho,
não seja estúpido.
— Harlen mandou que eu me protegesse.
— Com isso ele quis dizer para não me irritar.
— Eu não sabia que eram irmãos, ou...
— Não somos, mas esse não é o fato mais importante aqui. Você tem
uma mãe?
— Não. — Franziu a testa, agora quem estava irritado era ele.
— Então está aqui por não ter nada a perder?
— Tenho uma filha! Ela precisa dos meus cuidados.
Surpreso, aceno em entendimento, reconhecendo um pai desesperado.
— Seu fardo e sua obrigação, mas vou te dar um conselho para que
consiga passar por essa breve vida no crime sem colocar um alvo nas costas
dela. Mude sua atitude.
— Eu não...
— Fale menos e escute mais. Conquiste seus inimigos e deixe seus
amigos afastados. Homens como eu? Agrade. Faça com que se sintam como
reis, assim não vão se preocupar em enfiar uma bala em seu cérebro só por
incomodá-los com essa postura petulante. Só assim... verá sua filha crescer.
Passo por ele, entrando, mas paro por um momento e viro, encarando-o
novamente.
— Ou apenas ignore esse meu raro momento de bondade e continue
burro. Sua filha provavelmente está melhor sem você.
Conforme adentrei no complexo, dei uma olhada para trás vendo o
garoto levar o celular no ouvido, provavelmente ouvindo ordens latidas de
seus superiores lá dentro. A porta principal se abriu e uma sequência de 5
homens saíram um atrás do outro, reconheci como uma tentativa de me
pressionar, mostrar poder. Os coletes de couro, jeans desgastados e bandanas,
bonés, combinados com a expressão mais séria e desagradável que cada um
podia me oferecer era o conjunto completo e me lembrava das vezes
que sentei com espiões da Liga que se achavam donos do mundo. Ensinei
lições que ou salvaram suas vidas ou os tornaram mais espertos.
Tolo era o homem que pensava que o poder vinha da demonstração de
força. Palavras, contatos, até mesmo a forma de se portar determinava a
verdadeira pessoa, ou melhor, a fachada dela. O mundo via de mim quem eu
queria que visse. Nunca neguei a mim mesmo e aqueles que mereciam, o
desprazer de me conhecer pela verdadeira face. Nunca me julguei como
santo, mas também não ofereci armas a meus inimigos para ministrarem um
júri contra mim.
Meu poder vinha de simplesmente passar por aquele corredor de
membros daquele moto-clube e nenhum deles se atrever a dar um passo
ameaçando cair em mim.
Quem seria suicida a tal ponto?
Apresentações foram dispensadas quando empurrei a porta e entrei,
fazendo uma rápida análise do local. Um grande salão com direito a um
pequeno palco no fundo e um bar que se estendia pela metade do espaço
eram as atrações principais, ao fundo, um corredor, onde presumi dar acesso
à sala do presidente e uma escada que levaria ao andar superior, onde apenas
alguns têm prioridade e o privilégio de obter um quarto para si.
Harlen devia viver ali, ele nunca gostou de ficar sozinho.
— Uau, parece que hoje é meu dia de sorte! — O toque da mão
feminina em minhas costas, subindo pelo pescoço combinado com a voz
feminina me deu boas-vindas ao interior do local.
— Não seja egoísta, Nadia. — Uma morena se colocou à minha frente,
tocando meu peito. — Ele parece ter o suficiente pra nós duas.
Ela sorriu como uma prostituta perfeita, como as meninas
de Kirina faziam. Era exuberante, e me olhava nos olhos como muitos
homens não tinham coragem de fazer.
E ela não me era estranha.
— O que posso fazer por você? — A morena perguntou, e a loira que
estava atrás de mim ficou ao lado dela, a abraçando.
— Ou melhor, o que podemos fazer?
— Vocês querem me ajudar? — perguntei baixo, sentia os olhares em
nós, em mim. Todos os homens no cômodo estavam tensos, e eu tinha certeza
de que ligações já estavam rolando para deixar todos cientes da minha visita.
— É claro. — Nadia respondeu, quase se esfregando na morena, que
sorria com os olhos, encarando-me fixamente.
— Qual o seu nome? — A questionei, não por estar curioso em saber,
mas por ter certeza de que já a vi antes.
— Katy. E o seu?
Levei três segundos para lhe dar uma resposta.
No primeiro, revirei minha memória atrás de seu rosto.
No segundo, avaliei sua expressão enquanto mentia.
No terceiro, me lembrei quem ela era.
Fitei Nadia, dando um aceno em direção ao corredor nos fundos.
— Traga Harlen aqui para mim, querida.
— Esqueceu seu nome.
“Katy” olhou para a amiga com aquele mesmo sorriso que me oferecia.
— Vou amaciar o bonitão aqui enquanto você chama nosso VP, Nadia.
Corra ou vou ficar com ele só para mim.
Nadia não perdeu uma batida e saiu correndo nos saltos altos.
Katy enlaçou meu braço e me arrastou para o bar, empurrando-me em
um banco e ficando no meio das minhas pernas.
— E então, está pretendendo se juntar aos irmãos?
Aqueles olhos pretos, escuros como as noites sem estrelas em Berlim me
fitavam sob a borda de seu copo cheio.
— O que faz aqui, Tatiana?
— Meu nome é Katy, não sei do que está falando. — Ela sorriu mais
ainda, piscando.
Segurei sua nuca, enroscando os dedos nos fios do cabelo cacheado.
— Comece a falar, ou envio você de volta para a Bulgária.
O sorriso vacilou, provando que ela apenas aprendeu as lições que
ensinei em esconder seus medos, mas ele estavam lá.
— O presidente dos Furious me mandou para cá um ano depois que
você me instalou lá, Siriu. Não tive culpa.
— E você, é claro, não sabia o motivo por trás disso?
— Quando cheguei aqui e reconheci Harlen imaginei que fosse por
causa dele.
— Deveria ter me ligado na mesma hora, Tatiana. Eu precisava saber
que meu primo estava vivo.
— E depois o quê? Eu teria que fugir e voltar a ser caçada por...
— Siriu! — Harlen grita, caminhando calmamente em nossa direção.
— Por favor, não diga a ele. — Ela sussurrou, demonstrando o temor
com os olhos.
— Por quê?
Tatiana hesitou, mas não precisou dizer nada, pois assim que Harlen nos
alcançou, passou o braço pela cintura dela e a puxou, beijando seu pescoço e
sussurrando algo no ouvido da mulher que a fez fitá-lo como se fosse o
próprio Thor a segurando.
— Adeus, senhor X. — Dando-me um rápido olhar, ela seguiu para o
corredor e eu fitei meu primo.
— Nos sirva uma cerveja, BigBoy. — Latiu para o jovem atrás do
balcão e girou o dedo no ar, fazendo todos os homens nos observando
imediatamente circular, alguns saíram e outros voltaram a fazer o que se
ocupavam antes de eu entrar.
— Estou impressionado — zombei. — Stark adoraria ver como um
simples aceno seu faz os cachorros voltar as casinhas.
Harlen riu, e percebi dois ou três homens olhando-o e sorrindo junto. Ali
estava a minha resposta, meu primo continuava o mesmo. A risada
contagiante, o espírito livre, o sangue de fazer qualquer um se curvar a ele só
por ser quem é.
— Stark... há muito tempo não ouço esse nome.
— Vai voltar a ouvi-lo com frequência.
— É mesmo?
— Sim, é mesmo. Planejo levá-lo de volta para Berlim nas próximas
horas.
— Parece que já tem tudo em mente. Conte-me seu plano brilhante, me
diga exatamente o que fará sobre o meu pai que tentou incansavelmente me
matar?
— Resolveremos isso, somos família.
— Seu conceito de família é tão fodido, Siriu. — Ele acena para o
jovem que foi buscar as cervejas antes de se virar para mim. A expressão
serena me confundiu, precisava admitir.
— É o que somos. Eu não me escondo e não me nego. Nem você
deveria.
— E o que esperava que eu fizesse?
— Qualquer coisa, menos ter ido ao extremo e nos fazer enterrar um
corpo que não era seu.
Ele franze a testa, irônico.
— Nunca foi extremo quando demos outros corpos para outras famílias
enterrarem. Onira, por exemplo.
— Outras famílias não são a nossa, eu não me importo com Onira ou
qualquer outra pessoa.
— Nunca se importou comigo também, então por que o trabalho de vir
aqui?
— Porque controlar danos é o que faço. Quanto mais cedo te colocar de
volta na Alemanha, onde pertence, mais cedo volto a cuidar da minha própria
vida.
— Acontece, primo. — Ele levanta arrastando o banco, fazendo-o cair
com um baque e chamando a atenção de seus “irmãos”, que num pulo se
erguem junto com ele. Se Harlen estralasse o dedo, eu estaria morto. — Que
eu não sou um dano a ser controlado, tampouco voltarei a Alemanha. Não me
curvarei a Liga novamente. O máximo que chegarei de lá será para
receber Demeron em minha casa quando ele vier com sua esposa,
ou Regnar vier trazer Blair.
— E eu? — Eu sorri, virando a garrafa na boca. — Não sou bem-vindo?
— É, claro que é. — Segurou meu ombro com firmeza, chegando tão
próximo do meu rosto enquanto me olhava nos olhos que dividimos a mesma
respiração. — Será recebido como um irmão contanto que não fale sobre
Stark.
— Ele virá para você.
— E eu o receberei pronto para enviá-lo aos braços de Odin.
Nos encaramos por um minuto. Dois ou cinco. Naquele momento,
ninguém estava contando.
Vi a verdade de suas palavras nos olhos cravados nos meus. Enxerguei a
ferida na alma e o perdão que Stark nunca receberia.
— Seria capaz de matar seu pai?
— Ele não foi capaz de matar o filho?
— Sem sucesso.
— Mas tentou. Por que está defendendo seu tio assassino com tanta
garra, primo?
— Não somos assassinos também?
— Somos. — Ele riu e abriu os braços, apontando seus irmãos de colete.
— Tirei incontáveis vidas, mas houve sempre um motivo. Nunca tirei algo
que não era meu, nunca deixei uma criança sem pai antes de garantir que
estivesse cuidada. Matei por meus irmãos, matei pela família.
Acenei em compreensão, entendendo suas palavras.
— Stark fez o que pensou que tinha que fazer, assim como você.
— E assim como você, senhor X, juiz de tudo e todos. É claro que se
daria ao trabalho de vir até aqui para defender Stark, tendo em vista que
torturou por anos seu primo, o meu irmão.
— Foi diferente.
— Foi mesmo? — Ele gargalhou alto, batendo a garrafa no balcão,
quebrando o vidro e jorrando o líquido pelo mármore, então encarou seu
público atento. — Irmãos! — gritou, chamando a atenção até de quem estava
no andar de cima, vi alguns homens descendo acompanhados por uma fila de
mulheres nuas e seminuas. — Esse é Siriu, meu primo, meu irmão. Ele veio
da Alemanha numa missão de me levar de volta!
Risadas ecoaram, barulho de vidro sendo batidos no balcão e tosses.
Cheiro de cigarro, fumaça, sexo, tudo se mistura quando vejo armas e facas
sendo jogadas no chão. Uma delas batendo no couro do meu sapato.
— Quer vir a minha cidade, primo? Venha! Venha, coma, beba, durma
com as mais lindas mulheres que Vegas tem a te oferecer, mas não me
ameace. O homem que eu era quando Stark tentou me matar foi embora, meu
pai se certificou de fazer o serviço. Então seja meu convidado, mas é aí que
termina. Se tentar qualquer coisa, vou me levantar contra você, e junto
comigo vai todo o exército dos Enemies of Peace de Vegas até os confins.
Deu para entender, senhor X?
Se eu me levantasse contra ele, pegaria aquela faca em meu sapato e
levaria ele e mais dois comigo para a cova, mas a imagem do menino que
corria atrás de mim o dia todo procurando minha companhia por não ter a do
pai, do adolescente pedindo para levá-lo a uma casa de mulheres, e do
homem quebrado por tamanha traição vindo do próprio pai, me fez me calar
diante de um ultimato pela primeira vez na minha vida.
— Justo.
— Essa é a vida que tenho agora, esse é quem sou. Se preza pela vida do
seu tio, faça com que ele fique longe de mim.
Desviei o olhar para além dele, observando Tatiana saindo de fininho do
clube.
— Se é o que você quer — concordei. Tendo Tatiana na palma da minha
mão saberia de cada passo que Harlen desse. Talvez deixá-lo longe de Stark
seria o melhor no momento.
Ele me olhou nos olhos e ergueu uma nova garrafa.
— Então bem-vindo a Vegas, primo.
"Algumas lendas são contadas
Algumas se tornam pó e outras ouro
Mas você vai lembrar de mim,
E apenas um erro é tudo o que vai precisar,
Nós vamos ficar na história
Vai lembrar de mim por séculos"
FALL OUT BOY, CENTURIES
Os cabelos vermelhos dela deslizavam pelo o meu rosto, peito, pescoço
e seus gemidos penetravam em meus ouvidos cada vez mais altos conforme
ela aprofundava-se em meu pau com mais força. Segurei seu pescoço, a
mantendo no lugar e arremeti com afinco, negando-lhe a liberdade de
conduzir a situação.
Kirina me conhecia bem e pedia por isso.
Ela cuidava de seus negócios, de suas relações e de sua família,
portanto, eu era como um sopro de ar vivo quando aparecia para cuidar de
seu corpo. Ela controlava tudo, mas as vezes, queria ser controlada. Eu não
reclamava, é claro que não. Ter aquela mulher disposta e sedenta por mim me
fazia desempenhar meu papel em sua vida com ainda mais vontade.
— Siriu! — Ela gritou, mordendo a pele da minha nuca quando bati no
ponto certeiro dentro de sua boceta, fazendo-a ficar fraca, trêmula,
desesperada para que eu atingisse o mesmo lugar mais algumas vezes e ela
poderia explodir.
Soltei seu pescoço, deixando-a levantar e a safada apoiou as mãos em
meu bíceps, cravando as unhas na pele, se esfregando em cima de mim,
fazendo seu clitóris friccionar em minha pélvis, gritando, suando, levando
meu membro até o talo dentro de si.
Mesmo no escuro, a pele bronzeada se destacava com o brilho do suor,
podia ver cada curva do corpo que me saciava mais do que qualquer outro já
fez e finalmente a deixei gozar, esperando apenas que terminasse antes de
tirá-la de cima de mim.
— Enfie na sua bunda agora, quero gozar aí dentro.
Ela gemeu, mas obedeceu sem hesitar, dando o que nós dois
precisávamos.
— Ouvi dizer que está caçando Style novamente. — Ela comenta ao
voltar do banheiro, enrolada numa toalha e com um cigarro de maconha mão,
acendendo-o.
— Eu não estou fazendo nada.
Ela ergueu as sobrancelhas, me conhecendo bem.
— Deixe-me refazer a afirmação: ouvi dizer que colocou muita gente
para caçá-lo.
— Seus ouvidos nunca foram muito certeiros, filha de Loki.
Ela riu do apelido que a dei. Filha do pai das mentiras e das
travessuras. Kirina era a imagem do caos, da verdade que dói, das travessuras
mais bem cometidas.
— Mas eles servem para ouvir suas ordens.
— É claro, você só faz o que te convém.
— Isso não é verdade, senhor X, costumo fazer coisas que convém a
você também. — Sorrindo, ela se senta em minha barriga, nua, deixando a
toalha escorregar sem nenhuma vergonha de seu corpo exposto.
A observei dar algumas tragadas, pacífica, como se não fosse a deusa da
noite de Berlim. Culpada pelo fim de casamentos, pela queda de reis do
submundo em vários lugares do mundo, fingindo não me amar para que eu
não a mande embora para sempre.
— Se eu souber que está ajudando-o a se esconder não te
pouparei, Kirina.
— Acha que eu te trairia assim?
— Já fez pior antes.
— Tem razão. — Ela ri e me beija rapidamente antes de levantar-se e
ficar de pé na cama, começando a dançar sem nenhuma música tocando no
quarto. — Não estou abrigando-o, mas não posso culpá-lo e nem você
deveria, ele só encontrou uma forma de sobreviver.
— Não o culpo, ele fez o que foi ensinado a fazer. — Inspirei a fumaça
conforme ela a soltava em meu rosto. — Mas há consequências para todos os
atos e ele não escapará disso.
— Levou anos para encontrá-lo, Siriu, e nem o fez
propriamente. Demeron não vai pegá-lo para você, ele come nos pés
de Onira.
— Onira não é uma defensora ferrenha do irmão, até onde sei.
— Até onde sabe, ela é uma menina ingênua que caiu na conversa barata
do seu primo, mas eu a conheço e posso dizer com toda a certeza de que não
há pessoa que ela despreze mais do que você.
— Kazel.
— Não, ela odeia Kazel, mas você, ela despreza.
— Tem diferença?
— Tem, mas vou deixar que você descubra sozinho. — Ela respondeu
sorrindo, tragando mais uma vez. Sem pudor e sem vergonha. — Agora, por
que não me fala sobre sua visita a Harlen? Vegas sempre te deixa contente,
mas voltou tenso dessa vez.
— Nada demais aconteceu, acho que esse foi o problema.
Sentando-se ao meu lado, ela acariciou meu cabelo.
— Não foi como você esperava?
Levei um momento para responder.
— Não, não foi.
— Você não poderia salvá-lo durante a vida toda, Siriu, ele é um homem
agora. — Percebendo que a conversa começava a tomar um rumo profundo
demais que me faria levantar e sair, ela sorriu com malícia. — E um homem
dos bons, sabia? Grande, envolvente... me fez gritar como uma cacho...
Dei uma ligeira risada e a puxei de volta, calando-a com meus lábios,
virando-a e ficando por cima, pronto para fazê-la gritar mais do que meu
primo fez.
A boate de Kirina não estava vazia quando entrei. Tinham algumas
meninas pelo salão, mas ninguém me impediu de passar livremente, nem de
olhar enquanto ensaiavam para a noite.
A primeira vez que visitei aquele lugar me senti reconfortada, como se
estivesse em casa outra vez e o mestre fosse sair por alguma das portas para
me levar com ele, mas a realidade estava longe disso.
A decoração preta e chumbo, com luzes que variavam do vermelho ao
púrpura, tinha poltronas luxuosas espalhadas com mesas por todo o salão e
dois degraus de escada mais ao fundo, onde uma corrente dourada separava a
área VIP. O palco, bem à frente do lugar onde o público mais popular se
instalava, era grande, com uma estrutura tanto para cordas, quanto colocar o
poste quando necessário, e uma passarela pequena que deixava as meninas
mais próximas dos homens quando se aproximavam. Vê-las em ação em uma
das noites que Kirina me trouxe para visitar foi a coisa mais preciosa que já
vivenciei. Senti como se estivesse retornando a tudo o que eu era.
Demeron não tinha onde me deixar depois que eu pedi para ir embora da
mansão de sua família e precisava lidar com Onira para depois decidir o que
fazer com o problema maior, eu. Assim conheci Kirina. Durante semanas ela
cuidou de mim, com paciência me colocou a par do que precisava fazer: ficar
sempre onde ela poderia me ver.
Ela me acolheu em sua casa e expressou que sentia muito por tudo o que
passei, mesmo que na época eu ainda não entendesse o que aquilo queria
dizer. Me ofereceu o quarto de hóspedes ao lado de sua suíte que parecia um
palácio, hoje reconhecia isso. Naquela primeira noite, lhe fiz uma reverência
e segui para o onde me instruiu. Incerta sobre o que fazer com aquela cama,
fiquei em pé ao lado por um bom tempo. Minhas pernas doeram da espera,
mas lembrei-me de meu treinamento e esperei pelo próximo comando de
minha nova senhora.
Quando a luz invadiu o quarto, Kirina entrou e me encontrou de pé, já
experimentando as dores e agonias de ter varado a noite naquela mesma
posição. Tentei segurar as lágrimas do terrível desconforto, mas não pude e
condenei-me por isso.
— Freya, bom di... — Ela fez uma pausa, olhou a cama perfeitamente
posta e meu rosto, meu pé inchado e a perna vermelha, com as veias
aparecendo como se tivessem sido chamadas a mostrar presença. — Não.
Não me diga que ficou assim a noite toda?
— Perdoe-me, minha senhora — sussurrei, lembro-me de sentir medo
como nunca antes.
Com meu mestre, sempre sabia o que esperar. Ele tinha uma forma de
agir que já me era intimamente conhecida, os castigos e quando eles viriam,
as recompensas e o que seria preciso para que eu as merecesse. Mas, àquela
nova vida, principalmente aquela primeira noite... tudo era confuso. E se
minha ama se enfurecesse com meu comportamento e fosse pior do que o
mestre?
Eu sabia bem que mulheres podiam ser tão cruéis quanto homens,
mesmo a maioria tendo me mostrado bondade ainda tiveram duas que
cravaram sua maldade em minha mente.
— Por Odin em Valhala, Freya! — exclamou, fazendo-me pular de
susto, mas não me movi. Encostei o queixo no colo, em completa submissão
a suas ordens e vontades. — Olhe para mim!
Obedeci imediatamente.
— Lembra-se quando eu disse que sentia muito?
Silêncio.
— Responda-me, Freya.
— Sim, minha senhora. Me lembro de ter ouvido isso.
— Eu quis dizer a verdade. Não vou tratá-la dessa forma jamais. Eu
protejo mulheres, não as machuco.
— Eu... eu não entendo.
Ela franziu a testa, aproximando-se bem devagar.
— Eu disse que sinto muito e não serei como aqueles que lhe
machucaram.
— Minha senhora, não sei... não entendo o que diz. — Com o pânico
crescendo naquela nova comunicação, minhas lágrimas voltaram a cair.
Aprendi com o tempo que aquilo me deixava com menos medo, deixar que
aquela água saísse de meus olhos. Elas vinham em raros momentos,
principalmente à noite, eu nunca as chamava, mas parecia como Aprhodite,
uma companhia.
Hoje sabia também que eram lágrimas.
Kirina demorou a entender que a forma como minha vida seguiu
na Kambarys era diferente de qualquer outra escrava sobrevivente que ela
conheceu. Eu nasci, fui levada por Kazel e ele foi a primeira pessoa que tive
consciência de ter conhecido. Depois vieram as pessoas que cuidaram de
mim, depois os homens que me treinariam, então os amigos dele. Os infinitos
homens a quem aprendi a servir a bel prazer.
Naquele mesmo dia, depois de sair do quarto e ligar para Demeron, ela
voltou e me abraçou. Demonstrando o primeiro gesto de carinho inocente que
já recebi na vida. Em seguida, me levou a sua enorme suíte e informou que eu
dormiria com ela em sua cama, comeria com ela, iria para seu trabalho com
ela e meu único momento sozinha seria em meus banhos.
— Não quero te sufocar, dorogoy, mas vai aprender como a vida
funciona aqui fora e ninguém melhor do que eu para ensinar os primeiros
passos, mas até que entenda algumas coisas, não vou desgrudar de você.
Entende isso? Está presa a mim.
Na época, meu coração bateu forte como uma rajada da mais feroz
tempestade, e comecei a procurar pelas correntes e algemas que usaria, e
novamente, ela explicou que não falava no sentido literal.
Em sua enorme cama, realmente enorme, ela teve o primeiro vislumbre
do meu propósito de vida quando saí do banho enrolada numa toalha e
quando a vi sentada na cama com o computador no colo, tirei a toalha e me
ajoelhei.
— Deixe-me servir a seus desejos, minha senhora. Devo-lhe por tanta
gentileza.
Kirina riu, mas riu tanto que pela primeira vez me senti estranha em meu
próprio corpo. Meu objeto não a agradava?
Mas novamente, não era nada disso. E ela me cobriu com uma de suas
camisolas, me deitou e deitou-se de frente para mim. Eu ainda me lembrava
de suas exatas palavras.
— Eu amo estar com mulheres, Krasivyy, mas você é uma criança.
Quando estiver na minha cama, vamos apenas dormir.
— O que é isso? Krasivyy.
— Significa linda em russo, é minha terra natal.
— Terra natal? — perguntei, confusa com tudo o que ela dizia.
Nos olhamos olho no olho e ela estava entre sorrir e mostrar-me pena.
Ela não tinha mais um monte de coisas cobrindo seu rosto e eu podia vê-la
melhor, a achei linda também.
— Onde eu nasci.
— Eu sei o que significa linda, já ouvi isso antes.
Ela sorriu, acariciando meus cabelos.
— E vai ouvir muitas outras mais, mas será diferente.
Eu também preferia quando mestre me dava às mulheres. Elas sempre
foram delicadas, pelo menos a maioria. Não tinham prazer em me machucar e
fazer minha pele ficar vermelha por fora e fluir de dentro. Eu me sentia bem.
Como Kirina disse, eu amava.
A palavra que mais gostei de aprender sobre o significado foi “amor”.
Quando Onira me explicou qual a razão das pessoas dizerem umas às outras,
repeti a mesma para Kirina e ela sorriu para mim, dando-me um tipo de
abraço que nunca recebi.
Demeron me pegou semanas depois e levou-me para Onira, onde foi me
dado um quarto e um tanto de informações que no começo me faziam querer
pular daquele penhasco, talvez a imensidão do mar afogasse tudo o que
jogaram em mim, mas por Onira, aguentei. Ela nunca soube desses
pensamentos e jamais saberia. Foi o meu refúgio na época, mas meu
agradecimento era por nunca ter ido adiante naqueles momentos.
— Sabe que pode voltar sempre que quiser ou precisar. — Ela disse
quando entregou a Demeron a mala de roupas que comprou para mim. —
Minhas portas estão abertas, assim como as minhas...
— Kirina. — Demeron a interrompeu, arrancando uma de suas
gargalhadas estonteantes que ecoavam pela rua deserta na madrugada.
— Até mais, krasivyy.
Abraçou-me com tanta força que pela primeira vez senti-me realmente
querida.
Naquela despedida eu sabia que sentiria falta de vê-la chegando do
trabalho nas raras vezes que não me levava junto e escutaria suas histórias
sobre o dia com ansiedade, bebendo tudo o que ela dizia como se fossem
aquelas maravilhosas bebidas borbulhantes que ela me apresentou. Ela
cozinhava para nós enquanto ria e falava sobre tudo e na maioria das vezes eu
nunca tinha o que dizer de volta. Mas, ela me fitava e sorria, deixando-me
saber que eu era aceita.
Eu amava Onira, mas fugir para Kirina era um tipo de paz que eu só
encontraria em minha antiga casa.
Hoje entendo que as duas são opostos completos. Sei como defini-
las. Onira seria uma mãe ursa, e Kirina a irmã que se aventuraria comigo em
qualquer situação, mas me protegeria acima de si mesma. E eu as amo tanto.
— Ei, mocinha! — Ouvi alguém gritar e ao olhar para o palco vi Lut.
Ela acenou, escorregando de onde se segurava no topo do poste de metal,
sentou-se no palco antes de pular e me alcançar, abraçando-me. — Menina,
você sumiu! Estava presa em algum lugar por aí?
— Sim. — Sorri, devolvendo o abraço.
— Está brincando? — Me encarou com seriedade e logo as outras
meninas começaram a se aproximar, me abraçando, mexendo em meu cabelo,
cuidando de mim como fizeram por semanas quando apareci.
— Sobre o quê? — perguntei, tentando responder a todas ao mesmo
tempo.
— Estar presa, garota, que história é essa?
— Ah, eu fui pega fazendo atividades fora da lei e um homem
uniformizado me levou embora, mas está tudo bem, Demeron resolveu.
— Aquele gostoso. — Uma delas falou, fazendo as outras caírem na
risada.
Eu franzi o cenho, sem conseguir ver Demeron daquela forma. Me
ofereci a ele uma vez, mas depois que me salvou, depois de conviver debaixo
do mesmo teto simplesmente não conseguia nem pensar. Sabia também que
ele pertencia a Onira e isso a machucaria profundamente, algo que eu
morreria antes de deixar acontecer.
— Você não deve falar assim dele — disse a ela, que revirou os olhos e
saiu andando.
Lut riu e me puxou para mais perto, passando o braço por meus ombros.
— Garota, foco. Mal saiu daquele inferno e já conseguiu cair no xadrez.
Só você, Freya.
— Cai onde? Eu não cai, o homem disse que...
— Jesus Cristo, você continua a mesma. — Ela gargalhou. — Esqueça
isso. Me diz, o que veio fazer por aqui? Faz tempo que não te vejo! Como
conseguiu fugir da japonesa?
— Oni tinha algo importante do trabalho. Ela não sabe que estou aqui.
— Garota, sua idade não mente. Saindo escondida da mamãe, sendo
presa, o que mais?
Eu não sabia o que aquilo queria dizer, então fui direto ao ponto de estar
ali. Lut não era quem eu procurava atrás daquela informação, mas serviria.
— Você conhece todos, não conhece?
Ela me analisou antes de responder.
— Depende de quem você procura.
— O nome dele é Siriu. Siriu Konstantinova.
As meninas mais próximas pararam de falar, as outras mais distantes e
alheias não perceberam como o sorriso de Lut fechou e ela soltou meu ombro
para segurar meu braço, me olhando de forma estranha e fixamente.
— Freya, não repita essa pergunta para mim. Nem para mim, nem
qualquer menina aqui dentro se preza por nossas vidas.
— É claro que sim, são minhas amigas.
— Obrigada por entender.
— Mas você é a única que pode me dizer onde vou encontrá-lo.
— Posso, mas não vou. Você acabou de começar a viver, se está
pensando que vou te dar a chave para problemas, veio aqui à toa. Além do
mais, não podemos falar sobre ele. Existem coisas proibidas e se formos
pegas falando sobre uma delas, não veremos a luz do dia outra vez.
Senti algo profundamente incômodo ao ouvir sua negativa. Quis fazer
algo... dizer... quis machucá-la. O sentimento foi tão forte que precisei me
afastar. Puxei meu braço de seu aperto, mas ela não deixou.
— Não faça birra, garota. Estou te ajudando!
— Não. Você está me impedindo de conseguir o que eu
quero. Kirina vai me ajudar, com licença.
Ela bufou, balançando a cabeça.
— Kirina não vai te dizer uma porra sobre Si... — Fez uma pausa,
respirando profundamente. — Sobre o senhor X.
— Por que não?
— Porque ele pertence a ela, assim como Demeron a Onira. Nós só o
tocamos porque ela permite, mas ela jamais te deixará ficar perto dele. Você
é a protegida dela, a filhinha que nunca teve. Ela não vai te mandar direto ao
acampamento do lobo.
Não.
Senti uma pontada no coração dessa vez... qual era a palavra?
Decepção. Me senti arrasada e decepcionada. Eu o queria tanto. Queria o
sentimento da presença, a vibração que sua voz me fazia experimentar, o
toque que mesmo sem nunca ter vivido, sabia que seria único. E tudo para
saber que ele era proibido, assim como Demeron.
Ele era de Kirina?
No fundo da minha mente eu podia ouvir aquela mesma voz de sempre
me dizendo que não importava. Mas como eu poderia trair Kirina da forma
que não me permitiria trair Onira?
— Freya. — Lut me chamou de volta ao presente. — O esqueça. Não sei
o que possivelmente pode ter acontecido para que prestasse atenção nele, mas
esse seu olhar... isso não é boa coisa.
— Eu o quero — sussurrei. — Parece que ele é o único que pode me
ajudar.
— Ah, garota — lamentou, me olhando como Onira fazia quando se
sentia culpada em me negar algo. — Acredite quando eu digo que estará
melhor sem ele. Eu conheço o senhor X e vim do mesmo lugar que você,
posso dizer que não me fez bem algum.
— Ele se parece com Kazel — falei baixinho, implorando com os olhos
que cedesse.
— É disso o que se trata? Freya, você é uma criança. Não deve
querer Kazel ou qualquer um parecido com ele e conforme for vivendo nesse
mundo entenderá isso.
Fiquei em silêncio e olhei ao redor, perguntando-me qual das meninas
estaria disposta a me ajudar.
— Certo, obrigada, Lut.
— Freya...
— Eu agradeci, isso não quer dizer que a conversa acabou?
— Estou te ajudando aqui! — Ela finalmente me soltou, mas a calma foi
embora e estava quase gritando comigo. — Kazel é uma amostra grátis do
homem por quem você procura. Seja esperta e fique longe!
— Ei, ei, ei! — A voz de Kirina soou feito música no salão, ela gritava e
passava empurrando quem estivesse em sua frente para chegar até nós duas.
— Que salseiro é esse aqui, zona? — Então seus olhos me encontraram
— Freya?
Corri para ela, atirando-me em seus braços cheia de alívio.
— Todas de volta ao trabalho! — gritou, acariciando meus cabelos.
Estava de salto, mas eu podia ver por cima de seu ombro, e meu coração
saltou quando vi quem estava a poucos passos atrás dela.
Siriu.
— Krasivyy. — Ela me chamou, segurando meu rosto e sorrindo para
mim. — O que está fazendo aqui?
Não sabia o que dizer.
Estar nesse mundo a pouco tempo me fazia falar sem pensar, tudo o que
me vinha a cabeça automaticamente escapava pela boca, mas dessa vez, com
ele ali, eu simplesmente não conseguia dizer uma única coisa.
Ele me encarava de volta. Os olhos azuis fixos nos meus, prejudicavam
meu pensamento, minha habilidade de abrir a boca e dizer a Kirina um
simples “olá”.
— Freya?
— Eu vim te ver. — Finalmente respondi, recebendo um lindo sorriso
dela.
— Eu estava de saída, bebezinha, mas pode vir comigo. O que acha?
— Kirina. — Siriu a chamou.
Ao ouvir sua voz abaixei a cabeça, quase salivando.
Senti minha pele chamuscando, uma coceira no íntimo, o ar pesado.
Foram meses sem ser tocada por alguém e tê-lo tão perto, mexendo com
meus sentidos quase me fazia alucinar.
— Ela se comportará, não é?
— É claro. — Eu sorri de volta, pegando a mão que me oferecia.
Ela deu-me um sorriso estonteante, animado e encarou as outras
meninas.
— Vou sair, mas nada de folga. Tratem de se prepararem para o show
porque a moeda subiu e hoje a noite tem dinheiro para rodar! — gritou, rindo,
e as meninas gritaram de volta enquanto saíamos da boate.
Com o canto dos olhos, antes de atravessar a porta com Kirina atrás de
mim, e Siriu atrás dela, vi Lut. Ela não tentou me parar, mas eu jurava que
aquele olhar em seu rosto teria me queimado viva se eu não tivesse saído no
próximo segundo.
"Todos me dizem que já estava na hora de eu seguir em frente
E eu preciso aprender a me iluminar e aprender a ser jovem
Mas meu coração é um vale tão superficial e artesanal
Eu estou morrendo de medo de te deixar entrar, pois você verá que eu sou só
uma falsa"
ADELE, RIVER LEA

Do lado de fora, um de seus carros chiques a aguardava. Era um


daqueles longos, uma limusine preta com detalhes prateados, ela gostava
mais do vermelho, sempre dizia isso, mas gostava de revezar também.
Ostentar era a palavra se eu bem me lembrava.
Enquanto caminhávamos para fora, a admirei como sempre fazia, mas
dessa vez houve algo a mais. Algo que até então, eu tinha apenas ouvido
falar.
Inveja.
Invejei aquela que cuidou de mim, desejei que ela o perdesse para que
eu tivesse a chance de pegá-lo para mim. Seria possível? Mesmo se ele não a
pertencesse, algum dia olharia para mim? Kazel dizia que todos os homens
me desejavam, que ele matou e mataria por mim.
Mas Kirina... Kirina era linda. Os olhos pareciam estar sempre acesos,
verdes, brilhantes, felizes. Ela nunca tratava ninguém com menos do que
gentileza. Uma gentileza diferente de Onira, havia fogo nela, agora eu...
Por que Siriu trocaria Kirina por uma escrava? Alguém a qual o único
proveito era fazer bom sexo.
Seus longos cabelos ruivos estavam molhados, e o casaco de pele escuro
deixava em evidência o salto alto verde. Quando ela se acomodou no banco
confortável após um homem que eu via constantemente a acompanhando
abrir a porta, seu casaco escorregou pelo ombro direito, onde ela tinha uma
marca que me deixava curiosa, mas não o suficiente para ter coragem de
perguntar a origem.
Já vi homens levando tiros, já vi marcas como aquela no corpo do
mestre, então sabia o que era. Mas não sabia a história por trás dela.
Também percebi que estava sem qualquer peça de roupa por baixo.
Sentei-me a sua frente, e logo, entrando por último Siriu sentou-se ao
seu lado. Não me intimidei sobre olhá-lo. Kirina estava mexendo no celular e
falando sem parar, como costumava fazer, me atualizando de coisas que
aconteceram nas semanas que não nos vimos tudo ao mesmo tempo,
esquecendo-se que eu não entenderia metade.
Mas ele...
Ele olhou para fora, ignorando-me, mas eu sabia que sentia meu olhar,
não tinha como estar alheio. O carro andou, Kirina continuou falando, mas
meus olhos jamais desviaram dele, até que finalmente, enquanto observava o
rosto esculpido, lindo, másculo, ele virou e me encarou diretamente nos
olhos. Minha respiração ficou suspensa, cravei as unhas no banco de couro,
minha boca ficou seca. Aquela coceira no meu íntimo voltou, aliás, só se
intensificou, pois nunca foi embora. A única coisa me impedindo de agir
como a escrava que lia homens, suas vontades e desejos, e dar a Siriu o que
eu queria e imaginava que por aquele olhar, era recíproco, era a voz
de Kirina. Ela não parava de falar.
A forma como ele me olhou, a ferocidade, a raiva, e... não sei... tinha
algo mais.
— O que você acha, krasivyy?
Como um estalo o tirando do encanto, ele desviou os olhos e apenas
assim eu tirei os meus também, encarando Kirina. Apenas para perceber
como tinha sido horrível.
— O quê? — perguntei suavemente.
Ela me observou por um curto momento que talvez tivesse sido mais
longo em minha mente culpada. Olhou para Siriu com o canto dos olhos, sem
sequer virar-se para ele, mas como se nada tivesse acontecido, colocou um
sorriso no rosto e voltou a mexer no telefone.
— Perguntei se ainda quer conhecer uma igreja.
— Sim, claro. Estou tentando convencer Onira a me levar.
— Onira não vai te levar, eu vou.
— Não sei se ela aprovaria essa decisão.
— Lembra quando eu te falei sobre seus dezoito anos e que isso te dá
liberdade de fazer o que bem decidir?
— Lembro-me.
— Pois bem, decida agora. Então... quer ir comigo e Siriu, ou esperará
um raio cair e fazer milagre na cabeça da japonesa?
Não foi ir com ela que me convenceu, foi saber que ele iria junto.
— Vamos.
— Não é uma boa ideia. — Ele disse de repente, olhando para ela.
Kirina virou um pouco de lado, levando a ponta dos dedos ao rosto dele
enquanto falava.
— Por que não, moya lyubov?
— A garota mal sabe quem é, quem dirá se decidir onde vai ou o que
fazer. Vamos deixá-la na casa de Demeron e seguir para nosso compromisso.
Kirina riu e pulou para o meu lado, puxando-me entre seus braços.
— Isso não é problema. Ela confia em mim, não é, Freya querida?
— Completamente — respondi baixo, levantando meus olhos para ele.
A única resposta que tivemos foi um aceno curto e duro de cabeça, e o
rosto ficou mais tenso do que já estava.
Mas não me importei.
Na verdade, estava mais animada do que antes para ficar um pouco mais
em sua companhia.

— Padre! — Se não fosse a voz exaltada de Kirina a anunciando quando


entramos na igreja, seria seus saltos ecoando por aquele espaço escuro. —
Sempre um prazer vê-lo.
Entramos juntos, eu, meio incerta, andava em passos
calmos. Kirina acelerou o passo, alcançando o padre antes que Siriu o fizesse.
Pegou a mão dele e deu um beijo.
— Kirina, seja bem-vinda a casa de Deus.
Ele tirou a mão de pronto, mal a olhou, mas não com grosseria.
Para Siriu, que estava ao lado dela agora, o padre deu um aceno curto de
cabeça.
— Eu trouxe uma ovelha perdida. — Kirina sorriu, encarando-me
quando estendeu a mão. — Venha, krasivyy. Venha conhecer o padre Terry.
Sem hesitar, inclinei-me em direção a ela e avancei com os olhos
cravados no rosto do homem. Ele vestia uma túnica como eu costumava
fazer, mas a sua era preta e tinha detalhes brancos no pescoço e mangas.
Usava também algo pendurado no pescoço. Seu cabelo era curto e preto, mas
tinha os olhos mais verdes que eu já tinha visto, até mais do que os de Kirina.
E também, ao contrário da alegria que eu sempre via nos dela, aquele padre
parecia triste.
— Padre, essa é minha amiga Freya. Imagino que já esteja familiarizado
com o caso?
O padre me deu um aperto de mão firme e um sorriso gentil, focando
apenas em mim, parecendo esquecer que Kirina e Siriu nos rodeavam.
— O Senhor lhe recebe com alegria em sua casa, Freya. É muito bom
conhecê-la.
— Me conhece?
— Conheço Onira, então já ouvi falar sobre você.
— Onira é minha amiga, assim como Kirina.
O padre franziu os lábios, mas assentiu.
— Sim, claro. Eu soube que ficou um tempo com Kirina, mas não sabia
que o laço tinha se aprofundado a uma amizade.
— E eu ainda estou aqui. — Kirina disse, enganchando o braço no meu
e isso fez o padre dar dois passos lentos para trás, cruzando as mãos atrás das
costas. Ele não a encarava e eu não entendia o porquê, além do mais, por
que a tratava tão distante? — Somos um pacote, padre. Se acolher Freya, tem
que me acolher também. E Deus sabe a quanto tempo espero ser recebida por
aqui.
— Você não acredita em Deus, Kirina, por isso nunca se sentiu acolhida
neste lugar.
— Eu acredito sim.
— E sobre Odin? — Ele questionou e me perdi completamente do rumo
da conversa.
— Não são vocês que dizem que Deus é um só? — Ela rebateu.
— Absoluta besteira e eu não vim aqui para discutir divindades e
ficções. — Siriu disse e encarou o padre. — Onde está a minha encomenda?
O padre girou os olhos lentamente para Siriu, como se a presença dele
ali o perturbasse da pior forma.
— Você demorou e eu não podia continuar mantendo aqui. Mandei
Heinrich levar até sua casa.
— Você fez o quê?
— Me ouviu bem, Siriu.
— Não, não posso ter ouvido. Certamente não disse que deu o serviço
do rato para o gato fazer.
— Siriu. — O padre falou pausadamente, encarando-o sem desviar o
olhar, de igual para igual. — Com o devido respeito que mantenho dentro da
casa do meu Senhor, e evitando desonrá-lo, vou pedir que se retire agora.
— Sairei com gosto depois que entregar o que é meu.
— Eu já disse! — O padre se exaltou e quando me viu dando um passo
atrás, fechou os olhos e respirou profundamente, voltando a falar mais baixo.
— Heinrich já deve ter deixado na mansão a essa hora.
Siriu sorriu, mas não foi um sorriso agradável. Eu conhecia homens e
suas expressões, desde quando estavam prontos a me oferecer gentileza, a
quando um fio os segurava de me dilacerar, e esse sorriso... não era nada
bom.
— Se Angelina colocar as mãos sobre aquilo, isso aqui. — Girou o
dedo, indicando o local. — Essa sua preciosa casa de fábulas conhecerá o
sangue do inferno, entendeu, padre?
Padre Terry o analisou por um minuto em silêncio, embora seu rosto
permanecesse calmo, eu imaginava que estava furioso por dentro, se
controlando apenas para não me assustar outra vez. Se ele soubesse que já vi
homens em pior humor.
Desviou o olhar de Siriu e o fixou em mim, oferecendo-me um sorriso
pequeno, fechado, porém simpático.
— Como eu disse, meu tempo é curto. Freya, você é bem-vinda sempre
que quiser, perdoe-me pela recepção não ser a melhor. Fale com Onira e ela
lhe dirá que não precisa me temer.
Ele começou a dar a volta para entrar num corredor escuro mais ao
fundo, porém Kirina o parou.
— E eu, padre? Sou bem-vinda quando quiser?
— Para estar na presença de Deus, é claro que sim. Com licença, fique
com Deus Kirina.
Quando ele se foi, ela riu e me encarou, enrolando uma mecha do cabelo
no dedo.
— Tenho certeza de que ele tem tesão em mim.
— Pelos portões de Valhala, Kirina — disse Siriu, fazendo-a dar de
ombros.
— Por que outro motivo fugiria tão rápido quando me vê? Tenho certeza
de que é pra esconder a ereção. O que você acha, Freya?
Siriu tomou o caminho da saída, e nós o seguimos. De repente, percebi
que o passeio estava acabando, assim como o meu tempo com ele.
— Homens não escondem seus desejos — respondi à pergunta de minha
amiga. — Acho que ele quer levá-la para perto de Deus.
— Bem... Eu com certeza, o deixaria me apresentar o céu.
Eu sorri, encantada com o pensamento.
— Isso não seria mágico?
Kirina olhou para Siriu antes de entrar no carro e riu.
— Ela não é uma graça?
Ele me fitou rapidamente, sem nem me deixar apreciar o prazer de sua
atenção antes de desviar o olhar e abrir a porta, entrando do outro lado no
automóvel.
Ao menos ainda poderia observá-lo no caminho para a casa.
Talvez eu fosse sortuda o suficiente para captar sua atenção e invocar
silenciosamente a minha própria magia para que me procurasse.
Deus, Odin, ou o que quer que fosse aquela falada criatura maior do que
nós, era testemunha de que se ele não viesse, eu iria atrás dele.
— O que fará hoje? — Kirina me perguntou. Obriguei-me a desviar os
olhos do meu Siriu e fitei.
— Vou voltar para a casa e esperar Onira e Demeron. Ward voltará de
viagem amanhã e retorno ao trabalho.
— Ele tem sido compreensivo com você? Há algo que queira me dizer?
Meu sorriso era de gratidão, pois eu sabia que com aquela pergunta ela
estava deixando claro que resolveria se eu tivesse algo a me queixar.
— Ward me ajuda muito. Acho que junto com as conversas na
psicóloga, logo não serei mais uma aberração.
Seu sorriso brincalhão sumiu, dando espaço a uma expressão
desagradável. Poucas foram as vezes que vi Kirina séria ou irritada, e todas
elas foram reagindo a algo que falei sobre mim mesma, mas ainda assim eu
sempre esquecia de segurar minha língua perto dela.
Porém, dessa vez a réplica não veio dela.
— Não repita essa merda. — Siriu falou enquanto me olhava tão
profundamente que uma parte de mim voltou há cinco meses, vivendo junto
com o meu mestre.
— Sinto muito, meu senhor — falei baixinho, inevitavelmente
percebendo a mudança em sua feição. Não sabia o que era, tampouco porque
percebi algo tão sutil, mas estava ali.
Ele voltou a fitar o lado de fora e eu fiz o mesmo. O silêncio era
esmagador e estranhamente reconfortante. Meu coração batia feito louco,
minhas mãos tremiam e senti a excitação correr por meu corpo. Queria
descompassadamente levantar meu longo vestido e aplacar o fogo que se
iniciava em minha intimidade. Queria tanto que lágrimas vieram aos meus
olhos enquanto apertava as coxas com força, impedindo-me de fazer tal
movimento.
Com a boca seca, orei para que chegássemos logo em casa e eu pudesse
me livrar da roupa para finalmente me tocar onde precisava.
Apenas uma pessoa já havia me feito sentir daquela forma. Ele me
treinou para chegar aquele ponto, a um desespero tão profundo que aceitaria
de bom grado qualquer dose de dor afim de receber o prazer que viria junto.
Um grito, uma voz ordenada, um olhar mais intenso e eu estaria pronta.
Meu sexo tão ansioso para receber qualquer toque que eu poderia desmaiar.
Minha cabeça viajou para algum tempo atrás, quando mestre me
prendeu a uma das paredes da Kambarys, ordenando-me a observar a festa de
corpos acontecendo à minha frente. Ele deixava toques sutis, beijos lentos e
rápidos, como uma caricia para acender todo o meu corpo até que finalmente
estivesse pronto para me deixar chegar ao ápice.
Lembrava-me de pedir silenciosamente para ser torturada, ao menos a
dor seria um alívio, os toques que me levariam para longe do esquecimento.
Fiquei pendurada e observando por horas, talvez dias, faminta, nua, com
a excitação escorrendo até meus pés, meu corpo suando em bicas e as
lágrimas de profunda angústia correndo feito uma cascata por meu rosto.
Fui trazida de volta ao presente quando ouvi o som da porta abrindo e
percebi que estávamos parados. Assisti Siriu sair e comecei a me ajeitar para
segui-lo, não sabia onde estávamos, mas quanto mais tempo em sua presença,
melhor. Antes que pudesse ir uma mão em meu ombro me parou.
— Ainda não chegamos no nosso destino. — Kirina me disse,
apontando o banco onde eu estava sentada antes.
Seu segurança fechou a porta e pela janela escura
observei Siriu afastando-se sem olhar para trás. Ele se dirigia a um enorme
lugar feito de pedras e várias bandeiras penduradas no alto.
— Que lugar é esse?
— A Suprema Corte. — Percebendo que não entendi e apenas
continuava a encarando, ela explicou — O maior tribunal do país. É aqui
que Siriu trabalha.
— Foi assim que Demeron conseguiu tirar Onira de meu me...
de Kazel?
— Não. — Ela sorriu ligeiramente, como se meu raciocínio fosse
absurdo. — Se dependesse de Siriu tanto Onira quanto você ainda estariam
lá.
— Por isso Onira não gosta dele?
— Há muitas razões para alguém não gostar de Siriu e todas elas são
válidas. Não posso falar por Onira, mas ela tem seus motivos, sei disso. —
Ela suspirou, recostando-se para trás. — Por que veio até mim, Freya?
Me mantive em silêncio, incapaz de mentir para ela. Pelo olhar que me
deu diante de minha falta de resposta, ela balançou a cabeça e por esse gesto
percebi que talvez a resposta estivesse em meus olhos. Eu não tinha
sentimentos como vergonha ou arrependimento enraizados em mim, por isso,
não desviei o olhar dela. Tudo o que eu pensava e sentia estava exposto para
que Kirina visse.
E ela viu.
— Queria que eu lhe falasse sobre ele, não é?
— Sinto muito, minha senhora. — Eu não sentia, infelizmente não.
Queria desesperadamente me sentir mal por desejar o que era dela, mas
como poderia, se por todos os meus infinitos dezenove anos de vida tive
todos os homens a meus pés? Aprendi a amar o toque que viesse a mim, o
carinho que me fosse dado seria tanto um bálsamo como uma ofensa, como
poderia não desejar a única pessoa que me aproximava do que eu realmente
era?
— Pare com isso de “minha senhora”, Krasivyy. Já passamos desse
ponto há muito tempo.
— Sinto muito.
— Krasivyy, eu não sou a Onira. Não tem que se fazer em minha frente.
Sei quem você era e ainda é, mas tenta esconder por trás dessa fachada de
“vou ao psicólogo semanalmente”.
— Não acredita que a doutora pode me ajudar?
— Querida, eu sou psicóloga. Me formei e acredite quando digo que não
ajudei nem a mim mesma, estou falando sério.
— Eu não sabia.
— Ninguém sabe — suspirou, ajeitando o cabelo no reflexo do telefone.
— Eu imaginei que viria até mim quando Siriu me disse que a tirou da
delegacia.
— Por quê?
— Porque ele é ele. Um homem que causa A impressão nas mulheres.
— Eu não deveria desejá-lo — sussurrei, mas não era o que eu sentia,
nem de longe. Apenas reproduzia o que tanto me foi dito. Indiretamente
por Onira, depois Lut, e pela expressão de Kirina, eu estava prestes a ouvir
outra vez.
— Freya... — Raras foram as vezes que me chamou por meu nome, e
dessa, parecia ainda mais sério. Tanto o modo como disse, como a pausa que
veio a seguir. — Quem sou eu para dizer quem deve desejar ou não? Odin e
todos os guerreiros de Valhala são testemunhas de que se ainda não tirei as
roupas daquele padre foi porque nunca o peguei sozinho.
Franzi o cenho em confusão e de repente, um pouco esperançosa.
Se Kirina tinha desejos por padre Terry, então talvez ela e Siriu fossem como
casais que visitavam a Kambarys e gostavam de ter outras pessoas
sexualmente.
— Siriu não se incomoda com isso?
— Por que se incomodaria? — Erguendo as sobrancelhas, ela fez uma
pausa quando o telefone tocou, mas ignorando a chamada, deslizou o dedo
pela tela e voltou a me encarar.
— Ele te pertence.
As sobrancelhas subiram mais ainda e ela riu, gargalhou de fato.
— Ah, krasivyy, de onde foi que tirou isso? — Quando apenas encolhi
os ombros como resposta, ela riu um pouco mais. — Siriu não me pertence.
Ele não pertence a ninguém.
— Eu não acredito nisso.
— Quando foi que eu menti para você?
— Nunca mentiu e espero que nunca o faça, pois prezo por nosso laço.
Mas como quer que eu acredite que ninguém teria se prendido a ele?
— Ah, não, inúmeras mulheres se prenderiam a ele, é Siriu quem não vê
ninguém dessa forma.
— Nem mesmo você? — perguntei desacreditada. Kirina era,
bem... Kirina.
— Nem mesmo eu. Linda, poderosa e disposta a aceitar tudo o que
precisasse. Eu o amei, ainda amo e vou sempre me odiar por isso, mas não
desejo o mesmo para você.
Com um suspiro frustrado, desviei os olhos dela para me atentar a
paisagem do lado de fora. Já estávamos na estrada cercada por árvores e
grama que levava a casa de Onira e Demeron. E é claro, queria estar o mais
longe possível.
— Isso quer dizer que não me ajudará, não é?
— Não, krasivyy. — Inclinando-se, ela pegou minha mão e apertou
entre as suas. — Quer dizer que estou te salvando.
"Eu rezava
Tentando ao máximo alcançar o que queria
Mas quando eu tentava falar
Parecia que ninguém conseguia me ouvir
Queria fazer pertencer a este lugar
Mas tinha algo tão errado com esse lugar
Então eu rezava, para que eu pudesse me libertar”
KELLY CLARKSON, BREAKAWAY
Ao acordar naquela manhã percebi que não queria estar ali. Não era uma
novidade, afinal, eu acordava e dormia com aquele pensamento, mas foi mais
intenso. Como se minha mente estivesse gritando. Não queria mais ver aquele
mesmo teto, as mesmas paredes me cercando, sufocando e fazendo parecer
com que aquele labirinto agonizante tinha apenas uma saída: o penhasco.
Tomei café com Onira, pois Demeron não havia voltado na noite
anterior e notei como ela estava tensa. Triste. Agora eu sabia que o trabalho
dele era perigoso e há cinco meses convivia com a noção de que a qualquer
momento algo poderia acontecer e Demeron jamais voltaria para a casa.
E enquanto ele estava lá fora eu continuava do lado de dentro.
Tão segura, tão protegida, vivendo uma vida que não era minha e não
importava o quanto Onira tentasse me transformar em uma jovem adulta
normal, eu jamais seria.
Não tive infância, amigos que visitavam minha casa ou professores, não
tive e nunca teria uma adolescência de beber álcool e sair escondida, nunca
teria a experiência do primeiro amor. Eu mal sabia ler e escrever meu nome,
ficava apenas cada dia menos complicado.
Fiz sexo.
Isso foi o que fiz a vida inteira. Era tudo o que eu sabia fazer e poderia
dar aula sobre isso.
Onira queria que eu estudasse, crescesse, me apaixonasse por algo que
levasse a um futuro. A não ser que eu fosse autorizada a ser uma das meninas
de Kirina, não me via descobrindo uma paixão e trabalhando com nada além
disso.
Eu não era uma artista talentosa como ela, nem alguém inteligente o
suficiente para ser um agente secreto como Demeron. Não me enchia de
autoilusão de que poderia ser mais do que Freya, a escrava louca.
Era assim que todos me viam, certo?
Incluindo eu mesma.
Fitando os papéis em minhas mãos e os montes espalhados pela pequena
sala que me foi dada no escritório de Kurton Ward, me perguntei por que
sentia aquela necessidade crescente de colocar fogo em tudo. Meu chefe
nunca foi nada além de cortês, assim como Demeron. Ward pisava nas
palavras perto de mim, nunca chegava muito perto, e nunca me olhava por
muito tempo nos olhos, não sei o que Onira disse a ele, mas funcionou e ele
deve ter passado a mensagem adiante.
Ninguém naquele lugar me dirigia um olhar. Eu melhor do que todas as
mulheres que trabalhavam ali conhecia homens e me olhar no espelho todos
os dias era um lembrete de quão desejável podia ser. Vez ou outra, algum
funcionário se esquecia da regra e me analisava quando pensava que ninguém
estava vendo, mas eu sempre via. Sentia e inundava-me de desejo, não
importando quem fosse.
Meu trabalho consistia em algo que eu não entendia. Guardar os papéis
marcados em gavetas com símbolos iguais nas folhas. Números.
De primeiro momento foi aterrorizante, mas Ward mandou que uma
moça ficasse comigo até que eu começasse a compreender o que precisava
ser feito. A única coisa que eu sabia era que antes aquela função era dela. Se
foi demitida ou colocada em outro lugar eu não fazia ideia.
Pessoas de todos os seis andares que ocupavam a empresa de Ward iam
e vinham o dia inteiro, deixando e levando papéis. Por isso o trabalho não
acabava nunca e errei muito, mas com o tempo, conforme aprendia a ler tudo
foi ficando menos complicado.
Minha... gratidão por Ward era enorme. Por sua paciência quando errei e
seu incentivo quando acertei, mesmo que fosse um acerto mísero.
Entrei aqui sem saber nada, a não ser o que os quatro meses vivendo
com Kirina me ensinaram, e depois, cinco meses vivendo
com Onira e Demeron.
Nove meses de luta e eu me sentia como se tivesse guerreado por eras
até chegar aqui.
— Ei. — O cumprimento foi acompanhado de uma batida suave na
porta e me virei para ver de quem se tratava. Quando encarei o homem
esperando para entrar, seus olhos estavam fixos em minha bunda, enquanto
eu, inclinada sobre a mesa para recolher alguns documentos não esperava
visitantes.
Mas, não foi a surpresa que me fez travar no lugar, foi seu olhar.
O desejo estampado no rosto, o movimento da garganta quando engoliu
a saliva, o peito expandindo com uma respiração profunda... tudo o que eu
queria estava bem ali. A poucos passos de distância um homem que não tinha
medo de mostrar o que estava sentindo. Me endireitei, apreciando o calor de
sua atenção. As ordens de Ward não importavam, tampouco o
que Onira desejava para mim.
O homem entrou e fechou a porta lentamente, talvez percebendo pelo
meu olhar que eu estava querendo algo tanto quanto ele.
Jimy.
Ele aparecia pelo menos uma vez por dia, às vezes não tinha sequer o
que fazer ali e aparecia ainda assim. Eu conhecia seus olhares, seu desejo, sua
vontade de pegar algo proibido. Algo que não lhe pertencia.
Eu queria dar. Lhe entregaria de bom grado.
Decidi naquele momento, soltando os papéis e me endireitando.
— Você me acha bonita, Jimy?
Minha pergunta o surpreendeu, pude perceber, mas ele não perdeu
tempo analisando muito.
— Sim. Perfeita. Você é a menina mais perfeita que já vi nessa vida.
— É um homem muito bonito também.
Ele sorriu, parecia constrangido. Surpreso por meu elogio.
— Eu venho aqui sempre, acho que já percebeu.
— Já. Imaginava se queria me dizer algo.
— Eu queria. Queria demais.
— Bem, diga-me então. — A combinação da minha voz, minha
linguagem corporal pronta para o ataque e meus olhos fixos nele o estavam
fazendo perder a lógica. Agradeci a meu mestre por isso.
— Pensei em convidá-la para um encontro.
— Um encontro? — Franzi o cenho — O que é isso?
Ele riu, aproximando-se um pouco mais.
— Bonita e tem senso de humor. Sou um cara de sorte.
Encontro. Sorte. Revirei em minha mente para descobrir se já ouvira
alguma das palavras, mas não. Era um grande branco sobre isso em minha
memória.
— Quero fazer coisas com você, Jimy. Agora.
— Ti-tipo o quê?
Em passos lentos me aproximei dele. Temia que fosse me rejeitar
violentamente ou até mesmo se zangasse, indo até Ward para me punir.
— Eu quero servi-lo, meu senhor. Posso?
Ele inclinou a cabeça, franzindo os olhos ligeiramente.
— Me servir? Que conversa...
Ajoelhei, olhando-o nos olhos como Kazel me ensinou.
— Vou lhe dar prazer com a minha boca. — Seus olhos arregalaram, eu
já tinha visto aquela reação antes, mas ele ficou imóvel. Silenciosamente
parado. — Depois o senhor pode tomar minha boceta. — Deslizei os olhos
por sua virilha. — Posso?
Ele não hesitou. Assentiu com força, balançando a cabeça.
Ergui minhas mãos devagar, roçando os dedos pelo tecido, sentindo seu
membro endurecer com o mínimo toque. Abrindo aquele pedaço de couro
que usava em volta da cintura, senti uma onda do meu líquido expelir para
fora do meu corpo, molhando minha calcinha e aquilo me fez esquecer a
cautela.
Se ele considerasse algo errado eu lidaria com aquilo. Não seria a minha
primeira punição de qualquer maneira.
Desfazendo o botão e zíper de sua calça como aprendi depois de anos
repetindo o mesmo movimento. Seu pênis estava duro, mas com o toque dos
meus dedos enrijeceu ainda mais, tirando-lhe um gemido.
Inclinei-me para a frente, abocanhando a cabeça rosada e guardando
minha língua para baixo, deixando a garganta livre para engolir por inteiro e
só flashs de momentos passar a língua pelo líquido que lhe vazava,
como Kazel me ordenava.
De repente, eu não estava mais em Berlim no escritório do meu novo
emprego entediante que me foi dado por compaixão.
Não era mais a pobre menina que foi aprisionada por toda a vida.
Não era o caso de caridade de Onira Tieko e Demeron Konstantinova.
Eu estava de volta na Kambarys, com velas, tochas e fogo, paredes de
pedra manchadas de sangue, cânticos de rituais sendo entonados ao fundo e
os olhos profundos de Kazel fitando-me enquanto eu tomava seu membro na
boca. Os barulhos do trânsito lá fora sumiram, assim como as vozes falando
ao telefone e o elevador apitando conforme pessoas subiam e desciam, e
gemidos tomaram conta da minha mente.
Fogo, lágrimas, sangue e dor.
Prazer.
Eu não era mais eu.
Eu era de volta dele. Não de Kazel, mas do meu mestre.
Na única vida que conhecia, na única casa que já chamei de lar.
A sensação tornou-se física, e me peguei consciente de minha mão
invadindo a calcinha por baixo da saia. Os dedos do homem que eu chupava
adentraram meus fios do cabelo, apertando-os até o couro cabeludo arder.
— Sim — gemi, afastando-me para lamber toda a extensão. — Oh, sim!
— Meus dedos trabalhavam com fervor em minha boceta e se um silêncio
absoluto se fizesse, seria possível ouvir meu líquido pingar no carpete de
madeira.
— Caralho, Freya. — O homem gemeu, empurrando minha cabeça afim
de afundar mais uma vez em minha garganta.
Fechei os olhos, querendo voltar a Kambarys, esperando os sons e as
imagens inundarem minha mente outra vez. Estava quase alcançando o
orgasmo, minha pele fervia, meu centro...
De repente tudo acabou, ouvindo o grito do homem, fui puxada para
longe.
— ... do caralho! Tire esse filho da puta da minha frente, agora!
— Kurton gritava. Assisti de olhos arregalados o homem ser empurrado para
fora por um segurança enquanto tentava fechar a calça, o rosto todo
vermelho, suando. Nem sequer conseguiu me fitar com a raiva que eu tinha
certeza de que estaria lá.
Ward me girou para encará-lo, e percebi que segurava seus braços num
aperto de morte.
— Você está bem? Meu Deus, Freya... não sei dizer como sinto por isso
ter acontecido!
Eu ainda respirava com dificuldade, minha mente girando em tudo o que
acabara de acontecer, e por isso, fiquei em silêncio.
— Vou demitir o filho da puta. Juro, te dou minha palavra que não vai
se repetir, nunca mais terá que vê-lo.
Minha pele ainda formigava, minhas pernas se contorciam, minhas mãos
tremiam e de repente senti um vento gelado em meus dedos. Ainda estavam
molhados e ao me dar conta disso soltei Ward. As marcas dos meus dedos
estavam na camisa azul clara em ambos os lados. No esquerdo, era a minha
saliva que usei para lubrificar e esfregar o membro daquele homem, e na
direita, minha própria lubrificação.
Tudo aquilo para chegar a um prazer ridículo que nem sequer consegui
alcançar.
Oh, meu Deus...
Kazel...
Lágrimas romperam como uma barragem, soluços incontroláveis
encheram a sala. Agonia. Uma agonia tão profunda me tomava que nem se eu
quisesse poderia conter.
— Não, não, não. — Ward segurou meu rosto, tentando olhar em meus
olhos. — Ele te machucou? Merda, Freya... vou chamar um médico. —
Levou-me até sua cadeira. — Fique sentada aqui e vou consertar isso, vou...
— Pare — sussurrei. — Pa-pare, p-por favor. Ele não fez nada.
— Não precisa negar, ok? Eu não protejo homens como ele. Ele pagará
pelo o que fez.
— Ele não fez nada — repeti com mais firmeza. — Ele simplesmente
veio deixar alguns papéis para arquivar e eu o ataquei. Eu o empurrei na
parede e toquei seu pênis. Se você não tivesse chegado eu teria pedido que
fizesse sexo comigo. Quero fazer o mesmo com você agora, Ward, então por
favor, me deixe sozinha.
Ele me olhou estarrecido. Sem palavras, passou as mãos pelo cabelo,
tirando o óculos e esfregando os olhos.
— Você... Eu não sei o que te dizer.
— Eu estou pegando fogo, Ward. — Ergui a cabeça e o olhei no fundo
dos olhos. — Estou a um passo de levantar e rasgar você. Já seduzi homens
por menos, então, por favor... não me faça fazer isso e ter que encará-lo
depois.
— Não vou deixá-la sozinha, Freya. Não posso.
Levantei-me, dando dois passos à frente, esticando o braço eu o
alcançaria. A barra do meu vestido arrastando no chão era algo que carreguei
por toda a vida, sempre coberta a não ser que estivesse servindo ao mestre,
mas agora, me sentia tão nua quanto.
— Isso quer dizer que vai acabar com a minha necessidade, Ward? Vai
me foder? Vai foder comigo tão forte até que eu sangre? Porque vou forçá-lo
a fazer isso!
Ele desviou o olhar, recuando alguns passos.
— Se eu a deixar e você fizer alguma besteira...
— Não deixe nenhum homem entrar aqui e nenhuma besteira será
cometida.
Ele não saiu de imediato. Ficou pelo menos dois minutos me olhando.
Eu sabia que Ward nunca me tocaria, não só por Onira, mas ele não parecia
ser aquele tipo de homem. O tipo que me tocaria só porque eu implorei por
isso.
Quando se foi, eu me sentei novamente, levando os joelhos ao peito e
afundando a cabeça entre as pernas. Fechei os olhos, o frio que me cercava
era psicológico, mas o vazio não. O vazio pertencia a mim assim como eu
pertencia a ele.
O gosto do líquido daquele homem na minha língua era o único consolo
que eu tinha naquele momento, mas me levantei e fui até o banheiro,
escovando os dentes. O hálito fresco deveria ter me deixado mais calma, mas
só me fez querer afundar mais em minha miséria.
Vá atrás dele.
O pensamento veio como um sopro. Sutil, baixo e sugestivo, mas era
tudo o que eu queria fazer naquele momento.
Siriu.

Não sei quanto tempo fiquei enfurnada naquela sala, mas por fim, ouvi a
porta sendo aberta e me preparei para pedir desculpas a Ward, mesmo que
não me sentisse arrependida de nada. Meu único erro foi ter sido pega, ainda
assim algo em mim não parecia certo. Tinha esse insistente sentimento, o
mesmo que me afligia quando eu desagradava o mestre.
Lembrava-me da forma como falei com ele, como expulsei Ward de seu
próprio escritório e ele sequer debateu comigo. Apenas saiu.
Mas não foi com ele que dei de cara. Não. Ele foi direto para o que mais
me atingia. Onira.
Ela veio com pressa, sem hesitar um segundo antes de me puxar para
seus braços e me envolver num abraço tão carinhoso que não pude devolver.
Ward se mantinha atrás dela, perto da porta, olhando para ela quase
como Demeron fazia. Perguntei-me se ela sabia desses sentimentos.
— Vamos tirá-la daqui, ok? Vamos levá-la para casa.
Eu assenti silenciosamente, sem conseguir desviar meus olhos de Ward.
— Oni, se precisar de qualquer coisa...
— Eu sei, Kurt. — Ela parou ao lado dele, segurando minha mão
firmemente de um lado e a mão livre tocou seu braço. — Obrigada por ter me
chamado.
Acenando, ele finalmente tirou os olhos dela para me fitar. Parei perto
dele, encarando-o com minha... vergonha e medo. No fundo, entendia que
não tinha porque temer esse homem, mas foi mais forte do que eu e me
peguei ajoelhando aos seus pés.
— Perdoe-me, meu senhor — sussurrei. — Por favor, tente me perdoar.
Não sei o que houve comigo.
Onira estava congelada um pouco atrás dele, observando-me como se
nunca tivesse me visto. Na verdade, me fez lembrar da primeira vez que nos
vimos, quando eu achava que ela era parte daquilo. Que era como eu.
— Pelo amor de Deus, Freya. — Ele rapidamente se inclinou e me
ergueu, segurando meu rosto com delicadeza. — Nunca mais se ajoelhe
diante de mim. Diante de homem nenhum.
— Não puna Jimy pelo o que fiz, ele não sabia...
— Isso está fora de discussão.
— Eu juro que o obriguei. — Sentia-me no dever de defender o
homem. Eu não precisava do trabalho, ele provavelmente sim. — Não o
desampare, por favor! Eu imploro e ajoelho novamente se for necessário.
— Não. Já lhe disse, Freya... existem regras na empresa, esses atos não
são tolerados. Qualquer tipo de relação sexual aqui dentro é cabível de
punição.
— Ele não teria feito se eu não o tivesse tentado.
— É muita ingenuidade sua pensar assim — disse Onira, dando-me um
daqueles olhares.
— Há quanto tempo ele trabalha aqui? — perguntei.
— Freya. — Ward me avisou, balançando a cabeça.
— Por favor, apenas me diga.
— Pouco mais de quatro anos.
— E alguma vez já foi pego fazendo algo que vai contra essas regras?
— Isso não importa.
— Importa. Importa para mim. Apenas pense nisso?
— Não prometo nada.
— Eu sei — falei baixinho, sentindo-me incrivelmente mal quando o
rosto de Jimy me vinha a cabeça.
— Vá para a casa e descanse, Freya.
Assenti, dando-lhe um último olhar.
— Eu entendo se minha vaga for suspensa. Você deveria contratar outra
pessoa em meu lugar.
Eu podia ver em seu olhar, que ele concordava. Por ser amigo de Onira,
Ward continuava tentando me encaixar ali, em seu mundo. Mas eu não podia
mais fazer isso.
— De o emprego a alguém que merece. Sejamos honestos aqui. —
Fitei Onira. — Não estou aprendendo nada, tampouco feliz.
Ela abaixou a cabeça como se imaginasse, mas estivesse esperançosa
demais em me salvar para admitir.
Aquele era o problema. Como poderia salvar alguém que não queria ser
salvo?
— Ward esperará dois dias antes de contratar uma nova pessoa,
enquanto isso você pode pensar. Se decidir que quer continuar...
— Não vou.
Ela olhou para fora pela janela do carro.
— Considere isso.
— Posso ir para a casa caminhando?
— Não. — Sua cabeça virou com força, um olhar confuso direcionado a
mim. — Não pode.
— Eu perguntei apenas por consideração a você.
— E por consideração a você eu disse que não.
— Onira. — Minha voz tinha um tom estranho, diferente de todas às
vezes. Não só eu percebi isso, mas ela também. — Eu vou sair e voltar para
casa sozinha. Há dinheiro em minha bolsa e o endereço está anotado em um
papel.
— Freya. — Sua própria voz foi um aviso. — Você. Não. Vai.
— Eu tenho dezenove anos.
— Mas tem a cabeça de cinco! Não vou arriscar você! — No momento
em que falou, pareceu ter se arrependido, mas já era tarde.
Eu entendia poucas coisas, mas uma ofensa já era clara em minha
cabeça. Virando-me para o motorista que trabalhava para ela e Demeron,
toquei a maçaneta.
— Pare o carro, por favor, meu senhor. Ou vou abrir a porta com ele em
movimento.
— Freya, sinto muito... eu...
Rasguei meu olhar em seu rosto.
— Vou caminhar por algumas horas e procurarei um táxi para voltar
para casa. Eu prometo. Se você não me deixar viver jamais terei a cabeça da
minha idade.
— Eu não falei por mal — sussurrou com a voz fraca.
— Eu sei. — Dei um aperto em sua mão, esperando que entendesse e
depois de um minuto ela soltou do meu aperto.
— Encoste o carro, Fritz. Freya não voltará conosco.
Ele me olhou pelo retrovisor cuidadosamente, mas obedeceu. Não
hesitei quando paramos. Pulei para fora do automóvel e apertei meu casaco
em volta do corpo, caminhando pela avenida na direção que o carro ia. Eles
se afastaram devagar, e mesmo que pelos vidros escuros eu não pudesse ver
Onira, sabia que ela estaria me olhando até que não pudesse mais.
Eu não queria caminhar, tampouco ir para a casa. Havia apenas uma
pessoa que queria ver agora.
Quando eu outros momentos eu procuraria Kirina, percebi que ela não
era mais meu refúgio. Mesmo sem ter me dado um único motivo para vê-lo
assim, Siriu era. Eu queria estar com ele mais do que com qualquer outra
pessoa.
Observei a avenida de quatro ruas... vias ao meu redor, olhei as pessoas
atentamente. Observei como chamavam os carros amarelos que passavam.
Táxis. Era de um desse que eu precisava.
Imitei uma moça ao meu lado e funcionou. Entrei em um dos carros e o
motorista me fitou pelo retrovisor.
— Para onde, madame?
Eu pensei por um momento.
— Você sabe onde Siriu Konstantinova mora?
Ele franziu a testa, balançando a cabeça.
— Só sigo endereços, madame. Precisa me dar algum.
— Sim, certo. — Alisei a longa saia do vestido, pensando que se
cheirasse de perto, estaria com odor de sexo. — Vá para o tribunal.
— Qual?
Qual?
Bem, eu não tinha ideia.
— Não pode apenas me levar, meu senhor?
Ele fez um barulho estranho na garganta.
— Madame, isso é alguma piada? Já perdi dois clientes ali na frente. Se
for para algum lugar tem que me dizer ou precisará descer.
— A... hm... — Rodeei minha mente, tentando lembrar-me de algo,
qualquer coisa. Eu não sabia onde a mansão de Stark ficava, nem suas
empresas, também não tinha ideia de onde era o tribunal, mas então... —
Sim! Eu sei onde vamos!
— Eu espero que sim — respondeu com impaciência — Para onde?
— A Suprema Corte.
O homem balançou a cabeça, resmungando algo em sua língua que não
entendi e seguimos viagem.
Para onde, eu não tinha ideia.
"E você me segura em seus olhos
Essa beleza no meu travesseiro
Me hospedariam na noite
E eu vou encontrar a força para abrir a boca
Quando eu costumava ter medo das palavras
Mas com você eu aprendi apenas deixar ir
E agora meu coração está pronto para explodir"
ELLA HANDERSON, YOURS
A ebulição de pessoas que surgiram em cima de mim quando entrei na
Suprema Corte não era nova, mas cada vez que acontecia tirava-me um
pouco mais da miséria vontade que eu tinha de estar ali. Se não fosse aquela
profissão dando-me privilégios, contatos e a autoridade Suprema sobre
inúmeras questões e pessoas eu já teria largado tudo. Estaria esperado até que
minha hora chegasse escondido em meu ridículo barraco.
Um meio para um fim, assim como tudo em minha vida.
Um monte de dinheiro vindo de forma legal e ilegal entrando na minha
conta como juiz não fazia diferença. Os valores exorbitantes não tinham
utilidade para mim e voltariam para o governo tão logo eu morresse.
Ao subir as escadas sem fim deparei-me com o mesmo caos de sempre.
Advogados apressados, clientes sentados com desespero estampado no rosto
ou em outros casos, esperança ou vitória. Os casos que chegavam aqui não
eram brincadeira, portanto, quem entrava estava preparado para sair montado
ou carregado.
Eu não aguentava mais aquela merda, mas precisava continuar.
Encarar os chamados figurões, novatos arrogantes demais e aqueles que
não passavam um dia sem puxar o meu saco nunca foi para mim. Se não
houvesse um objetivo no fim da linha, sairia e nunca mais colocaria meus pés
ali. A não ser é claro, que fosse o único a ser julgado.
Odin sabia que eu tinha pecados mais do que suficiente.
Na ala de preparação dos juízes onde eu tinha minha sala privada assim
como os outros juízes, minha secretária tinha sua mesa na porta. Era um
espaço privado, mas ela ficava perto o suficiente para estar ao meu alcance da
voz.
— Bom dia, Sofire.
— Bom dia, senhor. — Ela rapidamente deu a volta na mesa, me
alcançando e caminhando ao meu lado para dentro — O júri de Balthere foi
suspenso esta manhã, eles acharam possíveis evidências de que um ou dois
membros podem ter sido manipulados.
— Chantageados, você quer dizer?
— Sim. Parece que Amelie Sadraazë tem um caso e Ralfen Schmith tem
sonegado impostos altíssimos.
— Como é que não sabíamos disso?
Ela me deu um olhar que dizia “qual é?”.
— Provavelmente sabíamos, mas ninguém ia fazer nada. Senhor.
— Sofire fez uma pausa, fitando-me com aquela insegurança de sempre.
— Diga de uma vez.
— Certo. Ninguém quer condenar Balthere. Sua empresa tem financiado
o governo há anos. Não importa quem está no poder, ele sempre dá um jeito
de ficar próximo e fechar negócio. Todo mundo sabe disso.
Ela estava certa. Sofire era inteligente demais para seu próprio bem e
por isso trabalhava comigo há anos, mas seu senso de justiça não me servia
de nada. Ele nunca seria aplicado ali e ela precisava entender isso. Seus ideais
de mundo perfeito eram irreais, ilusórios e impossíveis.
Ignorando seu raciocínio certeiro para não negar e nem confirmar suas
suspeitas, mudei de assunto.
— O que mais?
— Uma mulher veio vê-lo hoje.
— Uma mulher? — Só podia ser Kirina e eu não imaginava o que
diabos ela teria vindo fazer quando eu já lhe disse que meu trabalho
“legítimo” era algo fora dos limites para suas brincadeiras ou nossas questões
explanadas do submundo.
— Bem, uma menina na verdade. Muito jovem, pequena e um pouco
confusa. Ela me pareceu meio desorientada.
Parei o que estava fazendo e fitei Sofire quando sua descrição me
levantou uma suspeita absurda.
— Reparou na cor dos olhos dela?
Ela ergueu as sobrancelhas e balançou a cabeça.
— Não, mal a olhei. Essa manhã estava uma loucura aqui, mas ela
deixou seu nome. Freya.
Sua expressão ao dizer o nome deixava claro que Sofire não pensava
boa coisa. Provavelmente deduziu por si mesma que se tratava de um nome
de guerra. Mantive minha feição neutra quando por dentro fervi.
— Ela deixou recado?
— Na verdade, ela entrou na sala dos juízes e não importa o quanto
tentei tirá-la ela não quis sair. Eventualmente precisei voltar à minha mesa.
Não quis chamar os seguranças porque ela começou a falar dos seus
familiares, e como parecia íntima temi que fosse alguém que o senhor...
— Ela ainda está aqui? — A interrompi, mas não esperei resposta. Me
direcionei a saída, explodindo corredor a fora. Não importa o quão alto eu
fosse, minhas pernas não eram largas o suficiente para me levar a última sala
rápido o bastante.
— Senhor...
— Volte à sua mesa.
Seus saltos pararam, então não precisei olhar para trás para perceber que
havia travado no lugar.
— Sua mesa, Sofire.
Não parei nem quando fiquei frente a porta, pelo contrário, a invadi sem
a educação costumeira pela qual era conhecido na Corte. Bati com as duas
mãos, fazendo a porta dupla abrir com um baque e todas as cabeças lá dentro
virarem para mim num sobressalto.
Freya estava sentada de pernas cruzadas em cima de uma bancada e
cinco dos meus colegas juízes, juntamente com dois advogados muito bem
vistos por ali a secavam. Quase dissecavam. Ela tinha aquele maldito sorriso
frio nos lábios, mas não era intencional, era moldado a ela. Não existiu
felicidade em sua vida, então por que saberia como sorrir verdadeiramente?
O rosto perfeito tinha um tom avermelhado nas bochechas e ela
mordiscava o lábio inferior. Foi ao som de sua risada que as vozes pararam
no momento que entrei.
Foi ver aqueles abutres em cima dela que me tirou do sério de uma
maneira que nunca aconteceu antes.
— Me acompanhe, Freya. — Foi a única coisa que eu disse e não
precisou de mais. Os homens dispersaram, alguns saindo de cabeça baixa
enquanto outros fingiam se ocupar com algo.
A forma como eu me portava na Corte não impediu os boatos de
chegarem ali.
Que eu me reunia com a máfia italiana, tinha contato íntimo com um
envolvido na máfia russa, que meus primos caminhavam com foras da lei e
que meu tio controlava a maior agência criminosa do governo por debaixo
dos panos. Nenhum deles era leigo sobre mim, nem mesmo Sofire.
Freya não hesitou, ela desceu da bancada com graça, embora suas pernas
fossem ligeiramente curtas. O vestido cobria seus pés envoltos a uma
sandália simples e os cabelos roçando a curva suave do quadril tocaram meu
braço quando ela parou ao meu lado.
— Eu esperava poder vê-lo, meu senhor.
Maldição.
A mesma quantidade de tempo que levou para instalar aquelas
nomenclaturas em sua mente, seria preciso para retirá-las. E Odin sabia que
mesmo detestando o pensamento de como ela aprendeu a chamar um homem
de “meu senhor”, meu subconsciente automaticamente a levava as cordas na
minha cama enquanto usava o termo uma e outra vez para falar comigo
quando fosse permitida.
— Siga-me.
Freya demorou seu olhar sob mim por um momento, alisando o cabelo
para trás da orelha com a mão delicada antes de inclinar a cabeça e assentir.
Quando dei por mim estava com a mão em sua coluna e a empurrava
delicadamente em direção à minha sala. De longe podia ver Sofire de pé no
telefone, franzindo o cenho mais e mais conforme nos aproximávamos.
Meus dedos formigavam ao tocar o corpo suave de Freya. Não
importava que apenas seus braços estivessem amostra ou que eu nunca
tivesse realmente tocado sua pele, mas eu sabia que seria como seda.
Era como seda.
— Meu senhor... — Ela começou a dizer, mas minhas mãos
pressionaram sua coluna, fazendo seu peito inchar com uma respiração
profunda.
— Agora não.
Não havia um homem que não virasse a cabeça para olhar o que
acontecia. Em um casaco preto, calças pretas e terno preto, eu desfilava com
uma pequena mulher de branco. Uma mulher exuberante em todos os
sentidos.
Menina.
Me corrigi novamente, lembrando da diferença de vinte e cinco anos
entre nós dois.
Mas, enquanto esses mesmos olhos se viravam para ela, minha vontade
instintiva e até mesmo insana foi de agarrá-la e correr para escondê-la dos
olhos de qualquer um. Minha. A palavra veio como uma labareda de fogo que
tocou até a ponta dos dedos da mão que a segurava e como se sentisse
aquilo, Freya arquejou, lançando-me um rápido olhar.
— Senhor? — Sofire buscou instruções enquanto observava minha
proximidade com a pequena mulher, incerta do que fazer.
— Não quero ser interrompido. Cuide de tudo até que eu avise o
contrário.
— Sim, senhor.
Eu adentrei a minha sala e empurrei Freya antes de fechar a porta,
girando a chave e enfiando-a no bolso. Ela observou cada movimento meu
com olhos atentos, aqueles olhos estranhos, fascinantemente amarelos.
Ela parecia a porra de uma divindade e eu precisei me controlar para não
pecar contra ela.
— O que posso fazer por você, Freya?
— Eu vim vê-lo.
— Eu percebi, mas por qual motivo?
Ela hesitou, olhando para seus pés por um longo momento. Os braços
cruzaram como um escudo de proteção em sua frente.
— Pedi para sair do trabalho hoje. Disse a Kurton Ward que não voltaria
ao meu emprego.
Eu não entendia o que aquilo me diria respeito, mas fiquei
estranhamente tenso, aproximando-me dois passos.
— Ele fez algo contra você?
Ward usava seus talentos como empresário para negociar entre o
submundo. Se havia duas gangues em desacordo, ele marcava uma reunião
pelo preço certo e dava aos líderes de ambos os lados um lugar para
conversar e se acertarem. Ele tinha os melhores contatos de contrabandistas,
traficantes de armas em diversos países e dinheiro para emprestar a quem
quisesse. E quando não o pagavam ele recorria aos trabalhos do Moto-
clube que Harlen estava atualmente situado para que cobrassem e dessem os
devidos avisos.
Eu tinha inclusive que me lembrar de perguntar a Ward se ele sabia algo
sobre meu primo estar escondido lá todo esse tempo ao invés de morto, como
eu e minha família acreditávamos.
Porém, mesmo com suas inclinações para o crime, eu nunca o vi ser
nada além de diabolicamente cortês e sedutor com as mulheres que
atravessaram seu caminho. Mas... e se por saber de onde Freya veio ele
resolveu jogar mais pesado?
O pensamento de alguém tocando aquela menina que embora passara
por tanto, ainda carregava uma inocência inacreditável me enfezou além do
normal.
Se Kurt tivesse sequer tocado nela, eu cortaria o bastardo em tiras para
fritar e alimentaria os cães da periferia de Berlim. Teria o inferno para pagar
em consequências, mas ele sofreria.
O rumo sanguinário de meus pensamentos me fez dar um passo atrás,
percebendo que a presença daquela menina despertava em mim o homem que
eu não era mais e não tinha o mínimo interesse em voltar a ser.
— Não. — Seus olhos arregalaram. — Kurton Ward sempre foi um
cavalheiro.
— Então qual foi o problema?
— Eu... eu não me sinto à vontade para falar, não com o senhor.
— Se veio até mim teve um motivo e se não me disser não poderei
ajudá-la.
Ela pensou por mais um momento. O silêncio me levando a observá-la
como uma mulher novamente. Não havia uma mácula em sua pele exposta.
Nada. Ela era perfeitamente construída e havia uma naturalidade poderosa
sobre aquela mulher.
Kazel era um desgraçado fodido em níveis que nem eu podia
compreender e ao usá-la para o que usou só confirmou isso. Eu olhava
para Freya e a vontade de me afundar em seu corpo por horas sem fim era
grande, mas um sentimento ainda maior aflorava. O de proteção.
Eu sabia o que ela tinha passado porque já presenciei outras em seu
lugar, mas algo me puxava em sua direção. Essa vontade louca de levá-la
para o topo de um prédio e trancá-la para que nada a prejudicasse outra vez.
E era por isso que eu precisava pôr um fim antes mesmo de ela pensar
que haveria um começo.
Se cheguei tão perto do meu objetivo foi por não deixar que nada me
afetasse.
E precisava continuar assim.
— Você precisa parar de vir atrás de mim. — Tentei falar o mais calmo
que pude. — Já disse que não tenho nada a ver com sua vida. Se você tiver
problemas tem que dizer a Demeron.
— Você disse, mas eu preciso, meu senhor. Sinto que é o único que
pode me ajudar com isso.
Balancei a cabeça incrédulo. Como ela podia colocar aquele tipo de
confiança em minhas mãos? Aquela crença absurdamente cega?
— Apenas o fato de você estar aqui comigo sozinha prova
que Demeron está certo em tratá-la como faz. Deixar você sozinha é como
soltar uma criança no mundo e dizer para se cuidar.
— O que quer dizer? — A testa lisa franziu, os olhos fixos em mim
concentrados. Era nítido o esforço que ela fazia para entender o que eu estava
dizendo.
— Eu não sou um herói, Freya.
— Não, não é. Demeron é. Mas, eu não preciso de um herói, preciso de
alguém que me dê uma direção.
Soltei uma risada incrédula.
— A única direção que eu a colocaria seria a de passos
coordenadamente calculados a sua destruição, menina. Você voltará para a
sua casa agora e vai fazer o que Onira e Demeron te mandarem. Vá ao
psicólogo, trabalhe, estude, faça amigos. Não me importa, apenas esqueça
qualquer ideia absurda que tem sobre mim.
— Mas você é o único que me faz sentir assim! Eu estou cega na maior
parte do tempo, mas só de pensar em você... tudo fica claro. Sinto-me tão
aquecida que parece que nunca deixei meu verdadeiro lar.
— Eu trouxe o inferno a terra, é a única explicação — murmurei,
fechando os olhos por breves segundos.
— Eu não sabia que um simples homem tinha tais poderes. — Ela
constatou depois de alguns segundos, olhando-me com verdadeira
veneração.
— Que poder? — perguntei, franzindo o cenho.
— Evocar o inferno na terra. — Ela tinha um sorriso tímido nos lábios
que quase me deixou de joelhos, mas então o significado do que entendeu fez
sentido.
— É uma metáfora.
— Oh... e o que é isso?
Eu dei risada. Uma risada lamentável porque aquilo era tão
absurdamente fodido de louco.
— Vou te levar de volta para Demeron. — Me dirigi em direção a porta,
já enfiando a mão no bolso para pegar a chave.
— Não. — Ela se aproximou num instante e colocou a mão em meu
peito, como se tentando me impedir de passar. O que era uma piada. Eu era
dois em largura dela e pelo menos três pés mais alto. Sua cabeça nem
chegava ao meu queixo, ficava tão inclinada para me olhar, que os cabelos já
absurdamente compridos ficavam ainda maiores por trás.
— Por favor — sussurrou. — Ensine-me a ser normal.
Normal? Ela queria ser normal comigo como seu professor?
Aquela menina não via que eu a esmagaria?
— Por que eu? — Ainda assim eu perguntei.
— Porque o senhor foi o único que não se conteve perto de mim. Não
me tratou como se uma rajada de vento fosse me despedaçar. Não deixou de
dizer as coisas que pensava por medo de me magoar de alguma forma. Eu
acredito que é o bravo guerreiro que me salvará.
Fodidos deuses nos portões de Valhala.
— Odin — murmurei, olhando para o alto. — Pai de todos, o que foi
que eu fiz para merecer sua fúria?
— Isso quer dizer que me ajudará?
Não. Aquilo queria dizer que eu praticamente podia ver o meu Deus me
encarando nos portões de ouro com os braços cruzados e uma risada maligna
ecoando de sua garganta por todo o paraíso. Seria ela a minha penitência? O
meu teste?
— Diga-me o que aconteceu em seu trabalho. Com Kurton Ward.
Relutante, ela desviou o olhar de mim.
— Eu coagi um homem a praticar um ato sexual comigo. — Ela franziu
a testa. — Na verdade, eu fiz algo sexual para ele.
Minhas mãos apertaram em punhos, minha mandíbula travou e em
minha cabeça fiz variadas rotas de qual caminho me levaria mais rápido a
empresa de Ward para estraçalhar o desgraçado que a tocou.
Ou foi tocado por ela.
Não demonstrei.
— Explique.
Eu não sabia o que havia em minha voz, mas cautela tomou forma em
sua expressão e Freya recuou alguns passos, olhando-me numa mistura de
emoções que me fez praguejar baixo ao reconhecer cada uma delas.
— Freya, não me olhe assim.
— Assim como?
— Como se eu fosse tudo no meio do nada.
— Para mim você é. — Descruzando os braços, ela fechou o espaço
entre nós e ergueu a palma trêmula, pousando a mão em meu peito
novamente. O toque quente aqueceu o lugar onde ela encostou, mas apenas
ali. Todo o resto de mim permanecia frio como deveria ser e perceber que
ainda tinha esse controle me fez acalmar um pouco. — Você é.
— O que, Freya? — Inclinei a cabeça em sua direção, olhando nos olhos
mesmo quando ela tentava fugir. — Sou o homem que Demeron, Onira e
até Kirina te avisaram para ficar longe? Sou o cara que não oferece nada de
bom a ninguém? Aquele que não interessa como alguém chegou até mim, irá
embora pior?
— Não — respondeu com uma coragem surpreendente. — Você é igual
e ele.
Franzi o cenho. Se ela continuasse comparando-me com Demeron eu
teria que ter uma conversa séria com o meu primo sobre o que diabos estava
acontecendo em sua casa.
— Ele quem?
— Kazel. — No momento em que seu sussurro frágil alcançou meus
ouvidos me tornei pedra.
Me tornei trevas.
Será que foi algo que eu disse?
Enquanto Siriu dirigia pela cidade me levando embora, eu quis bater em
mim mesma, quis encarar meu reflexo no espelho e xingar sobre o quão
idiota eu era. Estávamos indo tão bem. Ele estava falando comigo, nem
mesmo reclamou sobre eu tocá-lo ou me impediu, mas então algo mudou.
Ele afastou-se com a mesma facilidade com que eu tinha me
aproximado.
Não foi só fisicamente. Mesmo sem entender muito das coisas, eu podia
vê-lo longe em sua cabeça. Mesmo no conforto de sua presença me senti
tensa na possibilidade de essa viagem ser a última juntos.
— Me senti mais em casa três vezes que estive em um carro com você
do que em meses na casa de Onira — falei de repente, sem pensar em segurar
ou filtrar meus pensamentos antes de colocar para fora.
— Não deveria. Essa é a última vez que algo assim acontece.
— Algo assim? — O encarei. Os dedos estavam brancos em volta do
volante, seu rosto tenso, todo franzido. Desci mais meus olhos, direcionando
a atenção na única coisa dele que eu não conseguia imaginar.
— Estar sozinha comigo.
— Isso não é verdade.
— Veremos.
Balançando a cabeça com um estranho sentimento irritadiço, voltei a
fitar a estrada.
— Sim, veremos.
— Você está saindo da concha, Freya. Isso é bom. Mas preste atenção
em como fala com algumas pessoas.
— Ou o quê?
Nós paramos em um sinal vermelho quando ele me olhou, aqueles
profundos olhos azuis cravados nos meus de uma maneira que me fez ver que
não era a única com sentimentos aflorados.
— Haverá consequências.
— Eu quero isso. Quero que me puna, que faça o que quiser comigo.
Meu senhor, eu preciso de um mestre para viver e se não estiver disposto a
me dar isso de boa vontade eu vou pegar a força.
De repente ele riu. Não era um som alegre e parou rápido demais.
— Não sou um simples funcionário com tesão, menina. Você não me
pega a força, você não me coage a nada.
— Eu sei. Por isso vim atrás de você.
Siriu me olhou como se eu fosse louca, mas não me importei, afinal, não
foi a primeira vez que alguém me olhara do mesmo jeito.
— Passou meses com o meu primo e ainda não aprendeu nada. Eles não
lhe ensinaram nada.
— Está errado — respondi suavemente. — Ensinaram-me como ficar
segura, como correr, como fugir e como evitar problemas.
— O que foi claramente inútil, visto que veio bater em minha porta. Que
ideia foi essa de vir até mim?
— Eu precisava vê-lo.
Silêncio instalou-se no interior do automóvel novamente.
Olhei-o de soslaio. Eu queria tentar decifrar o que ele estava pensando,
se realmente não havia uma forma de me deixar ficar perto, mas ele fechava-
se mais profundamente do que Demeron fazia. Se tivesse ao menos uma pista
do que o incomodava tanto em minha presença, pelo menos podia corrigir,
mas ele não ia me dizer e aquela necessidade dentro de mim não me deixaria
desistir.
O silêncio foi cortado quando seu telefone tocou. Ele pegou apertou algo
na tela sem tirar os olhos da rua.
— Não estou sozinho.
— Não me diga. — Uma risada profunda soou e me peguei olhando
para a tela, imaginando o rosto da voz.
— Qual o motivo da chamada, Liémen?
— Supondo que a companhia é feminina vou manter minha boca
fechada. No entanto, garanto que você vai querer me ver o mais rápido
possível.
— O que você tem para mim? — Ele me deu um rápido olhar antes de
soltar uma respiração. — É seguro dizer.
— Porque não me disse que estava com Kirina? Como vai querida?
— Não se trata de Kirina, vá direto ao ponto, Liémen.
Silêncio novamente.
— Nunca pensei que veria o dia em que o senhor X confiaria em uma
outra mulher.
— Vou desligar em cinco segundos se não começar a falar!
— Certo, certo. — Rindo novamente, ouvi a porta de um carro bater e
então um motor ligando — Por que não nos encontramos em vinte minutos?
— Mande-me uma mensagem com o local.
Ele desligou e não dissemos nada, embora minha cabeça estivesse
girando em mil voltas depois do que ouvi.
— Você a ama? — perguntei antes que perdesse a coragem.
— Quem?
— Kirina.
Ele não respondeu por um tempo e quando entramos na rua de terra
estreita que levava a casa de Onira e Demeron no topo do penhasco, comecei
a me desesperar que não fosse responder.
— Me diga.
Ele parou o carro em frente à casa e esticou a mão para apertar a buzina,
mas a peguei e puxei-a para mim. Seus olhos rasgaram para os meus.
— Freya. — Era um aviso, mas novamente, não me importei.
— Responda-me, pois essa é a única maneira. Quer que eu pare de
persegui-lo? Talvez eu pare se você me disser que a ama. Farei isso para não
machucar Kirina.
Mesmo que fosse me rasgar no lugar.
Os olhos azuis claríssimos não desviaram dos meus enquanto meu
coração batia forte e comecei a contar as batidas esperando. Esperei por um
longo tempo, mesmo que fossem só segundos.
— Não.
Foi uma simples palavra, mas pareceu que devolveu meu ar.
A sala em que Onira tentava desesperadamente me enfiar estava lotada
de lâmpadas acesas, prendendo-me naquele teatro de luz e bondade. Com a
resposta dele uma luz foi apagada.
Siriu podia ter mentido.
Eu disse que o deixaria para trás se ele amasse minha amiga, mas ele
olhou em meus olhos e negou.
Você voltará para a sua casa agora e vai fazer o
que Onira e Demeron te mandarem. Vá ao psicólogo, trabalhe, estude, faça
amigos.
Foram suas palavras e eu estava pronta para fazer isso.
Não me importa, apenas esqueça qualquer ideia absurda que tem sobre
mim.
Ele puxou as cordas.
Ele me impediu de entrar.
Ele não me deu permissão para esquecê-lo.
— Então você será meu.
A única direção que eu a colocaria seria a de passos coordenadamente
calculados a sua destruição, menina.
Eu mal podia esperar.
"Você não sabe que não sou boa pra você?
Eu aprendi a perder você, não posso me dar o luxo de
Rasgar minha blusa para estancar seu sangramento
Mas nada te impede de ir embora"
BILLIE EILISH, WHEN THE PARTY IS OVER
Então você será meu.
As palavras que mais pareciam uma promessa torturaram minha mente
do momento que ela saiu do carro, até vinte minutos depois, quando precisei
empurrá-las para um canto escuro afim de tratar de negócios. Estacionando,
acenei para o segurança na porta da boate de Kirina, entreguei a chave da
BMW alugada e parei brevemente.
— Onde está aquele garoto?
— Heinrich?
— Sim — respondi. — A pequena sombra de Demeron.
— Kirina o enviou para tratar de algumas coisas mais cedo em
Hamburgo.
Suspirei em irritação. Por que parecia que todos estavam malditamente
me testando?
— Suponho que não voltará até amanhã ao anoitecer?
— Demeron o quer de volta pela manhã.
— Diga ao garoto para me encontrar na Konstantine Business. —
Entregando um cartão salvo em meu bolso, entreguei ao homem. — Quando
ele entregar isso na recepção alguém o colocará a minha espera.
Acenando simplesmente, o segurança guardou o cartão e voltou a olhar
para a frente como se nossa conversa não tivesse acontecido.
Como Dutch conseguia manter seus homens aqui tão civilizadamente
era um dilema que eu não apostaria contra ou a favor. Para ter certeza de
que Kirina estava segura em sua linha de trabalho, as conexões de seu pai
com a máfia russa garantiam que cada homem cercando aquele lugar fosse
um soldado Bratva. Eu conhecia aquelas gangues, já treinei soldados que
desertaram a Liga e o governo para ingressar a vida de liberdade que
a Bratva, ou Irmandade oferecia. Eram animais sem capacidade de raciocínio
lógico ou civilidade.
Não conseguiriam fingir um dia de educação nem se valesse um milhão
em seus bolsos. Pelo menos os de baixa patente, é claro. Eu já havia me
reunido com líderes da Irmandade, capitães e chefes de Estado, mas os
guerreiros, como os soldados eram chamados, podiam ser confundidos com
bestas serventes de uma única utilidade: força bruta.
Embora nenhum dos frequentadores assíduos da boate fosse machucar a
rainha da noite de Berlim. Eles amavam Kirina e a respeitavam.
A pequena ruiva estava mais segura do que o presidente dos Estados
Unidos.
— Siriu! Estávamos nos perguntando se você não viria mais.
— Kirina se aproximou assim que adentrei ao salão, oferecendo-me uma taça
de champanhe como se fossemos comemorar algo e compartilhava um
sorriso convencido com Liémen.
Eu a peguei, não querendo estender a reunião com uma birra da ruiva,
então encarei Liémen.
— Qual a informação útil para mim?
Ele sorriu, circulando a cintura de Kirina com a mão recheada de anéis
de ouro.
— Onde está a mulher misteriosa?
— Mulher? — Kirina ergueu as sobrancelhas, mas seus olhos
conhecedores avaliaram-me. Havia um toque de raiva lá, misturado com
aquele ressentimento velho a qual eu já me acostumara.
— Liémen, meu tempo é limitado. Comece a falar ou pode procurar
outra pessoa para se ocupar em sua folga.
O homem riu, avançando com um copo de whisky, como uma oferta de
paz. Eu cedi, abrindo mão do champanhe inútil.
— Seria bom começar dizendo que estou aqui como um intermediário.
— Não me diga, eu estranharia se não se tratasse de você sair
beneficiado.
— Você me ofende, Siriu.
— Ele não leva em conta os seus sentimentos. — Kirina falou. — Os de
ninguém. — Ela sussurrou em meu ouvido, dando um beijo logo abaixo. —
Vou ao meu escritório e estarei de volta em dois minutos, rapazes.
Comportem-se.
Eu a observei sair antes de encarar Liémen.
— O que era tão importante? Diga de uma vez.
— Tenho informações sobre Kazel.
Praticamente pude ver uma rachadura estreitar-se em meu coração
empedrado. Ouvir aquele nome ainda tinha o mesmo efeito sob mim e eu
precisava terminar aquela conversa o mais rápido possível para poder ir
embora e me distrair do sentimento.
— Diga o seu preço.
O sorriso de tubarão aumentou, quase rachando o rosto.
— Deixaremos isso para quando eu precisar de algo. A informação veio
da Rússia.
Franzi o cenho em frustração, Liémen me conhecia o suficiente para
saber onde minhas alianças estavam.
— Você deveria ter me avisado, eu não ficarei em dívida com Dutch.
— Ah, não, mas não é Dutch quem oferece essa cortesia.
Se não era Dutch, havia apenas outra alternativa.
— O que Roman quer?
— Ele não achava que você cederia tão fácil, não sabendo do seu acordo
com os DeRossi.
— Lucca se beneficia mais de mim do que eu dele, se Roman sabe algo
sobre Kazel talvez eu precise rever meus termos. Espere um minuto.
Meus acordos com a máfia italiana aconteceram quase na mesma época
em que fui a Cidade do México estreitar laços definitivos com Juan Carlo
Herrera, hoje, o atual presidente do país. Através dele eu descobri que era
necessário ser apresentado por um bom amigo para conseguir sequer uma
reunião com a família de mafiosos.
Desde então temos um tratado bom para todos. Os Kings estão seguros,
dinheiro roda e nosso poder continua intacto.
No momento em que eu encontrasse Kazel me aposentaria, mas se
existia uma dica em algum lugar onde não tenho negócios... era preciso
mudar.
Peguei meu telefone no interior do sobretudo e digitei uma mensagem
rápida a Lucca DeRossi.
NOSSO ACORDO ESTÁ TEMPORARIAMENTE REVOGADO.
CONVERSAREMOS DEPOIS.
Eu não era siciliano, tampouco um membro da Cosa Nostra, mas
respeitava suas regras. Avisar Lucca era o certo ao invés de agir por suas
costas como um traidor.
— Fale.
— O italiano jogará uma bomba em sua casa antes de perdoá-lo por
isso.
— Então é melhor que a informação de Roman valha a pena a minha
morte iminente.
Roman Koslovish Zirkov tomou o controle da Bratva a força quase duas
décadas e meia atrás. O filho da puta meteu uma bala na cabeça do antigo
chefe, Bukin Malkovi. As histórias diziam que o tiro foi dado com uma mão
e ladeado por homens fiéis a ele, e a outra segurava seu filho de meses
apenas, Viktor.
A grande ironia era que Bukin o tinha criado.
A máfia russa não tinha tantas tradições quanto a italiana, o que sempre
me fez confiar mais em Lucca do que qualquer aproximação com Roman.
Mas, eu respeitava que os russos aceitassem seus homens por merecimento,
não sangue.
— Roman recebeu uma visita na noite anterior.
— Tenho certeza de que ele recebe muitas. — Desprezei.
— Sim, mas essa... ele não sabia quem era até que o homem começou a
falar.
— Kazel?
— Mudié. Parece que a relação dos dois anda abalada.
Aquilo não era novidade para mim. Mudié sempre seguiu Kazel na
ilusão ridícula de que um dia seria seu sucessor, ou como eles chamavam, o
quinto Reitch. O pedaço de lixo entregou a própria irmã a Kazel como prova
de sua lealdade. Eu imaginava que depois de anos sem que Kazel lhe desse
um voto de respeito ou ao menos tornasse-o mais do que um
lacaio, Mudié começaria a mostrar as asinhas.
— Casamentos e suas crises — respondi como se não fosse grande
coisa.
Liémen era um aspirador. Embora ele estivesse ali em missão de paz,
cada pequena coisa que eu dissesse ficaria guardada e ele encontraria
ocasiões para lembrá-las.
— Sim, bem, Roman estava prestes a mandá-lo ir se foder
quando Mudié ofereceu-lhe desde meninas recém-nascidas até as
mais maduras. Deixou claro que tinha rapazes também.
— Diga-me que Roman não matou o desgraçado.
— Embora quisesse, não matou. Adivinha por quê?
— Não faço ideia.
— Um certo gigante de olhos puxados estava escondido na sala de
seguranças da casa e avisou a um dos homens para sutilmente avisar Roman
de entrar na conversa dele.
— Style? — Eu fervi. — Liémen. — Empurrando-me para a frente,
agarrei sua garganta. — Seu filho da puta! Como se atreve a me fazer ficar
em dívida com alguém quando aquele traidor está envolvido?
Dever um favor a Style Tieko era algo que eu morreria antes de aceitar.
O homem não fez nenhum movimento para me parar, ele não era de
lutar. Liémen fazia mais o estilo de terceirizar o serviço.
— Deixe-me terminar, esquentadinho.
Depois de encará-lo por um minuto, soltei com relutância, mas sua
provocação surtiu o efeito desejado. Eu não perdia o controle. Nunca.
— Style morrerá e isso não está em discussão.
Liémen apenas me encarou enquanto ajeitava a gravata.
— Eu obviamente não estou dando a ele proteção em minha casa —
declarou, alisando as lapelas antes de voltar os olhos para mim. — Roman
marcou um encontro com Mudié. Se mostrou interessado pelas mercadorias.
— Eu estarei lá.
— Não. Se tentarmos pegá-lo, ele fugirá. Você tem feito isso há anos e
por algum motivo eu sinto que se o perdermos agora, será quase impossível
rastrear o idiota agora.
— Por quê?
— Roman mencionou que Mudié está perdendo a paciência com as
loucuras de Kazel.
— Os dois estão ficando descuidados — refleti. — Nunca chegaram
abertamente a alguém desse jeito, correndo tantos riscos.
— Exatamente. Foi Kazel quem mandou que Mudié fosse até lá. O cara
parece fora de si.
— Ele sempre foi um louco de merda, qual a novidade nisso?
Kirina voltou naquele momento, falando no celular antes de desligar e
sentar-se no colo de Liémen.
— Algo a ver com uma mulher. Ele se referia a ela como bruxa. A
escrava feiticeira de Kazel. Ao que parece o filho da puta está cada dia mais
andando na corda bamba, ficando dias sem dormir e isso tem afetado não só
ele, mas a todos em volta. Enquanto não tiver a tal de Freya de volta será
descuidado e provavelmente não demorará a morrer.
A morte não era suficiente. Não depois de tudo. Não depois de anos e
anos torturando, matando, criando o terror por onde passou. Mantive a calma.
Mantive a porra da face impossivelmente pacífica mesmo que estivesse
queimando a porra da cidade por dentro. Kazel queria Freya.
E não era irônico que ela parecia querê-lo de volta também?
Você se parece com ele.
— Diga a Roman que estou devendo a ele. — Me dirigi a saída sem
esperar sua resposta. Eu precisava avisar Demeron antes que ela sequer
desconfiasse que Kazel estava procurando por ela.
— Senhor X? — Liémen gritou por mim enquanto ainda ria e me virei
sob o ombro para encará-lo.
A risada de Kirina ainda flutuou no ar com algo que ele lhe disse baixo.
— Espero que entenda que pelo bem dos meus interesses, descobrirei
quem é a mulher que estava em sua companhia.
Minhas mãos cerraram em punhos e foi preciso tudo de mim para não os
esmagar em sua boca.
— Boa sorte com isso, cobra.
Saí deixando-os para ter sua diversão e segui meu caminho.
Eu sabia o que Liémen queria dizer.
Ele não seria o homem dos segredos, o cobra se não estivesse sempre
três passos à frente de qualquer pessoa. Ele não lidava com dinheiro, lidava
com favores.
Por um momento cogitei voltar e cravar uma bala em sua cabeça naquele
momento em que estava vulnerável. Ninguém me veria chegando e assim,
garantiria que Freya não seria posta no radar de ninguém, principalmente não
dos meus inimigos.
Demeron estava se esforçando para mantê-la em segredo e se sua
fixação por mim atrapalhasse a culpa seria minha.
Talvez eu pare se você me disser que a ama. Farei isso para não
machucar Kirina.
Suas palavras ecoaram em minha mente, lembrando-me que eu podia
parar aquilo antes mesmo que começasse, mas não o fiz e agora, Liémen não
pararia até descobrir quem ela era.
Eu sabia que se havia alguém que podia fazê-lo era o bastardo.
"Cegue meus olhos
Então eu não posso ver
Caso você não saiba
Um santo é um pecador também"
SLASH, SAINT IS A SINNER TOO
— Perdoe-me, padre. Eu pequei.
Meu lábio inferior estava ardendo e gotículas de sangue se misturavam
ao meu batom enquanto eu esperava por uma resposta. Encarando a cortina
escura a minha frente, reconheci mais uma vez os riscos de vir aqui. Provocar
a ira do homem que vinha me evitando como se eu fosse a peste do século?
Não era uma boa ideia, mas meus amigos mais chegados nunca me acusaram
de ser inteligente.
Quer dizer, para gerir um negócio confiável que fornecia prazer e ponto
de encontro para a elite pervertida e o submundo de Berlim? Aprendi a ser
mestre na arte.
Quando envolvia meus próprios sentimentos? Nem um santo me
salvaria.
— Confesse seus pecados, arrependa-se e Deus a abençoará.
— Eu tenho sido uma devassa, padre — suspirei. — Tenho encontrado
prazer com pensamentos lascivos e me satisfazendo com fantasias
impossíveis...
Ele me interrompeu.
— Peça perdão a Deus e se arrependa dos seus pecados. — Sua voz
apertada não me deu nenhuma indicação do que sentia ao me ouvir. Ele podia
tanto estar muito puto ou excitado, mas a menos que me mostrasse seu rosto
eu jamais saberia.
Fechei os olhos ao pensar naquilo.
Droga.
A ideia de Padre Terry sair de seu espaço escuro e fechado e puxar a
cortina que me escondia da igreja no final do corredor era louca, mas eu daria
tudo para que o fizesse. Em minha mente, Terry ajoelharia em minha frente e
enquanto eu rezava uma ave maria para seu Deus, ele rezaria um pai
nosso entre as minhas pernas.
Mas o padre tinha outros planos.
Ele tinha feito a missão de sua vida me ignorar.
Embora não fosse realmente um padre comum, Terry levava seu
compromisso com a Liga a sério, sentando-se em seu trono de celibato e
rezando com uma ereção constante.
Padre, padre...
Por que ele não me deixava ajudar?
Eu era a rainha da noite de Berlim e todos sabiam disso. Se não fosse o
quão gostoso padre Terry era, eu teria me interessado quando me desprezou
colossalmente. Minha boate e minhas meninas guardava o melhor sexo,
abrigava os melhores traficantes e cuidava da elite alemã. Eu poderia tirá-lo
de sua miséria com uma garganta profunda que o faria gozar um litro e a
única coisa que pediria em troca seria sua linda língua no meio das minhas
pernas.
É muito?
Eu lhe daria sigilo absoluto. Nem mesmo uma alma viva, a pessoa que
mais confiava saberia. Eu nem sequer jogaria em sua cara quando me irritasse
com algo que ele possivelmente iria fazer. Porque no fim, todos os homens da
minha vida me irritavam.
Me traindo, me passando para trás, cansando de lidar com a minha
merda ou pior... querendo se casar comigo. Havia limites que eu não cruzava
e a placa do “Eu aceito” piscava neon para mim a quilômetros de distância.
— O senhor não vai ouvir a minha confissão?
Ele não respondeu por um momento.
— Você vê o caderno que sempre carrego comigo, Kirina?
Ouvi-lo dizer meu nome sempre tinha um efeito devastador em mim,
mas dessa vez foi diferente. Não era o padre falando. Era Terry. O homem e o
soldado.
— Sim.
— Nele há uma lista de pessoas que agendam para se confessar e que
estão verdadeiramente arrependidos de seus pecados. Querem ser ouvidos
para expulsar suas dores e superar. Você está aqui apenas ocupando o lugar
de um deles.
— É o que eu busco. — Minha voz não enganava nem a mim mesma.
De repente, minha fantasia se realizou quando Terry abriu a porta que o
prendia do outro lado com um baque e deu a volta, tirando a cortina marrom
do nosso caminho. Eu estava frente a frente com o homem de batina que
vinha tirando o meu sono.
— Isso aqui não é uma piada, senhorita Shahaf. Eu não sou uma piada.
— Estou ciente disso.
— Não parece. — Sua voz era tão mortal quanto a expressão e enquanto
uma parte de mim se arrependeu de ter vindo, a outra regozijava-se de
conseguir arrancar alguma emoção daquele homem. Ele parecia sempre
tão entediantemente polido e perfeito, mas eu sabia pelas histórias que
soldados de guerra próximos a ele contavam que havia uma besta querendo
sair.
E eu queria libertá-la para mim.
— Você não é nem mesmo um padre de verdade.
— Eu não vou foder você. — Exprimida entre a muralha rígida que era
seu corpo e a parede, só pude observá-lo enquanto a besta dava sutis indícios
do que estava preso. — Eu fiz um voto com Deus e vou respeitá-lo até o fim
da minha vida.
— A Liga vai te dispensar antes disso.
Eu não sabia a história toda, mas tempos depois de Siriu passar anos
tentando convencer a Liga que a kambarys e Kazel deveriam ser parados,
Stark acreditou e se reuniu com o governo, que chegara à conclusão de que
recentes movimentos políticos e crimes hediondos não poderiam ser
coincidência. Então deter Kazel subiu para o topo da lista. Ao mesmo tempo
que Demeron foi mandado a Sibéria, destruindo a minha irmã no processo,
padre Terry foi mandado para cá, esperando que algum dia alguma
informação chegaria a ele por estar dentro da religião.
As Kambarys eram na maioria das vezes, igrejas reestruturadas onde
todo o show de horror acontecia. E deu certo, pois poucos anos depois o
soldado Terry conseguiu se infiltrar na Kambarys, conseguindo um convite
para Demeron e Style, onde deu início a toda a merda com Onira.
— Acha que só estou aqui pela Liga? Garota, eu servi como um padre e
vou continuar mesmo quando Stark não precisar mais de mim!
— Não quero competir com o seu Deus, Terry. — Levantei-me,
erguendo a mão esquerda para tocá-lo. — Só quero te lembrar algo que
parece ter esquecido. Você é homem antes de santo. E eu quero você. —
Terminei com um sussurro, mas antes que pudesse encostar nele, sua mão
arrebatou meu pulso, puxando-me para perto com o tipo de agressividade que
me deixava de joelhos.
— Saia da minha igreja antes que eu peque na casa do meu Deus e não
será agradável para você.
— Eu não quero agradável, padre.
O aperto de Terry tornou-se mais firme e ele correu comigo para fora.
Sorte a nossa que a igreja estava vazia, ou seria um show de mãos cheias para
as beatas.
— Padre...
Ele me jogou para fora da igreja com uma força que se um dos meus
homens não estivesse esperando lá fora e me agarrado de prontidão, eu
estaria no chão.
— Mantenha essa mulher longe daqui. — Terry avisou sem olhar para
mim antes de virar as costas e entrar, batendo a porta a ponto do meu ouvido
arder.
Zippo me encarou com uma sobrancelha arqueada.
— Você vai tornar meu trabalho difícil, não é?
Eu sorri.
— Impossível.
Naquela noite, quando saí do meu escritório para ir acompanhar o
movimento no salão até a hora de fecharmos, Zippo veio direto para mim
agarrando o meu braço e levando-me de volta para dentro.
— Ei!
— Fique aqui.
— Calma aí, Rocky Balboa! Que porra você acha que está fazendo?
— Estamos com uma suspeita ameaça no salão, você ficará aqui onde é
seguro até que consigamos confirmar.
— Que tipo de ameaça?
— Não sabemos ainda. Espere a porra de um minuto.
— Isso é besteira, ninguém me ameaça na minha casa.
— Ninguém de dentro, mas se for quem estamos pensando, ele não sabe
como as coisas funcionam aqui.
Revirando os olhos, dei a volta nele e apontei o dedo em seu rosto.
— Não se atreva a me parar.
— Kirina!
— Eu consegui meu respeito enfrentando esses filhos da puta, então se
você acha que vou ficar aqui escondida se há algum turista querendo me
ferrar, não me conhece muito bem.
Ele praguejou baixo quando abri a porta, mas não me parou. Meus caras
me conheciam o suficiente. Mesmo que na maioria das vezes eu estava os
deixando insano com minha impulsividade, eu ainda era aquela que mantinha
nossa pequena casa poderosa de pé. Eles precisavam estar atrás de mim, não
na minha frente.
Fiz uma varredura pelo salão procurando o tal desconhecido.
Não seria difícil encontrar visto que todos os frequentadores precisavam
ser convidados por algum membro antigo e conheciam a mim antes de ter
qualquer diversão no meu clube.
Então eu o vi.
Sentado em um dos sofás no canto, vestido num terno azul marinho e
sapatos caros. Ainda que não fosse um frequentador, eu poderia ter o visto a
qualquer momento e os alarmes soariam. O homem simplesmente não se
encaixava lá, de jeito nenhum. O terno não escondia a pele e a pele contava
uma história.
Deixei uma risada escapar, jogando um olhar para Zippo por cima do
ombro.
— Avise Demeron que a Bratva está aqui.
Não lhe dei tempo para resposta. Sai em disparada sorrindo todo o
caminho até o loiro. Parei em sua frente, reconhecendo melhor o terreno antes
de passar pelos portões. Ainda que os avisos de “não entre” estivessem lá, eu
ignorei.
Ele virou seus olhos para mim e contei três segundos até que um sorriso
perfeito surgisse no rosto bonito. Sim, bem, era malditamente lindo. Havia
uma única tatuagem abaixo dos olhos, mas pela pouca luz não consegui
inspecionar melhor. O cabelo não era grande. Bem curto dos lados e um
pouco maior em cima, de modo que ele poderia passar a mão para empurrá-
lo atrás.
Ou eu mesma podia fazer isso.
Sorri com o pensamento, ganhando sua atenção. Ele dispensou uma das
minhas garotas sem falar grosso, apenas pediu que voltasse mais tarde e eu
tomei o lugar que ela estava sentada.
— O terno caro não esconde as tatuagens em suas mãos, menino bonito.
— Não esconde, não é? Meu pai disse o mesmo.
— Seu pai estava certo. Mas eu aposto que ele não te disse que você fica
bem em três peças de qualquer forma.
— Não, ele estava mais ocupado me mandando arrumar uma pequena
mala para vir até aqui.
— Então se vestiu assim por mim?
Ele inclinou-se um pouco mais, o rosto tão próximo do meu que senti o
hálito fresco misturado com o whisky mais caro do meu bar.
— Sim e, além disso, acreditaria se eu dissesse que vim da Itália só para
te ver?
As luzes ficaram um pouco mais claras, sinalizando que o show no palco
acabara e em breve começaria outro e nesse minuto, pude reparar melhor
nele, mas a primeira coisa que vi foi a aliança dourada no dedo anelar.
— Você não é italiano.
— E você sabia disso no segundo que me viu. — Nos encaramos por um
momento, parecia que ele me desafiava a perguntar seu nome, mas eu não
precisava. Não depois de tantas dicas.
— Olá, Viktor.
Ele riu, os olhos claros brilhando em divertimento.
— Eu sabia que a Rainha da noite de Berlim não me desapontaria.
— Não comemore tão cedo, eu poderia chamar meus meninos e eles vão
te mostrar meu desagrado sobre entrar no meu clube sem ser convidado.
— Liémen me convidou. Embora eu apreciasse mais se a cortesia
tivesse vindo de você.
Eu o observei. Realmente olhei dentro daqueles olhos, procurando os
sinais que todos os meus convidados exibiam. Procurei um flash de
honestidade naquela leveza e diversão, e só encontrei uma máscara.
E eu sabia tão bem disso porque me tornei especialista em usar a mesma
tática.
— Não vou dormir com você. — Fui direta, curta e grossa. — Acredite
ou não, tive meu coração partido essa tarde.
— E eu aqui pensando que encontraríamos conforto nos braços um do
outro — replicou, acenando para uma das meninas preencher seu copo vazio.
— Ah, querido. Por que não combinamos assim, eu colo um band-aid
em meu coração e você busca conforto nos braços que realmente quer? —
Peguei sua mão, passando os dedos levemente pela aliança e tive minha
confirmação quando puxou sua mão da minha e seu rosto se fechou, o
lampejo de algo passando nos olhos antes que desviasse o olhar.
Viktor levantou seu copo.
— Voltarei para a Rússia indicando seu clube aos meus
irmãos, Kirina Shahaf-Kona.
— Não, por favor. — Bufei. — Não traga aqueles bandidos ao meu
estabelecimento. — Acenei com a mão para o salão. — Não vê que só
aceitamos a alta classe aqui?
Ele me olhou por um segundo antes de se juntar a mim em uma
gargalhada.
Pois ambos sabíamos que quem entrava no meu clube estava longe de
ter qualquer finesse.
Pelo contrário, eu criei uma casa para receber gente como eu.
Bandidos.
— Onde está Liémen? Vamos tratar de negócios ou o quê? — Viktor
olhou seu relógio de pulso, zerando o whisky do copo.
— Com pressa de voltar para a Itália?
Ele me deu um sorriso matador.
O sorriso de um herdeiro da máfia mais cruel em vigência.
— Estou indo para a Rússia. Tem um inferno de uma história esperando
por mim lá.
"Perdido e inseguro, você me achou
Deitado no chão
Por que você teve que demorar? Onde você estava?
Você me achou
Mas no final, todos terminam sozinhos"
THE FRAY, YOU FOUND ME
ANTES - 21 ANOS DE IDADE

As batidas no quarto acordaram-me e pelas pancadas incessantes, eu


imediatamente soube que algo estava errado. Olhei para a cama ao lado,
procurando por Kazel e quando não o encontrei, minha cabeça deu um giro
de preocupação. O medo de algo ter acontecido com o imbecil depois de eu
ter voltado ao quarto me pegou forte e agindo por instinto, coloquei minha
calça e corri para abrir a porta.
Meu temor se confirmou quando dois policiais e um funcionário do
hotel me fitaram de cima abaixo.
— Senhor Siriu?
Eu estiquei minha mão, mesmo que começasse a ficar anestesiado.
Aquilo parecia sério. Fodidamente sério.
— Siriu Konstantinova. — Me apresentei, mas após alguns segundos e
nenhum dos três segurou minha mão, a deixei cair. Engoli em seco. — Ele
está morto?
— Ele quem?
— Kazel. Kazel Maraba. Ele é meu amigo. Servimos juntos e estamos
de férias. Não sou da família, mas sou a pessoa mais próxima.
Um dos policiais levantou a mão, parando-me.
— Até onde sabemos, seu amigo não está morto.
Suspirei de alívio.
— Vou colocar um sapato e seguirei os senhores.
Eles trocaram um rápido olhar antes do outro policial falar.
— Nos seguir para onde?
— O hospital. Kazel não está ferido?
— Senhor Konstantinova, seu amigo está foragido. Nós entraremos e
faremos uma revista. Vamos interrogar você e se por acaso souber onde ele
se encontra e não nos disser será indiciado como cúmplice.
— O-o quê?
Aquilo era pior do que morte. Mil vezes.
Foragido?
— Tem algum engano. Vocês estão procurando o homem certo? Kazel
Maraba?
— Sim. Kazel Maraba. Seu amigo foi visto saindo deste quarto e
invadindo uma suíte no final do corredor e fugiu depois disso. Quando o
serviço de quarto entrou, encontrou as duas hóspedes... mortas.
— Deformadas e mortas. — O outro policial falou, fitando-me como se
soubesse cada segredo guardado em minha mente.
Eu era a porra de um livro aberto, então provavelmente não demoraria
até que ele soubesse mesmo.
Eu entrei no quarto e desabei numa poltrona enquanto cerca de dez
homens uniformizados entraram. Então comecei a ouvir a movimentação do
lado de fora, as fitas amarelas começando a ser colocadas, luzes piscando
através da janela.
Tudo passando pela porta enquanto eu observava do meu lugar no canto
do quarto.
Tinha que ser algum engano.
Kazel e eu fodemos as duas meninas e voltamos para o quarto menos de
três horas depois. Eu desmaiei, bêbado como uma porra louca, mas
vi Kazel sair do banho e se jogar em sua própria cama antes de fechar os
olhos.
Algo tinha acontecido. Meu irmão foi abandonado durante toda a sua
vida, tendo pessoas duvidando de sua palavra e eu não seria mais um.
Quando Kazel fosse encontrado, todo aquele mal entendido seria esclarecido
e daríamos seguimento ao nosso plano.
Eu tinha certeza disso.
Esperei até que não o encontrassem, porque como eu havia dito, ele não
estava lá.
Então comecei a responder as perguntas.
"Egoísta, eu sei
Desculpas nunca vão consertar isso
Eu sou vazio, eu sei
E promessas são desfeitas como pontos em uma ferida"
HARRY STYLES, WOMAN
Eu adorava ver Onira feliz.
Por isso, sempre que ela tentava me encaixar em suas coisas eu
participava de bom grado, inclusive me sentar naquele restaurante e ouvi-la
conversar com Naya sobre suas vidas incríveis. Naya se preparava para sua
próxima turnê, o que ela rapidamente me explicou se tratar de muitas
apresentações pelo o mundo.
— Parece muito divertido. — Eu falei.
— No começo é, mas depois fica tão cansativo que infelizmente se torna
automático. Eu odeio me sentir assim porque amo os meus fãs, mas queria
que as coisas fossem menos intensas as vezes.
— Eu não sei como você consegue, são milhares de pessoas nos países
todas com os olhos em você durante horas. — Onira balançou a cabeça,
finalizando seu prato e deixando-o de canto para pegar a sobremesa.
— Eu sempre gostei de ser o centro das atenções. — Naya riu. — Isso
não é um problema. Essa é a amizade mais improvável e ao mesmo tempo a
mais pop.
— O que isso significa? — perguntei.
Naya riu da própria piada.
— Onira é super na dela e você também é tão tímida, enquanto eu sou
uma exibida patológica. — Revirou os olhos, tirando-me um sorriso.
— Eu não sou tímida — expliquei. — Já estive diante de multidões
muitas vezes também.
Não falei por mal, mas Onira imediatamente levantou os olhos para mim
em alerta e Naya ficou curiosa.
— Mesmo? Me conte sobre isso. Onira você não me disse que Freya era
uma artista!
— Era um tipo diferente, eu acho. — Continuei, ignorando Onira e
falando por mim mesma. Eu havia ficado em silêncio por uma hora sem saber
o que dizer e agora que Naya e eu tínhamos algo eu comum, eu queria me
aventurar. — Estávamos todos nu, mas havia canções e eu precisava fazer o
que meu mestre me mandava, então...
— Freya. — Onira chamou, levantando-se, ela veio se levantou e sorriu
para Naya. — Eu preciso ir ao banheiro, me acompanhe, por favor?
Eu sorri.
— Ah, claro.
Nós caminhamos de braços dados até o fim do corredor, mas ela parou
antes de chegarmos aos banheiros.
— O que está fazendo?
— Como assim?
— Falando essas coisas a Naya!
— Ela me perguntou e... bem, eu...
— Freya, Naya não sabe nada sobre as Kambarys, Kazel ou tudo isso.
Ela vive em outro mundo. Um mundo onde essas coisas não existem.
— Mas é o mesmo mundo que nós vivemos.
— É complicado de explicar, mas digamos que Naya é uma das pessoas
na lista de quem não contamos o nosso segredo, ok?
— Ok.
Ela suspirou, passando as mãos pelo cabelo longo.
— Certo, vamos voltar e mudar de assunto.
— Onira?
— Sim, querida?
— Sinto muito.
Ela franziu a testa e negou com a cabeça, dando um aperto em minha
mão.
— Não é culpa sua.
Nós voltamos ao restaurante e eu dei uma resposta qualquer a Naya
quando ela me pediu para explicar o que comecei a dizer. Onira puxou sua
atenção de volta a outro assunto e eu voltei a ficar em silêncio. Dessa vez,
olhei para fora pelas janelas, perguntando-me se alguma vez seria como
Naya. Se seria normal. Se deixaria de envergonhar Onira.
Arrastei meus olhos para o grande prédio um pouco mais próximo. Ele
me lembrava o lugar onde fui para encontrar Siriu com meu plano de fazê-lo
me receber em sua vida, mas a única coisa que ganhei foi uma carona de
volta para a casa. Eu não podia desistir. Não ainda.
Talvez estar ali com elas e ter aquele edifício me lembrando dele fosse
um sinal. Onira dizia que isso era uma expressão para quando algo fazia outra
coisa parecer certa.
Isso parecia certo.
Eu comecei a montar um novo plano.
"Posso ir aonde você vai?
Podemos ser próximos assim para todo o sempre?
E ah, me leve pra sair e me leve pra casa
Você é meu"
TAYLOR SWIFT, LOVER
Eu a vi antes da primeira curva.
Se suas habilidades de seguir alguém fossem tão impressionantes quanto
as de se manter em casa e segura, eu tinha que
estar fodidamente preocupado.
— Não fode — murmurei comigo mesmo, balançando a cabeça em
frustração.
Por um momento cogitei ligar para Demeron e mandar que lidasse com
a situação, mas pensando bem, resolvi ver por mim mesmo qual era o plano
da garota.
Eu tinha visto Freya assim que sai da Corte. Ela esperou que eu andasse
poucos passos até vir atrás de mim, escondendo-se por trás de pilastras. Será
que realmente acreditava que eu não a veria? Aquilo me fez perguntar o
quanto Demeron a estava protegendo de toda e qualquer informação. Ela
acenou para um taxi antes que eu entrasse na BMW.
Sua vestimenta não deixava que passasse despercebida também. Assim
como o cabelo inacabável que ela deixava solto com apenas
uma presilha prendendo um dos lados.
Chegava a ser engraçado tamanha ingenuidade em pensar que
conseguiria se esconder de mim e me seguir sem ser notada.
Eu tinha olhos para ela mesmo diante de uma multidão de vestidos até o
pé.
O taxista tampouco fez um bom trabalho em me seguir sigilosamente. O
homem estava um carro atrás de mim, e enquanto eu acompanhava seus
movimentos pelo retrovisor, vi claramente que todas as vezes que um
segundo carro tentava passar em sua frente ele acelerava de modo descuidado
a fim de não perder o meu carro de vista. Por duas vezes eu quis parar no
acostamento e arrancá-la de lá para garantir sua segurança, afinal, o taxista
parecia ter comprado a habilitação.
Meu senso de proteção com ela disparou níveis que eram desconhecidos
para mim. Fazendo com que eu pensasse que não me conhecia totalmente em
quarenta e três anos de vida.
Eu estava muito além de esperança, sonhos e objetivos grandiosos.
Tinha uma única meta e pretendia cair no esquecimento assim que fosse
alcançada.
Mas vê-la... por Odin. Ver Freya trazia-me um sentimento novo. Eu
sabia que só podia ser culpa. Culpa por ter parte no império de tortura para
onde ela foi levada ainda criança e criada. Eu tinha culpa por quem ela era
hoje.
E me pegar sendo perseguido por aquela criatura que mesmo já tendo
passado por tanto, ainda carregava tal nível de inocência agitou algo em mim.
Se fosse honesto comigo mesmo, poderia até admitir que estava ansioso para
que viesse até mim. Aquele incômodo, aquela urgência em alcançar Kazel e
fazê-lo sofrer pelo o resto dos meus dias aumentava na presença dela.
Eu sabia que se colocasse a mão nele, não sobraria nada.
Estar ciente da ameaça sob sua cabeça, que a qualquer momento ele
tentaria pegá-la novamente me fazia sentir um assassino. E se ela estava tão
determinada a fugir de Demeron e Onira, então eu teria que protegê-la por
mim mesmo. Se mantê-la por perto era a única alternativa, eu lidaria com
isso.
Tudo para impedir Kazel.
Dirigi devagar. Não tão rápido para que ele não me perdesse de vista,
mas não tão lento para causar um trânsito desnecessário.
Originalmente, eu estava indo para a minha casa na periferia, mas por
algum motivo desviei e segui para um prédio bem localizado no bairro. Não
estava disposto a deixar qualquer um ver aquela parte de mim. Por agora, eu
mostraria a ela o que queria ver: o herói. O Homem que possuía um bom
apartamento em um bom prédio, num bom lugar. Quem sabe até conseguiria
convencê-la a ficar por lá e deixaria alguns homens como segurança.
Demeron podia manter um olho nela a partir dali.
Dando mais uma olhada no retrovisor, me perguntei se seria o único
capaz de mantê-la segura.
Deixei o carro estacionado em uma vaga do outro lado da rua e adentrei
no prédio que me era estranho, pois se fui ali cinco vezes foi muito. O táxi
parou atrás do meu carro e Freya desceu olhando para os lados antes de ir até
a janela e entregar mais dinheiro do que o necessário ao motorista, que não a
corrigiu.
Anotei mentalmente sua placa para mandar que alguém fosse atrás dele
não pelo dinheiro dela, mas por se aproveitar da menina.
— Uma garota de olhos amarelados e cabelos longos entrará em menos
de dois minutos — expliquei calmamente ao porteiro. — Ela vai lhe dizer seu
nome e provavelmente algo constrangedor, deixe-a subir.
Ele me encarou com certa estranheza, afinal, nas poucas vezes que fui
ali nunca tinha levado ninguém, nem cheguei a passar uma noite.
— S-sim senhor.
Estava prestes a sair quando fiz uma pausa e o fitei no fundo dos olhos.
— Se disser algo a ela ou sequer olhá-la, eu vou cortar sua garganta e
deixar sua cabeça em cima desse balcão até que algum morador o veja e
chame a polícia para recolher seu corpo morto. Entendeu?
Eu não sabia de onde aquelas palavras vieram, mas assim que saíram me
senti estranhamente desafogado. A rachadura profunda em meu coração duro
coçou levemente e uma leveza se instalou em mim ao ver o terror nos olhos
do homem velho.
A realização de que com simples palavras eu poderia levar as pessoas a
ficarem longe dela me bateu. Com apenas a minha voz e poder eu poderia
mantê-la segura.
E eu iria, porra.
Pelo menos até que a ameaça contra a sua vida fosse eliminada.
Eu tinha algumas últimas notas em minha bolsa e as levei para pagar a
viagem.
— Obrigada, meu senhor. — Sorri para o motorista, murchando um
pouco quando ele não devolveu. Só me encarou com um balançar de cabeça.
Esperei na calçada até que fosse embora, garantindo que conseguiria sair
sem problemas. Franzi o cenho. Será que ele sabia onde estava? Eu não tinha
certeza. Olhando em volta, me senti perdida. Não fazia ideia de onde estava e
não tinha nenhum conhecido por ali. Deixei meu telefone em casa, sabendo
que Demeron usaria algum de seus truques para me encontrar como já havia
feito antes.
De repente, me senti insegura.
E se algum amigo de Siriu me visse entrando naquele enorme lugar sem
ser convidada? Com certeza ele tinha muitos amigos. E se qualquer um me
impedisse de vê-lo?
Não tinha mais dinheiro na bolsa, nem nada de valor.
Bem, eu esperava que conseguisse pelo menos deixá-lo saber que eu
estava ali por uma boa razão.
— Olá. — Dei ao senhor sentado no interior do edifício um grande
sorriso, esperando que minha simpatia conquistasse a sua. — Eu vim ver um
grande amigo.
Meu sorriso não valeu de muito, pois seus olhos nem sequer me
encontraram.
— Pode subir. Ele está no penúltimo andar, a porta no final do corredor.
— Certo — respondi com incerteza. — Seu nome
é Siriu. Siriu Konstantinova.
— A senhorita p-pode subir.
Franzindo o cenho, percebi que o homem talvez estivesse se sentindo
mal.
— O senhor precisa de ajuda? Está passando bem?
— Sim, claro. Pode subir, fique à vontade.
— Ok. — Dei alguns passos inseguros para trás. Vendo a porta
sinalizando as escadas a esquerda e segui para lá após dar um último olhar ao
senhor.
— Senhorita? — Ele chamou e veio em minha direção, ainda de cabeça
baixa. — O elevador é por aqui.
— O que? Ah, não, eu não... eu vou de escada.
Ele finalmente me encarou. Um momento de silêncio se passou antes
que indicasse a porta de metal novamente.
— Por favor. São muitos lances de escada.
— Eu... eu não sei usá-lo.
O homem me fitou com estranheza, mas assentiu por fim, apertando um
botão na parede e imediatamente o elevador abriu.
— Entre, por favor, vou acioná-lo e a senhorita chegará no andar
correto. Só precisa tocar a campainha da última porta.
— Tudo bem — sussurrei. Nunca tinha entrado em um daqueles sozinha
antes e sinceramente, me deixava nervosa. Eu não tinha ideia de como aquilo
ficava subindo e descendo sem qualquer pessoa segurando-o e puxando de
volta.
Existiam inúmeras coisas das quais ainda não tinha sido capaz de
estudar.
Eu fiz como o homem instruiu e pouco depois estava encarando-me no
grande espelho colado a parede móvel. Segurei-me nas barras dos cantos,
fechando os olhos até que chegasse lá em cima. Precisava pedir para Siriu me
deixar descer de escada quando fosse embora.
Abri os olhos.
Com o pensamento de deixá-lo outra vez meu coração doeu.
O que precisarei fazer para que me deixe ficar?
Quando a porta deslizou aberta não perdi tempo em correr para fora,
deparando-me com um corredor bonito, mas vazio. Tinham duas portas. Uma
de frente para mim e outra seguindo em linha reta para o final do corredor,
assim como o senhor lá embaixo havia explicado. Me senti aliviada. Estava a
poucos passos de encontrá-lo novamente.
Não hesitei e assim que pisei em frente à sua casa bati na porta com um
sorriso ansioso, tentando conter minhas mãos de voltar a bater e depois
continuar batendo até que ele aparecesse. Eu sabia que ele estava em casa, o
vi entrando no prédio.
Poucos segundos se passaram.
Talvez, não tivesse me ouvido bater?
Bati novamente.
Bem, era só uma garantia de que soubesse que havia alguém esperando.
Por favor, me receba... por favor, me...
A porta abriu.
E uau...
Algum dia a experiência de vê-lo seria menos impactante?
Algum dia eu me sentiria sobre ele como me sentia com os outros
homens em geral?
Algum dia... meu coração não bateria como se o reconhecesse além de
nós ali, naquele minuto?
— Freya.
Suspirei.
Onira estaria desesperada para saber onde eu estava depois de sair
escondida, mas o conhecimento sumiu da minha mente ao ouvi-lo me
chamar.
Eu estava em casa.
“Eu quero ver o Sol nascer
Sobre seus pecados, só eu e você
Esquente as coisas, estamos em fuga
Mas você nunca ficará sozinha
Eu estarei com você do crepúsculo ao amanhecer”
ZAYN FT. SAI, DUSK TILL DAWN
— Olá. Eu vim... — As palavras sumiram ao perceber que não havia
uma real razão para estar ali. — Vim vê-lo.
Siriu assentiu lentamente, seus olhos viajando pelo meu corpo antes de
cravar em meus olhos.
— Tenho ouvido muito isso vindo de você.
Eu sorri, feliz que se lembrasse dos nossos momentos juntos.
— Tenho algo a te oferecer.
Erguendo uma sobrancelha clara, ele bateu os dedos na porta antes de
dar um passo ao lado.
— Entre.
Não esperei que mudasse de ideia. Reconhecendo minha sorte, entrei e
dei uma volta, olhando tudo ao mesmo tempo. Parecia diferente da casa de
Demeron. Havia coisas de Onira por todos os lados lá. Desde fotos e quadros,
até esculturas que ela mesma fazia para levar como decoração para a casa.
Um pequeno sorriso aqueceu meu rosto ao lembrar que havia fotos minhas
em cima da lareira também.
Mas a casa de Siriu... não parecia ter alguém morando lá. Os móveis
parecidos ser feito de madeira pura contrastavam com o branco que havia em
todo o resto. Senti frio. Muito frio.
— Quer algo para beber? — Ele perguntou, fazendo-me saltar ao
perceber quão próximo estava.
— Não, obrigada. — Se eu não bebesse alguma coisa, não teria
desculpas para ficar mais tempo. Mudei de ideia. — Talvez mais tarde?
— Quando quiser. — Ele cruzou os braços, observando-me sentar no
sofá e colocar a bolsa ao meu lado.
— Sua casa é muito bonita.
— Obrigado. Kirina teve um dedo na decoração.
Escondi meu incômodo.
— Ela tem bom gosto. Quer dizer, não só com casas e seu clube. Ela
está com você.
— Kirina é uma boa amiga.
Esperança me encheu. Se Kirina era sua amiga, eu também poderia ser.
A ansiedade do que aquele contato me traria ao seu lado vibrou meu interior.
Molhando os lábios secos, bati ao meu lado no sofá.
— Pode se sentar?
Analisando-me por um minuto, Siriu só ficou lá parado como se eu não
tivesse dito nada. Quando eu ia desistir e começar a falar com ele tão longe
mesmo, ele veio e se sentou, acomodando-se mais perto do que já esteve.
— Estou sentado. — Sua voz era grave, séria, os olhos fixos nos meus e
o rosto neutro. Eu queria tanto poder enxergá-lo melhor, mas Siriu parecia
esconder suas emoções de uma forma que eu nem conseguia sonhar em fazer.
Eu só podia olhá-lo. As palavras fugiram-me quando percebi que estava
tão próxima da única coisa que verdadeiramente me fez sentir bem desde que
fui libertada de meu mestre.
A única pessoa que me despertava para quem eu realmente era.
— Freya, o que veio me oferecer? — Ele tocou minha perna, fazendo-
me congelar.
— Minha amizade — sussurrei.
Ele me olhou no fundo dos olhos e penetrou meu coração.
Não, minha alma.
Siriu Konstantinova segurava correntes em suas mãos e quando me
tocou, as enrolou em volta de mim.
Eu não ia a lugar nenhum.
E não fiquei assustada ao reconhecer que não queria ir.
Eu queria rir.
Há quanto tempo não sentia a real vontade de dar risada? Sem aquela
sombra de culpa, rancor e ódio por trás do riso? Muito tempo. Tanto que nem
poderia contar. E se tivesse contado, não teria decorado.
Ela não tinha nem 1,65 e entrava em minha casa oferecendo-me sua
amizade.
Ela não sabia o que o terror do meu nome significava nas ruas e sorria
para mim jurando que eu era o único que podia salvá-la.
Ela me fez querer ser esse homem.
— Sua amizade?
— Sim. — De repente, o sorriso vacilou e olhou para baixo, observando
as mãos no colo e nesse movimento notei que meus dedos ainda seguravam
firmemente sua coxa. Afastei-a e Freya voltou a me observar, parecendo
desapontada.
— E o que espera com essa amizade, Freya?
Ela abaixou os olhos novamente, hesitando.
— Olhe para mim.
Quando seus olhos imediatamente bateram nos meus, senti minha
pulsação forte. Diante do meu comando sequer hesitou. Um único segundo e
fez exatamente o que mandei.
— Responda-me.
— Quero ser sua amiga do mesmo jeito que Kirina é — sussurrou,
passando a ponta da língua no lábio inferior. Não foi um movimento
estrategicamente de provocação, era apenas ela.
Uma menina criada como um objeto sexual que tinha o corpo perfeito
para tentar qualquer homem e ali, naquele momento no meio da minha sala,
eu podia me ver no caminho de travar uma batalha entre o meu dever e meu
corpo.
Minhas necessidades e minha meta.
— Isso é impossível. — Não me impedindo, alisei uma mecha do longo
cabelo para trás de sua orelha. As costas dos dedos escovaram sua bochecha
macia, a pele sedosa como se nunca tivesse sido tocada por nada.
Mas não era verdade.
Aquele era um rosto que já tinha sido posto à prova de tudo.
Eu conhecia Kazel mais do que o suficiente para saber o nível que suas
perversões alcançavam.
— Por quê?
Pensei se deveria responder, mas decidi que sim.
— Kirina é diferente de uma amiga comum.
— Eu sei. — Cerrou os lábios. — Vocês fazem sexo.
Ali estava. Sua motivação e a real razão de estar atrás de mim.
— E é isso o que você quer, não é? — perguntei baixo sem nunca
desviar meus olhos dos dela. Prendia Freya no lugar. Imóvel, ela me
observava como se eu fosse um show particular e eu ainda não havia feito
nada.
— Sim — sussurrou. Havia um toque de sensualidade na voz melodiosa
que me provocava cada vez que uma palavra saia de sua boca.
Ela toda era assim. Uma provocação.
Uma provocação perfeita.
A quanto tempo algo não me tentava tão profundamente?
Odin sabia que embora meu controle fosse grande, eu não era um santo.
— Essa é uma coisa que não posso dar a você.
— Por qual motivo? — Franziu o cenho.
— Você precisa aprender a viver aqui fora e com isso entender que sexo
não deve mais ser uma compulsão ou obrigação. Sexo deve ser feito com
alguém que... — Parei por um momento, percebendo que estava dando o tipo
de conselho que mulheres davam a suas amigas.
Ou pai davam as suas filhas.
A ironia não me passou despercebida.
— Que o quê?
— Que você gosta.
— Eu gosto de você, meu senhor.
Pelos deuses.
— Não desse jeito. Deve sentir algo.
Ela ficou ainda mais confusa.
— Mas sinto algo pelo senhor. Sinto um monte de coisas.
A contração involuntária nos meus lábios me surpreendeu novamente.
— Eu não sou o que você deveria procurar, Freya. Sou o que deveria
ficar longe.
Ela me encarou por um momento.
— Então por que não me expulsa? Por que me deixou vê-lo em seu
trabalho, me deixou ir até a igreja e agora me recebeu aqui?
Sim, por quê?
Não era a tal grande questão?
Por que eu continuava deixando que se aproximasse, que imaginasse
coisas e que as quisesse realizar?
— Você só me quer porque acha que vou substituir Kazel em sua vida.
— Me irritou falar aquilo, mas era a verdade e por mais que incomodasse
como um filho da puta, precisava ser dito para que ela entendesse.
— Não. — Balançou a cabeça com veemência. — O quero porque
quero.
— Freya.
— Sou completamente verdadeira quando digo isso, meu senhor. — O
nariz franziu, as mãos procuraram as minhas. — Não vejo o meu mestre
quando olho para o você. Vejo Siriu. Vejo Siriu Konstantinova e o quero
mais do que... — Fez uma pausa, desviando o olhar.
Aquilo era... vergonha?
Segurei seu queixo, trazendo-a de volta para me fitar.
— Continue.
— Mais do que já quis ele alguma vez — sussurrou tão baixo que quase
não ouvi, mas estavam lá. As palavras que uma escrava não ousaria dizer a
menos que fosse completamente verdade.
As palavras que Freya não diria se não fosse profundamente honesta.
Ela foi criada e condicionada a querer e esperar por Kazel. Admitir que
outro superou seu criador não era automático, tampouco fácil.
— Você deve ouvir os conselhos de Onira e Demeron.
— Mas não quero. Não quero sair daqui e voltar para lá! — A força e
determinação na voz me surpreendeu.
— Será apenas até que aprenda o essencial, Freya — devolvi com
firmeza. — Assim que estiver pronta poderá seguir seu próprio caminho.
Ela balançou a cabeça, levantando-se.
— Não. Não! Não pode ver, meu senhor? Não tenho um destino. Não
tenho um caminho. Isso foi tirado de mim!
— Não diga tal bobagem.
— É verdade. Tudo isso foi tirado de mim!
— Sente-se, Freya.
— Eu preciso que o senhor me ajude. Preciso que me guie e...
— Sente-se. Agora — ordenei. Minha voz ecoou pela sala. Não foi um
grito, mas o comando era explícito e ela obedeceu exemplarmente.
— Sinto muito, meu senhor.
— Tudo bem.
Forçar aquelas palavras para fora foi difícil. Porque o que eu queria era
começar uma sequência de comandos em direção a punição por levantar a
voz comigo e me fazer falar duas vezes a mesma coisa. Mas ela não era
minha para obedecer.
Tampouco para punir.
Mas você quer.
Resisti a meus impulsos mais primitivos.
— Você se encontrará, Freya. Basta obedecer.
— Obedecer quando me mandarem para um lugar longe daqui?
— Ninguém a mandará para longe.
— É claro que vão. Demeron quer me internar e Onira concordou. Eles
não acham que tenho salvação.
Mas que...
— Como é?
— Eu ouvi os dois conversando — confidenciou, as bochechas corando
no processo. — Sei que não deveria ouvir, mas eu acordei e os dois estavam
falando sobre mim. Que se eu fosse internada em algum lugar poderia ficar
longe de problemas.
Não. Certamente Demeron não faria tal coisa.
— Você ouviu errado, tenho certeza.
— Meu senhor — falou baixo, cravando aqueles olhos amarelos nos
meus. — Sei o que ouvi. Juro por minha vida que não vale muito que ouvi
exatamente isso.
— Não repita isso — falei bruscamente. — Sua vida vale.
Era verdade.
Eu era a favor de prender e internar para meu próprio benefício, mas
prender Freya só serviria para deixá-la ainda mais fora de um entendimento
com o mundo e regras sociais. Como ela sairia de dentro de uma clínica
depois de tal experiência?
— Fique aqui esta noite — falei de repente, surpreendendo a mim
mesmo.
Seus olhos brilharam, arregalando-se em conjunto com o sorriso que
surgia.
— Não assim. — A parei. — Não para o que veio buscar. Mas, não vou
forçá-la a voltar a casa de Demeron, então pode passar a noite aqui e amanhã
verei o que fazer, mas não vai dormir comigo.
— Verá o que fazer?
— Sim. Talvez chamar Kirina ou padre Terry para...
— Não. — Interrompeu-me. — Eu quero você e apenas você.
— Eu já disse que...
— Não! — Os olhos arregalaram e ela tocou meu peito outra vez. —
Apenas o senhor!
Quando dei por mim estava grudado nela, agarrando um punho de seu
cabelo e puxando o rosto para centímetros do meu. Sangue quente bombeava
todo o meu corpo com fúria. Parte de mim queria soltá-la e parte queria trazê-
la mais perto.
— Interrompa-me ou levante a voz mais uma vez e haverá
consequências, entendeu?
— Sim, meu senhor. — Ela exalou. O suspiro audível fez o momento
cair em mim e percebi o que estava fazendo. Soltei seu cabelo e dei alguns
passos atrás, abaixando a cabeça para me controlar. Meu pau rígido como
uma rocha forçou contra o zíper da calça.
Deu para mim.
Foi meu limite.
Mais do que eu podia aguentar.
Sabendo que estava cruzando minhas próprias linhas e em breve, as
sombras ganhariam sobre o meu esforço, saindo e tomando o que não era
meu para tomar.
Ela.
— Essa conversa está encerrada. — Comecei a sair.
— Meu senhor, por favor, posso ter permissão para falar?
De costas para ela, sua voz suave penetrou cada ponto crucial em mim.
A veia em meu pescoço pulsava em meu ouvido. Meus batimentos cardíacos
ansiosos. Desejo puro começando a assumir meu controle.
— Fale, Freya.
Ouvi seus passos, e então ela estava em minha frente.
— Eu tenho algo aqui. — Pegou a bolsa sem se dar conta de como
fiquei em alerta quando a abriu. Minha mente sempre pronta para defender
meu corpo. — Eu pensei em vários que poderia trazer, mas escolhi esses que
são os que me lembram do senhor.
Senhor.
Senhor.
Senhor.
Ela tirou da bolsa alguns DVD’s, chocando-me mais do que qualquer
coisa poderia ter feito.
Ela era real?
— Filmes?
— Sim.
— DVD’s? — O sorriso contido em seu rosto denunciava sua excitação
por algo tão simples.
Aquilo me acalmou um pouco. Um por cento dos mil que estouravam
meu interior.
— São de 007. Espiões, como Demeron e... e o senhor.
Eu parei por um momento.
Suspirei, permitindo-me observar aquela criatura surreal a minha frente.
Como podia me ver de forma tão limpa?
Como podia insistir em me dar um pedaço de seu tempo como se eu
valesse ele?
Me aproximei dela, não perdendo de vista a forma como seu corpo
tensionou. Esperando punição? Desejando punição? Eu não sabia, mas quis
dar a ela as duas coisas.
Erguendo a mão, permiti-me tocar seu belo rosto. Sentir a pele macia
abaixo dos meus dedos calejados.
— Vou levá-la para a cama, Freya.
O sorriso voltou ao seu rosto e eu balancei a cabeça, cortando-a
novamente.
— Para a sua cama, onde dormirá sozinha.
Decepção encheu os belos traços, mas ela assentiu.
— Sim, meu senhor.
Puxando uma respiração profunda eu mesmo, coloquei a mão em suas
costas e a guiei para o interior da casa.
Não podia deixar de pensar que ao invés de estar correndo para o mais
longe possível de mim como deveria, estava desapontada por não estar mais
próxima.
As sombras se agitaram em meu interior.
Tanto quanto eu tentava negar, a batalha estava bem ali. Havia chegado
e bateu-me com força.
Eu não podia.
Mas nós vamos pegá-la.
As sombras sussurraram em minha mente.
Eu não duvidei delas.
"São só nossos corpos?
Estamos ambos enlouquecendo?
É a única razão
Pela qual você está me abraçando esta noite
Por que estamos com medo de ficarmos sozinhos?"
DUA LIPA, SCARED TO BE LONELY?
— Você sabe o que é isso que está sentindo?
— Não, me-mestre — sussurrei, os olhos dele me prenderam no lugar, o
sorriso me desafiando a mover-me.
— Isso é seu corpo chamando por mim, minha feiticeira. Sente isso?
Ele agitou a ponta de seu membro em minha entrada, cobrindo-me
quase inteira. Mestre era enorme. Conforme avancei em meu próprio
crescimento ele me tocou de diversas formas, mas nunca fizemos aquilo, ele
nunca foi dentro de mim.
— Já está na hora, feiticeira. Está na hora de me reconhecer como o
seu criador.
— Eu faço isso, mestre.
— Você é o pequeno demônio que o príncipe das trevas me enviou,
Freya. Eu esperava que pudesse esperar até que chegasse ao décimo
aniversário, mas não posso mais. Simplesmente não posso...
Ele me tocou novamente. Meu corpo doía de suas carícias e das vezes
que colocou a boca em mim até que eu sentisse aquelas coisas boas. Mas,
também havia a dor, tanta dor e seu sorriso de apreciação por fazer-me
sentir.
— Mestre — balbuciei quando avançou um pouco, toda o meu corpo
recusando-o, meu interior fechando-se.
— Você é minha, feiticeira. — Segurando os meus joelhos afastados, ele
me deitou completamente. — Aguente.
Quando mestre avançou, meu grito poderia ter perfurado em seus
ouvidos com o tremor que teve, mas então a dor insuportável se tornou três
vezes pior enquanto se afastava e avançava novamente.
— Mestre. — Meus pequenos punhos enrolaram, empurrando seu peito.
Ele empunhou meus cabelos, pregando meu rosto na cama. Pouco
depois, os lábios tocaram meu ouvido.
— Aguente. Aguente, feiticeira. Aguente.

Abri os olhos como se tivesse se estivesse sentindo tudo novamente. Um


grito me escapou e escorreguei as mãos no lençol de seda, percebendo o quão
suado meu corpo estava. A janela ligeiramente aberta trazia o vento gelado da
noite e as cortinas faziam sombras assustadoras invadirem o meu espaço.
Solucei ao perceber que estava nua, a camisa que Siriu tinha me
emprestado jazia descartada ao meu lado, mas eu estava sozinha.
Não foi a primeira vez que acordei daquela forma. Conforme os meses
se passavam e minha falta de sexo permeava a mente, a tortura física
aprofundava-se para além de quando eu estava acordada, mas corrompia-me
em meu sono também.
Um toque.
Eu precisava de apenas um gosto.
Me apoiei nos cotovelos, sentindo meus dedos molhados e ao trazê-los
ao nariz, senti o cheiro da minha excitação, comprovando que enquanto
sonhava com memórias distantes tocava a mim mesma. Seria minha mente
encontrando uma forma de aliviar o corpo? Fechei os olhos quando toquei
minha intimidade. Os abri e olhei ao redor procurando qualquer coisa que
pudesse usar para inserir em mim, mas não havia nada.
Desespero me corroeu.
Joguei uma perna para fora do edredom que já não me cobria totalmente
pronta para escapar da cama e procurar algo que me ajudasse a encontrar
alívio, mas então parei.
Na porta uma sombra surgia. Estaria ainda sonhando? Estiquei a mão.
— Por favor. — Solucei. — Por favor, faça isso parar...
Mas não era.
Não podia ser.
Não quando Siriu se aproximou lentamente, encostando os joelhos na
cama e varrendo os olhos no meu corpo desnudo. Eu parei de mover meus
dedos por um momento, tocando-o no braço.
— Meu senhor, ajude-me. Me livre...
O desespero em minha voz despertou algo nele, eu podia ver. Aquela
máscara caindo por um momento tanto me assustou quanto aliviou e quando
ele chegou mais perto sentando-se incrivelmente próximo, regozijei-me das
sensações que seu corpo quente trouxe ao meu frio.
Meu suor escorria, meu sexo estava quente e pegajoso. Tão excitada.
Tão, tão excitada.
Doía.
Doía como se alguém estivesse enfiando uma faca e torcendo lá dentro.
— O que você precisa, Freya? — perguntou no meu ouvido, a voz
baixa, sensual, longe do homem distante e indiferente que eu conhecia. —
Hum? Diga-me do que precisa e eu vou te dar.
Exalei uma respiração trêmula, agarrando seus braços num aperto de
morte e abri as pernas sem nenhum pudor.
Ele observou o movimento com olhos atentos e relaxados. Mas havia
algo diferente lá dentro também. Algo que eu já vi tantas vezes, mas que nele,
parecia único.
Desejo.
Desejo cru, puro e doloroso.
Siriu Konstantinova me queria tanto quanto eu ansiava por ele.
— Diga — ordenou. As mãos tocaram minha coxa, preparando-se para
subir, mas de repente pararam, enviando apenas calafrio para o ponto central
do meu corpo. — Diga.
— Eu quero alívio — sussurrei com um soluço — Eu preciso...
preciso...
— Do quê? Do que você precisa?
— Preciso de você.
Ele fechou os olhos, subindo um pouco mais as mãos antes de parar
novamente e abri-los outra vez, as ireses azuis brilhantes encarando-me.
— De mim? Qual parte de mim? Meus dedos?
Balancei a cabeça, tentando abaixar o corpo para que sua mão
encostasse onde eu a queria, mas ele deu um aperto firme, mantendo-me no
lugar.
— Minha língua?
Eu gemi com a sensação do meu sexo ficando mais molhado.
Imagens piscaram em minha mente.
Ele enfiando o rosto no meio das minhas pernas.
Ele cravando os dedos profundamente em mim.
Ele livrando-se da calça do pijama e me tomando profundamente.
Cercando-me.
Rasgando-me.
Levando embora a dor e me livrando da tortura que meus sonhos
trouxeram.
— Por favor — falei num fio de voz.
— Diga, Freya.
— Tudo! — gritei, cravando as unhas em seus ombros e o puxando para
mais perto de mim. — Tudo de você. Seus dedos, sua língua, seu pênis e o
que mais quiser me dar. Apenas você, mas tudo.
A declaração apaixonada e cheia de desejo me levou ao limite.
Além do limite.
Ignorando a voz que me lembrava diariamente da minha meta, deixei-
me cair em tentação.
Me permiti dar a ela o alívio que procurava, mas prometi não receber
nada em troca.
Prometi silenciosamente a mim mesmo que aquilo era para ela.
Para livrá-la de algo que mesmo não estando lá, ajudei a fazer.
— Deite-se.
Existiam dois lados de mim.
Aquele que seu desespero despertava minha proteção.
Aquele que sua dor provocava o meu desejo.
Tive muitas mulheres, poucas escravas, porém cada uma delas conheceu
partes daqueles dois lados. Por merecimento delas ou meu humor no
momento, dei a cada uma o que a situação pedia. Sempre foi demais.
Mulheres mais velhas, mais jovens, sempre dispostas e ansiosas. Temerosas.
Desejosas.
Mas Freya...
Eu não sabia onde colocá-la naquela questão.
Sua dor me agradava e seu desespero puxava as sombras para sua luz.
Ou sua escuridão? A muito tempo eu não desejava alguém com tanto afinco.
Queria dar a ela o que pedia. Meu dedos, minha boca, meu pau. Mas não
podia, não agora. Não quando ela estava sonhando com ele e eu era um alívio
momentâneo.
Decidi naquele momento que arrancaria Kazel de sua mente. Tiraria
cada vestígio dele. Seu corpo não lhe pertencia mais, então as amarras que ele
segurava eu soltaria. Assim... a teria para mim.
— Mantenha seus olhos abertos. Sempre abertos, ouviu? Responda.
— Sim, meu senhor.
Por enquanto eu a deixaria continuar com “meu senhor”, mas a palavra
que ambos sabíamos encaixar naquele meio era “mestre”. Eu arrancaria dele
o título também.
Kazel Maraba não merecia tal grandeza. Nunca mais.
— Se fechar os olhos não vou deixá-la gozar.
Seu corpo tremeu, o rosto apertando-se em agonia ao considerar minha
afirmação, mas ela precisava obedecer, assim, sua primeira lição seria
aprendida. Quem a livraria do alívio seria eu. Meu rosto, meus olhos, meus
dedos e minha voz. Não ele. Kazel cairia no esquecimento pouco a pouco,
assim, se algum dia chegasse perto dela outra vez, Freya fugiria para o mais
longe possível.
Subindo minhas mãos pelas coxas que pareciam creme derretido deixei
meu toque leve acariciá-la. Seus olhos tremiam, mas não fechavam. Ela era
perfeita em seguir ordens.
Quando alcancei o topo da coxa, levantei às mãos e só abaixei
novamente em sua barriga. Ela gemeu sôfrega por não sentir o alívio
imediato, vendo que eu prolongaria sua agonia por mais um tempo.
Um tempo curto, mas o faria mesmo assim.
— Linda, Freya. Você é impecável.
Seus olhos brilharam. O amarelo vivo encarando-me como se aquilo
fosse tudo o que precisava e queria ouvir.
Os seios eram cheios como eu já havia percebido, redondos,
aparentemente pesados e os mamilos rosados quase vermelhos estavam
duros, espremidos. Suor cobria seu corpo dos pés à cabeça, fazendo o brilho
do lado de fora da janela iluminá-la como a porra de uma deusa em plena
exibição.
Seus braços subiram acima da cabeça quando toquei os cotovelos,
confirmando que mesmo se eu não dissesse nada, ela sabia exatamente o que
fazer.
Cada toque.
Cada sinal.
Treinada para compreender o medo, o prazer e o silêncio.
Boneca bonita e quebrada.
A lembrança do que devia ter passado para se tornar uma escrava tão
primorosa tinha que ser o suficiente para me afastar, mas não o fez.
Inclinando-me para frente, baixei o rosto a centímetros do dela sem encostar
meus lábios em nada. Embora rodear os mamilos duros com a língua e
chupar fosse o que eu queria, não o fiz.
Hoje ela teria meus dedos e apenas eles.
Seu merecimento a faria ganhar mais.
Odin sabia que eu sofreria com a espera tanto quanto ela.
Freya respirava ofegante, trêmula, com as lágrimas caindo sem parar.
Seu cabelo estendido para todos os lados parecendo um lençol embaixo da
metade do corpo.
Perfeita.
O cheiro...
Inalei com força. Excitação e sexo me inebriaram.
A visão era divina. O primeiro gosto.
Kazel a via assim.
Fechei os olhos rejeitando o lembrete.
— Meu senhor? — A voz trêmula lembrou-me o quão jovem ela era.
Dezenove.
Jovem demais.
Eu já tinha fodido outras jovens, sempre maiores, mas nenhuma delas
era como Freya. Nenhuma passou o que ela passou.
Você está se aproveitando.
Espremi os olhos com força, tentando clarear a mente de tudo o que não
fosse ela.
— Por favor — choramingou, arqueando o corpo, fazendo meus dedos
roçarem seu mamilo rígido.
— Quieta.
Me perdi.
Me encontrei.
Respirando profundamente, toquei o meio dos seios, descendo a mão
levemente até cobrir seu sexo. Ela estava encharcada. Vergonhosamente e
deliciosamente ensopada de excitação. Suor se misturava aos líquidos que
escapavam da vagina aberta e a parte do lençol onde ela repousava parecia ter
sido lavado. Toquei o interior da perna direita e ela a afastou, gemendo
longamente quando esfreguei a palma para cima e para baixo uma única vez
abrindo-a completamente.
O clitóris parecia gritar em desespero, inchado, erguido com louvor no
meio dos lábios inchados. O buraco tentador era pequeno, dando-me uma
visão da deliciosa tortura que seria para nós dois quando eu a invadisse com o
meu pau.
Estava vermelha e inchada, cheirando a boceta sedenta.
Olhando aquela cena não pude evitar mais, com a mão esquerda segurei
um seio inchado, apertando-o com força o suficiente para pressionar os
pontos certos e com a direita separei os lábios debaixo, tocando o clitóris
macio e escorregadio.
Quando comecei a esfregar ao mesmo tempo que apertava um seio,
depois o outro, torturando os mamilos, Freya mordia o lábio para conter seus
gemidos e gritos.
Para ela não era apenas o orgasmo.
Enfiar a mão na boceta e se provocar até gozar era fácil, mas ela
precisava de todo o resto. O comando, a vontade de servir, o conhecimento
de que havia alguém para guiá-la.
Eu.
— Deixe-me te ouvir — ordenei e ela o fez. Imediatamente liberou o
lábio e olhando-me no fundo dos olhos começou a deixar seus barulhos
escaparem.
— Meu senhor... — Os olhos reviraram, o corpo arqueando, o tremor
começando a dar os sinais de que não demoraria muito.
— Conte até trinta e você pode gozar.
Ela me olhou em pânico, sabendo que não conseguiria.
— A punição não será agradável, Freya.
Embora gostasse da dor, eu sabia que tudo o que ela queria agora era
prazer e, além disso, queria me agradar. Ela trancou a boceta e meus olhos
acompanharam o pequeno buraco fechar. Segurando até o último segundo.
Seus lábios moviam-se na contagem, o corpo ondulava conforme eu
aumentava o ritmo e quando chegou no vinte e oito eu a deixei ir. Belisquei o
broto sensibilizado e dolorido e ela chegou ao 30.
Explodiu.
Eu assisti fascinado o corpo perfeito convulsionando e quis mais do que
nunca abaixar a calça e invadir sua boceta suculenta, mas não podia.
Sua obediência viria da minha firmeza e seu respeito viria do meu
controle.
Aquela noite não era sobre meus impulsos e tesão, mas sobre ela
entender quem eu era. Pelo menos começar a ver.
Baixei os olhos turvos, olhando seu sexo ainda recuperando-se da
gozada e um gosto novo me encheu.
Minha para tomar.
Engoli em seco, oferecendo meu dedo a ela que sem demoras o tomou
na boca e chupou, limpando-me de seu suco.
Sua mão viajou para baixo e previ que tocaria meu pau. Não fiz um
movimento para pará-la, esperava que minha voz a detivesse.
— Não me toque — falei com firmeza e imediatamente ela parou. A
mão caindo ao seu lado na cama. — Não sem que eu permita ou peça.
Assentindo vagarosamente, ela manteve os olhos nos meus como eu
pedi no início.
Será mais difícil do que imaginei.
Tentadora demais para ser verdade.
— Você foi uma boa garota, Freya. — Acariciei seu cabelo, passando a
ponta dos dedos levemente pelo rosto antes de me levantar. — Agora durma.
— Mas, meu senhor...
— Durma.
A cobri novamente, não pedindo que vestisse a camisa antes de pousar o
cobertor sobre seu corpo e me afastei.
— Boa noite, Freya.
— Boa noite, meu senhor. — Foi apenas um sussurro, mas tanto na voz
quanto nos olhos tinha o toque de um sorriso.
E algo mais também. Algo que me fez refletir se cometi um erro.
Esperança.
“Então vou te beijar por mais tempo, amor, qualquer chance que tiver
Eu vou te amar como se eu fosse te perder
Eu vou te abraçar como se eu estivesse dizendo adeus”
MEGHAN TRAINOR - LIKE I'M GONNA LOSE YOU
Quando acordei no dia seguinte senti uma necessidade de retribuir a
Siriu o que ele havia feito por mim.
“Não me toque. Não sem que eu permita ou peça.”
Bem, o que eu podia fazer então? Havia clareado lá fora e me surpreendi
com quanta luz invadia o apartamento. Ele era de esquina e nas duas paredes
que se encontravam as janelas tomavam conta de todo o espaço, cortinas
brancas pesadas eram o único bloqueio entre a vista lá fora e eu do lado de
dentro. Eu as puxei, torcendo para que ele não se importasse. Uau. O céu
estava lindo. Nuvens tampando o sol, permitindo que apenas os raios
escapassem e iluminassem Berlim.
Berlim...
Olhar a cidade de cima me fez perceber que eu não a conhecia nem um
pouco. Podia contar nos dedos os lugares onde fui. Minha rotina sempre foi a
mesma.
Casa de Onira, psicóloga, restaurante.
Casa de Onira, casa de Kirina.
Empresa do Kurton e casa de Onira novamente.
Em meses continuava sendo uma prisioneira, mas ali, observando aquela
vista tão bonita através dos vidros da casa do Siriu me senti livre. Como se eu
pudesse tudo ainda que não soubesse o que “tudo” significava, tinha aquela
vontade de explorar até descobrir tudo. O pensamento bobo de pedir a ele
para me apresentar alguns lugares novos pareceu exatamente assim. Bobo.
Em nenhum momento me arrependi de ter ido atrás dele, mas a parte de
mim que vivia em função de servir as necessidades de um mestre e ansiava
por isso sentiu um certo pesar por não ter sido ele a me buscar e fazer-me vir
com ele para sua casa. Eu sabia ler os homens, sabia que ele me desejava,
mas não era o desejo cego que fazia os amigos de Kazel fazerem qualquer
coisa que ele pedisse apenas para estar comigo por poucos minutos.
Siriu não precisava implorar, porém, eu faria qualquer coisa que ele
quisesse e a prova estava em minha frente cada vez que piscava e imagens de
nós dois naquela madrugada me acendiam outra vez.
Ele me quer.
Eu só não entendia o porquê não me queria como outros homens faziam.
Não seria mais fácil?
Decidi eu mesma perguntar a ele. Talvez estivesse apenas me esperando
acordar para me pedir que retribuísse o prazer que me ofereceu ontem. Um
sorriso tocou meus lábios com o pensamento.
Dei as costas à vista maravilhosa e segui o caminho que havia feito na
noite passada ao quarto. Se fosse como na casa de Onira ou Kirina os quartos
estariam no mesmo corredor, em portas diferentes. Eu pulei a que dormi,
fazendo apenas uma pausa para decidir se deveria arrumar minha cama
naquele momento ou iria em busca de servi-lo primeiro. Decidi que a cama
podia esperar.
A próxima porta era um grande banheiro, tinha uma banheira redonda e
um espelho gigante, mas não possuía todos os detalhes que eu costumava ver
no de Onira e Demeron.
Ela tinha mania de espalhar vasos de flores, quadros e suas esculturas
bonitas. A casa de Siriu era apenas... a casa. Eu não conhecia muitas casas, é
claro, mas entre a mansão de Stark, a casa de Kirina e a de Demeron, percebi
que Siriu vivia em um lugar que não dizia nada sobre ele mesmo.
Ri sozinha com o pensamento.
O que eu podia dizer que me expressava, certo?
Eu não tinha sequer uma casa. O mais próximo de algo meu foi uma
identificação. Documento que Demeron conseguiu cobrando favores. Algo a
ver com a minha falta de certidão nascimento e até mesmo não saber que dia
e mês nasci. O ano foi um “chute”, como ele explicou, visto que Kazel me
falou sobre ter dezenove anos.
— Quem garante que é verdade? Até onde sabemos ela pode ter
dezesseis e o filho da puta nunca contaria. Desgraçado!
Lembrar-me de sua fúria ao falar sobre meu antigo mestre sempre me
deixava confusa, mas aprendi a não perguntar. Eu não conseguia nutrir
nenhuma raiva por Kazel, mas entendia que Demeron tinha suas razões.
As duas portas seguintes foram a mesma coisa. Vazio, vazio e vazio.
Como ele?
— Não — respondi comigo e para mim mesma. — Ele é muito mais...
O último quarto era ligeiramente diferente e eu sabia que era o seu, pelo
terno descartado em uma poltrona no canto virada para a janela. O imaginei
sentado ali, observando à noite. Sim, à noite.
— Ele não parece muito o tipo que aprecia o dia. — Dei risada
novamente. — O que eu sei sobre tipos?
Constatando minha solidão voltei a sala e refleti sobre o que fazer até
que Siriu voltasse de onde tivesse ido. Certamente não me deixaria sem um
bom motivo, certo? Ele era como Demeron, Onira e Kirina, afinal, tinha um
emprego. Pensei no meu próprio trabalho e decidi ligar para Kurton Ward
quanto mais rápido para que encontrasse outra pessoa e lhe desse emprego.
Encarando o enorme espaço branco me senti perdida ali dentro. Ansiava
que aquela sensação fosse embora. A compreensão de que eu não tinha lugar
no mundo. O enorme universo que parecia não ter fim para ninguém, tinha
para mim. E ele terminava exatamente onde começava.
Eu não estava indo a lugar nenhum. O único lugar que conheci foi com
Kazel e embora ele me quisesse tanto ao seu lado, havia sempre um vazio no
fundo. Lá onde eu jogava as palavras estranhas que eu ouvia seus convidados
dizendo e fingia não saber.
Eu queria ser como Onira, como Kirina, até mesmo como Kurton e ser
parte de algo.
Algo com... ele.
Com Siriu.
A madrugada em sua presença serviu para me comprovar tudo o que eu
já sabia. Ele era o que eu precisava naquela nova vida. Ele e o que me
oferecia.
A campainha tocando chamou minha atenção.
— Siriu — suspirei seu nome com alívio, correndo para deixá-lo entrar.
Era a hora de decidir o meu futuro.
Porém, quando abri a porta não era exatamente o que esperava. Olhei
para baixo, vendo uma pequena menina com o sapato na mão e na ponta dos
pés, usando-o para apertar a campainha.
Ela sorriu ao me ver.
— Olá! Eu sou Blair. — Recolocando o sapato a garotinha ajeitou um
laço em seu cabelo loiro e esticou a mão. — Muito prazer, moça.
Imitando o gesto que já me era familiar, apertei sua mãozinha sem
realmente apertar.
— Olá, eu sou Freya.
Ela assentiu e passou por mim, entrando e pegando minha mão,
puxando-me antes de fechar a porta.
— Uau. — Olhou ao redor. — Que grandão! Cadê o Siriu? Ele não está
aqui não, né?
Sem saber o que dizer ou fazer, neguei com a cabeça.
— Desculpe-me, quem é você?
Ela me fitou novamente, sorrindo e encolheu os ombros.
— Sou Blair.
Então virou as costas e correu para dentro.
— Vem, Freya!
Fechando a boca, mas ainda muito confusa, eu a segui.
Se minha morte fosse naquele dia eu tinha certeza de que seria
decapitado, pois a forma como Demeron estava me encarando não deixava
espaço para imaginar que seria algo menos que sanguinário. Eu entendia seu
ódio por mim, respeitava seu trabalho, mas não concordava com seu estilo de
vida. Principalmente quando aquele estilo o fazia me negar qualquer coisa,
inclusive ajudar-me a recuperar Style, a pessoa que me deixaria mais perto de
encontrar Kazel, embora o desgraçado continuasse negando.
— Por que não me ligou na hora que ela bateu em sua porta?
— Pelo mesmo motivo que você quer interná-la.
Ele franziu o cenho, um brilho de vergonha passando nos olhos.
— Onde ouviu isso? Apenas sugeri para Onira. — Demeron estreitou os
olhos. — Filho da puta, colocou escutas na minha casa?
— Eu não me daria o trabalho apenas para ouvi-lo em seu cotidiano
doméstico. Não se dê tanto crédito.
— Então como sabe que andei pensando sobre isso?
— Freya ouviu. O que mais uma vez só reforça a minha teoria de que
você está ficando desleixado.
— Ela não levaria isso a você sem um bom motivo. O que andou
fazendo com ela? — Aproximando-se, me apontou um dedo acusatório. —
Será que preciso lembrá-lo de onde ela veio? Que não é só uma submissa
para seus jogos? Ela foi abusada desde que era um bebê! Inferno, Kazel a
criou desde os primeiros dias de vida. Ela está fodida da cabeça e esse é o
momento que você escolhe para me provocar? Se isso é sobre Style...
O interrompi ao passo que fechei a distância entre nós e encarei meu
primo pé a pé. A vontade de envolver meus dedos em sua garganta e apertar
até ouvir o estalo dos ossos era grande, mas me contive.
— Eu sei bem do que Kazel e capaz e não preciso ser lembrado as coisas
que ela viveu. Não fiz absolutamente nada além de recebê-la quando buscou
segurança.
— Eu ofereço segurança a ela.
— Oferece? — zombei. — Ela não quer ir para psicólogos e fazer
faculdade, imbecil. Pergunte ao macaco o que ele quer comer. Pergunte a
uma escrava da Kambarys o que ela quer.
Ele se calou por um minuto, engolindo o orgulho para refletir em minhas
palavras.
— Estamos tentando lidar com ela. Eu nunca fiz isso antes e tampouco
Onira. Ela ama Freya como se fosse sua irmã mais nova e eu me sinto
protetor com ela. A ideia da clínica foi uma maneira de mantê-la afastada e
segura ao mesmo tempo.
— Quer dizer onde ela não vai te causar problemas? — Tirei a cartela de
cigarros do interior do casaco, acendi com meu Zippo e o guardei novamente,
dando uma longa tragada, não costumava fumar, mas havia momentos que
pediam. — Quer que eu te diga o que acontecerá se a mandar para uma outra
masmorra? Você não será diferente de Kazel, prendendo-a lá dentro e a
submetendo a qualquer médico, enfermeiro ou guarda que decida se
aproveitar de sua óbvia disposição em servir.
— Colocaríamos guardas nossos com ela, assim saberia que está segura
o tempo todo.
Soltei uma risada seca, acompanhada de uma tossida leve.
— Eu a tirei da cadeia e ela me ofereceu um boquete, imagina o que fará
com seus guardas quando perceber que os idiotas fariam tudo por uma boceta
livre? Como isso funciona no seu plano perfeito?
Demeron passou as mãos pelo rosto, esfregando o cabelo ralo e
lançando-me um olhar afiado.
— Eu nem sei o porquê estou discutindo isso com você. Ela é meu
problema. Freya é minha responsabilidade e o único motivo de eu ter vindo
aqui foi para descobrir onde ela está e levá-la de volta para casa, onde
pertence.
Ela pertence a nós.
Ignorando o sussurro das sombras em minha mente eu dei-lhe um
sorriso desagradável.
— Onde ela pertence até que vocês dois a enviem com passagem só de
ida para o barquinho da insanidade com esquina para o hospício.
— Não é um hospício, é uma clínica.
— É um monte de gente louca pra caralho que a família joga lá dentro,
passa a chave e visita uma vez por ano no Natal para dizer que está cuidando.
— E que porra você sugere? — gritou, demonstrando-me suas emoções
como um livro aberto. O homem que antes estava sempre encoberto pelo meu
soldado agora se expunha num simples diálogo — Hein? O que eu deveria
fazer com ela?
— Deixe-a decidir o que quer fazer.
— Muito conveniente para você, não?
— Kazel a quer de volta, Demeron. Ele não vai parar até que a consiga.
— Sei que ele quer, é óbvio que a buscaria, mas não vai encontrá-la.
— Ele foi até Roman. — Deixei a informação vazar, sabia que meu
primo não a levaria a absolutamente ninguém se não fosse com a intenção de
usá-la como ajuda. — Está descontrolado e disposto a tudo para tê-la de
volta. Então, se não sabe exatamente onde ela está, porque se aproximaria de
alguém tão próximo de Dutch como a Bratva?
— Ele sabe que Dutch está conosco — constatou.
— E consequentemente que ela está com algum de nós.
— Como? Como ele descobriu? Eu com toda a certeza da porra da
minha vida não disse a ninguém.
— Style sabe e isso é mais do que suficiente. O bastardo provavelmente
te traiu outra vez.
Balançando a cabeça com veemência, ele negou.
— Não. Ele não faria isso com Onira outra vez. Não quando sabe o
quanto Freya significa para ela.
— Não vou colocar minha confiança em um soldado yakuza que nos
traiu para ganhar um lugar lá fora e não vou deixar que Kazel a tenha
novamente.
— Você não se importa com nada além de si mesmo, por que devo
acreditar que vai protegê-la?
— Porque se trata dele. Se ele vier atrás dela enquanto está sob a minha
proteção, nada vai me impedir de matá-lo. E ele virá, porque saberá que
Freya está comigo. É uma vingança dupla. Tirá-la de mim e me matar.
— Porra! — Ele divagou pela sala enquanto andava com passos
calculados de um lado a outro, então parou e cravou seus olhos nos meus. —
Um tiro. Um tiro é tudo o que você tem. Eu vou deixá-la porque pelo o que
vi, ela ficará voltando para você e não posso proteger Freya se ela ficar
fugindo. Você a guarda por agora, mas Siriu. — Sua voz se tornou
ameaçadoramente baixa. — Se você a tocar... se ousar fazer algo com aquela
menina... vou matá-lo. Vou acabar com o caralho da sua vida.
Ergui os cantos dos lábios num sorriso tão mordaz quanto seu tom e
apaguei meu cigarro na janela de sua sala na Konstantine Business. Ele não
precisava saber que tal ato já tinha acontecido, que meus dedos ainda tinham
a impressão de seu orgasmo desesperado. Deixei meus olhos caírem para a
foto no canto da mesa onde ele abraçava Onira e os dois encaravam-se como
se não houvesse mais nada no mundo.
Piegas. Meio louco. Estupidez.
— Interessante como você a deixa exposta para seus inimigos —
comentei.
Ele ignorou, caminhando até a porta e abrindo-a.
— Meu aviso sobre Freya está dado. — Enfiou a mão no bolso, tirando
um aparelho celular e estendendo-o para mim — É seu telefone. Diga a ela
para atender Onira, diga que ela está preocupada.
Dizendo a mim mesmo que pensaria sobre o pedido, mesmo que
Demeron o desse como uma ordem. Afinal, eu não sabia que tipo de
influência Onira tinha sob Freya e com certeza não a queria fugindo de mim.
Dei um leve aceno e passei pela porta, mas sua voz me parou novamente.
— Lembre-se de quem ela é, Siriu.
A ameaça explicita na voz não me fez recuar.
As sombras agitaram-se novamente. Sim, eu sabia quem ela era e não
tinha como esquecer.
Mas isso não impede que ela seja nossa para tomar.
Observei a garotinha sentada a minha frente sem saber o que fazer.
Encontrar uma criança não me era estranho. Tinha visto poucas, mas o
suficiente para entender o encanto que as cercava. Na Kambarys tive contato
com algumas meninas que precisaram de cuidado imediato e como eu
cuidava de meus próprios ferimentos algumas vezes fiz o serviço.
Mas elas não eram como Blair.
Ou Blair não era como elas.
Blair não estava assustada, triste ou quase sem reações como aquelas
garotinhas que cuidei. Blair não parou de falar desde o momento que eu a
deixei entrar e fez uma pausa apenas para me responder se gostaria de comer
algo.
— Sim, por favor.
Os olhinhos não desviavam de mim em nenhum momento. Ela me
assistia de perto com o mesmo interesse que eu tinha sobre ela.
— Certo. — Cocei a cabeça, pensando enquanto me levantava. — O que
gostaria?
— Sei lá, acho que cereais.
— Tudo bem. — Lhe dei um grande sorriso. — Onde fica? Vou pegar
para você.
Ela deu de ombros, balançando as perninhas curtas no banco alto.
— Sei lá — disse novamente. Percebi que aquela parecia ser sua
resposta favorita.
— O cereal. — Tentei lhe explicar, porém tinha certeza de que não
estava soando confusa, mas ela era uma criança e talvez não me entendesse
mesmo. — Para você comer. — Indiquei os armários e a geladeira. — Onde
estão?
Ela tocou a bochecha inchada, encolhendo os ombros mais uma vez.
— Siriu não te disse?
— Não. Ele deveria?
— Acho que sim, você vive aqui.
Eu vivia? Bem, pela noite, sim. Mas lhe dei um sorriso e decidi começar
a procurar por mim mesma. Não podia ser tão difícil encontrar a caixa.
— Não vivo. Quer dizer, não realmente. Não como com Demeron e
Onira. Siriu me recebeu para passar a noite, mas não dormimos juntos. Ele
ficou em sua cama e eu fiquei em outro quarto. — A velha pontada de
decepção me espetou novamente. — Acho que me mandará ir embora
quando voltar mais tarde.
— Tio Demeron não gosta de mim, mas eu gosto da tia Onira. Ela tem
olhos engraçados.
Eu dei risada, gostando de falar com Blair. Pensávamos bem parecido.
— Eu achava que Demeron não gostava de mim também, mas entendi
que é seu jeito. E Onira é muito especial, você sabia que foi ela quem me
salvou da Kambarys?
— Kambarys. — Blair falou lentamente, franzindo a testinha pequena.
— Não sei quem é essa. Ela vive onde?
Me preparei para responder, mas percebi que não sabia o que dizer.
Lembrei-me de Siriu falando para não espalhar sobre a Kambarys e decidi
que o melhor era não dizer nada.
— Não posso falar sobre ela. — Mordi o lábio e senti uma leve ardência
por tê-lo machucado de madrugada.
— Por quê? Ela é uma vadia? Mamãe me diz para não dizer isso, mas
ela não está aqui e talvez a Kambarys seja assim. Certo?
Eu não achava que as Kambarys eram como vadias. Dado ao significado
da palavra pelo menos, não.
— Você é uma leiga, Blair — falei por fim, esperando escapar da
conversa proibida. — Não posso te falar sobre isso.
— Uma o quê?
— Leiga. — Experimentei a palavra, pensando que não gostei de
chamar a doce menina por aquele nome.
— Eu sou?
— Eu acho que sim. Veja. — Levantei-me de onde estava, com o único
alimento que encontrei guardado. — Parecem ser... uh... O que será que é? —
murmurei comigo mesma, mas Blair pulou do banco e me alcançou.
— Deixe-me ver se gosto.
Entreguei a ela e esperei.
Ela enfiou a mãozinha dentro do saco e tirou duas bolachas de cor
laranja, jogando na boca sem pensar muito.
— Tá legal, eu gostei. Vamos ver TV?
— Será que podemos?
Novamente ela deu uma encolhida de ombros.
— Acho que sim.
Enquanto seguíamos até a sala Blair voltou a falar, contando-me coisas
sobre sua vida – que eu infelizmente não compreendi a maioria – até o
momento em que escolhemos um filme. Algo sobre irmãs e bonecos de gelo.
Ela cantou as canções, balançava as mãos no ar quando era algo animado e se
derretia quando ficava triste. Quando o filme estava quase acabando, ela
encostou-se de volta.
— Freya? — Me chamou, erguendo os olhinhos para me encarar.
— Sim, Blair?
— Será que pode me abraçar?
— É claro. — Sorrindo, lhe dei um aceno e abri os braços, indicando
que podia se aconchegar.
— Eu espero que você viva bastante com Siriu.
Suspirei. Definitivamente pensávamos parecido.
— Eu também, mas porque você quer isso?
— Sei lá. — Sorri ao sentir o movimento dos bracinhos mais uma vez
erguendo. — Acho que se você ficar por perto quando eu precisar me
esconder no quarto dele não ficarei mais sozinha.
Eu não sabia o que dizer. Geralmente sempre dizia algo em retorno ao
que me falavam, a menos que fosse proibida de responder, mas não soube o
que devolver a garotinha naquele momento. O que ela gostaria de ouvir?
Por que precisaria se esconder e por que no quarto dele? Eu queria
perguntar, mas tive a sensação de que não era preciso. Embora ainda tivesse
dificuldade em muitas coisas, conseguia compreender outras. Como o fato de
que talvez ela buscasse segurança em Siriu da mesma forma que eu fazia.
Mas também, um pensamento ruim me bateu. Será que Siriu... não. Eu
não achava isso. Demeron não confiaria em um homem que era como Kazel
me buscar na cadeia. Eu precisava confiar nisso.
Eu a abracei, lhe ajudei a encontrar comida e assisti um filme com ela.
Franzi o cenho ao perceber que nunca fiz nada nem sequer próximo
daquilo com as meninas que cuidei poucas vezes nas Kambarys. Elas eram do
tamanho de Blair ou apenas um pouco maiores, mas não me olhavam nos
olhos e não falavam. Será que sabiam falar?
Decidi perguntar a Onira ou Kirina.
Olhei para baixo, a fim de dizer algo a Blair, mas seus olhos estavam
fechados. Os punhos apertavam a frente da minha camisa curta e o rostinho
todo franzido mesmo em seu sono me preocupou.
Será que tinha pesadelos como eu?
— Oh, Blair... — sussurrei, empurrando seus cabelos para trás.
Será que não era tão diferente assim das garotinhas na Kambarys?
"Estou no limite e estou gritando o meu nome
Porque meu eco é a única voz que volta
Minha sombra é a única amiga que tenho"
JASON WALKER, ECHO
As mensagens em meu celular teriam que esperar, pois depois de uma
última reunião com os juízes da Corte eu não tinha cabeça para nada além de
voltar ao apartamento e tentar dormir um pouco. Ou apenas só ficar por lá
sozinho e no silêncio que me esperava.
Tinha que lidar com Freya, mas bastava mandar que ficasse fora do meu
quarto e ela faria isso. Eu cuidaria de sua... situação pela manhã. A conversa
com Demeron não me perturbou, portanto, meus planos continuavam os
mesmos.
O porteiro não olhou para cima ao me ver, como eu esperava e na subida
até meu apartamento fui tirando a gravata, terno e livrando-me do homem
que precisava ser fora das portas. Embora aquela não fosse exatamente a
minha casa eu me sentia confortável em qualquer lugar que fosse meu.
O pensamento de poder me esconder na periferia isolado quando tudo
aquilo acabasse serviu como calmante, como sempre acontecia.
Agora temos ela.
As sombras sussurraram e fechei os olhos, livrando-me da voz
insuportável. Quando cheguei em frente ao meu apartamento não foi preciso
usar as chaves. Assim que toquei na maçaneta a porta se abriu. Fiquei em
alerta. Teria Freya saído?
Eu não tinha dado a ela ordens de ficar em casa e devido ao seu histórico
de fugas, me preocupei que tivesse saído. Kazel não seria tão bom em achá-la
tão rapidamente, ele não tinha mais todos os contatos depois do estrago que
Demeron fez ao invadir a Kambarys. Seus sócios estavam com medo e os
membros aterrorizados de que seus segredos vazassem.
Que político gostaria que o mundo soubesse o quanto apreciava
penitenciar crianças e que ator gostaria de ser acusado de preferir se divertir
estuprando mulheres drogadas?
Não.
Kazel estava fraco e com um pouco mais de tempo, estaria sozinho.
Mudié não ficaria firme eternamente, não quando visse que o Quinto Reitch
não aconteceria.
Tranquei a porta, explorando minha casa a fim de encontrá-la, já
pegando o celular do bolso para ligar para meus contatos de emergência, mas
não foi preciso. Na verdade, precisei encostar por um momento numa coluna
da sala, sendo assaltado pela imagem de Freya dormindo com uma Blair
desmaiada em seus braços.
Eu tinha diversas perguntas, mas por alguns minutos só consegui ficar
ali parado e absorver tal imagem. Inesperado. Poucas coisas tinham o poder
de me assustar, mas aquilo... aquilo foi novo. Embora não entendesse como a
cena se desencadeou, os sussurros das sombras tornaram-se gritos.
Nossa.
Pertencer.
Lar.
Apertei os olhos fechados, esfregando o rosto e jogando as chaves no
balcão. O barulho as assustou fazendo Blair se movimentar e voltar a dormir,
mas Freya levantou-se num pulo, olhando ao redor até que seus olhos se
acostumaram a escuridão que embebia a sala. A televisão ligada passava um
desenho infantil, mostrando que Blair estava ali há um bom tempo.
— Meu senhor. — Ela murmurou, conferindo uma Blair ainda
adormecida antes de se levantar e ajeitar a menina nas almofadas, vindo
lentamente para mim. — Não sabia se voltaria para a casa.
Para a casa.
— Por que eu não voltaria?
— Eu não sei. Quando acordei não estava aqui. Procurei pelo senhor. —
Baixou os olhos. — Entrei em seu quarto.
— Entrou?
Ela simplesmente acenou. Imagens da pequena mulher entrando em meu
quarto, procurando por mim mexeram com minha mente ou melhor, com o
meu corpo mais do que deveria.
— Sinto muito, eu não sabia o que fazer.
— Precisa me perguntar antes de entrar em meu espaço pessoal, Freya.
Sabe disso, não é?
Baixando a cabeça, Freya me olhou através dos cílios.
— Eu sei. Serei punida?
Pelas mãos inquietas, respiração rasa e o sussurro rouco, percebi que ela
queria. Na verdade, ainda que todos os sinais visíveis não estivessem lá, eu a
reconhecia. Reconheceria a necessidade que a corroía ainda que nada fosse
dito.
— Não, não será. Não desta vez. — Levou tudo de mim para ignorar a
decepção explícita no rosto. — E ela?
Parecendo se lembrar que Blair estava ali, Freya rapidamente começou a
se explicar.
— Essa garotinha chegou e ela sabia o seu nome. Ela entrou e... e ficou.
— Ela te disse quem é?
— Apenas seu nome, mas ela falava do senhor como se o conhecesse.
Ela parecia próxima.
— Ela é filha de Regnar e Kaladia. Sabe como ela chegou aqui?
Freya pensou por um minuto, balançando a cabeça.
— Não lhe perguntei. Quer dizer... conversamos muito e ela é adorável,
mas não sei nada. Ela apenas apareceu e entrou.
— Muito bem — suspirei. — Você não deve abrir a porta.
— Para ninguém?
— Para ninguém.
— Mas e o senhor?
— Eu tenho a chave.
— E... e se Onira aparecer? Ou Demeron? Ou Kirina?
— Quando a campainha tocar ou alguém bater na porta você deve ir
para o seu quarto, entrar no closet e ficar escondida até que eu volte. Se for
Demeron, Onira ou Kirina eles podem esperar.
— Mas por quê?
— Você não está segura. Kazel está tentando encontrá-la e não vou
deixá-lo ter sucesso.
— Mas... mas e se o senhor levar muito tempo para voltar?
— Não se preocupe, apenas faça o que eu digo. Certo?
Embora estivesse confusa ela precisava saber que eu cuidaria do que
fosse preciso. Instalaria câmeras na porta e deixaria alguém vigiando, assim
que alguma presença não solicitada fosse anunciada eu voltaria para lidar.
— Tudo bem. Mesmo Blair?
— Blair não voltará. — Eu pretendia enfiar na cabeça de Kaladia de
uma vez que sua filha era dela e de seu marido para cuidar. Não eu. Eu já
precisava garantir que Freya estivesse segura, acrescentar Blair a lista sem
uma necessidade não funcionava para mim.
— Meu senhor. — Seus dedos rodearam meu pulso, dando-me um olhar
estranho. Inseguro. — Tenho permissão para perguntar algo?
— Sim, você tem. — Ela levou um momento para prosseguir, mordeu os
lábios levemente feridos e baixou os olhos. — Freya, olhe para mim. —
Obedeceu. — Pergunte o que quer saber.
— O senhor... — Engoliu em seco. — O senhor a tocou?
Minhas sobrancelhas saltaram e minha pele se arrepiou na compreensão
de sua pergunta. Ânsia me dominou e precisei de um momento antes de
responder.
— Que pergunta é essa?
— Eu apenas preciso saber.
Inferno.
— Vá para o seu quarto. Cuidarei de Blair a partir daqui.
Seus olhos arregalaram.
— Meu senhor, não a puna. Ela não me disse nada, eu apenas...
— Quarto. Agora.
Ela lançou um olhar aterrorizado para Blair, alheia a tudo enquanto
ainda dormia. Então, surpreendendo-me, uma lágrima rolou pela bochecha de
Freya e ela balançou a cabeça.
— Sinto muito — sussurrou. — Não posso deixar isso acontecer. Não
outra vez.
Puxando uma longa respiração, eu tirei seus dedos do meu braço e
trouxe as mãos para o meu peito, olhando nos olhos amarelos marejados.
— Eu não a toquei e jamais faria isso. Vá para o seu quarto. Eu falarei
com você mais tarde.
Deixei olhar em meus olhos por um momento, talvez ela buscasse a
confirmação de minhas palavras. Eu não sabia se encontrou ou só entendeu
que não adiantaria relutar comigo, mas deu um único aceno e virou-se para ir
a seu quarto como eu mandei.
Esperei o som da porta fechando e quando o fez, caminhei até o sofá,
sentando-me a um bom espaço de Blair. Toquei o braço fino dando uma leve
balançada enquanto chamava seu nome. A presença de Freya me impediu de
gritar para que acordasse de uma vez como eu teria feito.
“Você já a tocou?”
Fechei os olhos sabendo que o único motivo de ter me perguntado
aquilo era porque naquela mesma idade ela foi tocada muitas vezes.
“Não posso deixar isso acontecer. Não outra vez.”
A constatação de que viu outras garotas sendo tocadas da mesma forma
que ela, não me surpreendeu. Eu sabia do que Kazel era capaz. Não vi com
meus próprios olhos? Não foi por isso que o abandonei?
Meu único erro foi não ter destruído tudo quando tive a chance, e passar
décadas esperando uma nova estava me cansando.
Blair era tão pequena, indefesa, via bondade em tudo. Mesmo em mim.
Eu não conseguia imaginar como um homem da minha idade ou
tamanho, até mesmo mais jovens e mais velhos conseguiam olhá-la como
uma mulher era olhada. Tocá-la com a força que tocavam uma adulta, desejá-
la como se fosse normal. Como se ela não fosse essa pequena criatura que
precisava ser protegida.
“É um tipo de lugar seguro, eu não sei. Regnar e eu brigamos uma vez e
eu a mandei ir para um lugar seguro, depois a encontrei aqui, dormindo
naquele seu sofá do closet. Ela vem pra cá desde então.”
— Vou acabar com aquilo — sussurrei. — Vou pará-lo, eu prometo.
— Acabar com o que? — A voz fina me fez abrir os olhos. Blair
encarava-me com os olhos redondos bem abertos e curiosos.
— Blair — falei, levantando-me. — Está na hora de ir.
— Já?
— Sim. — Comecei a ligar para Kaladia, mas ninguém atendeu. Então
tentei Regnar, tendo a mesma resposta. — Como chegou aqui?
— Mamãe me trouxe.
— Por qual motivo?
A menina encolheu os ombros, bocejando.
— Ela tinha coisas que precisava fazer.
O conhecimento me irritou. Kaladia estava me tirando do sério jogando
sua filha e responsabilidade para cima de mim. Eu não era a porra de uma
babá.
— Blair — falei lentamente, mas algo em minha voz a alertou pois
pegou uma almofada e a abraçou. — Você precisa parar com isso. A próxima
vez que sua mãe tentar levá-la para mim você dirá que não quer ir.
— Mas eu quero. Eu posso ficar segura e escondida, Siriu. E agora
tenho a Freya que é muito boa comigo.
— Freya não ficará por muito tempo e você não a verá mais. Não depois
de hoje.
Os olhos redondos encheram d’água, derramando-as para fora.
— Não, por favor, Siriu — sussurrou. — Mamãe e papai brigam. Eles
nunca estão em casa e eu fico sozinha.
— Quem disse a sua mãe que eu estava aqui?
— Eu não sei.
— Blair, não minta para mim.
Ela pareceu pensar por um momento, franzindo o rosto e apertando mais
a almofada.
— Ela foi até sua outra casa e depois em outra, daí paramos aqui.
Kaladia saber meus endereços não me surpreendeu. A mulher era uma
maldita espiã e tinha experiência em seguir e rastrear, afinal, praticava ambas
as coisas com Regnar mais do que se desejavam “bom dia”.
— Certo. Você ficará aqui e eu vou ligar para a sua mãe vir te buscar.
— Ela disse que eu dormiria aqui.
— Porra — murmurei, levantando-me e pegando o celular. — Se você
trouxe algo, já arrume. Está na hora de ir para a casa.
Quando ele entrou no quarto eu não tinha certeza se estava autorizada a
falar, mas mesmo que tentasse me conter a pergunta escapou para fora de
qualquer maneira.
— Blair está bem?
Havia uma seriedade em seus olhos gélidos ao tempo que me observava
sem piscar, entrando no quarto que me foi cedido e puxando a poltrona do
canto para a frente da cama. Ele se sentou e cruzou as pernas sem tirar os
olhos de mim.
— Meu senhor...
— Blair está bem. Um funcionário da mansão veio buscá-la.
Suspirei em alívio. Mesmo que já tivesse me dito que não a tocara e
nunca faria tal coisa, por algum motivo eu estava aterrorizada que a
menininha tão pequena e jovem sofresse de qualquer forma. Eu sabia que a
crueldade de alguns homens não os impedia de agir, nem se importavam com
o quão fácil ela seria de quebrar. Alguns até apreciariam tamanha fragilidade.
Que Siriu não seja um desses homens, por favor...
Ele devia ter lido as dúvidas em meu rosto, pois sua expressão tornou-se
ainda mais dura.
— Freya, sobre o que me perguntou naquela hora...
— Sinto muito, meu senhor — falei baixo, mas firme.
— Já não lhe disse para não me interromper? — Apenas acenei e ele
continuou. — Eu sei o que você passou nas Kambarys, nas mãos dele. Eu não
sou como aqueles homens e mesmo que insista em me comparar a Kazel
Maraba, não temos nada em comum. Eu não estupro mulheres drogadas, não
abuso de crianças, não torturo homens inocentes. Sou um monstro, Freya,
mas não como ele.
— Como pode dizer que não é como ele, mas ainda se considerar um
monstro?
Ele pensou por um momento, desviando o olhar para fora, no exterior
escuro.
— Porque me reconheço. Simplesmente sei.
Quando ele se levantou, eu o segui.
— Não acho que seja um monstro. Um monstro não teria me deixado
ficar aqui e Blair não buscaria proteção no senhor.
— Não coloque esperanças em mim, Freya. Vou te dar um conselho e
este será o único. Espere sempre o pior da minha parte, não sonhe, não se
iluda e não crie expectativas. Eu sou o que sou e nada mudará isso.
— Eu sei. Eu sei e isso é o que me fez vir para o senhor todas as vezes.
— Qual o motivo? Todos lhe dizerem que não sou um bom homem
causou o efeito contrário e você quis exatamente por isso?
— Não, eu já lhe disse que vim por algo a mais.
— Você veio buscar a dor, a humilhação e o sexo como conhece a sua
vida toda.
— Eu vim servir o meu propósito.
— Me servir? Eu não vou te dar a outros homens para ser estuprada, não
vou torturá-la dolorosamente sem um propósito bom no final. Não serei como
Kazel.
— Eu sei.
— Então por que, Freya? Diga-me o motivo que veio.
— Porque sei que o senhor é o homem de quem ele falava!
Ele estreitou os olhos, fitando-me com confusão.
— O quê?
— Ele falava de um irmão. Um demônio igual a ele que cairia em si e
voltaria para a casa. Que seríamos felizes nós três juntos. Ele me deixou
dormir em sua suíte uma vez e ao lado de sua cama havia uma foto. Ele era
mais jovem e havia um outro rapaz ao seu lado. Ele era loiro e tinha olhos
azuis brilhantes. — Siriu olhou para fora novamente. — Quando Demeron
me deixou na mansão e eu lhe vi, sabia que era o demônio de quem meu
mest... Kazel falava. Era o homem da fotografia.
— O que mais ele lhe falou? — Sua voz era rouca, quebrada.
— Nada além disso. Eu nunca perguntei sobre a foto. Quando acordei na
manhã seguinte ela não estava mais lá, então sabia que era algo que eu não
deveria ter visto e nunca perguntei a ele. Ele te amava, meu senhor.
— Por isso perguntou se já toquei Blair?
— Sim.
— E ainda sabendo que eu era o demônio veio até mim? — Aproximou-
se outra vez. Segurou meu queixo e levou meus olhos ao dele. Fúria lhe
corroía e vê-lo tão cheio de emoções quando era só uma casca a maior parte
do tempo me deixou imóvel.
— Sim.
— Responda-me de uma vez — ordenou. — Por que veio?
— Porque sinto falta da minha casa. — As lágrimas começaram a
deslizar sem que eu percebesse. — Se Onira fosse tirada de Demeron, ela
sentiria falta dele, de seu trabalho, de seus amigos. Sentiria falta de abraços e
do carinho. Foi como ela cresceu. Eu fui levada do meu mestre, a única
família que tive desde que posso me lembrar. Longe da minha casa, dos meus
costumes. Eu não cresci com abraços e carinhos, cresci com castigos e sexo e
jogos perversos que meu mestre criava para mim. Mas é tudo o que conheço.
Como não buscaria você? — Fiz uma pausa quando seu olhar intenso tirou o
meu ar. — Como não viria atrás da outra parte da minha família?
Ele abriu a boca, mas nenhuma palavra saiu. Siriu continuou ali por
mais um curto momento antes de apontar para a cama.
— Durma, Freya.
Então ele virou e saiu.
"Porque você me teve bem aqui onde você me quis
Como uma onda de tsunami
A paisagem que nós construímos dentro de casa
No interior de nossas mentes
Nós estamos olhando em direção ao céu esperando por um sinal
Acima de nossos pescoços até que o dia nos traga luz
E toda nossa vida está piscando diante de nossos olhos
E nós estamos mudos"
MORNING PARADE, SPEECHLESS
Abrindo os olhos, peguei minha arma debaixo do travesseiro e pulei
para o fora da cama. Fazendo uma rápida varredura do quarto escuro me vi
sozinho, mas o estrondo que me acordou não vinha de muito longe.
Freya.
Sem tempo para vestir uma roupa, saí do quarto com a pistola em punho
e olhos alertas, quem quer que estivesse fazendo aquele movimento ridículo e
barulhento ou estava usando como distração ou era estúpido. Minha nudez
não me impediria de quebrar pescoços ou colocar uma bala na cabeça dos
desgraçados que ousaram invadir a minha casa.
Kazel definitivamente estava ficando burro. Mais do que sempre foi.
O barulho persistia quando adentrei o corredor e um gemido de dor
flutuou no ar.
Eles já a pegaram.
Comecei a correr, sabendo que todo segundo era precioso no momento
de...
Parei no meio do corredor.
Sentada no chão do banheiro social com lágrimas pelo rosto e a pele
vermelha, Freya me fitou com um semblante aterrorizado. Não. Doloroso.
Seria mais um pesadelo? Seus olhos então desceram pelo o meu corpo,
alargando ao se deparar com minha nudez. Saindo do estranho torpor puxei
uma toalha do armário e a enrolei na cintura, deixei a arma na pia e corri para
verificá-la.
— Freya, o que houve?
— Sinto muito ter lhe acordado, meu senhor — sussurrou, soltando um
gemido misturado em um soluço. — E por todo o barulho.
Segurei seu rosto molhado, fazendo uma varredura para conferir se tinha
algum ferimento ou era apenas o pesadelo surtindo efeito.
— Não se preocupe com isso. — Olhei para baixo onde o vestido se
acumulava na cintura. — Você precisa de alívio?
— Eu estou bem — respondeu, mas o rosto apertando-se numa
expressão de tortura disse o contrário.
Cuide dela.
— Diga-me o que está errado.
Ela soluçou novamente, levantou a mão esquerda até então escondida
pelo vestido.
— Pelos portões de Valhala — amaldiçoei, engolindo em seco ao ver
sua mão destruída. Sem saber como tocá-la ou o que fazer, encarei os olhos
sôfregos e alisei seus cabelos para trás. — Como isso aconteceu, reinheit?
— Não estava doendo, então eu lavei, mas a-agora dói. D-dói tanto, meu
senhor. Sinto muito, sinto muito.
— Não precisa se desculpar, vamos cuidar disso. — Passei os braços por
baixo dela, pegando-a e levando até o sofá na sala.
Era uma queimadura, a pele estava cheia de bolhas, completamente
fodida de danificada. Parecia ter sido ateado fogo em sua palma. Havia
sangue seco e fresco cobrindo as feridas. Não havia uma parte salva.
— Eu só queria fazer seu café da manhã — sussurrou, deixando mais
uma lágrima escorrer.
Porra!
Olhando para fora, vi que já estava quase amanhecendo. O relógio
marcava 4:53. Eu dormi tanto? Há muito tempo não dormia tantas horas
seguidas.
— Sim, reinheit, fique sentada aqui.
Corri de volta para o quarto atrás do meu telefone e recuperei a pistola
no banheiro. Buscando o número que precisava na agenda, o chamei e
levaram quatro toques até que atendesse.
— Sim?
— Você está na cidade?
— Isso depende. Vou ter que costurar alguma abominação que você
causou?
— Não, porra. Vai ajudar uma pessoa que precisa.
O médico do outro lado bufou.
— Sim, bem, as pessoas que você me traz sempre precisam.
— Vou chamar outro.
— Não, espere. Na mansão?
— Vou enviar o endereço. Venha sozinho.
Desligando, o joguei na mesa de centro e voltei para Freya.
— É Demeron — declarou. — Ele vai vir me buscar para levar-me
embora, não é?
De jeito nenhum.
— Você não vai a lugar algum, Freya. Eu estava falando com um
médico que virá tratar sua mão.
— Mas... — Franziu a testa. — Como ainda vai me deixar ficar? Não
sou mais tão bonita.
Respirei profundamente, impedindo-me de ir até a Rússia e quebrar a
cara de Roman até que me dissesse onde Style Tieko estava para eu poder ir
até ele e obrigar o filho da puta a me levar até Kazel.
— Você é bonita — falei com mais aspereza do que pretendia. —
Continua sendo perfeita — amaciei a voz. — Não vou mandá-la embora por
um ferimento, mas preciso que me diga como aconteceu.
— Eu quis preparar algo para que comesse. Era um agradecimento por
me abrigar. Eu acendi o fogo e comecei a procurar panelas e comida. —
Fechou os olhos. — Fui tão estúpida. Apoiei a mão em cima do fogo para
abrir a porta do armário de cima e esqueci completamente do fogo aceso. E-
eu...
— Tudo bem. Está tudo bem.
A ideia de que se machucou tão gravemente enquanto tentava fazer algo
bom para mim me atingiu de tantas formas. Eu queria gritar e puni-la, ao
mesmo tempo que queria cuidar dela sem precisar chamar mais alguém e
depois agradecer por tentar fazer algo por mim.
O que faremos com você, Freya?
As sombras sussurraram em minha mente, mas eu não tentei acalmá-las,
pelo contrário, as deixei subir a superfície, porque pela primeira vez eu não
sabia o que fazer.
— Não tinha nenhuma comida — sussurrei, observando-o me encarar
sem ação.
Seus olhos desviavam da minha mão para meu rosto. Eu já tinha sido
machucada muitas vezes, mas meu mestre nunca reagiu daquela forma.
Encarei minha mão, agoniando-me com o quão feio parecia. Arruinada. A
ardência era grande, mas na hora que queimou não doeu. Não senti nada e
estranhei. Meus incontáveis machucados nunca ficaram gravados na pele,
pois o mestre me queria perfeita.
O que ele diria se visse aquela imperfeição?
— Eu vou resolver isso — disse ele. — Comprarei comida. Você ficou
sem nada desde ontem, não pensei nisso. — Franziu o cenho.
— Eu estou acostumada, meu senhor. Nunca tive muitas refeições.
Onira começou a me alimentar mais vezes, mas sempre vivi com pouco.
Seus olhos estreitaram.
— Pouco quanto?
— Acho que um prato por dia quando estava nas Kambarys. Dois
quando o mestre me levava ao seu quarto e queria jantar, assim eu o
acompanhava.
— Por isso é tão pequena — rosnou, sobressaltando-me. — Aquele filho
da puta. Nós vamos corrigir isso. Três refeições por dia no mínimo.
Arregalei os olhos.
— Isso é demais.
— Não, não é.
— Mas como vou... o senhor sabe...
— O quê?
— Como vou... servi-lo se comer tanto?
Siriu inclinou a cabeça.
— O que tem a ver?
Uma pequena chama se acendeu em mim quando não negou que iria
servir a ele.
— Kazel — falei lentamente, não querendo despertar a fúria que sempre
o acometia quando eu falava de meu antigo mestre. — Ele não queria correr o
risco dos meus fluídos vazando durante as sessões e rituais.
— Fluídos?
— O senhor sabe... — Baixei a cabeça para o meu colo. — Vômito e
minhas necessidades fisiológicas.
Um minuto de silêncio se passou antes que Siriu se afastasse de mim e
pegasse um vaso de flores vazio da mesa, atirando-o contra a janela. Eu pulei,
sem me afastar, mas também não conseguindo desviar o olhar de sua fúria
expandindo-se para fora.
Será que me machucaria?
Não. Eu não achava possível.
Afinal, ele queria me proteger, certo?
— Desculpe-me. — Cerrou os punhos, falando entredentes. — Minha
raiva não é contra você. Todo o meu ódio se dirige a Kazel. — Ele fechou os
olhos brevemente e eu me levantei, sentindo que precisava me aproximar e
tocá-lo. Tentar acalmá-lo de alguma forma. Siriu pareceu ver minhas
intenções, pois balançou a cabeça. — Vou me vestir antes que o médico
chegue. Não vá até a janela, os cacos do vaso podem machucá-la... mais.
Ele passou por mim e esperei para ouvir a porta ser fechada, mas não
aconteceu. Fiquei tentada a ir até lá espiar enquanto se vestia. Buscar mais
um vislumbre de sua pele surpreendentemente beijada pelo sol e o grande
corpo. Quando ele entrou no banheiro nu, fiquei sem palavras. Era lindo.
Grande. Parecia um show em exibição.
Em minha vida eu vi incontáveis homens despidos. Senti mais órgãos
sexuais em mim do que a maioria das garotas que trabalhavam no clube de
Kirina, mas havia algo em Siriu Konstantinova que mais uma vez me fazia
pensar que ele era diferente de todos os demais.
Talvez porque eu cresci ouvindo histórias sobre ele, apenas imaginando
o seu rosto até que finalmente o vi aquele dia na foto do quarto de Kazel.
Eu sonhei com os olhos do demônio que meu mestre contava e esperei
por ele chegar para se juntar a nós. Nunca poderia imaginar que Siriu não era
como Kazel. Por que aquela foto existia, afinal?
Siriu claramente odiava Kazel, mas já foram próximos um dia e aquele
retrato era a prova.
Um laço.
Eles tinham um laço que eu quis desesperadamente fazer parte por anos
e anos.
— O médico é intrometido e curioso, portanto, não saia respondendo
todas as perguntas dele. Para a sua segurança. — Me virei para vê-lo entrar
novamente. Estava vestido com uma calça preta e uma camisa de mangas
longas também em cores escuras. Ele passava um pequeno pente pela barba,
tentando ajeitá-la quando se sentou na poltrona a minha frente.
Eu estava de pé antes de pudesse pensar sobre e me aproximei dele.
— Meu senhor... deixe-me fazer isso?
Ele parou. Encarou-me com aqueles olhos azuis estreitos por um
momento que pareceu interminável. Parecia que de repente, estava dentro de
mim, vendo cada pensamento, sentindo tudo o que eu sentia e desvendando
cada segredo que eu não fazia questão de esconder, nem mesmo tentava.
Finalmente inclinou o objeto para mim e eu o peguei. Nossos dedos se
tocaram e eu viajei para a noite anterior, quando aqueles mesmos dedos me
aliviaram da dor, me mostrando o que era receber água depois de uma década
no deserto.
Seus olhos voaram na mesma direção e depois bateram de volta em meu
rosto.
Me aproximei um pouco mais e ele afastou as pernas, deixando-me
entrar entre elas, onde me acomodei e fiz um movimento para erguer a outra
mão, esquecendo por um segundo do ferimento. Siriu segurou meu braço
antes que eu o tocasse, abaixando meu braço de volta para o lado do corpo.
— Não se machuque mais, não por mim.
Eu assenti de boca ligeiramente aberta.
— Sim, meu senhor — sussurrei.
Antes de começar a pentear sua barba, acariciei de sua orelha até o
queixo, deixando meu polegar esfregar bem abaixo do lábio. Como eu queria
senti-los...
Fosse em minha boca, meu ombro, no vale entre minhas pernas...
Qualquer toque daqueles lábios seria o suficiente.
Penteei os pelos de seu rosto com delicadeza, mostrando a ele que eu
podia servi-lo nas coisas mais simples, que ansiava por aquilo. Ele não tirou
seus olhos de mim. Continuava me observando mesmo quando minha
respiração engatava e meu peito inchava, contendo dentro de mim o quão
importante aquele momento era.
Mas, de repente, como tudo em minha vida, o momento bom se esvaiu
assim que a campainha tocou.
Ele não desviou sua atenção do meu rosto por alguns segundos ainda,
deixando-me passar o pente mais quatro vezes antes de segurar meu pulso e
levar minha mão até seus lábios, onde beijou a ponta de cada dedo e me
soltou.
A campainha tocou novamente, fazendo-o amaldiçoar algo que não
entendi e se levantou, seu corpo enorme colando a minha frente. Dei um
passo relutante para trás.
— Mais tarde — falou baixo, tão próximo ao meu ouvido que arrepios
irromperam pelo corpo inteiro.
Olhei por entre os cílios, mostrando um pequeno e animado sorriso
quando assenti e voltei ao sofá. O homem mais velho entrou sem muita
conversa. Era sério, calado e com apenas um aceno para Siriu começou a
trabalhar em minha mão.
— Olá. — O cumprimentei.
Ele olhou de relance para Siriu que permaneceu em pé a alguns metros
observando cada movimento do homem e me ignorou. Desviando os meus
olhos para o meu protetor, vi que sua feição era completamente diferente
daquela de apenas dois minutos atrás.
Resolvi ficar calada, seguindo o aviso que tinha me dado antes do
médico chegar. Pelos próximos dez minutos o homem virou minha mão, tirou
coisas de sua maleta e cuidou de meu ferimento. Não era novo para mim ser
cuidada por curandeiros que não podiam falar comigo. Nas Kambarys e
mesmo na casa de Kazel eu era ignorada por todos.
Nem mesmo as servas que por vezes precisavam cuidar de algo para
mim falavam comigo. Estavam aterrorizadas demais para até mesmo olhar
em minha direção.
— Aí está — disse o doutor quando terminou de analisar minha mão e
se afastou para mexer em algo em sua maleta. — Como eu suspeitava é uma
queimadura de terceiro grau. Quero que ela vá até a clínica imediatamente e
fique em observação. Os ferimentos estão expostos e preciso de mais material
para tratar disso antes que fique pior.
— Sem chances. — Siriu respondeu a ele.
— Ela precisa de cuidados intensivos, Siriu. Posso preparar tudo na
clínica e no máximo amanhã de manhã ela poderá voltar para... hum...
— Casa. Para a casa.
— Sim, certo. — O curandeiro me fitou pela primeira vez e havia tanta
pena em seus olhos que me deixou desconfortável. — Pode causar sérios
problemas a sua saúde se não for observada de perto.
Siriu me analisou por um momento, como se considerando me deixar ir
ou não. Eu não queria, já sobrevivi com coisas mais graves que aquilo. Não
queria que aquele homem me levasse a lugar algum.
— Meu senhor... — Comecei a falar.
— A levarei. — Ele decretou e fitou o médico. — Ninguém deve saber
que ela está lá. Não quero registro, vou apagar as gravações das câmeras e
suas enfermeiras devem sair.
— Não posso fazer isso — rebateu com indignação. — Concordo com
os registros e as gravações, mas tenho outros pacientes que precisam de
cuidados. Se minhas enfermeiras ou até recepcionistas saírem aquele lugar
virará um caos.
— Tem uma porta dos fundos?
— Sim.
— Entraremos por ela. Uma enfermeira para Freya e apenas você cuida
dela. Ninguém mais a verá.
O médico assentiu, fechando sua mala e caminhando até a porta.
— Esperarei vocês.
“Não me deixe atrás das memórias
Não olhe para minhas lágrimas que não podem te segurar
Apenas não vá
Quando o inverno passar, a primavera virá de novo
Minha vida vai estar bem sem você?
Até o dia em que nos encontrarmos de novo”
2NE1, GOODBYE
— Ela é alguém. — A voz de Liémen me deteve quando coloquei o pé
fora da clínica.
Virei para encará-lo. Os olhos sempre cobertos por óculos escuros não
me deixavam ver nada. Inclusive se havia me seguido e visto Freya. Não
havia ponto em negar, qualquer um podia ver que entrei com uma mulher e
estava saindo sem ela.
— Ela é alguém — confirmei. — Mas não alguém para mim.
Um sorriso lento espalhou em seus lábios.
— Sua devoção nunca alcançou alguma mulher além de Kirina e se essa
nova atração em particular lhe faz vir a uma clínica privada quando deveria
estar se encontrando comigo e Ward, não vou deixar passar.
— Está perdendo o seu tempo. — Como para confirmar minhas palavras
comecei a me afastar e ele seguiu de perto, sua risada flutuando entre nós.
— Eu duvido disso.
— Pare de tentar encontrar rachaduras em mim, Liémen.
— Meu caro, pensei que fossemos amigos?
— E somos. — Virei para ele antes de entrar no carro. — É por isso que
deixarei livre dessa vez, mas se tentar interferir em meus negócios novamente
vou matá-lo.
Com um sorriso, Liémen assentiu e abriu a porta do passageiro, tomando
o assento ao meu lado.
— Ward nos encontrará na Oben.
— Devíamos ter usado a peruca. Quer dizer... você devia.
Revirei os olhos para o contínuo sermão de colega de trabalho e fingi
que não ouvi, apenas para continuar dançando. Talvez assim as pessoas que
me reconheciam e me paravam para pedir autógrafos e fotos perceberiam que
eu estava ocupada. Tudo o que eu queria era um dia de diversão antes de
precisar começar a trabalhar junto a minha equipe para a turnê mundial que
estava chegando.
Quando ela sugeriu a Oben, tudo o que eu podia pensar era: claro, por
que não?
Bem, ali estava o motivo em neon, grande e sonoro não. Se dancei uma
música inteira sem ser parada foi muito. Que ideia idiota.
— É sério, Naya. — Ela continuou. — Podemos pelo menos ir para área
exclusiva.
Qual a graça?
Soltando um grito quando a música mudou para uma das minhas
favoritas, dei um giro em torno de mim mesma com as mãos no alto e sorri
para ela. Depois de hoje, eu sei que nunca mais sairia comigo. As meninas da
equipe achavam divertido sair comigo, até que elas saiam e viam que não era
tão legal assim.
— Eu não quero exclusividade, quero dançar na pista de dança de uma
das melhores baladas de Berlim e não ser atrapalhada, por isto você não vai
conseguir me levar para fora daqui.
— Bem, é um sonho impossível.
Parei de dançar e lhe dei um olhar que deixava claro minha infelicidade
com sua insistência.
— Vou conseguir uma bebida.
Ela começou a me seguir, mas a parei com o movimento de mão e um
sorriso forçado.
— Fique aqui para não perdermos o lugar. — Foi uma desculpa de
merda, mas ela deu de ombros e voltou para lá, dançando.
Enquanto avançava para o bar notei meu segurança, Jemery um pouco
mais distante, mas com os olhos cravados em mim. O bar estava cheio assim
como toda a boate. O lugar era explosivo e estritamente elitizado, só a nata de
Berlim tinha acesso e não era por qualquer contrato ou regra, mas pelo
dinheiro desembolsado apenas para estar ali dentro.
Dispensei dois caras que vieram com cantadas e papo furado e continuei
esperando que o barman viesse em minha direção. O rapaz estava sozinho e
parecia sobrecarregado. Coitado. Ele levaria uma vida para acalmar todo teor
alcoólico esperando para fazer os pedidos.
Olhei para pista novamente vendo minha amiga ainda dançando e pensei
em meu noivo naquele momento lá em Los Angeles, acreditando que eu
estava aqui por uma série de coletivas de imprensa antes da turnê do novo
álbum. Saber que ele estava me traindo ou ver a traição em vídeo... qual era a
pior? Eu não sabia, as duas coisas me pareceram péssimas notícias, mas eu já
estava acostumada. Depois de corriqueiras decepções amorosas que não
quebraram meu coração e não serviram nem para me dar aquela famosa dor
afiada como se eu não pudesse respirar.
Eu nunca sentia. Nada era o suficiente. Depois dos incontáveis
namorados e noivados. Todas as decepções só serviram para criar escândalos
e minha equipe publicitária precisou trabalhar para abafar e nada respingar
em mim.
A namorada que aceitava os pedidos de casamento que vinham rápido
demais e o relacionamento terminava quando ela descobria alguma traição ou
algo que não valia a pena arrastar para dentro do matrimônio. Sim, essa era
eu.
Cheguei ao ponto de começar a entrar nos relacionamentos esperando
qual seria a próxima bomba, mas meu coração nunca estava na linha de
frente. Amava demais, me apaixonava muito fácil e acreditava que o cara que
estava comigo no momento era sempre o homem perfeito e acabava por virar
uma sopa de legumes diretamente enfiada a vácuo minha garganta abaixo.
Ainda assim, eu me descobri insensível em cada uma das vezes, lidando com
tudo melhor que a maioria teria.
Voltei a encarar o barman esperando a minha vez pacientemente quando
de repente um outro homem se aproximou para começar atender. Ele usava
apenas uma camisa social branca sem gravata e com os dois primeiros botões
abertos, o óculos de grau pendurado no bolso da calça jeans me fez sorrir e
observei quando depois de passar as mãos para arrastar os cabelos levemente
crescidos para trás das orelhas, ele arregaçou as mangas da camisa e falou
rapidamente com o outro barman antes de ir até as pessoas e começar a
atendê-las.
Eu não conseguia tirar meus olhos da beleza loira de olhos
concentrados. Era sério e parecia ridiculamente educado para um homem
trabalhando atrás de um bar. Não que eles não fossem educados, mas a
normalidade era que estivessem tão sem paciência de atender pessoas ricas
que não davam a mínima para ele ou responder quando ele cumprimentava
que paravam de se preocupar com cortesia e educação.
Pensei imediatamente que ele era bom demais para estar ali.
Eu não queria que ele estivesse ali.
Queria que fosse um dos clientes e que fosse ele a ter vindo falar comigo
no bar. Queria que soubesse que apenas sentar-me ao seu lado vendo-o
limpar os óculos na barra da camisa seria melhor que qualquer cantada que eu
levei aquela noite.
Ele varreu os olhos pelos clientes esperando ter sua bebida e os parou
em mim. Eu não disfarcei ou desviei o olhar, só continuei esperando para ver
o que ele me diria. Se sorriria, se ficaria convencido ou... uma opção ruim:
me reconheceria e essa seria a única motivação de devolver atenção.
— Olá. — Ele disse. De perto sua voz era mais grave, rouca e me fez
pensar que eu poderia cantar um dueto em minha cama em sua companhia.
Stanton... o nome do meu noivo piscou como luzes de Natal em minha
mente, mas eu tirei a tomada da energia apagando o lembrete e Stanton caiu
no esquecimento assim que aquela beleza atrás do bar sorriu um sorriso de
dentes perfeitos para mim.
— Olá. — Sorri de volta, inclinando-me descaradamente no balcão de
pedras preto.
Ele não disse nada por um momento. Ficou me olhando como eu o
olhava e por um minuto nos perdemos ali. Não tinha clientes, nem caras
chatos ou minha amiga dançando na pista e esperando bebidas.
Não.
Era só eu e o barman gostoso.
Eu citei meu noivo?
Não?
Bem, naquele momento ele já havia caído no esquecimento também.
— Eu nem o amo — argumentei comigo mesma e o loiro ergueu uma
sobrancelha.
— Não acho que temos esse drink aqui.
Eu dei risada, apoiando o rosto nas mãos. Cristo. Podia parecer mais
desesperada?
— O que vocês têm?
— Bem. — Ele olhou ao redor, deixando-me ver seu rosto de perfil e
fiquei com água na boca. — Temos uma seleção completa do melhor álcool,
mas eu como um bom barman devo dar dicas. Se está querendo ficar bêbada.
— Pegou uma garrafa e bateu na minha frente. — Tequila. Agora se quer só
um copo para enfeitar sua mão enquanto dança. — Pousou uma garrafa mais
delicada dessa vez. — Um vinho bem suave.
— Eu fico facilmente bêbada com vinho.
Ele riu.
— Então eu vou sugerir...
— Você — completei sua frase sem nenhuma vergonha.
— Eu?
— Sim, mas tenho certeza de que seus superiores não gostariam que
fizesse algo a uma cliente bem aqui no bar, então porque não me diz que
horas será o seu intervalo.
Ele não teve chance de responder, pois assim que abriu aquela linda
boca, um braço enrolou em minha cintura e minha amiga praticamente gritou
no meu ouvido.
— Que demora é essa só para algumas bebidas? — Então ela fitou o
barman. — Nos de dois Martini.
— Eu já volto para lá — falei. — Por que não me espera dançando?
Ela jogou a mão em desdém.
— Eu tenho uma mesa com dois gatos para nos sentarmos, não me faça
esperar.
Eu dei uma olhada no barman e ele fitou minha amiga sem nenhum
interesse antes de seu voltar para mim. Me senti imediatamente aquecida,
mesmo que o calor fosse grande lá dentro.
Eu definitivamente não trocaria ele por um cliente da casa. Me
conhecendo, eu já podia me ver rolando ladeira abaixo para uma paixão
rápida de uma noite que me deixaria inquieta pelos próximos dias e talvez
noiva por alguns meses, mas eu não conseguia tirar meus olhos dele.
— Eu vou ficar mais um pouco.
— Você ouviu o que eu disse? Dois caras, eu, você e uma mesa.
— Eu ouvi, mas estou fora. Tome cuidado com esses caras. Jeremy vai
ficar com você para garantir que estará segura.
— Mas... e você?
— Eu vou continuar minha conversa com esse rapaz.
Homem. Ele era um homem com H maiúsculo com M grande.
A essa altura ele já tinha esquecido os outros clientes a serem atendidos
e fixou sua atenção exclusivamente em mim.
Minha amiga se dignou a olhá-lo novamente e torceu o nariz sem
nenhum constrangimento.
— Ele é gostoso, mas querida... o barman? — falou baixinho. — Ele é o
barman. O cara que serve bebidas.
— Eu sei. — Sorri para ela e depois para ele. — E eu espero que me
sirva muito essa noite.
— Naya!
— Que tipo de garota eu seria se não o acompanhasse em seu intervalo?
O homem soltou o guardanapo e deu a volta no bar, ficando em minha
frente quando estendeu a mão. Não demorei a tomá-la, sentindo a pele quente
em contato com a minha. Dei um beijo no rosto da minha amiga e pisquei
para ela antes de ir. Fiz uma pausa, fazendo o homem parar também e acenei
para Jeremy, indicando-a.
Vi que ele não gostou, afinal, ela não era sua prioridade, mas eu
duvidava que ele tivesse vindo sozinho. Provavelmente tinha um segurança
vestido em roupas normais para me seguir sem que eu ou outras pessoas
percebesse.
— Onde estamos indo? — perguntei quando passamos por um corredor
e a escada de acesso à parte exclusiva da boate. Os seguranças o deixaram
entrar sem qualquer problema, me dando um aceno rápido e voltando a
controlar o acesso.
Sem que eu esperasse o homem parou de andar e me puxou para a sua
frente, colando seu corpo as minhas costas quando voltamos a andar, mas
antes sussurrou em meu ouvido:
— Curtir o meu intervalo.
Oh, sim, ok. Eu pedi por isso.
Ladeira abaixo muito mais rápido do que eu planejava.
Mas nós não paramos na área exclusiva. Havia uma porta escura
guardada por um outro segurança e passamos por ela.
— Nós vamos a cozinha ou algo assim?
Ele riu.
— Não temos uma cozinha aqui, liebe.
— Então o... — Parei de falar.
Parei de falar porque no momento seguinte ele abriu uma porta que dava
direto em um escritório com vista para baixo da boate. Um vidro a prova de
som nos dava uma visão perfeita da pista, do bar e da entrada.
Diferente de como lá fora era escuro, a sala estava decorada com tons
claros, iluminada e profissional. Era o escritório.
— Hum... Não acho que deveríamos estar aqui.
— E por que não?
—Por mais rica que eu seja não quero pagar os processos de invadir isso
aqui.
Ele riu mais uma vez, encostando-se a beira da mesa e me puxando
junto, assim eu estava entre suas pernas.
— Você não sabe, não é? — Franzi o cenho. — Eu sou Kurton Ward. —
Ele estendeu a mão, pegou a minha e a beijou. — O dono da Oben.
— O-o que? Mas você — apontei para o vidro. — Você estava lá
embaixo servindo e...
— É o último turno antes de fecharmos em exatamente... — Ele olhou
seu relógio muito caro de pulso. — 20 minutos. O rapaz estava trabalhando
sozinho porque a garota que cobre o turno passou mal e precisava de alguns
minutos. Se a senhorita não estivesse me secando ia perceber que ela entrou
pouco depois de mim.
Eu não sabia o que dizer.
— Agora, vai curtir meu intervalo comigo? — Ele colocou o óculos de
volta e uma imagem vívida de eu sentando em seu rosto sem nenhuma roupa
rolou em minha mente. Tinha um o toque de um sorriso no rosto que me fez
sorrir também.
Eu não sabia o que dizer, mas sabia o que fazer.
Eu o beijei.
— O bastardo não vai abrir, porra.
Liémen bateu na porta do escritório de Kurton mais uma vez e esperou.
— O segurança disse que ele entrou há quarenta minutos e não saiu —
falei.
— Provavelmente está fodendo alguma puta.
Exalei e me sentei no sofá de dois lugares em frente a porta.
— Então tome um lugar.
Liémen bateu novamente.
— Ward! Filho da puta, eu tenho outras reuniões!
Com isso, a porta foi aberta calmamente. O rosto furioso de Ward nos
cumprimentou sem dizer nada. Eu estava prestes a levantar quando ele
liberou espaço para alguém passar.
— Naya? — Porra.
Ela arregalou os olhos.
— Siriu? O que está fazendo aqui?
Estreitei meus olhos em Ward.
— Essa pergunta é minha.
O bastardo não se intimidou. Passou o braço pela cintura dela e beijou
seu rosto, dizendo algo baixo o suficiente para nem eu e nem Liémen
ouvirmos. Ela sorriu e suas bochechas coraram. Só então reparei alguns
detalhes nela. O suor, e a maquiagem ligeiramente borrada. A porra da saia
vestida do lado errado.
— Um carro está te esperando na saída. Quando chegar na porta ao final
do corredor meu segurança vai levá-la até lá.
— Obrigada. — Sorriu para ele. — Liémen. — Ela cumprimentou ao
sair e me deu um olhar envergonhado. — Até mais, Siriu.
Eu não podia lhe dizer nada. Nunca cheguei nos finalmentes com Naya,
mas ela era importante para Stark e isso deixava claro para mim que Ward
estava jogando algum jogo. Quando ela virou a esquina eu levantei e agarrei
seu pescoço, batendo-o na parede. Liémen imediatamente veio para cima
caso precisasse separar.
— Que porra você pensa que está fazendo?
— Conhecendo uma bela mulher.
— Ela é a afilhada de Stark.
— Estou ciente.
Apertei mais.
— Ela é família.
Ward agarrou meus pulsos, impulsionando para baixo e me vi obrigado
a soltar antes que começássemos algo maior ali. Eu era maior que ele, mas a
boate era dele.
— Naya é maior de idade e escolhe seus próprios caminhos.
— Eu estarei de olho, Ward.
Ele soltou um riso sem graça.
— Não venha me dar merda quando você foi o único a deixar a minha
irmã num estado que levou meses para sair.
— Sua irmã pediu por tudo o que eu fiz. — Eu disse sem pensar e ele
jogou o punho em meu rosto.
Liémen entrou no meio.
— Cavalheiros, por que não entramos e falamos de negócios? Vocês
podem considerar o favor trocado já que um resolveu brincar com a família
do outro. Certo?
— Não. — Ele disse.
— Nem no inferno. — Eu falei ao mesmo tempo.
Liémen ficou sério, sem aquele sorriso de merda que ele usava para se
disfarçar e nos mostrou sua face real.
— Filhos da puta, eu não sou o diretor de um colégio de meninos
rebeldes. Já não basta ter que separar suas brigas com os italianos. Agora
podemos entrar e tratar da porra do dinheiro para que eu possa ir até a boate
de Kirina ter o meu pau chupado?
Eu levei um minuto segurando o olhar de Ward antes de ajeitar meu
terno e passar por ele, tomando um assento em seu escritório. Havia apenas
um motivo para que eu deixasse a briga quieta.
Freya precisava de proteção e quanto mais aliados eu tivesse ao meu
lado, mais rápido e fácil Kazel cairia.
Eu sei que você não sabe, mas você é linda
Vou te mostrar quando você for minha
Tesouro, é isso o que você é
Querida, você é a minha estrela dourada
Sei que você pode realizar meu desejo
Você é tudo o que vejo em meus sonhos
BRUNO MARS, TREASURE
Quando abri os olhos não foi Siriu que vi de imediato. A pessoa que
segurava a minha mão sorriu fraco e baixou os olhos, querendo esconder que
esteve chorando. Eu não queria que Onira pensasse que não estava feliz por
vê-la, mas olhei ao redor procurando por Siriu e ela apareceu. Dando um
aperto em minha mão direita ela me lembrou do machucado recém adquirido
na esquerda.
— Olá — falou.
Quando perguntei a Siriu se me mandaria embora ele havia garantido
que não, mas pelo jeito mudou de ideia. Senti um misto de confusão, tristeza
e raiva. E agora Onira estava lá para me dizer o quão boba fui. Eu queria
aprender com minhas próprias experiências e ali estava.
— Ele não virá se despedir de mim? — perguntei, já esperando o pior.
— Bem-vinda de volta. — Onira sorriu, mas não tinha a mesma alegria
de sempre, além de ter ignorado minha pergunta — Está se sentindo bem?
— Sim. — Franzi a testa. — Quase não sinto.
— É a anestesia, mas com descanso e cuidados ficará melhor em breve.
Foi uma lesão muito grave, Freya. Sabe disso, não é?
— Sim, fui muito descuidada.
Ainda me sentia uma completa idiota ao pensar em como aquilo se deu.
— Não culpe a si mesma. Nunca. Eu sabia que era só questão de tempo
até algo assim acontecer.
Eu sabia que ela falaria sobre a minha incapacidade de me virar sozinha,
só não esperava que fosse tão dura.
— O que quer dizer?
— Nada, esqueça. Falaremos sobre isso em casa. Vou chamar a
enfermeira e dizer que você já está se sentindo bem para ir. Me espere aqui,
ok?
— Não, eu não... Eu não posso ir.
— É claro que pode. Nós vamos para a casa.
Lá não é minha casa.
— Preciso esperar até que Siriu chegue. Ele virá.
Onira me deu um longo olhar, abrindo e fechando a boca algumas vezes
antes de balançar a cabeça e se dirigir a saída do quarto.
— Você nunca mais verá aquele homem e estamos indo para a casa.
Sem me dar tempo para uma resposta ela saiu e fechou a porta sem fazer
barulho. O que queria dizer com: eu nunca mais o veria? Foi a pedido dele?
Não. De alguma forma eu sentia isso. Siriu não me deixaria depois de
garantir que eu não estava indo. Depois de me ensinar como ficar protegida
em sua casa, depois de me olhar com tanto cuidado como fez aquela manhã.
Eu jamais esqueceria como seus olhos eram suaves e preocupados
quando viu minha mão. Uma pequena parte de mim desejou ser machucada
outras vezes se o levasse a me ver daquele jeito.
Quando Onira voltou eu ainda estava pensando em formas de fazê-la me
deixar ligar para Siriu, mas a única coisa que pude foi perguntar algo que
estava martelando em minha mente. A enfermeira se ocupava de tirar as
coisas penduradas em mim e conferir o curativo em minha mão. Fitei Onira.
— O que significa “reinheit”?
Ela fez uma pausa na conversa sobre meus ferimentos com a enfermeira
e franziu a testa.
— Pureza. Por quê?
— Eu li em algum lugar. — Não foi a primeira vez que menti para ela,
mas não havia feito muitas outras. Não me senti culpada também, afinal, fiz
para proteger algo meu e dele.
A enfermeira lhe disse algo e Onira respondeu sorrindo para mim.
— O que foi? — perguntei com curiosidade.
— Ela perguntou se minha irmãzinha ainda não aprendeu a falar alemão.
Eu não era parecida com Onira, mas talvez a mulher não estivesse
falando no sentido real da palavra. Pela forma como Onira cuidava de
mim realmente parecia que tínhamos algo a mais. Um laço. Uma amizade tão
forte capaz de passar por cima de nossas incontáveis diferenças. Mas aquela
mesma amizade queria passar por cima de Siriu. Estava me levando para
longe dele.
Assim como Lut queria fazer. Como Demeron e Kirina também. Por que
ninguém queria deixar que eu ficasse com minha única família?
— Então pureza quer dizer que sou limpa, certo?
— Nesse sentido da palavra significa algo carinhoso. Puro, inocente,
bom. É algo bonito. Geralmente é o que casais falam para se referir um ao
outro.
Depois de sua revelação desisti momentaneamente de lutar contra ela
sobre ir embora. Talvez tivesse algo a ver com a sensação de paz que sentia.
Uma sensação de que ele viria para mim.

A paz acabou no momento que pisei na casa deles. Demeron veio por
trás da varanda com o rosto calmo, pensando que Onira estava sozinha, mas
quando me viu ficou imóvel por um tempo antes de se levantar e balançar a
cabeça. Ele nunca parecia feliz, mas ficou especialmente descontente.
— O que eu te disse sobre isso, Onira?
— Algo que eu resolvi ignorar.
Onira segurou minha mão e me levou para a cozinha, ignorando-o.
— Isso é maior do que seu senso de proteção.
— Ela está com ele há um dia e uma noite e já foi para o hospital. O que
acontecerá se eu deixar que fique mais tempo?
— Isso foi um acidente — falou ao olhar minha mão.
— Realmente acredita nisso?
Ele me deu um olhar verificando meu corpo rapidamente antes de
analisar meu rosto e correr para minha mão enfaixada.
— Por incrível que pareça acredito. Ele tem mais razões para protegê-la
do que você imagina.
— Bem, eu tenho razões melhores. Desculpe-me por não conseguir
parar de pensar que estávamos sendo torturadas e abusadas em algum lugar
do mundo e ele não deu a mínima. Agora quer ser o salvador? Eu não vou
deixar Freya nas mãos daquele homem.
— Não é sua escolha.
— É sim! — Ela começava a se exaltar. — Freya sabe que só quero o
melhor para ela. — Ela me deu um olhar de súplica. — Eu só quero que
esteja bem e segura. Esse lugar é aqui.
— Ele virá buscá-la.
— E não deixaremos que a leve! — Ela gritou, surpreendendo tanto a
mim quanto Demeron.
— Essa é uma luta que você não vai ganhar, liebe. Entenda a situação
por completo. Deixe que eu e meu primo cuidamos disso.
— Eles vão levá-la de volta e se não o fizerem, Siriu acabará com ela de
qualquer jeito.
— Onira...
— Vamos protegê-la aqui em casa.
— Liebe...
— Pegaremos armas e...
— Onira! — Ele gritou dessa vez, arrependendo se no minuto que
ela começou a chorar. Demeron correu para e segurá-la — Querida, ela não é
você. Não está mais na Tailândia e no fim alguém virá levá-la. Freya está em
risco e Siriu é o único que pode cuidar dela por agora.
— Eu não posso deixar que algo aconteça com ela.
Ele me olhou sem saber o que fazer, mas pela primeira vez eu sabia.
Aproximei-me de Onira e segurei seu rosto, trazendo seus olhos desesperados
para os meus.
— Eu queimei a mão tentando fazer um café da manhã para ele. Sabe
por quê?
Ela balançou a cabeça em silêncio e eu continuei.
— Porque ele foi um cavalheiro em todos os momentos. Ele não me
feriu fisicamente ou com palavras e eu queria agradecer por isso. Mas ele
também me explicou os riscos que corro. Sei que agora ficarei segura com
ele.
— Não tenho tanta certeza — sussurrou.
— Você não disse que ele era pior do que Kazel? Quem melhor para me
proteger de um demônio do que o próprio diabo? — Deixei uma risada curta
e baixa escapar.
Embora Kazel sempre se referisse a Siriu como um demônio eu sabia
que era o contrário. Um demônio fazia coisas ruins para provar algo, porque
lhe era ordenado fazer. Mas o diabo... Ele era o próprio dono de si mesmo.
Não havia ser superior a ele no inferno.
Se havia alguém para me proteger de Kazel era Siriu.
Em meio às lágrimas Onira riu da minha comparação, enxugando o
rosto com as costas das mãos e eu a ajudei com a manga da blusa.
— Você está ficando muito espertinha — brincou e eu sorri para seu
sorriso que era verdadeiro dessa vez.
— Tenho tido um bom exemplo.
Eu a abracei ela me apertou de volta com força. Sim, havia
um laço entre nós. Onira odiava Siriu porque via tudo de ruim que havia nele,
mas se parasse para observar um pouco veria as mesmas coisas em mim.
Eu esperava que ela nunca abrisse os olhos a minha frente.
"Uma gota no oceano
Uma mudança no tempo
Eu estava rezando para que você e eu
Pudéssemos ficar juntos
É como desejar a chuva enquanto eu estou no meio do deserto
Mas estou te segurando mais perto do que nunca
Porque você é meu paraíso"
RON POPE, A DROP IN THE OCEAN
Passando silenciosamente pela recepção ignorei os olhares de ambas as
secretárias e enfrentei o longo corredor. Enfermeiras pararam as conversas
quando entrei, curiosas ou assustadas demais para continuar suas fofocas que
nada tinham a ver com os pacientes. Fui direto ao quarto onde Freya foi
deixada naquela manhã. As enfermeiras de Peter não me deviam nada, mas se
o tratamento certo não estivesse sendo dado a ela eu fecharia aquela clínica
até o próximo amanhecer.
Sem me preocupar em bater na porta a abri e encontrei outra paciente na
cama. Saindo, voltei a recepção.
— Onde está a paciente do quarto 16? Pequena, magra, olhos amarelos e
cabelos longos.
A mulher que ficou para me atender engoliu em seco, olhando em volta
antes de consultar o notebook.
— O que está fazendo?
— Olhando nos registros. — Eu amaldiçoei, fazendo-as se encolher
ainda mais. Eu mandei que Peter não fizesse papeis sobre seu atendimento e
o imbecil ignorou algo tão importante. — Freya, sim? — Dei um aceno. —
Ela teve alta a pouco mais de três horas atrás.
— Alta?
— Sim, senhor. — Conferiu novamente. — Onira Tieko assinou a
documenta...
Não a esperei terminar.
Dirigindo-me a sala de Peter, entrei sem ser anunciado ou esperar sua
permissão. Ele arregalou os olhos ao me ver, levantando-se da cadeira e
erguendo as mãos.
— Siriu...
— O que eu te disse sobre Freya ser minha responsabilidade?
— Que ninguém deveria saber e...
— Ninguém deveria saber que ela esteve aqui e você corre para ligar
para a noiva do meu primo no momento que eu saio?
— Eu não tive a intenção, Onira me disse que se preocupava com ela e
quando sumiu eu pensei...
— Você pensou? O que você pensou?
— Olha, eu juro! Ela sabia que se algo acontecesse você me chamaria e
simplesmente pediu que eu avisasse para saber se Freya estava bem.
— E você pensou que me contrariando conseguiria que Demeron te
livrasse da sua dívida comigo?
Ele baixou os olhos, envergonhado da verdade.
— Senhor X...
— Peter. Eu poderia ter sido muito pior com você. Você me deve muito
e tudo o que eu pedi em troca para saldar seu débito foi que atendesse minhas
chamadas quando eu precisasse.
— Eu sei e sou grato.
— Não parece. — Abotoei meu terno, dando uma olhada ao redor. —
Nosso acordo está cancelado. — Terror inundou sua feição. — Não vou mais
lhe cobrar parcelado. Quando a hora de me pagar chegar, será a vista então se
prepare. O que eu lhe pedir, seja o que for não será barato.
Quando entrei em meu carro, não perdi tempo ao ligar para meu primo.
Demeron tinha entrado num acordo comigo e estava funcionando, mas na
primeira batida sua noiva tinha que se meter.
— Não posso falar agora.
— Lide com a sua esposa antes que eu coloque a Liga atrás dela.
Silêncio.
— O que houve?
— Freya teve um acidente esta manhã e sua noiva a sequestrou da
clínica de Peter.
— Eu não acho que Freya consideraria sair com Onira como sequestro,
mas vou ligar para a minha noiva.
— Sim, faça isso. Se eles chegarem até Freya por conta do nariz
intrometido de Onira eu vou lidar com isso do meu jeito.
— Não ameace Onira, Siriu. Você sabe que eu não vou aturar isso. Ligo
para você daqui a pouco.
Ele desligou e eu acelerei, pegando o caminho mais rápido para a casa
deles.

Estacionei meu carro numa parada brusca em frente à casa isolada e sai.
Estava uma ventania de cerrar os olhos. No momento que liguei para
Demeron, ele sabia que eu estava a caminho e àquela altura já sabia que havia
chegado. Atravessei em passos rápidos a grama molhada, respirando a brisa
que o oceano atrás da casa deixava no ar, mas nem tal tranquilidade me
acalmou.
Eu fervia por dentro.
Quando cheguei há poucos metros da porta ela foi aberta e a expressão
congelada de Demeron me passava diversas mensagens, mas a principal
delas: deixar Onira fora disso.
Difícil, considerando que ela foi a única a levar Freya de mim.
De nós.
— Onde ela está?
— Antes de entrar quero falar com você.
— Não me foda, Demeron. — O empurrei, passando por ele e entrando
na casa. — Freya!
— Espere um maldito minuto!
Onira apareceu de repente com os olhos firmes em mim, mas eu podia
ver a insegurança em sua postura. Demeron rapidamente foi para seu lado,
ficando um pouco à frente dela apenas, preparado para me parar se eu
avançasse. Bufei.
— Não vou atacar sua noiva. Apenas me diga onde ela está e sairei
como se nunca tivesse vindo.
— Eu quero pedir que reconsidere — disse Onira. — Freya está bem
aqui.
— Ela está? Não perguntou por mim ou falou de mim nas horas que
você irresponsavelmente a tirou de mim?
Ela avançou um pouco, saindo de trás do noivo.
— Eu não a tirei de você!
— Eu pedi que a buscasse?
— Não foi preciso. Siriu, ela está aqui por mim e por Demeron, foi salva
quando você não quis ajudar, se lembra?
— E vai continuar assim porque estará comigo. Quando tempo acha que
levará para Kazel a encontrar aqui?
— Eu tenho uma arma. Demeron está sempre aqui e Freya não chamará
atenção. Não temos vizinhos, e... e...
Dei um olhar a Demeron, mostrando minha impaciência. Ele cerrou a
mandíbula. Também não gostava da ideia de Freya estar sob minhas asas,
mas não tinha escolha, ele sabia que eu era o melhor para ela.
— Acabe de uma vez com isso — falei.
— Liebe, vá buscar Freya. — Ele tocou seu ombro e me vi surpreso
quando Onira empurrou sua mão, me dando um olhar afiado.
— Ela não é sua e nunca vai ser. Assim que Kazel for embora vou dar
um jeito de abrir os olhos de Freya sobre quem você realmente é.
Eu sorri para ela.
— Por que acha que seu pequeno projeto quer estar perto de mim,
Onira? Ela sabe quem eu sou. Ela vê.
— Ela não é um projeto, é uma pessoa!
— É um projeto para você. Uma das suas esculturas. Ela é um diamante
bruto que você quer esculpir mandando para trabalhar com Kurton Ward,
levando para a terapia e fingindo que a menina pode ser uma jovem adulta
comum.
— Ela pode!
— Vai jogar esse jogo comigo, Onira? Logo comigo? Eu conheço Kazel
e sei o que ele faz. Se Freya aprender a conviver em sociedade o suficiente
para não te envergonhar como você quer é mais do que pode pedir. Ela está
condicionada a trepar e foder.
Ela exalou com força, indignação preenchendo suas feições, mas seu
noivo via a verdade. Não havia ponto em mentir e sua expressão provava que
ele sabia tudo isso, só não queria admitir. Freya nunca seria normal e quando
Onira tentava impor a ela que fosse, era como tentar mudá-la. Freya se sentia
segura comigo porque se reconhecia em mim.
— A traga para mim de uma vez.
— Eu vou perguntar a ela se quer ir. — Ergueu o queixo e eu sorri com
sua determinação em me desafiar.
— Seja minha convidada.
Ela virou sem dizer mais nada, adentrando o corredor que dava para a
parte de trás da casa, naquele penhasco maldito.
— Eu poderia quebrar a sua cara pela forma como falou com ela, mas
vejo que alguém chegou antes — disse Demeron, indicando o corte em minha
sobrancelha.
— Você nunca foi misericordioso, soldado. Sua noiva mudou muitas
coisas.
— Ela não mudou isso. Eu só não quero assustar Freya.
— Engraçado você pensar que a assustaria tão fácil.
Ele ia responder, mas a volta apressada de Onira despertou nossa
atenção.
— Vocês têm que ver uma coisa.
Eu corri atrás dela sem pedir mais explicações e assim que saímos pela
porta da varanda fiquei petrificado.
— De onde isso saiu? — Demeron perguntou.
— Eu não sei — disse Onira com uma risada. — Eu vim chamá-la e a
encontrei assim.
Perfeita.
Eu não tinha palavras pela primeira vez em muitos anos de vida. Nada
me tirava do eixo ou me chocava o suficiente para isso.
— Um vizinho distante é criador, talvez o macho tenha fugido. —
Demeron voltou a falar, mas eu parei de ouvir. Minha atenção concentrava-se
unicamente em Freya.
O vestido longo e num tom creme balançava com o vento ainda mais
forte e seus cabelos não paravam no lugar. Uma cascata castanha flutuando
para os lados. Ela estava de lado, mas eu podia ver seu sorriso enquanto
alisava a crina do cavalo branco. O animal grande parecia gigante perto dela.
Suas mãos passavam sobre ele com uma delicadeza impressionante,
como quando penteou a minha barba ou me segurou implorando que a
aliviasse de sua dor após o pesadelo naquela madrugada. O cavalo estava
pacífico, virado de costas para nós e de frente para o mar. Eu entendia sua
tranquilidade. O toque daquela mulher podia fazer uma múmia voltar a vida.
Eu senti isso.
Nós sentimos.
— Inferno. — Demeron murmurou, mas eu precisava discordar.
Paraíso.
Valhala.
Paz.
— Admire essa imagem, Siriu. — A voz de Onira cortou meus
pensamentos. — Olhe como ela parece inocente e pura. Ela não pertence ao
nosso mundo. Ao seu mundo de dor e sombras.
Meu riso rouco pareceu ecoar pelo ar, pois Freya ouviu e virou a cabeça,
olhando diretamente para mim. Arregalando as irises amarelas, ela deixou as
mãos caírem do cavalo, abriu um sorriso e segurou o vestido dos dois lados,
deixando os pés amostra. Então ela começou a correr.
— O que você dizia? — perguntei sarcasticamente.
Quando chegou a três passos de distância, Onira tentou chamar sua
atenção, mas Freya só tinha olhos para mim. Os cabelos bagunçados beijados
pelo vento e o rosto corado do frio.
— Meu senhor? — sussurrou.
Sem dizer nada, estiquei a mão, indicando que podia me tocar, mas ela
ignorou e se jogou em meus braços. Suas mãos segurando meu pescoço,
quando a bochecha se aconchegou em meu peito. Eu contive um suspiro.
Uma sensação estranha e tão nova apoderando-se de mim, fazendo aquela
velha rachadura se expandir alguns centímetros em meu coração apedrejado.
Segurei sua cabeça por trás, roçando meus lábios em seu ouvido.
— Voltará para casa comigo?
— Sim — sussurrou e naquela única palavra eu ouvi um sorriso.
Ela pensou que eu não viria. Que depois de ter lhe dado a minha palavra
sobre não estar a mandando embora, eu faria exatamente isso.
— Se despeça de Onira e Demeron.
Eu a soltei sentindo dois pares de olhos sobre mim. Meu rosto treinado
para não demonstrar nada em plena exibição e ficou claro para ambos o
quanto ela apreciava estar em minha companhia. O que Onira diria se
soubesse que aquele apego de Freya se dava ao fato de Kazel ter enchido sua
cabeça sobre quem eu era? Será que já sabia e por isso tinha tantas objeções?
Não, ela não tinha como saber. Se Freya tivesse dito, Onira me daria o
inferno, mas não me deixaria levar sua protegida. Ninguém deixaria. Até
mesmo Kaladia provavelmente se voluntariaria para protegê-la de mim.
De um demônio.
Nós não somos um demônio.
Sim, eu tinha que concordar com os sussurros das sombras dessa vez. Eu
não era um simples demônio, mas o próprio diabo.
A única coisa que eu queria era que esquecêssemos o que houve,
voltássemos para sua casa e pudéssemos retomar. O caminho no carro até sua
casa foi feito em silêncio. Eu queria perguntar o porquê mudou de ideia e
resolveu ir me buscar, se sentiu minha falta ou se eu poderia ter o grande
animal daquele penhasco para mim.
Franzi o cenho ao refletir sobre isso. Não tinha certeza se caberia na casa
de Siriu.
Embora eu amasse Onira e apreciasse o tempo que passávamos juntas,
viver com ela não era o que eu queria fazer pelo o resto dos meus dias
naquele novo mundo. Raramente saíamos de casa depois que ela criou uma
rotina para mim ou me encaixava na dela. Eu vivia em um estado de... tédio,
como as pessoas diziam, e não estava ansiosa para voltar aquilo.
Voltei minha atenção para Siriu, observando-o dirigir com uma mão. O
carro deslizava pela rua movimentada e lá fora alguns pingos batiam
suavemente contra o vidro da frente. Mais chuva. Parecia sempre chover em
Berlim. Eu gostava disso. Da água, do cheiro e da sensação de como algo
caia do céu e nos banhava por inteiro. Nunca tinha conhecido a chuva antes e
quando ela caiu pela primeira vez, Onira e eu estávamos saindo da minha
primeira sessão com a doutora Katya. Eu entrei em pânico, não conseguia
entender o que estava acontecendo. Onira me levou de volta para dentro e
avisou que esperaríamos até que a chuva passasse, mas eu não queria esperar.
Olhando para o céu, tinha visto que não tinha como alguém estar
jogando tanta água de uma vez lá de cima. Eu precisava ver por mim mesma
e sai. Quando a água forte bateu violentamente molhando-me, fiquei travada
por um longo momento, ouvindo Onira cheia de preocupação falando
comigo, mas eu não queria sair. Queria sentir a água.
Parecia que pela primeira vez em minha vida eu estava verdadeiramente
limpa. Nada podia me tocar, pois a água lavava tudo. E eu sorri. Eu sorri e ri
tão forte que Onira me acompanhou, revirando os olhos e me observando
enquanto eu ficava parada e tomava um banho de chuva.
As pessoas passavam com aquela proteção na cabeça, que depois vim a
descobrir ser um guarda-chuva e nos olhavam como se fossemos loucas, mas
eu não me importei. Nem ela.
Eu não podia deixar de agradecer a Onira por todas as coisas que fez por
mim e o quanto tentou me fazer entender seu mundo. Mas conhecer a chuva e
tentar entender um trabalho eram coisas completamente diferentes.
A mão livre de Siriu em sua perna chamava a minha para tocá-la, mas eu
resisti. Só deveria tocá-lo com sua permissão e ela não me foi dada.
Siriu não era tão diferente da chuva, afinal. Assim como a água forte e
renovadora, ele chegava e arrebatava tudo a sua volta. Quem não buscasse
abrigo contra ele seria levado. Mas eu não precisava de abrigo. Não quando
eu era a única a clamar por sua tempestade.
Nós subimos para sua casa ainda em silêncio e eu ansiei para estarmos lá
dentro. Queria descobrir de uma vez o que aconteceria.
— Tome um banho. Pedirei o jantar e vou deixar em seu quarto.
— Posso falar, meu senhor?
— Sim. — Ele tirou o terno que usava, deixando-o perto da porta.
Deslizou o relógio em seguida e uma corrente de ouro pendurada no pescoço,
deixando em cima da pequena mesa de vidro.
— Tenho permissão para voltar a casa de Onira?
Ele moveu seus olhos para meu rosto, me fitando antes de responder.
— Pensei que quisesse ficar aqui.
— Eu quero. — Me corrigi rapidamente. — Mas quero ver aquele
animal novamente.
— Eu não sabia que gostava de cavalos.
— De quê? — Confusa, inclinei a cabeça tentando entender o que dizia.
— Cavalos. Aquele era um macho que você conheceu. Muito bonito.
Forte e bem cuidado.
— Ah. — Eu sorri. — Eu não sabia o que era. Honestamente, meu
senhor, estava debatendo comigo mesma entre pular ou não pular naquela
imensidão azul quando ele apareceu e fez um barulho alto atrás de mim. Me
olhava nos olhos. — Encolhi os ombros como Blair fazia, rindo de como
manias eram fáceis de passar. — Sei que parece bobagem, mas ele realmente
olhava para mim e eu me afastei da beira para conhecê-lo mesmo sem saber o
que era.
— Está me dizendo que ia pular do penhasco? — Ele perguntou sem a
calma de antes, parecia irritado de repente, aproximando-se de mim.
— Eu só queria experimentar.
O silêncio seguiu minha justificativa por um minuto.
— Se a queda não a tivesse matado, a água fria iria. Como consequência
eu seria obrigado a matar Onira e Demeron pela irresponsabilidade de deixá-
la sozinha. Como pode pensar em algo tão estúpido?
Baixei meus olhos, me sentindo estranha com a raiva e o brilho de
decepção nele.
— Eu não sabia que algo ruim poderia acontecer.
— Diga-me, Freya. Quer ver Demeron morto?
— Não!
— E quanto a Onira?
— De jeito nenhum! Nenhum dos dois.
— Então pare de mentir para mim.
— Eu não estou...
— Não me diga que não sabia que pular daquele penhasco maldito a
mataria. Você buscou por isso. Queria o que a morte lhe traria, por quê?
— Eu não... eu...
— Estou ficando cansado de precisar arrancar as respostas de você.
Como vou confiar em deixá-la aqui se precisarei me preocupar o dia todo se
não tentará algo contra si mesma?
Eu estava prestes a responder quando a campainha tocou. Vergonha me
atacou pela primeira vez. Uma vergonha real e dolorosa que me fazia ter
vontade de correr e me esconder em meu quarto porque ele não estava
mentindo em suas impressões.
— Devo sair?
— Não — respondeu quando caminhou até a porta, tirando uma arma
pequena da cintura da calça. — Fique.
Ele a abriu e um rapaz muito novo entrou em passos lentos, dando uma
olhada rápida ao redor, sorrindo quando parou em mim.
— Ei — disse.
— Senhor. — Eu abaixei a cabeça com um pequeno aceno.
— Coloque as sacolas no balcão. Eu vou pegar minha carteira lá dentro
— disse Siriu, fechando a porta e saindo para o corredor.
O homem jovem me deu um outro sorriso quando desceu para o piso
central e levantou as sacolas que pendiam nos dois braços.
— Onde eu coloco isso?
— Oh. — Eu olhei ao redor. — O balcão da cozinha, certo?
— Acho que sim. — Ele riu e me seguiu para dentro. Tinha olhos azuis
alegres e um sorriso sincero.
— O que são todas essas coisas?
— Comida, principalmente. — Ele passou as mãos pelo cabelo loiro e
suas bochechas ficaram ligeiramente avermelhadas. — Nessas duas tem
produtos... hum... femininos. O Senhor Konstantinova fez uma lista, então, é
basicamente tudo o que ele me mandou comprar.
— Produtos femininos? — Franzi a testa, sorrindo de seu
constrangimento. — Tipo o quê?
Ele empurrou a sacola mais uma vez, evitando meus olhos.
— Eu prefiro que você mesma veja. A propósito, eu sou Heinrich.
— Freya. — Me apresentei com uma reverência curta. Ele franziu as
sobrancelhas e ficou em silêncio por um minuto.
— Hum... certo. E você vive aqui, então?
— Por enquanto. Siriu me protege.
— Está em perigo?
— Sim. — Olhei nas sacolas, reconhecendo apenas quatro dos vários
objetos lá dentro. — Mas ficarei bem em breve. Contanto que continue aqui
com ele.
— Legal. — Ele sorriu novamente, mas seus olhos eram cuidadosos
sobre mim agora. Tirando a mochila que carregava nas costas, abriu e pegou
uma caneta junto de um pedaço de papel, apoiando no balcão e escrevendo
algo, então me entregou. — Olha, se precisar de algo pode me ligar, certo?
Eu não estou ocupado na maior parte do tempo e posso te ajudar.
Senti-me profundamente aquecida por sua gentileza.
— Muito obrigada, senhor. — Hesitei, mas respirei fundo e decidi que
precisava cumprir o meu dever. — Como posso agradecê-lo?
— Já agradeceu. — Sorriu. — E se prometer me ligar quando precisar já
ficarei feliz.
Estranhei, mas decidi seguir em frente para ser mais clara. Talvez
estivesse mais uma vez falhando em me comunicar de forma decente com
uma pessoa desse novo mundo e me ajoelhei.
— Posso servi-lo com minha boca, senhor? Ou prefere outro lugar de
meu corpo?
Ele arregalou os olhos, dando dois passos atrás.
— O quê?!
— Deixe-me agradá-lo para provar minha gratidão.
Heinrich estava sem palavras e eu não sabia mais o que fazer. O que
estava errado com os homens desse mundo?
— Caramba, Freya, não...
— Levante-se. Agora. — A voz grave e irritada de Siriu atrás de mim
enviou um arrepio que percorreu meu corpo e me fez tremer. Pela primeira
vez senti medo de encarar seus olhos, então fiz o que mandou de cabeça
abaixada. — Vá para o seu quarto, Freya. Leve suas coisas.
Tentei concordar verbalmente, mas as palavras falharam, soltando
apenas um ruído estranho de minha boca. Apenas assenti e peguei as duas
sacolas seguindo para dentro. O estrondo que veio quando alcancei o
corredor me fez parar, mas segui as ordens do meu senhor e não olhei para
trás.
— Você a tocou? — O garoto preso entre mim e a geladeira mal
respirava, seus olhos refletiam o pânico que sentia sem esconder nada de
mim. Porra, eu praticamente podia cheirar o medo.
— Nã-n... — Bateu em meus braços quando não conseguiu concluir a
palavra. Eu não podia deixá-lo ir. Ele tocou Freya. Ele me fez quebrar a
promessa de que nada a alcançaria sob minha proteção. Ele tirou de mim sua
confiança.
Ele deve morrer.
Apenas tal sussurro das sombras poderiam ter me feito acordar. Se
minha parte mais obscura ordenava algo, eu imediatamente fazia o contrário.
Mesmo que não conseguisse resistir muitas vezes aos seus desejos, que
acabavam por ser os meus mais ocultos e mais profundos, lentamente tirei as
mãos do pescoço do garoto e ele caiu sob os joelhos inclinando-se para frente
em busca de ar. Seu rosto e pescoço estavam vermelhos, assim como linhas
saltadas vermelhas em seus olhos quando me olhou cheio de medo.
— Você a tocou? — repeti a pergunta.
— Não! Eu não faria isso. — Tossiu. — Ela. — Tossiu mais uma vez,
levando longos segundos dessa vez. — Ela se ajoelhou e começou a dizer
coisas...
— Que coisas? — Precisava ver se estava sendo sincero, se valia a pena
deixá-lo sair daqui com vida.
— Que iria me servir para provar gratidão. Com a boca ou o corpo. —
Ele lançou um olhar confuso na direção que Freya saíra a dois minutos. —
Senhor Konstantinova, quem é essa? Que porra é essa?
— Você terminou seu trabalho, Heinrich. — Joguei-lhe um envelope
com notas mais do que suficiente para aquele serviço e dei as costas. — Pode
ir agora.
— O que?! Eu não posso ir agora, não sabendo sobre ela, quer dizer...
não seria bom levá-la a um médico ou algo assim?
Respirei uma longa e profunda lufada de ar antes de encará-lo
novamente.
— Você gosta da sua vida, garoto?
Ele empalideceu.
— Sim, mas...
— Então esqueça sobre Freya. Ela não é da sua conta.
— Demeron sabe dela?
— Demeron a mandou para mim. — Não era uma mentira num todo. Se
ele não tivesse me pedido para ir livrá-la da cadeia eu não teria posto meus
olhos na menina e não estaria travando a guerra que começava em minha
mente.
Minha meta parecia nada comparada a minha nova obsessão.
Freya.
Eu não queria pensar sobre como Kazel a chamava. “Feiticeira”. Mas
era difícil quando parecia exatamente que colocou um feitiço em mim e agora
eu não podia deixá-la livre. Eu não podia deixar que se fosse.
Heinrich me fitou com aqueles olhos estranhamente familiares e assentiu
depois de um momento. Eu tinha minhas suspeitas sobre o porquê de
Demeron proteger e manter aquele garoto perto desde tão cedo. Talvez fosse
seu filho, talvez fruto de uma das escapadas de Regnar. Isso explicaria.
Quando o garoto saiu pela porta eu tentei me acalmar guardando os
mantimentos nos armários nunca usados antes e liguei no restaurante de alta
classe que Liémen tinha no Centro, encomendando a sugestão do Chef para a
noite. Quando terminei, sentei-me com um cigarro apagado girando entre os
dedos e um copo de gin.
Primeiro, descobria que sua mente a levava a tentar tirar a própria vida,
depois, percebi com o incidente com Heinrich que não importava o quão
segura ela estivesse comigo, ainda se sentia na obrigação de servir a outros
homens. Mesmo debaixo da porra do meu teto.
Deveria tê-lo matado.
Sabia que não era culpa dela.
A ensine.
Kazel fez tudo isso.
Cace-o e mate-o.
— Cale a porra da boca — vociferei, contendo a mim mesmo de atirar o
copo longe e fechei os olhos, apertando o vidro entre os dedos. Quando
rachou, a campainha tocou.
O barulho em minha mente se foi, os zumbidos no ouvido não estavam
mais lá, apenas o toque da chamada na porta. Eu atendi e deixei o garoto da
entrega com uma gorjeta antes que fosse embora. Liémen não teria cobrado
aquela refeição, para ele, qualquer dinheiro seria dever algo para mim. E não
apenas comigo, mas qualquer homem com um pé de autoridade na lei ou no
submundo lhe era suspeito e ele não se deixava baixar a guarda jamais.
Em todos os anos que o conhecia foi assim.
Tirei a comida das caixas e peguei um suco na geladeira para Freya.
Com o prato e copo em mãos invadi seu quarto. Ela me esperava sentada no
meio da cama, os olhos fixos na janela do lado de fora, o frio invadindo e
levando seus cabelos para trás. Ela havia trocado de roupa, vestindo-se em
uma camiseta minha.
— Foi ao meu quarto novamente?
Virando-se ao som da minha voz, Freya olhou para baixo em suas vestes
com insegurança.
— Encontrei esta roupa no armário, meu senhor.
Assenti, lembrando que deixei algumas camisas na cômoda.
— Trouxe sua comida.
— Não mereço ser alimentada, meu senhor.
— Como disse?
— Sei que está bravo comigo. Entendo sua fúria e receberei a punição
com honra.
Deixei o prato e copo na mesa de cabeceira com um suspiro e me sentei
a sua frente.
— Olhos em mim, Freya. Você será punida quando e pelas razões que
eu determinar. Vai comer regularmente porque jamais a deixarei passar fome.
— Tudo bem.
— Sua obediência não é um jogo de vida e morte para mim. Eu a quero
porque aprecio saber que você se sente segura comigo, a quero porque
preciso estar no controle em todos os momentos da minha vida. Nunca vou
colocá-la em risco. Já fomos ladeira abaixo na noite em que toquei sua doce
boceta, então não tenho como voltar atrás. Vou tocá-la mais vezes e você me
tocará também. Mas, porque me quer e vai me receber de bom grado, não por
ter medo de não ver a próxima refeição. Entendeu?
— Sim, meu senhor.
— E sobre Heinrich... — Comecei e ela apertou os olhos, abraçando-se.
— Ele tem a sua idade. — Era como se as palavras não fossem minhas, pois
não as pensei, elas simplesmente saíram.
— O que quer dizer, meu senhor?
— Garotas jovens como você ficam com meninos como ele.
Ela inclinou a cabeça, alheia ao que eu dizia.
Cale a porra da boca. Ela é nossa.
— Eu não entendo. Quer que... quer que eu fique com ele?
Lhe ofereci um sorriso frio, capaz de deixá-la ver a seriedade de minhas
próximas palavras.
— Nenhum outro homem vai encostar em você. Vou matar qualquer um
que faça isso. Você não oferecerá seu corpo novamente, não chamará mais
nenhum outro fodido cara de senhor ou, meu senhor. Essas são palavras para
mim, o resto do mundo é simplesmente sem importância.
— Mas não se é respeitoso.
— Eu estou te dizendo que não fará diferença, então não fará.
— E Heinrich?
— Cortarei o pau dele e a farei assistir, depois arrancarei a cabeça dele e
a enviarei para Demeron e Onira. Você não quer isso.
— Não! — Ela estava horrorizada, mas não surpresa. Lidou com
violência a vida toda, mas a minha vinha de uma origem diferente e tinha um
simples objetivo: deixá-la segura de si mesma.
— Quer ser tocada por outro homem?
— Não. — De olhos arregalados, fitou-me com confusão.
— Nenhum outro?
— Não!
— Nem mesmo Kazel? — Ela hesitou, desviando a atenção de mim. —
Não quer ser tocada outra vez por seu mestre? — Cuspi a palavra, sabendo
que ele não merecia tal título.
— Eu não posso responder a isso.
— Mas vai. — E essa resposta será o fim de tudo. — Diga.
— Não me faça dizer — sussurrou com olhos suplicantes. — Por
favor...
— Responda-me, Freya. — O comando em minha voz não lhe deixava
escolha.
Ela bateu os olhos em mim novamente e uma lágrima escorreu deles. O
amarelo brilhando. Aquelas eram palavras que uma escrava jamais deveria
admitir, nunca. E eu estava sedento por elas, porque assim que admitisse seus
próprios desejos, começaria a se libertar de Kazel.
E estaria pronta para nós.
— Não. Não quero ser tocada por ele também. Só você. Apenas você,
meu senhor.
Eu inalei com força, sentindo o impacto de suas palavras em meus
ossos.
Minha vida inteira foi regida por ordem e disciplina, mas com um olhar
daquelas irises amarelas eu tenho perdido o controle a cada dia em sua
presença. As sombras estiveram caladas por anos graças a todo o esforço que
fiz para ficar fora da influência maligna dentro de mim, mas agora, essas
mesmas sombras queriam tomar posse de Freya.
— Você não me chama assim.
Seu nariz pequeno torceu em confusão, os lábios inchados achatando um
no outro.
— E como devo?
— Como você acha, Freya? — Meus olhos diziam tudo e eu esperei que
ela enxergasse isso. Embora uma parte minha queria que não acertasse a
sugestão, assim, eu teria absoluta certeza de ficar longe dela.
Ela verá.
Enquanto as sombras seguravam fios do meu cérebro e torciam em nós,
eu observei seu rosto clarear como o dia e me condenei por achar tão bonito,
ainda que não fosse a noite.
— Mestre. — O sussurro rouco enviou ondas ao meu corpo, mente e
coração. A rachadura abrindo-se um pouco mais ao perceber que ela me via
como ninguém antes pode.
— Toque-me.
Ela sorriu um sorriso enorme, do tipo que só vi quando estava cheia de
esperanças e lentamente desceu da cama. Os olhos incertos carregavam uma
gratidão que eu não merecia, e a felicidade que não deveria ser minha.
Ela se colocou no meio das minhas pernas e me olhou nos olhos quando
pegou minhas mãos. Alisou meus dedos um por um e levou até seus lábios,
jogando fora dez beijos que eu não merecia, mas tomei de qualquer forma. As
pontas dos meus dedos queimavam do toque dos lábios dela e foi apenas o
começo.
Freya deslizou as mãos para cima em meu antebraço, cotovelo e chegou
ao ombro. A carícia era lenta, meus músculos contraíam violentamente e
meus dentes estavam cerrados fortemente. Eu fui tocado pelas prostitutas
mais experientes, por mulheres que juravam me amar e por Kirina, a que
realmente me amou. Mas nada se comparava aquilo. A Freya encarando-me
como se eu fosse o presente que ela esperou a vida toda receber.
Engoli em seco.
Os dedos começaram a desfazer os botões da minha camisa, deslizando-
a pelos ombros até que estava fora e eu não tinha nada me cobrindo da
cintura para cima.
— Mestre. — Ela me olhou profundamente e me puxou pelas mãos,
guiando-me a ficar de pé. E naquele momento eu não reclamei. Não reclamei
de ser guiado por ela — O senhor é lindo — sussurrou, rodeando meu corpo
muito lentamente sem deixar a mão cair. Passeou os dedos sobre meu peito,
braços e costas até chegar à minha frente outra vez, erguendo os olhos para
fitar meu rosto. — Perfeito.
— Quero dizer algo.
— Você está cheia de vontades essa noite — disse ele, fazendo-me rir.
— Ouvi falar sobre primeiro beijo.
— É mesmo? — Ele tinha a voz sufocada, o caroço no pescoço
movendo-se ritmicamente. Subi minha mão até seu peito, bem em cima do
coração. Batia forte, forte como senti o do cavalo no penhasco.
— Sim. Quanto mais pensei sobre isso, mais convencida estava de que
quero que o meu seja com o senhor.
— Você nunca beijou antes?
— Beijei o Kazel. Isso conta?
— Não — rosnou, os olhos piscando um brilho que não entendi.
— Imaginei que diria isso. — Minha risada o fez encarar meus lábios de
cenho franzido. O azul cobalto dos olhos ferventes, fixavam-se em mim
como se eu fosse seu único foco naquele momento e eu amei ser.
Foi para isso que fui até ele. E para isso faria qualquer coisa para
permanecer ali.
— Tenho permissão para beijá-lo, meu senhor?
— Com uma condição.
— Qualquer coisa. — Não menti ao dizer isso. Eu queria sentir mais
uma parte dele em mim e não negaria nada que me levasse a tê-lo.
— Pense bem antes de me dar suas respostas, Freya. Quero sua
honestidade, mas não vou poupá-la de desconfortos se quiser algo que não
está pronta para me dar.
Minhas sobrancelhas uniram-se em confusão. Ele não me entendia?
— Darei qualquer coisa que quiser de mim, mestre. É só dizer e terá.
— Muito bem. — Suas mãos encontraram minha cintura e minha pele
aqueceu onde fui tocada por seus dedos grossos e calejados. — Me dirá o
porquê pensou em se jogar do penhasco na casa de Demeron. Será honesta e
vai me contar sem filtrar seus pensamentos.
— O que isso quer dizer?
— Filtrar os pensamentos? — perguntou e eu assenti. Ele continuou. —
Escolher o que dirá. Pensar sobre o que dizer e o que manter guardado. Não
quero.
Foi lento quando seu rosto começou a aproximar do meu. Precisei ficar
impossivelmente parada, mas eu sabia como fazer isso. Fui treinada para
obedecer e aceitar, mas nunca tinha sido assim, nunca tinha sido algo que eu
pedi e estaria prestes a receber. Aquele era o meu presente. Um que eu pensei
desde que assisti Ghost, um filme romântico que Onira me obrigou a lhe
acompanhar. A cena era linda. No começo, eu me senti comovida por todo o
filme, mas queria que acabasse logo para voltar a assistir 007 e ter a única
parte de Siriu que podia. Então o fim chegou e junto dele, o momento em que
Sam pode finalmente encontrar a paz. Ele se aproximou lentamente de Molly
e a beijou. Seus lábios mal se tocam porque naquele momento ele é apenas
uma luz forte, sem vida e ainda assim tão vívido. Mas aquele curto beijo me
fez perguntar a Onira porque eu sentia que foi tão especial.
Ela me deu uma resposta que jamais sairia da minha mente.
“É o último beijo dela com o amor de sua vida. As vezes não
valorizamos as coisas enquanto as temos e o primeiro beijo fica esquecido,
mas quando eles só têm o último... isso é tudo. Há apenas uma última
chance.”
Eu sabia que entraria em curto no momento, em que Siriu me tocasse
daquele jeito, simplesmente sentia, mas não queria. Queria estar sã e com a
mente clara para me lembrar de tudo. Cada movimento, cada sensação, cada
vez que ele me segurasse mais forte ou respirasse contra mim.
Queria valorizar nosso primeiro beijo como se fosse o último.
Após alguns segundos apenas encostado ele lançou sua língua para fora,
invadindo minha boca. Timidamente eu deixei a minha própria tocá-lo e
deslizar contra a maciez de sua boca. Os lábios eram firmes e inchados contra
os meus e seus braços me seguraram firme pela cintura antes de subir e
agarrar um punhado do meu cabelo com uma mão enquanto a outra segurava
meu pescoço. Siriu inclinou minha cabeça para o lado, lhe dando liberdade
para explorar minha boca como quisesse.
Eu ardi e suspirei. Tremi, mordendo levemente e de modo desleixado
seu lábio inferior, o que me rendeu um riso curto e sombrio. Eu amei. Meus
dedos apertaram em seus ombros, tentando puxá-lo para mais perto de mim e
ele veio, ele me deixou pressionar contra seu corpo alto e forte, deixando-me
sentir os músculos que desenhavam ele todo. Meus seios duros e rígidos
estavam amassados nele e eu gemi. Era tão bom.
Ele puxou meu cabelo num aperto firme, sem machucar, apenas
lembrando-me que estava no controle.
Ele me oprime.
Me deixa tonta.
E eu quero ainda mais disso.
Após esse momento ele puxou a cabeça para trás separando nossos
lábios e eu tentei resistir, mas Siriu segurou meu rosto no lugar enquanto
escovava nossos lábios uma última vez. Um último e doloroso toque. Eu
sabia que tinha acabado. Acabara de beijar um homem e sabia com certeza
que nada superaria aquela sensação. Suas mãos me segurando, seu corpo
inigualavelmente forte contra o meu, seu cheiro me cercando e um
movimento no meu interior que fazia minha barriga revirar deliciosamente.
— Obrigada, mestre — sussurrei, ainda incapaz de abrir os olhos.
Estava presa no encanto do que seu beijo fez para mim.
— Te darei o que posso, mas em troca quero tudo. Seus lábios. — O
polegar correu pelo o meu lábio inferior. — Sua atenção. — Ele beijou minha
orelha. — Seus olhos fodidamente loucos. — Ele soprou em minha pálpebra,
fazendo-me abrir. — E seu corpo e vai amar cada minuto disso. — Siriu
forçou minha frente contra a sua. — Enquanto estiver aqui comigo me dará
tudo.
Enquanto estiver aqui comigo...
Eu não precisava estudar ou pesquisar na internet para saber o que
significava aquilo. Minha estadia tinha data de término e meu coração errou
duas batidas ao reconhecer que não ficaria ali para sempre.
O resto dos meus dias no mundo novo não seriam os mesmos sem a
segurança dele ou a única familiaridade que eu encontrava. Meu lar. Eu cresci
ouvindo sobre ele. Sonhei com ele quando a dor era demais para suportar.
Acreditei assim que o vi do lado de fora e longe de Kazel, que Siriu seria
minha salvação, ainda que não soubesse precisar de uma na época.
Mas acabaria.
Eu sabia que uma vida sem a Kambarys e sem Kazel, eu podia lidar.
Podia me isolar em solidão e esperar o fim, mas depois de conhecer o
conforto de um mestre como Siriu, não podia esperar a mesma coisa.
Ele não buscava prazer em me ver sangrar, ele não me faria correr pela a
minha vida e jamais permitiria que outros homens me machucassem como
Kazel fazia. Embora eu gostasse da dor que vinha antes daquele alívio
delicioso, nunca apreciei a dor da tortura, do sangue e da humilhação.
Aguentei porque tinha que suportar.
Mas, assim que Siriu estivesse feito de mim, eu estaria feita para a vida.
E eu encontraria paz sabendo que fui cuidada e protegida pelo diabo. O
homem que nos meus sonhos me salvou.
“Ela te fará amaldiçoar, mas ela é uma bênção
Porque ela está mexendo com sua cabeça”
AVA MAX, SWEET BYT PSYCHO
— Eu fiz certo? — Ela perguntou com a voz baixa, ansiosa e olhos
suplicantes.
Se fez certo? Porra, ela beijava como uma deusa. Raiva me corroeu ao
pensar que Kazel tinha feito isso. Que devia tê-la torturado até que ela
beijasse perfeitamente, até que os toques de suas mãos e sons fossem
sincronizados com a língua. Tudo nela foi feito para tirar o juízo de qualquer
homem.
— Fez, mas ainda precisamos praticar muito mais.
Dei dois passos atrás, livrando-me de seus braços e recolhendo meus
dedos ou eu a tocaria mais do que o planejado para aquela noite.
Não foi planejado.
Sim, eu precisava reconhecer que não foi, as emoções que eu trancava
tão fortemente estavam evoluindo e entraram em ebulição com o que Freya
disse. Mestre. A honra de tal palavra não podia ser explicada. No meu
mundo, significava confiança profunda e incondicional. Não importando o
que eu decidiria fazer com ela, ela deixaria e ficaria feliz, e por fim me
agradeceria.
Eu era um sádico filho da puta e nunca escondi, mas pela primeira vez
estava desesperado por algo. Alguém. Ela. Queria escravizá-la, domá-la,
levar Freya em todos os sentidos.
A sodomizar.
Fazê-la precisar de nós.
— Agora, sobre o nosso acordo...
— Posso beijá-lo novamente? — Ficando na ponta dos pés, ela tentou
alcançar minha boca, mas a mantive firme pela cintura.
— Trato é trato, Freya. Você recebe algo e precisa me devolver em
troca.
— Como uma compra? — comparou.
— Sim, como uma compra. Agora me diga por que pensou em se jogar
do penhasco?
— Eu gostaria de não precisar falar sobre isso, mestre — sussurrou,
causando-me um arrepio não só pela voz suplicante, mas a palavra que tão
facilmente atribuiu a mim.
— Mas vai. — Segurei seu queixo, levantando o rosto para mim. — Eu
quero que me diga.
Ela era bonita demais. Não como uma beleza rara, mas algo confuso até
de se entender. Os olhos grandes e amarelos, a pele tão macia mesmo depois
de ter sido tão maltratada, os lábios num formato perfeitamente cheio e
avermelhados. Lembrei-me que logo que Demeron voltou do resgate, avisou
que uma escrava resgatada de Kazel ficaria na mansão, avisando que a
menina estava perdida. Sem vida e sem brilho. Mas eu olhava para Freya e
não conseguia entender de onde meu primo tirara aquela conclusão.
Passamos por infernos diferentes, ela sofreu muito mais do que eu, não
era possível nem comparar, e ainda assim, sorria. Sorria, ousava ter esperança
e me trazia a porra de filmes para assistir.
— Diga-me, agora.
Ela me observou por um momento, como se analisasse cada linha e traço
do meu rosto.
— Eu nunca tive nada além do peso das mãos de Kazel sobre mim, mas
aquelas também eram as mãos que me davam amor e atenção. Quando
finalmente te conheci, percebi que era um tipo diferente de segurança. O
senhor me deu alívio, mas não me fez sangrar. O senhor preencheu o que
estava vazio desde que fui libertada de Kazel, mestre. Como eu poderia voltar
àquele vazio?
— Então... quis se matar porque pensou que eu a tinha mandado
embora?
Ela franziu o cenho, dando um passo à frente quando eu a soltei e me
afastei, mas pensou melhor e ficou parada.
— Eu não diria me matar, mestre. Ia apenas livrar-me do vazio.
— E como essas duas coisas são diferentes?
— Eu... eu não sei.
— Porque não são. — Firmei meus olhos nos dela, sentindo um misto de
raiva, preocupação e um fodido desejo. — Você não pensará mais em tentar
contra a sua própria vida, Freya. Se fizer algo para machucar a si mesma
intencionalmente vou fazê-la se arrepender.
Quando ela desviou os olhos, fiquei tentado a puxá-los de volta para
mim, mas aquilo precisava vir dela. Tinha que ser sua compreensão de que
não me agradaria.
— Sim, mestre.
Outra mentira.
Como eu poderia prometer que não faria nada se ele me deixasse? Não
era isso o que um mestre procurava em sua amante? Disposição e adoração.
Eu aprendi a orar por Kazel, esperar por ele para ser banhada, alimentada,
cuidada e punida. Quando fiquei enferma ele me tratou e me mostrou que por
ele eu continuaria viva mais um dia. Minha gratidão e servidão lhe pertencia.
Ele ficava feliz em me ter dependente.
Por que Siriu não?
Ele não te ama.
Ele não se importa o suficiente.
— Prometa para mim. Diga isso. Me dê a sua palavra de que não irá se
pôr em risco.
— Dou-lhe minha palavra e promessa, mestre, de que não vou me
colocar em risco.
As mentiras saíam tão fáceis de meus lábios que me fez pensar que
aquele mundo já estava me modificando e antigamente eu teria me
importado, mas quando mestre me deu um olhar aquecido eu percebi que
faria qualquer coisa para que me olhasse sempre assim.
Para que se importasse.
Para que aprendesse a me amar.
Depois da estranha conversa com Freya eu saí de seu quarto em meio a
um debate comigo mesmo enquanto a mandava comer e ir se deitar. Ela
precisava cuidar de sua mão, e por mais que uma parte de mim quisesse fazer
aquilo eu já tinha passado muitos dos meus limites.
Preocupando-me, tentando entender a jovem mulher, conhecendo partes
de mim mesmo que até então não sabia ainda existir.
Depois daquela mais de uma década atrás naquele hotel, eu não me
permiti mais possuir nada. Nem uma casa, nem um carro, um animal de
estimação e muito menos uma mulher. A única coisa que chegou o mais
próximo de família fora minha própria família de sangue, eu joguei para
longe como se não fosse nada e naquela época não era. Ainda não é.
Por anos e anos e ainda hoje, me condenei por ter acreditado em Kazel,
na história que contou e mesmo depois de ter ficado ao seu lado, sempre me
pegava pensando no que no fundo da mente eu sabia que era verdade: ele era
o monstro que os policiais me procuraram aquela manhã para falar. Ainda
que dissesse o contrário.
Então por que fiquei?
Pergunta para a qual eu jamais teria a resposta.
Agora Freya, a única pessoa que ele se importava, mesmo que fosse
apenas para provar a si mesmo doentiamente, estava comigo. Precisava de
mim. Tiraria a própria vida apenas com o pensamento de que eu a
abandonaria.
Parecia rápido e exagerado, mas não para mim.
Onira não entenderia, Kaladia tampouco, mas eu sim. Eu sabia o que era
precisar de algo tão desesperadamente que tudo se tornaria preto e branco.
Nada mais faria sentido além daquela única coisa.
Minha justiça.
Nossa vingança.
Freya viveu intensamente toda a sua vida. Essa intensidade se virou para
mim e eu era tudo o que ela via. Embora quisesse me sentir mal por isso, não
conseguia. Eu gostava de ser o centro de seu mundo, mas o pensamento
incômodo de que quando eu a mandasse para longe ela faria algo consigo
mesma me sufocava.
Não tinha como consertar isso. Era o que era.
Quando deslizei o carro para esquerda na porta da boate de Kirina meu
celular tocou. Poderia ser o segurança que deixei no apartamento ao lado
observando Freya e apenas por tal motivo eu decidi atender.
— Siriu.
— É Onira.
— Adeus. — Desliguei.
O telefone voltou a tocar três segundos depois.
— Que porra você quer?
— Será que você não sabe ser civilizado? — gritou.
— Não com você.
Ela rosnou do outro lado.
— Se Freya está sendo tratada assim eu vou saber, Siriu, e não me
importo com seu nome ou sua fama, vou cobrar o que fizer para ela!
— Diga de uma vez o porquê ligou.
Ela me irritou. Freya estava sendo tratada melhor que qualquer pessoa
que já cruzou meu caminho e Onira continuava agindo como se tivesse voz.
Como se eu fosse virar seu cachorrinho igual meu primo fez.
— Não é porque a deixei sair da minha casa com você que estou
abrindo mão dela. Freya tem compromissos e responsabilidades.
— Ela não voltará a trabalhar para Ward. Diga-me o contrário e o
sangue do homem que ousou tocá-la estará em suas mãos.
Houve um momento de silêncio.
— Ela te contou sobre isso?
— Eu não tenho tempo livre, porra, o que você quer?
— Ela precisa ir a terapia! Você tem que levá-la toda sexta-feira até
que a psicóloga diga o contrário. Ela também tem que tomar seus remédios
e...
— Sem psicóloga, sem remédios.
— O que quer dizer?
— O que parece? — ironizei. — Ela acabou com toda essa merda.
— Você não pode! Ela está num caminho melhor e logo estará curada
de suas cicatrizes, Siriu, não tire isso dela.
Eu quis rir. Eu quis rir pra caralho. Caminho melhor? Cicatrizes? Em
que mundo aquela mulher vivia?
— Você se lembra quando foi levada por eles?
Ela bufou sua indignação.
— É claro que sim, todos os dias.
— Então não entendo de onde está vindo toda essa merda de cicatriz.
Inferno, ninguém se cura disso. Aprender a viver um dia após o outro é o
máximo.
— É para isso que a psicóloga e psiquiatra servem! Elas têm me
ajudado e Freya também po...
— Onira — falei calmamente, mas o gelo em minha voz não tinha como
ser perdido. Eu esperava que ela não perdesse. — Não me ligue cheia de
ordens do caralho. Na verdade, não volte a me ligar ou eu vou dizer a
Demeron que temos uma segunda Kaladia na família. Entendeu?
— Ah, meu Deus, você é um porco!
— Sim, mas foi você quem me ligou. Freya não vai querer voltar de
qualquer maneira.
— Apenas pergunte a ela! Não, melhor... Ela dirá que não quer.
Nenhum paciente quer ser tratado ou admitir um problema, por favor,
apenas a faça ir.
— Você quer que eu a force? — Fiz uma pausa do lado de fora ao jogar
a chave do carro alugado para Heinrich guardar.
— Não é forçar, mas por alguma razão ela te escuta. Você poderia só
dizer que ela tem que ir.
— Ou seja... a forçar.
— E você por acaso tem algo contra isso? Eu não duvido que já tenha
coagido muitas mulheres a fazer coisas com que não estavam confortáveis.
Sua irritante mania de trazer sua amiga, Slom ao assunto em qualquer
oportunidade me tirou do sério.
— Você é uma hipócrita, não é, japonesa? Critica meus métodos, mas
quando te interessa você distorce o assunto até ser cabível de justificativa em
sua cabeça para se sentir melhor consigo mesma e você faz exatamente o que
eu faria.
— Posso ser. Mas só quero o melhor para Freya.
— Pode deixar que eu decidirei isso. — Desliguei, e o telefone não
tocou novamente.
O garoto me observou enquanto esperava que eu saísse da frente da
porta da BMW. Ele parecia indeciso de falava algo ou não.
— Cuspa. — Mandei bruscamente fazendo-o se sobressaltar.
— E-eu só queria pedir desculpas mais uma vez, senhor.
— Ela é muito bonita, não é?
— Eu não reparei. — Ele abaixou a cabeça com sua mentira,
escondendo os olhos azuis idênticos aos de Demeron, de mim. Eu precisava
fazer um teste de DNA para comprovar minha teoria ou ficaria louco.
Demeron era seu pai, não havia como mentir sobre isso, mas e sua mãe? Será
que o garoto sabia de suas raízes?
— Reparou sim. Não minta mais para mim, garoto.
— S-sim, senhor.
— Kirina te deu esse emprego?
— Sim, senhor.
— E você gosta?
Ele deu de ombros.
— É mais uma forma de ganhar experiência até que eu possa entrar na
Liga.
Minhas sobrancelhas saltaram ao saber de sua ambição.
— Quer ser igual a Demeron, eu suponho.
Ele me olhou dessa vez. Seus olhos cravando tão forte nos meus que
precisei desviar por um segundo. Ele engoliu em seco, depois assentiu.
— Sim, por Demeron. Claro.
Eu assenti lentamente.
— Cuide do carro.
Adentrei a boate vazia, encontrando quem eu procurava lá dentro. As
luzes estavam todas acesas, dando-me uma vista de cerca de nove meninas
ensaiando para suas performances ao anoitecer. Atraí atenção quando entrei,
sentando-me numa poltrona para esperar que Liémen chegasse. Ultimamente
o homem vinha me chamando com mais frequência e a minha suspeita sobre
suas motivações não me agradavam. Ele queria a identidade de Freya e não
fez segredo sobre isso.
Kirina não amarrava um ponto sem nó. Tudo em seu estabelecimento
gritava luxo, servia prazer e liberava endorfinas. Ela entregava drogas em
uma bandeja de prata e bebidas caras em bandejas de ouro. As mulheres que
trabalhavam lá também eram boas. Bonitas, cuidadas. Uma ou duas eram ex
escravas da Kambarys que ficaram presas por pouco tempo e quando saíram
não quiseram deixar a proteção que tinham em Berlim de jeito nenhum.
Outras eram viciadas que Kirina resgatou da rua e cuidou, depois ofereceu
duas opções: serem jogadas a própria sorte outra vez ou ganhar dinheiro
trabalhando para ela. Havia também as que já não tinham mais esperanças e
passaram por coisas o suficiente, cansando de esperar qualquer bondade do
destino.
Kirina as dava o melhor da estética no começo, comprava suas belezas e
as mulheres a pagavam quando o dinheiro começava a entrar, e se sentiam
em dívida com a mulher por anos.
Ela tinha 38 anos, mas ninguém lhe dava nem 30. Tinha mais respeito
do que muitos homens conquistavam na vida. E dava casa para os que
precisavam de abrigo.
Por isso eu me encontrava ali mais uma vez. Depois da confissão de
Freya foi difícil ficar lá. Eu tinha que sair antes que meus pensamentos
sombrios ganhassem a batalha em minha mente e eu me tornasse outro Kazel
para ela.
Que ela precisasse de mim para guiá-la eu conseguia entender. Que ela
poderia se matar ao pensar que eu a deixaria... isso não me entrava na cabeça.
Eu queria protegê-la e garantir sua segurança, não lhe causar um mal
irreversível.
Mas nós gostamos de sua dependência.
— Você anda muito pensativo, meu amigo. Depois não quer que eu me
intrometa. — A voz de Liémen não me assustou ou surpreendeu, mas irritou.
— Me seguindo?
Ele tomou a poltrona mais próxima sem me olhar no rosto.
— Sim.
— Eu pensei que me conhecia bem o suficiente para levar meu recado a
sério, Liémen.
— Eu faço, mas o submundo fala. Passarinhos cantam e ratinhos correm
do esgoto mais podre na periferia para os canos mais caros da cidade.
— Seu ponto?
— A palavra é que você mantém alguém importante para si mesmo. Que
sua nova mulher é alguém.
— Conto de fadas adorável.
— Um conto de fadas, de fato. Principalmente se você a mantém
guardada numa torre alta.
Mantive minhas mãos para baixo, escondendo o quão perto da verdade
ele estava e o quanto odiei isso. Eu sorri.
— Isso não seria muito heroico para mim?
— Veremos em breve. Assim que meu homem voltar de seu
apartamento em Frank e confirmar minhas suspeitas.
Tarde demais. Eu me movi antes que pudesse pensar. Minhas mãos em
seu pescoço e sua risada reverberando por cima da música que tocava baixo.
A voz das meninas se calou e o barman atrás do balcão parou de tilintar as
bebidas que praticava a preparação.
— Oh, bem. — Liémen me olhou nos olhos. — Parece que não terei que
mandar ninguém lá afinal de contas. Já tive a minha resposta.
Eu pressionei o aperto um pouco mais, observando os olhos começarem
a arregalar, mas não de medo. Liémen jamais se deixaria mostrar tal fraqueza,
mas de vitória. Ele blefou e eu caí como um pato desesperado por migalhas.
E eu fui tão incrivelmente estúpido. Ainda que ele tivesse mandado
alguém verificar o apartamento, eu tinha câmeras que avisariam os dois
seguranças no momento em que acionassem o andar no elevador. Só que o
simples pensamento de alguém alcançando Freya para machucá-la ou usá-la
contra mim me deixava fora de controle. O sentimento não me pertencia.
Nem uma única vez eu deixei algo me subjugar de tal forma, mas agora o fiz.
E agora Liémen sabia.
Havia dois grupos de indivíduos que buscavam encontrar algo ou
alguém que era importante para mim. Meus inimigos, para usá-los como
forma de me machucar e aqueles que queriam fazer negócios comigo, e
poderiam usá-la para me chantagear.
Freya não estava segura de nenhum deles. Nem mesmo de mim.
E ainda tinha Kazel.
— Diga-me quem é ela, meu amigo.
Eu o soltei. Matá-lo só colocaria mais lenha na fogueira. Liémen era
precioso para muitas pessoas que adorariam buscar sua vingança, mas o que
mais me preocupava: buscariam o motivo para eu tê-lo matado.
— O que você quer pelo seu silêncio?
— Eu? — Ele gargalhou. — É realmente comigo que deve se
preocupar?
— Com quem você compartilhou isso?
Ele me deu um olhar demorado, analisando meu rosto como nunca fez
antes.
— Ela é importante — constatou. — Não é um brinquedinho para você
bater e foder como as outras. Agora estou curioso para conhecê-la.
— Jamais, Liémen. Com quem abriu o bico?
— Ninguém, mas devo dizer que seu primo atuou melhor do que você.
Me disse que não se falavam há mais de dois meses e não se importava com
seus assuntos.
Saber que Demeron mentiu melhor do que eu mesmo tendo se tornado
um cachorrinho emocional de Onira me deixou infeliz e irritado.
— Ele não mentiu — falei. Mesmo que Liémen tivesse pegado a
informação sobre Freya de bandeja comigo, eu ainda podia esconder sua
associação com Demeron e assim, proteger a verdadeira origem dela.
— Eu quero vê-la.
Dessa vez eu fui o único a rir.
— Que pena.
Ele desviou os olhos de mim e focou na menina que ensaiava sua dança
de cadeira no palco.
— Então me mostre uma foto.
— Qual é a porra do seu problema? — perguntei. — Eu vim para ter um
pouco de paz se está difícil perceber.
— E terá assim que me mostrar sua Rapunzel.
— Me foda, Liémen.
— Não direi a ninguém sobre ela.
— Eu agradeceria se não soubesse que seu silêncio me custará algum
dia.
— Siriu. — Seu tom foi mais grave, me fez encará-lo e pela primeira
vez o vi com algo a mais nos olhos. Eu não sabia o que era, mas estava lá e
Liémen não estava tentando esconder. — Apenas uma foto.
Ele a quer.
Mate-o.
— Cale a boca — rosnei.
— O quê? — Liémen perguntou.
Acabe com isso de uma vez!
— Nada. — Cuspi, então assoviei chamando a atenção de uma das
mulheres e ela se aproximou, sentando-se em meu colo. Eu nunca a tinha
visto ali e me estranhou que suas colegas de trabalho não a ensinaram como
me tratar. — Levante-se.
— Eu posso fazer melhor sentada aqui. — Ela ronronou, esfregando os
seios em meu peito.
Eu não tirei minhas mãos dos braços da poltrona, esperando que meu
olhar lhe desse o recado sobre o quão sério eu falava. E funcionou, ela se
afastou com medo no olhar, mas não se levantou, a sede de dinheiro era mais
poderosa que seu temor.
— Você vai servir ao meu amigo aqui do lado, ele está se sentindo um
pouco para baixo hoje. Tire essa vulnerabilidade dos olhos dele antes que eu
os arranque.
— Mas eu quero servir o senhor. — Inclinando-se para a frente e
encostando os lábios em minha orelha, ela sussurrou: — Senhor X.
Eu não senti nada. Nem sequer meu pau ficou tentado. Houve apenas
irritação pela mulher não ter seguido minhas ordens, embora eu pudesse ver o
motivo nos olhos injetados. Kirina não permitia drogadas em seu clube
justamente por isso. Elas não aprendiam seus lugares.
Mas, antes que eu pudesse levantar e mandá-la embora de uma vez, uma
sombra cobriu a luz que vinha do palco e eu mal reconheci a voz tamanha a
fúria que havia no tom.
— Saia de cima do meu mestre.
A mulher olhou para cima, onde Freya se erguia sobre nós e eu a senti
ficar tensa, preparando-se para brigar. Se a puta pensava que olharia errado
para ela, estava muito enganada.
— Quem você pensa que...
— Cale a boca — falei. — Saia de cima agora.
Se minha voz não foi o suficiente para convencê-la, meu olhar foi. A
mulher olhou entre mim e Freya e saiu apressadamente. Eu me levantei e
segurei o braço da mulher que deveria ter ficado em casa segura, e condenei a
morte os homens que ficaram para garantir sua segurança.
— Mestre. — Ela falou enquanto eu a puxava para trás da boate ao
longo do corredor, mas era tarde. Eu ouvia os passos de Liémen atrás de
mim. Eu imaginava que ele tinha conseguido ver seu rosto, mas não tinha
como saber. Caso contrário ainda dava tempo de protegê-la.
— Siriu.
— Saia Liémen, ou eu vou matá-lo.
— Vou pagar para ver. — Senti sua mão alcançar meu braço, a um
passo de me parar e conseguir enxergar o rosto de Freya.
Faça alguma coisa.
Eu tirei minha arma do sobretudo e apontei para Liémen. Ele não parou.
Ele sabia que eu jamais atiraria nele por qualquer razão. Mas Freya não era
qualquer coisa. Ela era a única que me importava.
Apontei para seu joelho e atirei, arrancando-lhe um grito de surpresa e
ele desabou no chão.
— Não venha atrás de mim, Liémen. Para protegê-la eu mataria você.
Esqueça o dia de hoje.
Nós pegamos o elevador até o quarto andar, onde eu usava aquele único
quarto com Kirina e tranquei a porta mais segura da boate.
— O que diabos você pensa que veio fazer aqui? — rugi, soltando-a e
encarando os olhos amarelos arregalados.
— O senhor estava prestes a tomar outra — sussurrou.
— Freya. — Aproximei-me e sentindo o fogo dentro de mim eu sabia
que estava perto de fazer algo que não teria volta. — Eu lhe disse para ficar
no apartamento. Deveria ter me ouvido.
— O senhor é meu. — Ela falou com uma coragem impressionante. E
suas palavras tanto me irritaram quanto excitaram. O que a prostituta de
Kirina não conseguiu fazer com o corpo, Freya fazia com uma simples frase.
Porra, bastava que eu a olhasse.
— Eu decidi que precisava fazê-lo me amar, mestre. Se eu aprendesse a
ser como as outras mulheres... então... então...
— Então o quê?
— Então talvez...
— Talvez o quê?
— Talvez o nosso tempo juntos não acabasse e eu poderia manter a
promessa que lhe fiz.
Porra.
Porra. Porra. Porra.
Ela tirou a minha capacidade de falar.
Ela abriu a boca e arrancou a porra das minhas palavras.
— De joelhos. — Foi tudo o que eu consegui dizer.
Minha mente começou a escurecer e percebi que as sombras me
dominavam ali. No momento, em que entrei naquele quarto elas saíram. E
disso eu não podia proteger Freya, não importa o quanto tentasse.
— Mestre? — perguntou com um semblante confuso.
— Ajoelhe-se, eu não vou repetir. Abra as minhas calças e me coloque
na boca. Eu sou seu, não sou? — Minha voz era perversa, e o olhar assustado
no rosto dela confirmou isso.
Existia uma barreira e mil soldados, eu era todos eles. Quinhentos
estavam de um lado e o restante do outro. Eles tentavam se puxar para ambos
os lados, ansiosos para ganhar a batalha entre, eu e eu mesmo. Naquele
espaço de tempo a parte mais escura de mim ganhara.
Freya não estava mais comigo, ela estava com as sombras. E eu só podia
assistir como se estivesse fora do corpo.
Ela não hesitou.
E me doeu não saber se ela obedeceria porque queria fazer ou porque
seu treinamento de vida a obrigava a seguir ordens.
E isso importa?
— Sim, mestre.
— Não fale.
Ela abaixou a cabeça e ajoelhou onde estava, engatinhando até estar na
minha frente. Seu rosto a centímetros do meu pau de aço. Os cabelos
escorregaram cobrindo um lado do rosto e ela inclinou-se para abrir minha
calça após puxar o cinto, seus dedos ágeis me irritaram, o modo como ela
sabia ir lento quando deveria, e rápida no melhor momento me irritou.
O conhecimento de quantos paus ela já chupou na vida me fez querer
descer até o salão da boate e estripar cada corpo vivo.
Ela mordeu o lábio inferior quando levantou os olhos para mim assim
que meu pau veio à tona. Ela já o tinha visto uma vez muito rapidamente,
mas agora estava a um palmo de seu rosto e pesado como uma rocha. A
cabeça vermelha e as veias saltadas a ponto de estourar doíam. Eu estava
dolorido pra caralho. Ansiava sua mão, sua boca, seu corpo... o que quer que
pudesse alcançar dela.
Vamos aproveitar sua punição.
— Faça isso rápido — rosnei.
Como ela ousava se colocar em perigo daquele jeito? Vindo até aqui
sozinha, descumprindo a minha ordem quando tudo o que eu queria era
deixá-la segura?
Você só quer garantir que Kazel não pegue seu brinquedo de volta.
A respiração acelerada de Freya fez a minha própria correr. A primeira
coisa que senti foi sua respiração onde eu já estava molhado, arrepiando-me
por inteiro. Parecia que nunca tinha ganhado um boquete na vida. Ela foi
lenta, indo contra a minha ordem. Beijou a cabeça inchada e minhas pernas
tremeram. Contive um gemido entredentes cerrados. Minha cabeça girou e
ela tropeçou ao se aproximar mais, raspando ligeiramente o dente sob minha
pele.
— Porra.
— Perdão, mest. — Eu agarrei sua cabeça e me enfiei dentro.
— Ordenei o seu silêncio, göttin.
Freya fechou os olhos, gemendo seu próprio tesão quando eu soltei sua
cabeça e ela começou a trabalhar por conta própria. A sensação daqueles
lábios em torno do meu pau era indescritível.
Ela lançava sua língua em minha fenda, sugava profundamente
afundando as bochechas e me engolia por inteiro. Minha grossura era um
mero detalhe em seu desempenho. Eu agarrei os cabelos longos de um lado e
me permiti acariciar sua mandíbula do outro, olhando nos olhos amarelos que
vazavam com água e ficavam vermelhos cada vez que ela afundava
profundamente. Minhas bolas precisavam de atenção, mas eu simplesmente
não podia tirá-la da extensão. Balancei sua cabeça ora depressa, depois de um
lado para o outro e ela tomou tudo. Ela não reclamou dos engasgos e
tampouco se afastou quando eu apertei o cabelo com mais força.
Não.
Minha göttin tomou tudo o que eu dei.
Perfeita.
Seus olhos não desviavam dos meus. Havia sentimentos que eu só podia
deduzir a origem.
O medo do que eu faria a seguir.
A ansiedade para ser tocada por mim.
A pressa de ter seu próprio prazer.
Mas havia algo que me fez sentir o orgasmo vindo com força: sua
confiança. A certeza de que não importava o que eu a mandaria fazer, ela
faria e agradeceria por isso.
— Tome cada gota que vou te dar.
Ela gritou e seus olhos reviraram quando meu pau pulsou em sua
garganta, afundando-me ainda mais, deixando seus lábios fechados na raiz,
acariciando minha pélvis. As unhas arranharam minhas bolas e acariciaram. E
ela soltou um “mestre” no fundo da garganta que arrancou o esperma do meu
corpo.
Eu pressionei o aperto em seus fios compridos e joguei a cabeça para
trás, sentindo o alívio, contraindo meus músculos e o suor fino brotando em
minhas costas.
Caralho.
Por alguns segundos eu a mantive ali. Seus braços tremiam e o rosto
estava vermelho e todo molhado. Ela mais do que nunca parecia uma deusa.
Meine göttin.
Puxei para fora, soltando-a e fechei a calça antes de me agachar a sua
frente, passando os dedos pelo rosto bonito. Ela levantou os olhos cansados
para me encarar, esperando que tivesse me agradado, mas ela nunca saberia.
Não haveria jamais como explicar o que senti ali.
Eu jamais entenderia como Demeron se tornara tamanho pau mandado
de Onira, mas minha compreensão chegava perto de seus motivos agora.
Eu faria definitivamente qualquer coisa que Freya precisasse.
— Boa menina, Freya. — Alcançando a barra da saia, a puxei um pouco
e enfiei minha mão por baixo, alisando sua perna enquanto subia até o lugar
que procurava. Freya se desequilibrou enquanto tremia sob meu toque.
Estava ansiosa e esperançosa sobre o que eu faria, se agarrou com as duas
mãos nos meus ombros sem deixar de me olhar nos olhos.
Eu encontrei a calcinha absurdamente encharcada e sorri para ela. Passei
um dedo sob a linha do lado, empurrando o tecido fino para encontrar a
abertura de sua pequena boceta e penetrei um dedo, recebendo um gritinho
surpreso dela. Não me demorei lá. Puxei de volta e trouxe ao rosto, cheirando
sua intimidade em minha pele. Levei o dedo a boca, chupando e fechando os
olhos rapidamente.
— Vamos para casa.
Quando Siriu saiu de casa eu me vi sozinha no quarto desejando que não
tivesse ido. Desejando que me quisesse tanto que qualquer compromisso que
tivesse do lado de fora das portas do apartamento fossem nada em
comparação a mim.
Eu sabia deixar homens com vontade de mim. Sabia usar meu corpo,
minha boca e minhas palavras, mas Siriu era mais do que um simples
homem. Meu treinamento não podia seduzi-lo e minha cabeça confusa não
me deixava entender o que fazer para conquistá-lo.
Eu não queria ir embora quando se cansasse de mim. Não queria que se
cansasse. Queria que por um momento ele se tornasse o diabo e não me
deixasse ir. Porque ele era a minha proteção, minha maior vontade e a única
parte desse mundo que pude entender.
Eu me vesti e escapei do apartamento que Siriu me deixava pela porta da
frente, mas um homem logo saiu da casa ao lado e me mandou voltar para
dentro, então ele tomou a chave de mim e me trancou, avisando que diria ao
chefe que tentei sair. Só que eu precisava ir até Kirina. Em meu novo plano,
encontraria alguma das meninas que estivesse disposta a me ensinar como
deixar meu mestre tão louco em mim que jamais me deixaria ir embora.
Assim, eu não quebraria a promessa que fiz a ele.
Então eu pensei em todas as formas que já havia fugido de Onira e
comecei a andar pelo apartamento, buscando uma nova forma de sair. As
janelas eram altas demais, mas tinham o lado de fora aberto com apenas uma
porta, como Onira chamava de sacada quando fomos a um restaurante que
tinha algo igual. Eu saí pela porta e dei de cara com a cidade e o vento
congelante. Olhei dos dois lados. De um, tinha aquela que deveria ser da casa
ao lado onde o homem que servia Siriu estava e do outro, eu não sabia, mas
arriscaria.
Então eu saí e encontrei um lugar vazio, com chaves penduradas ao lado
da porta. Não vi a porta de nossa casa quando saí, e o elevador estava ao lado
contrário, mas não me apeguei a detalhes de minha fuga.
Pensei em como fiz Zippo pagar o táxi na porta da boate de Kirina e
agora estava frente a frente com Siriu. Vê-lo com uma das meninas doeu.
Doeu e eu não escondi isso.
Por que esconderia?
— Te ver com outra pessoa me dói, mestre.
Doeu como nunca antes. Nem com Kazel, quando ele levava mulheres e
homens ao nosso quarto. Nem quando ele tomava meninas na minha frente e
me fazia assistir. Mas, Siriu estava vestido, suas mãos não tocavam a mulher
dançando para ele e ainda assim eu senti como se ela estivesse torcendo-me
com as próprias unhas afiadas.
— Eu não estava com outra pessoa.
— Ela o tocava. — Minha voz estava diferente, eu me sentia diferente,
mas não conseguia controlar. Sentia raiva. Sim, raiva muito séria.
— Isso não é motivo para que fizesse o que fez. — Me repreendeu.
Tudo o que eu queria era voltar lá e fazer pior.
Todas elas precisavam saber que não podiam tocá-lo.
— Eu não posso ver. — Fechei os olhos. — Não posso ouvir, nem posso
pensar, mestre, por favor... — Minha cabeça balançava sem que eu pensasse
sobre isso, uma negação diante de todas as visões que me torturavam. Ele,
outras mulheres... sexo. Muito sexo.
— Eu não fiz com aquela mulher o que fiz com você. — Sua voz era
calma e eu tentava me acalmar ao ouvi-lo. Mas sorri ao ouvir suas palavras.
— Eu gostei do que fizemos, mestre.
— Esse é o objetivo. — Ele ficava tão bonito dirigindo e a beleza só
aumentava quando eu lembrava que estávamos indo para casa.
“Boa menina, Freya. Vamos para casa.”
Casa.
Sorri com o pensamento. Eu não considerava mais aquela casa apenas
sua, não. Ela era nossa.
— Vamos fazer mais? Quando chegarmos?
O canto do lábio dele ergueu um pouquinho e eu percebi pela primeira
vez um buraquinho na pele.
— Toda ansiosa — murmurou. — Por hoje basta. Você vai tomar um
banho, deitar-se em sua cama e vai dormir.
Me enchi de decepção, mas também percebi algo.
— O senhor não gostou — sussurrei.
— Não gostei do quê?
— De mim. De como eu o toquei.
— Não diga bobagens. — Sua testa franziu, a pele ao lado do olho
juntando-se daquele modo que o deixava ainda mais bonito.
— Foi o jeito como chupei o seu pênis, mestre? Eu posso fazer melhor.
Sei fazer isso de muitas formas. O senhor pode ter meu corpo como quiser.
Minha boca, minha vagina e minha bunda também. Sei que muitas mulheres
não gostam, mas eu estou acostumada e...
O carro acelerou para o lado e parou tão rápido que me fez ir para a
frente com tudo. O cinto e seu braço me seguraram no lugar, então ele estava
livrando-me da segurança do cinto e me puxou para seu colo, na segurança
daqueles fortes braços.
Eu não sabia o que esperar, mas com certeza não o que recebi. Ele bateu
a boca na minha com tanta vontade que bebeu meu gemido, minhas mãos
queimaram para tocá-lo, mas eu não podia, não sem sua permissão. A língua
quente varreu minha boca, suas mãos tocando meu corpo onde alcançavam, a
barba raspando meu rosto e deixando uma ardência deliciosa. Eu me movi em
seu corpo, sentindo o volume de seu pênis duro embaixo de mim e ansiei vê-
lo outra vez. Queria tocar, beijar, dar minha adoração de modo que ele
esquecesse qualquer erro que cometi antes e não me negasse mais. Nunca
mais.
Mas, antes que eu pudesse aproveitar mais do beijo, ele nos separou. As
mãos grandes segurando meus cotovelos, mantendo-me no lugar enquanto
respirávamos fundo olhando nos olhos um do outro.
— Primeiro. — Começou. — Você nunca mais falará de outros paus.
Ninguém mais teve o seu corpo. Eles são todos fantasmas distantes, Freya.
Eu tenho você. Você me pertence e eu não quero ouvir mais falar sobre sua
vida nas Kambarys.
Ele parecia tão... tão bravo. Meu coração caiu. Agora definitivamente
me mandaria para longe.
Eu não sabia o que dizer. Como o convenceria de que era capaz de estar
ao seu lado se não pudesse contar sobre como deixava os homens felizes?
— Eu não tenho mais nada — sussurrei.
— Você não é mais uma escrava. Você saiu, está no mundo agora.
— Mestre... eu não sei nada além de como servir. Com... com o meu
corpo. — Eu senti a água deslizando de meus olhos e não as parei. Nunca
parava.
— Aprenderá. Não foi por isso que veio até mim?
— A única coisa para que sirvo não lhe agrada — desabafei,
empurrando meu braço de seu aperto e olhando para fora da janela.
— Mas o que... — disse ele, segurando-me novamente. — Olhe para
mim.
Eu não queria.
— Freya.
— Vai me mandar embora — falei. — Vai fazer o que Demeron e Onira
queriam e vai me internar como a louca que sou.
— Basta. — Ele me colocou de volta no banco e acelerou o carro outra
vez. — Levante sua saia. Arranque a calcinha e me entregue.
— Me-mestre...
— Agora — rosnou, desviando os olhos para a estrada para me mostrar
o quão sério falava.
Eu não hesitei mais. Tirei a calcinha e lhe dei, levantando minha saia até
a cintura. Nua no banco de couro de seu carro. O cheiro dele estava presente
lá dentro. Ou será que já impregnara em minha mente?
— Vire em minha direção, apoie-se na porta e abra as pernas. Eu quero
ver sua boceta inchada.
Eu o fiz, e ele puxou um pé para apoiar em sua perna. Eu estava
escancarada para ele e embora sua atenção estivesse na estrada escura, meu
corpo sentia como se ele não parasse de me verificar.
— Tire a camiseta.
Obedeci e meus mamilos já espremidos arrepiaram do ar do carro.
— Onde está seu sutiã? Responda.
— Eles me incomodam.
— Incomodam? Em que, Freya? Em deixar seus lindos seios presos? Ou
você só gosta de senti-los raspando na camisa o tempo todo como a pequena
pervertida que é?
Eu gemi, mordendo o lábio para conter a emoção de suas palavras. Eu
precisava de um toque, apenas isso. Se ele me tocasse por alguns segundos
seria o suficiente.
— Me diga, Freya. Me diga o porquê não tem nada segurando seus
peitos.
— Para que eu sinta quando o senhor me abraça, mestre.
— Então é uma provocação? Hum? Você quer me provocar?
— Sim — sussurrei, fechando os olhos.
— Abra seus olhos, göttin. — Deusa, não esconda meu sol de mim.
— Mestre, eu preciso de alívio.
— Eu sei. Mas estou pensando se merece. Você é uma criatura tão
perversa, Freya. Falando para o seu dono sobre outros homens. Isso está
certo?
— Eu acho que não.
— Você acha?
— Não está — corrigi de imediato. Qualquer coisa para que ele
aproximasse sua mão das minhas pernas.
— Isso mesmo. Não está. Depois você me provoca com seus seios
perfeitos e sua boceta molhada e ainda começa com essas bobagens de como
vai fazer melhor. Eu não gozei em sua garganta?
— Sim, mestre.
— E isso não foi sinal o suficiente do quanto você me agrada?
— Mas o senhor não me quer quando chegarmos em casa e...
— Você não fala sem que eu permita. Responda-me sim ou não, caso
contrário, fique quietinha. Ou sua boceta não receberá nenhum alívio de mim.
Eu lamentei com um gemido, meus quadris subindo, buscando qualquer
atrito mesmo que fosse impossível. Até o vento serviria para me tocar e levar-
me ao lugar bonito.
— Sim, mestre — sussurrei.
— Eu te quero e eu te terei quantas vezes e onde quiser. Mas quando eu
quiser. Não foi para isso que veio até mim, para que eu a guiasse?
— Sim, mestre.
— Então me aceite. Eu já disse que não tenho muito, mas vou lhe dar o
que posso, Freya. — Sua voz suavizou no final, fazendo-me encará-lo e ele
rapidamente bateu os olhos oceânicos nos meus antes de voltar a estrada. —
Agora toque sua boceta até sentir que está vindo.
— Mestre?
— Pode falar.
— Devo avisá-lo quando estiver chegando?
Seu sorriso dessa vez subiu dos dois lados do rosto, era carnal e
perigoso, e meu líquido escorreu mais um pouco ao vê-lo.
— Seu corpo é meu, Freya. Você apenas o guarda para mim. Eu vou
saber quando estiver gozando.
Não esperei mais. Toquei meu pontinho sensível e meus olhos tremeram
quando suor frio brotou, mas resisti a fechar os olhos, minha visão focada em
seu perfil másculo. Ele era tão, tão bonito... Lembrei-me de como seu
membro pulsante encheu minha mão, como cresceu em minha boca e como
se derramou em minha garganta. Pensei em como eu queria que afundasse em
meu corpo, mas mesmo que não pensasse em nada daquilo, teria sentido o
início do orgasmo. Só sua imagem muda já fazia tudo por mim. Ele era a
minha maior tentação. Condenei-me por pensar em Kazel quando Siriu me
proibiu de lembrar de outros homens, mas era por uma boa causa.
Ele me queria. Ele me decretou como sua.
Pela primeira vez eu entendi as palavras de Kazel.
“Qualquer homem morreria para ter você, Freya. Você enfeitiça nossas
mentes e consome nossos pensamentos até que a única saída seja tomá-la em
qualquer hora e qualquer lugar.”
Siriu me queria assim.
Eu sorri.
Eu sorri e apertei meu dedo sobre meu clitóris, sentindo chegar e...
— Pare.
Como se fosse um botão, o som de sua voz fez minha mão congelar. Eu
fitei seu rosto sério, distante e me perguntei onde estava o homem que me
autorizou a gozar.
— Mestre?
— Toque-se novamente.
Franzi a testa e ele sorriu sombriamente.
— Esse é o seu castigo por sua desobediência, Freya. Toque sua boceta
ensopada e chegue na beira do precipício.
Eu arregalei os olhos, meu corpo desesperado começava a doer da
proibição. Começava a se tornar físico o quanto eu precisava chegar lá.
— E você me chateou, göttin. Você só pula se eu mandar, mas não vou
deixar nem tão cedo.
Soltando uma mão do volante, ele a trouxe para o meio das minhas
pernas e enfiou dois dedos tortuosamente lento na minha boceta, tirando-o e
deixando o que antes era a fogueira de uma casa, incendiar uma vila. Ele fitou
os dedos e os esfregou um no outro, enfiando na própria boca. Eu engasguei
com a visão.
— Leckere kleine schlampe. — Ele rosnou, então cuspiu nos dedos e os
trouxe aos meus seios, lambuzando meus mamilos rígidos e dando um aperto
em cada. — Prepare-se.
Ele abriu sua janela, desligando o ar do carro e quando o vento gelado
bateu onde ele molhou eu gritei. Não apenas minha boceta implorava por
atenção agora, mas meus seios estavam pesados como rochas. E ele não me
tocaria, eu vi em seus olhos. Lágrimas escorreram novamente quando
escorreguei meus dedos em minha vagina outra vez.
— Eu amo seu prazer, Freya. Mas também amo suas lágrimas. — A voz
dele era diferente de qualquer outra vez que o ouvi. Eu não reconheci seus
olhos.
Eu pedi tanto que meu mestre me punisse e ele o fez.
O que me confundiu foi que ele parecia mais feliz com isso do que
quando me fazia sentir bem.
Eu precisei carregar Freya para o apartamento. Suas pernas estavam
moles e enquanto eu alonguei nossa viagem de quinze minutos para quarenta
e a fiz se masturbar sem chegar ao orgasmo por todo o tempo, ela desmaiou.
A ensinamos a lição.
— Cale a porra da boca. Eu fui longe demais.
Eu não sabia o que tinha acontecido. Não menti quando lhe disse que
conhecia seu corpo. Eu podia dizer por cada sinal físico que ela dava, pelas
expressões, pela respiração e os gemidos. A forma como ela me olhava
denunciava seu clímax, mas eu ignorei isso hoje. Seu corpo cansado
sucumbiu a tortura e eu tinha gostado de assistir. Elas gostaram.
Assim que sua cabeça bateu no vidro e as mãos caíram, moles e o rosto
corado começou a ficar pálido eu percebi que havia se desligado.
Ela não deveria ter falado de outros homens.
Ela é nossa.
A deitei no sofá e eu fechei os olhos, apertando minhas mãos em meus
ouvidos, mas não adiantaria. A voz estava em minha mente, não na porra do
mundo.
Ajoelhando ao lado dela, deitei o rosto no estômago plano, mais uma
vez consciente de nossa brutal diferença física. Eu não era melhor do que
Kazel, deixando minha raiva levar a melhor sobre mim e dando a ela
sofrimento e dor.
O ciúme me consumiu ao ouvi-la falar sobre seu passado, sobre como
podia transar bem porque praticou muito. Não era sua culpa. Não era a porra
da culpa dela e eu a puni como se fosse. Não deveria ser assim. Eu devia tê-la
acendido e enfiado meus dedos em sua doce boceta até que ela gozasse. Nós
voltaríamos para a casa e ela dormiria em sua cama satisfeita.
Você é fraco.
Todas as vezes que eu perdia o controle as sombras dominavam minha
mente. Minha razão se perdia, meus pensamentos escureciam e minhas ações
governavam-se por tudo o que havia de ruim em mim. Mais vezes do que eu
gostaria aquilo aconteceu. Às vezes eu me perguntava se havia outra pessoa
morando ali. Habitando aquela cabeça danificada além do reparo.
Eles tocaram Freya.
Eu segurei sua mão, esperando que acordasse.
Eu vi seu olhar também.
Quando ela enxergou além de mim. Quando percebeu que Kazel não
mentia quando falava sobre mim. Havia algo podre em minha cabeça.
E em breve seremos a única coisa que existirá também.

Eu estava quase recorrendo a uma garrafa de álcool esperando que ela


acordasse. Recorrendo a um médico ou os deuses que me perdoassem...
Demeron. Mas no fundo da neblina de raiva que anestesiava minha mente eu
sabia que não faziam nem 10 minutos que havia desmaiado. Seu corpo
desligou para um sono rápido quando cansou além do que podia aguentar.
Pobre criatura.
Certamente pareceu muito mais do que 10 minutos quando ela abriu os
olhos e eu exalei uma respiração pesada. Eu não hesitei no que precisava
fazer. Seu corpo ainda dava sinais de sofrimento depois do que a fiz passar no
carro e eu não esperaria mais para consertar a situação.
— Mestre? — A voz rouca recém acordada foi como um chamado para
mim. Eu avancei para ela devagar, mas com firmeza em meus olhos.
Nenhuma palavra era necessária. Sua saia subiu como um véu sagrado, Odin
me perdoasse, mas Valhala era nada comparado a boceta de Freya.
A tortura de tê-la andando pelo apartamento e não tocá-la a cada maldito
segundo era desgastante. Encarar a Suprema Corte com o meu próprio
martelo duro não ajudava. Eu não pensava claramente há dias. Mas o
momento de acabar com aquilo havia chegado. Não tinha nenhuma forma de
ter a visão dela ajoelhada com o meu pau na boca e continuar evitando isso.
— Eu vou orar para você, göttin — sussurrei quando aproximei o rosto
de seu calcanhar, beijando a pele macia. O salgado do suor dela foi sentido
quando passei a língua, mas não era ruim. Porra, era gostoso. Como foder no
mar com a lua no céu.
Ela suspirava e respirava com gosto, o peito erguendo e caindo com
força. Ela respira e cada sopro de ar é como a fragrância de sexo. Seus olhos
são sexo, sua boca é sexo e seu corpo foi feito pra foder.
Eu beijei todo o caminho até o centro encharcado, inspirando
profundamente antes de deslizar meus dedos para separar os lábios rosados
inchados. Com a outra mão segurei uma mecha do cabelo e a olhei nos olhos.
— Seu coração está batendo na boceta, minha doce criatura — sussurrei
e foi o mais suave que já falei com alguém em toda a minha vida.
Seu grito foi interrompido quando eu me inclinei por completo e me
deixei provar a água do paraíso. Lambi cada parte externa antes de mordiscar
centímetro por centímetro dos lábios e afundar a língua em movimentos
giratórios e lentos no interior dela.
Freya se pegou em contradição ao agarrar meu cabelo com uma mão e a
outra tentava afastar-me empurrando no ombro. Era demais, mas era bom pra
caralho também.
Ela gozaria na minha boca e no meu pau depois disso.
Porque ela era minha. E se seus olhos cansados cedessem, eu a acordaria
para me tomar.
Capturando seus pulsos, os coloquei de volta para baixo com um aperto
firme e pressionei os lábios juntos no clitóris.
— Mestre... mestre!
Chupando mais forte, sem aplacar o aperto nos braços, mordi o interior
da coxa antes de voltar minha língua para dentro e afundar meu rosto como
se quisesse entrar ali. Ela empurrou a boceta na minha cara, tremendo e
gritando o meu nome uma, duas, três vezes enquanto eu chupava sem piedade
o botão inchado. Freya afundou no sofá quando a força do orgasmo cedeu e
eu a deixei ir. Passando as costas das mãos em meu queixo gozado eu
levantei do sofá sem a olhar nos olhos.
— Tire sua roupa e vá para a varanda. Me espere lá.
Entrei na cozinha sem olhar para confirmar se ela o faria. Não precisava.
Eu sabia que minha menina era obediente.
Peguei o que precisava e fui até ela, encontrando-a gloriosamente nua no
luxo da varanda aberta. A sacada de vidro nos seria útil. Tinha um palmo de
acabamento e eu tinha planos para a estrutura.
Eu a compensei por seu sofrimento e agora ela me daria de volta.
Esse era o nosso jogo. Ou o meu, mas ela jogaria de qualquer forma.
Tomei um momento para observá-la, aqueles seios incríveis pendurados
e franzidos do frio, os cabelos para trás e a barriga plana com algumas
gotinhas de suor. Perfeita.
O que aquele corpo faria para homens como eu...
— Perdoe-me, Odin — murmurei quando me aproximei, capturando um
mamilo rosado na boca e depois passando para o outro. Freya apertou os
punhos ao lado do corpo para não me tocar enquanto eu não mandasse,
jogando a cabeça para trás quando levei meu tempo mordiscando e lambendo
suas mamas.
Nem de longe tive o suficiente, mas me afastei para pegar o que queria
de uma vez.
A primeira de muitas.
Ela inalou uma longa respiração e balançou a cabeça, tentando limpar o
torpor que a embalava.
— Eu vou foder você, Freya — falei com calma, enfiando dois dedos na
taça para rodar as pedras de gelo, elas precisavam derreter até ficar apenas
um pouco menor do que estavam.
— Sim, por favor, mestre. — Ela sorriu e os olhos brilharam.
— Você vai me dar sua boceta de bom grado?
— Ela é sua, meu senhor!
— Isso é muito bom, göttin, temo que eu a pegaria de qualquer maneira.
Vai me dar tudo o que eu quiser do meu corpo?
— O senhor pode pegar, mestre. Eu sou sua.
— Eu sei. Vire-se — Toquei os seios perfeitos uma última vez. — Vire-
se e abra bem suas pernas.

A soltei e mexi no gelo novamente, fazendo seu olhar cair para a taça.
— O senhor vai enfiar isso em mim?
— Eu vou.
— Mestre, isso vai doer — sussurrou.
Segurei seu queixo, inclinando o rosto para o lado.
— Você me quer ou você não quer. É simples, Freya. Pode entrar em
seu quarto, se vestir e ligar para Onira se quiser.
Ela balançou a cabeça com veemência.
— Eu vou fazer.
— De costas. Incline-se sob a sacada e afaste as pernas.
Ela fez e me olhou sob os ombros.
— Eu mandei olhar?
Quando virou para a frente de novo, eu me inclinei junto com ela,
encaixado atrás de seu corpo.
— Não gosto de desobediência, não gosto de ficar me explicando e com
certeza não vou ficar pisando em ovos com você.
— Sim, mestre.
— Eu não sou Kazel e essa é a última vez que direi isso. Não vou
machucá-la sem um motivo prazeroso para isso. Se hesitar mais uma vez sob
minhas ordens, a mandarei de volta para Onira. Entendeu, Freya?
— Eu entendo, mestre.
— Muito bem. — Peguei uma pedra e levei para baixo comigo quando
me ajoelhei e analisei seus buracos. A boceta escorria com cada palavra que
eu dizia, o que me fez deixou satisfeito. O ânus era fechadinho, mas estava
úmido também. A excitação escorreu para todos os lados. Enfiei o rosto entre
as bochechas e lambi do clitóris até o buraquinho traseiro. Freya esticou as
pernas, ficando na ponta dos pés com os gemidos escapando para o céu.
Meus vizinhos teriam uma visão incrível.
Chupei uma pedra de gelo antes de esfregá-la em sua pele franzida e
empurrar para dentro. Queimaria, mas seria bom.
— Você já sabe que não tem uma palavra segura.
— Sim, mestre.
Enfiei uma segunda.
— Isso significa que vai aguentar tudo o que eu te der.
— Eu agradeço, meu senhor.
Ainda não, mas ela iria. Ou talvez ligaria para Onira afinal de contas.
Nós nunca a deixaremos ir.
Depois de enfiar a terceira pedra e ver seu cu inchando com o volume
me dei por satisfeito e deixei a taça de lado, tirando o meu cinto e abrindo a
calça enquanto a observava se contorcer para continuar de pé.
Todo o vento circulando no ar corria entre suas pernas abertas.
Ela parecia deliciosa.
Aproximando-me, não a toquei além do pescoço, onde segurei a frente
da garganta e encaixei minha boca em seu ouvido.
— Você pode gemer para mim, Freya. Grite quando quiser gritar e faça
nossos vizinhos ouvirem o quão bem fodida você está sendo pelo seu mestre.
— Meu senhor...
Ela não teve tempo de dizer mais nada. Suas palavras foram cortadas e
largadas ao vento quando a penetrei de uma vez. Parei por um momento
apenas. A boceta era tão apertada, macia e escorregadia que eu parecia estar
sendo envolto a uma luva de veludo. Era quente e minha vontade em algum
lugar no fundo da mente foi de abraçá-la, mas o pensamento se apagou no
segundo seguinte, quando ela gritou a todo pulmão e sacudiu a bunda para
trás.
Era a primeira vez que eu transava com ela e podia me ver fazendo em
todas as formas que imaginasse. Um minuto afundado ali e todos os outros
rostos que tentei imaginar para aplacar aquela sensação de posse se tornaram
o dela. Morenas, loiras, ruivas, negras, até as asiáticas que depois de Onira
jurei nunca mais tocar. Todas ganhavam o rosto de Freya em minha mente.
Segurando sua garganta, eu a puxei para o meu peito e bati dentro dela.
Ela cantava seus gemidos para mim no ritmo da minha respiração pesada.
Apertei os dedos um pouco mais, não resistindo a envolver a outra mão
em seu seio e torturar os mamilos que pareciam congelados de tão franzidos.
Eu quis poder me contorcer naquela posição, onde ela esmagava o meu
cacete e chupá-los. Freya gemia alucinada e eu queria fechar os olhos, mas
olhei para seu rosto de perfil, os olhos fechados, a boca aberta, o corpo todo
moldado ao meu. Perfeição, porra.
Não era suficiente.
As pedras de gelo derretiam em seu ânus e escorriam direto para a
boceta, causando um choque entre o ar, nosso suor e o fogo que rompia de
onde nossos corpos se uniam.
Os gritos de Freya eram tão altos que eu achava plenamente possível
quem passasse pela rua ouvir.
Mas não era o bastante. Eu precisava de mais, precisava de sua
confiança completa e sua submissão plena.
Sai dela e dei um passo atrás.
— Vire-se para mim. — Ela obedeceu com olhos ansiosos, cambaleando
com a fraqueza das pernas.
Me aproximei outra vez e a levantei pela cintura, ela gritou quando viu
onde eu a colocava e jogou os braços em meu pescoço, buscando segurança.
— Você vai confiar em mim, agora, Freya. Sente-se aqui sem segurar
em mim. Enrole suas pernas na minha cintura. Eu vou segurá-la.
Ela abriu a boca para questionar, mas se deteve e lentamente tirou os
braços, fechando os olhos quando sentia o vento em seu corpo sustentado sob
o palmo da sacada. Ela era pequena, mas cairia tão facilmente se eu não a
mantivesse firme.
— O que eu já disse sobre os seus olhos?
Ela os abriu, respondendo sem palavras.
— Esses olhos são o meu sol, reinheit.
Me afundei nela outra vez, suspirando com o aperto que não dava uma
folga. Mas, dessa vez era ainda mais apertado, pois era a única forma de
Freya se segurar. Eu a agarrei pelo topo das coxas, seus braços soltos ao lado
do corpo e os olhos frenéticos em mim. Ela estava terrivelmente dividida.
Aproveitar meu pau batendo duro e fundo dentro de seu corpo ou garantir o
aperto das pernas em volta de mim para não cair.
Aquilo era o que precisava acabar. Ela tinha que saber que mesmo se
soltasse as pernas, eu não a deixaria cair.
Eu teria sua confiança. Fosse para saber que me agradava, para ficar em
casa quando eu mandasse ou pelos deuses... ficar criando planos de como me
fazer... amá-la.
A boceta nua e brilhante estava toda aberta para mim, deixando o clitóris
inchado para fora, irritado e todo vermelho. Eu me retirei com um grunhido e
esfreguei toda a extensão em sua abertura, me molhando ainda mais nos
líquidos que escorriam dela. Quando a cabeça escorregou na abertura de trás,
fiquei tentado a empurrar para dentro ao sentir o gelo que estava lá, mas
voltei para a frente e me enluvei em sua boceta novamente.
Meus impulsos eram firmes, rápidos, sua bunda molhada escorregava na
estrutura e eu escorreguei uma mão através do estômago plano para os seios
onde agarrei um, depois o outro, levando Freya a gozar uma segunda vez para
mim. Sua boceta me espremeu impossivelmente e apenas o movimento quase
me fez gozar junto, mas apertei os dentes e diminuí meus impulsos enquanto
ela convulsionava, esperando que passasse para acelerar outra vez.
Soltei suas pernas para segurar o cabelo. Ela estava completamente
inclinada contra a sacada agora. A única coisa que a mantinha lá em cima era
meu pau dentro dela, suas pernas segurando minha cintura como se um
vendaval fosse levá-la a qualquer momento e precisasse garantir que não se
soltaria de mim, e minhas mãos segurando firme todo o cabelo dividido dos
dois lados. Dor para todo lado, prazer sendo sugado de mim para ela e dela
para mim.
Eu a observava a cada segundo, embora seu rosto continuasse no meu,
ela estava aterrorizada demais que fosse cair para ver a adoração no meu
próprio semblante.
Ela gemia e gritava o quão gostoso era, mas tinha medo e eu precisava
acabar com aquilo. Tinha que acabar.
Então eu a olhei nos e me permiti fazê-la confiar.
Era tão gostoso. Tão bom. Eu nunca tinha sentido algo tão sublime em
toda a minha vida. Não importa quantas vezes fiz sexo, nenhuma foi daquele
jeito. O mestre tinha algo. Talvez fosse a escuridão que vi nele mais cedo,
talvez fosse apenas quem ele era, mas contribuiu para me fazer sentir insana.
Eu desviei meus olhos dele para cima, onde podia ver o céu entre o
nosso prédio e o da frente. Talvez assim fosse esquecer que minha vida
estava em suas mãos, que ele era o único me impedindo de cair de uma altura
inacreditável.
A sensação de seu pau dentro de mim era avassaladora e eu estava tão
apertada por me segurar nele naquela posição que o aperto se tornava
agonizante. Mas ainda era o maior prazer que já senti na vida.
Lágrimas começaram a rolar dos meus olhos, mas o vento forte as
secava antes que chegasse à testa. Eu fiz força para me inclinar e olhar o rosto
do meu mestre e a única coisa que encontrei foi o mesmo prazer que eu
sentia. Eu o estava agradando.
Meu corpo já tinha sido varrido em dois orgasmos e ele continuava
penetrando-me como se sua força e resistência fossem inacabáveis.
Por que não me puxava para cima?
Será que meu medo o excitava? Saber que eu estava a sua mercê?
— Me dê, Freya.
O quê? O que mais ele queria de mim?
— Mestre?
— Confie. Me dê o que eu quero.
Eu o olhei sem piscar, reconhecendo em meu coração o que ele queria,
mas me senti incerta por um segundo. Kazel sempre quis a mesma coisa de
mim, mas aquela caixinha escondida em minha mente sempre estava
protegida dele e agora Siriu me pedia a chave dela. Seu pau grosso
escorregou para fora e adentrou com uma força que me fez escorregar quase
toda a bunda para fora, mas não desgrudei meus olhos dos dele.
Eu podia dar?
Ele me protegeu, me aliviou e nunca me mostrou crueldade, ainda que
eu esperasse por isso. O diabo me deu o sentimento de lar pleno que nunca
tive, mesmo conhecendo Kazel e sua casa, durante a vida inteira.
— Sim — sussurrei.
Se havia alguém para quem eu entregaria a minha confiança, seria ele.
Ele inalou e fechou os olhos brevemente, quando os abriu, o azul estava
escurecido e eu jurava que podia ver ondas de um oceano em meio a uma
tempestade se movendo ali.
— Reinheit — murmurou, então ele me puxou para cima e retirou seu
membro de dentro, seu líquido espirrou pela minha barriga, seios e os lábios
maltratados da minha intimidade.
Quando os meus pés firmaram no chão, joguei meus braços em seu
pescoço e respirei ele. Respirei profundamente a segurança e a imensidão do
que tínhamos acabado de fazer.
Ele deslizou as mãos em minhas costas uma, duas vezes antes de me
afastar pela cintura e desviar os olhos dos meus.
— Vá tomar um banho e se vestir. Eu vou pedir comida para você.
Sem me deixar responder, ele virou as costas e entrou pelo corredor. Eu
queria pensar que estivesse indo me encontrar no meu chuveiro, mas sabia
que não ia acontecer. Meu mestre ainda mantinha algo entre nós e mesmo
que eu tivesse dado a chave de tudo de mim para ele, ele não fez o mesmo
comigo.
Eu o encontrei sentado no sofá com partes de uma arma de fogo em
cima da mesa baixa. Me sentei ao seu lado, esperando suas próximas ordens.
Seu rosto estava franzido em concentração, o cabelo e barba molhados e a
camisa preenchendo o corpo forte e bonito que eu vi e senti a meia hora atrás.
— Como se sente? — Ele perguntou depois de alguns minutos, mas não
me olhou.
— Estou bem, mestre. E o senhor?
Ele parou o que fazia e levantou os olhos para mim, suas sobrancelhas
saltando.
— Você se preocupa comigo depois de tudo?
Eu sorri genuinamente.
— Depois do quê? Eu me sinto incrível. Obrigada, mestre. — Eu peguei
sua mão livre e levei aos lábios, beijando os dedos.
Sua bondade não tinha limites e a pureza nunca iria embora.
Eu ainda a encarava procurando o que dizer quando a campainha tocou,
por isso, me mantive no lugar por alguns segundos sem desviar o olhar dela,
dividido entre agradecer a interrupção ou ignorar e levá-la para a cama. Mas a
pessoa lá fora decidiu por mim quando começou a bater insistentemente na
madeira.
— Espere por mim.
Ela assentiu e eu avancei, pegando minha pistola no sobretudo ao lado
da porta antes de abrir. Harlen não esperou que eu pensasse sobre sua visita,
ele passou por mim e fechou a porta, apoiando-se de costas na madeira e me
dando um olhar agitado.
— Preciso da sua ajuda.
— Da última vez que eu chequei você estava nessa fase de
independência em Las Vegas. — Cruzei os braços e avancei para o lado
quando ele franziu a testa ao ver Freya. Entrei em sua frente. — Olhos em
mim. O que aconteceu com seus irmãos?
— Eu preciso de você para isso.
— É mesmo?
— Se quer que eu ajoelhe e chupe seu pau te chamando de mestre, pode
parar com as fantasias, filho da puta. Você me deve, então considere uma
cobrança.
— Não venha a minha casa e me ameace, Harlen. Família ou não, eu
não gosto disso.
Ele reconheceu seu erro com um aceno sutil e cerrou a mandíbula. O
assunto parecia ser sério, pois meu primo estava andando na corda bamba de
seu temperamento ali.
— Não viria de Vegas até aqui se não fosse importante.
O observei por um curto momento, apreciando que guardasse seu humor
para outra pessoa e me mostrasse respeito.
— Qual é o negócio?
— Não vai me oferecer algo para beber? — Tentou brincar, mas eu o
conhecia e aquela seriedade no rosto me deixou inquieto.
— Não tenho nada aqui, a não ser que queira leite ou suco natural.
Harlen ergueu as sobrancelhas, passando sua atenção de mim para
Freya.
— Eu vejo.
— Você não vê nada.
— Demeron sabe?
Me irritou que ele visse Freya como algo ligado a Demeron. Porra, eu
quis bater sua cabeça na porta e chutá-lo para fora por isso.
Faça isso.
— Demeron tem sua própria comitiva para cuidar, sinta-se à vontade de
ir ajudá-lo.
— Certo. — Harlen não escondeu a curiosidade na voz, mas deixou o
assunto de lado, mostrando-me mais uma vez que realmente precisava de
algo que só eu poderia oferecer. — Estranhamente é uma situação com que
você está familiarizado.
— Eu duvido — respondi. Fora questões de nossa família. Meu primo e
eu não tínhamos mais nada em comum há muito tempo.
—Uma das vadias do clube...
— Não, Harlen. — Meu tom cortante o fez levantar os olhos. — Eu não
me metia com suas fodas nem quando saíamos juntos, não vou começar
agora. O preservativo vem com explicações na embalagem, use isso.
Avancei para a porta na clara intenção de abrir e mandá-lo sair, mas ele
entrou na frente.
— Você me deve — recordou-me. — Me deixe falar até o fim e de sua
resposta, mas eu não estou te dando uma opção aqui. Pague sua dívida
comigo com isso e estaremos limpos.
Eu hesitei. Meu primo estava prestes a jogar mais um problema na
minha crescente pilha de merdas.
— Fale — rosnei. Eu sabia que deveria mandar Freya para longe, deixá-
la ouvir sobre meus negócios não fazia parte dos planos, seja qual fosse meu
plano para ela. Ela não tinha minha confiança, tampouco poderia me ajudar
com algo, mas ainda assim eu não disse nada.
— A vadia está gravida. Ou ela diz.
Minhas sobrancelhas saltaram.
— Bem, eu desejaria felicidades, mas tratando-se de você só posso
desejar sorte a criança — zombei e ele ficou mais sério.
— Eu não acho que seja meu, mas não tenho como provar sem a porra
de um exame e a cadela está fazendo um inferno na minha vida. Então eu
preciso saber como você lidou com isso quando a...
— Pare — ordenei, minha voz tão forte que ouvi uma ingestão de ar
com a surpresa de Freya em meu tom, pela primeira vez eu senti que ela
queria se afastar de mim. Entretanto eu não a estava enxergando. Não. Eu só
via Harlen trazendo à tona o segredo que pertencia apenas a mim e outra
pessoa, que no auge dos meus dias governados por cocaína e heroína deixei
escapar para ele.
Como se atrevia?
Desenterrar algo que eu escondi tão profundamente que conseguia
esquecer. Antes de levantar da cama todas as porras de dias eu me forçava a
jogar tal lembrança no breu mais profundo da minha inconsciência. Dia após
dia.
— Siriu. — Ele imitou meu tom. — Eu não posso acabar com ela
porque se trata de uma protegida do clube, ela é filha de um dos caras
grandes. Eu preciso da sua ajuda nisso.
— Saia da minha casa.
Eu não podia.
De repente, toda a minha cabeça estava de volta dezenove anos atrás. Eu
apertei os olhos imaginando que faria as imagens saírem da minha frente,
mas só tornaram mais claras. Ela indo embora cumprir o que eu mandei que
fizesse, ela voltando meses depois, ela me condenando, ela dizendo o quanto
me odiava pelo o que a forcei a fazer.
Nem mesmo Kazel comparava-se àquele precipício, não, ele não era
páreo para a maior tragédia da minha vida.
— Mestre. — O toque da mão brutalmente danificada de Freya em meu
rosto me trouxe de volta. Eu abri os olhos lentamente vendo os seus amarelos
preocupados, a testa franzida e a boca apertada numa linha fina. Por quanto
tempo ela ficou ali me chamando antes que eu a escutasse era o ponto de
interrogação e eu não queria saber a resposta.
— O faça sair. — Eu falei, mas falei diretamente para ela. Pedindo para
ela.
— Mestre, está tudo bem. Se não quer fazer isso está tudo bem. Ele
entenderá.
— Pelo amor de Deus, diga ao seu brinquedo para não se meter. Por que
diabos ela está nos ouvindo afinal?
Eu queria me mover, eu queria voar no pescoço dele levá-lo ao chão
com violência descontrolada, mas meus olhos não conseguiam desviar dela.
Eu estava preso. Pelo menos até que ela virou o rosto em direção a ele e eu
me libertei.
— Você deve cuidar da criança. É uma oferta generosa a que lhe foi
feita, por que parece tão descontente? — Ela cerrou os olhos, julgando-o.
Harlen soltou um riso sombrio, morto.
— Uma oferta? Eu ser possivelmente morto pelo presidente de um clube
infame parece uma boa oferta para você?
— Eu não acho que alguém vá matá-lo por isso a não ser que essa
criança seja defeituosa, mas o sen... — Ela fez uma pausa, provavelmente
lembrando-se do que eu disse sobre falar com outros homens. — Mas você
vai desejar a morte se sua honra for manchada assim.
Eu franzi o cenho, Harlen me encarou com confusão.
— Que porra ela está falando?
— Freya. — Eu a chamei.
— Sim, mestre?
— Vá para o seu quarto.
— Posso apenas dizer uma última coisa, meu senhor? — Ela me fitou
com tanta ansiedade que eu dei um aceno, então a pequena mulher
aproximou-se de Harlen. Eu me segurei para não avançar e trazê-la ao meu
lado novamente. — Você deve cuidar dela e de sua criança, Harlen. Quando
o príncipe vier buscá-lo será um dia de alegria. As crianças que eu entreguei a
ele foram motivo de honra para mim.
Eu levei dois segundos para entender suas palavras, então isso me bateu.
Eu avancei e a virei para mim.
— O que você disse?
— Que foi honroso, mestre.
— Não, antes. Sobre crianças que você entregou.
Eu sabia que estava certo. Porra, eu sentia que não entendi errado, mas
ainda precisava ouvi-la confirmar. E se fosse isso... se eu não estivesse
ficando louco...
— Eu entreguei a Kazel duas crianças. Um menino e uma menina.
— Freya. — Minha voz falhou, meu corpo gelado ficou tão tenso que
foi difícil levantar o peso morto do braço para segurar seu rosto. — Você teve
filhos nas Kambarys?
Ela inclinou a cabeça para o lado, observando-me, pensando.
— Minha barriga cresceu, mestre. Durante algum tempo ela cresceu
quando eu estava em meu décimo quarto ano de vida. E depois em meu
décimo sétimo.
Harlen amaldiçoou atrás de mim, mas eu não podia tirar meu foco dela.
Ela estava me dizendo isso. Ela teve filhos na Kambarys e as crianças ainda
estavam lá. Seus filhos teriam quase seis e três agora. Fogo atiçou minhas
veias enquanto gelo nublava minha mente. Eu estava tão atordoado com a
notícia que o pedido de Harlen perdeu a importância e meu próprio problema
que ele trouxe de volta também.
Uma mini Freya e um garoto de olhos amarelos passaram como uma
visão em minha mente e inconscientemente eu a puxei para perto. Eu segurei
seu pescoço enquanto seu rosto aconchegava-se no meu peito. Minha mão
livre fechada num punho ao lado do corpo.
Meus olhos fixos a frente, imaginando mais cem novas formas de fazer
Kazel sofrer.
— Você sabe quem ajudou a conceber as crianças?
Ela levantou os olhos, apoiando o queixo em meu peito.
— Kazel foi o único a se derramar dentro de mim sem um elástico, ele
disse que por isso as minhas ofertas sempre pertenceriam a ele.
— São preservativos. — Cuspi, mas minha raiva não era para ela. Eu
precisava me lembrar que aquela menina não sabia de nada. — A porra de
preservativos de merda, caralho!
Fechei os olhos e puxei uma longa respiração.
O que eu estava fazendo?
Anos, anos e incontáveis anos caçando Kazel. Por vezes reconheci que a
forma como minha família estava hoje foi consequência da guerra que eu
arrastei para dentro da minha casa. Levando Stark a entrar naquela guerra
comigo, depois Demeron, Regnar e Harlen. Até mesmo Kaladia. Anos.
Eu nunca o peguei e quando cheguei perto voltei atrás porque fui
ambicioso e queria mais. Queria derrotá-lo em maior força e levar junto com
ele a maior quantidade de filhos da puta associados da Kambarys que
conseguisse.
E Freya...
Freya aguentou por anos.
Freya deixou seus filhos irem; acreditando que era a coisa certa e
quando entendesse a verdade aquilo a destruiria. Quando o mundo aqui fora a
mostrasse que crianças deveriam ser cuidadas, protegidas e amadas, ela
entenderia que não lutou por seus filhos.
Que sua menina provavelmente já estava sendo treinada e seu filho
servia a eles também.
Eu olhei para Harlen e sua expressão de aço me mostrou o que eu
poderia ver na minha própria se me olhasse no espelho. Sede de sangue.
Fome de caos. Ânsia por destruição.
Chega daquele jogo.
Eu acabaria com tudo.
De uma vez e para valer.
“Você reflete no meu coração
Porque com a sua mão na minha mão e um bolso cheio de alma
Posso dizer que não há lugar aonde não podemos ir
Apenas ponha a sua mão no vidro
Estarei aqui tentando puxar você
Você só tem de ser forte”
JUSTIN TIMBERLAKE – MIRRORS
Tornara-se repetitivo quantas vezes nas últimas 24 horas debati comigo
mesmo entre ir ou não até ali. E perdi.
Crianças nunca me afetaram. Nunca. Mas, depois do que Freya contou a
mim e a Harlen... pelos deuses, eu queria tanto que ela tivesse esperado até
que estivéssemos sozinhos para me falar sobre sua gravidez. As duas. Dois
filhos.
O olhar que Harlen me deu quando eu o levei para fora do apartamento
foi um que nunca vi antes. Meu primo nunca escondeu o que sentia sobre as
coisas, o tempo e as experiências que viveu podem tê-lo tornado um homem
duro, mas diferente de mim e de Demeron, ele sempre deixou transparecer.
Antes eu não sabia se aquilo o tornava forte ou burro, mas depois de
descobrir que sobreviveu a um atentado da Liga, percebi que a resposta era
forte. Nenhum homem escapava das ordens de Stark e vivia para contar a
história, menos ainda fazia como Harlen conseguiu, tornando-se um dos
homens mais temidos de Las Vegas no MC como VP.
— Você me chama se decidir que quer encontrar essas crianças. — Foi a
única coisa me disse antes de entrar no elevador e sumir.
Por isso eu cedi e decidi vir. Talvez depois de tudo conversar com
alguém seria bom para Freya. Ainda que tudo que eu queria era escondê-la no
alto de uma torre e mantê-la para mim, não podia. Não se eu quisesse que ela
sobrevivesse em sua mente. Se Kazel não a quebrasse de vez por pegá-la de
volta, sua mente ainda cativa o faria.
Doía a porra do meu orgulho admitir que precisava de ajuda, mas eu não
tinha todos os caminhos. Essa médica me ajudaria, mas seria do meu modo.
Encostado no carro do outro lado da rua, observei o prédio e a mulher
alta e magra através das janelas grandes de vidro. Doutora Katya Hoosfen. Eu
não a pesquisei como teria feito de imediato antes de me dar ao trabalho de ir
ao seu consultório, mas o faria dependendo de como a nossa conversa
seguisse.
A última vez que entrei em um daqueles lugares foi há mais de uma
década e pensava que conversar poderia acalmar o que a tempestade
com Kazel começou em minha mente, mas estava errado. Minhas questões
eram demais para o cérebro humano de alguém normal. Não importava
quanta merda minha antiga médica ouvisse, ela jamais ficaria bem novamente
depois de me ouvir. Então eu fui embora antes que me abrisse e a fiz ter seu
visto negado, assim teria que voltar aos Estados Unidos. Era a única forma da
mulher não vir atrás de mim.
Eu me perguntava se Katya era tão preocupada com seus pacientes como
minha terapeuta era.
Atravessei a rua quando seu paciente saiu do prédio e entrei antes que a
porta travasse. Eu não tinha uma avaliação marcada, mas ela me ouviria de
qualquer forma.
Quando cheguei na recepção a encontrei inclinada sobre a mesa
escrevendo algo enquanto falava no telefone. As palavras eram curtas e a
ligação rapidamente terminou.
— Boa tarde. — Eu disse. Katya sobressaltou-se, me olhando como se
fosse sair do próprio corpo.
— Jesus Cristo!
— Amém. — Eu não acreditava em tal homem, mas por enquanto quis
aliviar seu susto.
— Desculpe. — Limpou a garganta. — Eu não ouvi o interfone.
— Eu não o toquei. A porta estava aberta.
— Oh. — Ela se ajeitou, saindo de trás da mesa e vindo ao meu
encontro com a mão estendida. — Sou a doutora Katya, mas o senhor já deve
saber disso se veio até aqui.
Ela devia estar na casa dos 30 anos, sem nenhuma aliança de
compromisso, bonita e usava óculos de grau grosso. O tipo de mulher com
quem se era esperado um homem como eu casar. Em outro momento eu a
chamaria para jantar, agiria como um homem normal assim como já fiz
outras vezes. Com Slom Ward, com Naya, com outras.
Ela não é Freya.
A voz em minha mente me recordou e eu me amaldiçoei por compactuar
com aquela verdade.
— A senhorita não sabe quem eu sou — constatei com surpresa e apertei
sua mão. Àquela altura imaginava que Onira já tivesse feito minha
propaganda negativa para a mulher.
— Eu deveria?
— A senhorita me diz. Tem um momento para conversarmos?
— Eu tenho um paciente em menos de uma hora, mas posso ouvi-lo.
Estou intrigada com a visita misteriosa. — Tentou brincar.
— Sou Siriu Konstantinova, senhorita Hoosfen. Nós temos um assunto
em comum.
Seu rosto brilhou com reconhecimento e vi a leveza sumir de sua
expressão, adquirindo uma de educação profissional.
— Eu não imagino como.
— Certo. Vamos jogar esse jogo. — Sentei-me numa das poltronas
livres. — A senhorita tem informações que eu gostaria de saber. Qual o seu
valor?
Não havia ponto em enrolar. Meu objetivo era terminar aquela conversa
rápido o suficiente para que ela pensasse se aconteceu ou foi imaginação, mas
quando Katya cruzou os braços e franziu o cenho eu soube que o trabalho não
seria tão fácil.
— Eu não acho que entendi, senhor Konstantinova.
— Preço. Dinheiro. Quanto a senhorita gostaria para me falar sobre uma
paciente?
— Isso é uma pegadinha?
— Não. Sem câmeras. A senhorita está segura para negociar comigo.
— Negociar? — Havia indignação em seu tom. — Não vou negociar
coisa nenhuma, senhor Konstantinova. Uou... essa conversa desceu ladeira
abaixo repentinamente! Como é que pulamos de uma apresentação para isso?
— Podemos ir mais rápido ainda se me der o que eu quero. — Meu tom
era contido, fresco e deixava Katya saber que não estava lidando com um
marginal, mas um homem que sabia das coisas. Enquanto ela não fosse uma
ameaça para mim estaria segura.
— Eu trabalho há anos para construir uma carreira sólida, confiável e de
respeito, senhor Konstantinova. É ridículo que apareça aqui exigindo...
Eu não queria ouvir seu discurso sobre ética e moralidade.
— Freya fala sobre mim em suas conversas? — Ela travou, olhando-me
fixamente e apertou os lábios. — Doutora, facilite para nós dois e responda
de uma vez.
— Eu não vou trair a confiança da minha paciente,
senhor Konstantinova. Se é para isso que veio eu lamento informar que
perdeu seu tempo.
— Não. — Dispensei com um gesto de mão. — Eu não faço nada atoa,
apenas preciso me empenhar mais para fazê-la entender quem eu sou e que
vou ter o que quero.
— Eu não tenho medo de ameaças. Não passei anos na faculdade para
me dobrar a qualquer intimidação. O analisei desde que passou por aquela
porta e poderia apontar diversos fatores do senhor, mas não vou. Caso queira
se consultar o indicarei a algum colega muito capacitado.
— Acha que preciso de terapia, doutora?
— Todas as pessoas precisam.
— Não sei se concordo. Já tentei uma vez e não acabou bem.
— Para o profissional? — Senti uma contração involuntária em minha
boca com sua pergunta.
— Sigilo médico e paciente — refleti. — Eu poderia mandar que
alguém invadisse o seu consultório e levasse seus arquivos sobre Freya.
Vocês anotam tudo, não?
— Eu o processaria por isso, senhor Konstantinova. É um ultrage que
até mesmo me diga tal absurdo!
— Então diga-me de uma vez — falei com calma, mas irritava-me cada
segundo de sua recusa.
— Não! — A mulher era casca grossa, isso eu precisava admitir. Raros
eram os homens que levantavam a voz para mim ou me negavam algo e ela
não se acovardou como a maioria deles, mas isso não me surpreendeu de
todo. Mulheres geralmente superam homens de dois a dez. Eu via
por Kirina diariamente e relutantemente, por Onira também.
— Ela é só a porra de uma pessoa que paga para conversar com você,
qual o problema em responder minha simples pergunta?
Dessa vez ela riu.
— Ah, não... o senhor simplesmente disse isso, não é?
Dei de ombros.
— É o que é.
— Não, não é o que é. O senhor como um homem instruído e muito bem
vivido sabe que minha profissão é mais do que isso e se me ofender é sua
estratégia para irritar-me até que eu fale, vai falhar. Lido diariamente com
pessoas que me dizem muito pior do que isso.
— Muito bem doutora. — Levantei-me, ajeitei o terno e lhe lancei um
último olhar. — Nos veremos em breve.
Foi o tempo de eu alcançar a maçaneta quando ela me chamou.
— Ela tentou contra a própria vida, não foi? Por isso veio até aqui.
Eu não respondi, continuei de costas e condenei a médica por ser tão
perspicaz. A visita de Onira tinha sido um pretexto, mas o que eu realmente
queria tratava-se de quão profundos aqueles pensamentos de Freya eram.
— Por isso veio até aqui. — Seus saltos denunciaram a aproximação. —
O senhor quer saber o motivo que ela faz isso.
— Eu sei o motivo.
— Completamente, senhor Konstantinova? Não há nenhuma dúvida
sobre isso?
A fitei sobre o ombro esquerdo.
— Se tem algo a dizer diga de uma vez, doutora.
Ela apenas me observou por um momento. Um momento longo demais
para o meu gosto.
— Você se importa com ela.
Girei a maçaneta.
— Senhor Konstantinova. — Ela chamou e eu prometi silenciosamente
que seria a última vez que parava para ouvir suas besteiras. — Deixe
que Freya volte a vir me ver. Ela precisa disso.
Bati a porta e virei-me completamente para ela. A mulher precisava ver
que independente de sua inteligência e do meu terno sofisticado, existia uma
besta em mim. Sombras de um homem sem medo de fazer o que fosse
preciso para garantir seus interesses. Ela deu um passo atrás, enxergando-me
verdadeiramente.
— Se Freya voltar você não ousará tentar fazer sua cabeça contra mim.
Se disser a ela uma única vez sua opinião pessoal sobre mim pagará por suas
palavras. Freya é minha. Você a terá de volta sob minhas condições quando
eu decidir que quero isso. Compreendeu, doutora?
Engolindo em seco, ela franziu os olhos ligeiramente, mostrando-me que
não queria ouvir calada, mas seu medo pela primeira vez ganhou a batalha.
Bom para ela.
— Sim.
— Então estamos conversados. — Abri a porta, dessa vez ela não me
chamou e eu não parei até que estivesse no carro.
“Eu tenho um reino a comandar,
Criado em cima de sangue inocente e lágrimas de pureza,
Quem me serve servirá até que meus dias cheguem ao fim
Até que a conta de todo o mal
Volte para me fazer pagar”
NANA SIMONS
MARIBOR, ESLOVÊNIA

A fila de garotas de variadas idades de pé em frente a Kazel não o


agradou.
Ele desviou os olhos delas e virou de costas, encarando as paredes do
único lugar que lhe foi concedido. O prefeito lhe devia muito, mas não era o
único de quem Kazel cobrou. Sua última esperança de um retorno em ouro
foi em Praga, quando tentou chamar seus contatos na elite tcheca e ninguém
o atendeu. Assim como se humilhou mandando Mudié para Moscou,
tentando conseguir uma parceria com Roman Zirkov, o pakhan atual
da Bratva.
O homem só enrolou e não deu reais esperanças de que se afiliaria ao
quinto Reich. Por isso, Kazel se viu obrigado a aceitar refúgio nas terras
eslavas, mas não havia qualquer conforto ali. O lugar quase parecia um
bueiro, ouvia as pessoas na superfície e qualquer barulho das novas garotas
trazidas chamaria atenção.
Demeron Konstantinova pagaria pelo o que fez. Kazel jurou naquele dia
e ainda mantinha a chama de tal promessa viva a sangue e ódio.
Entretanto, por mais arrebatador que fosse estar sendo abandonado,
trocado e arruinado por todos a sua volta, nada doía mais do que a falta de
sua feiticeira. Kazel sabia que a maré de azar e maldição, dava-se a ter
tido Freya tirada dele. Quando Demeron a levou embora,
condenou Kazel aquela vida miserável.
O conforto de Kazel era lembrar-se dela.
De sua servidão absoluta desde a infância, depois tornando-se tão
completa para ele na adolescência e então, virou uma linda mulher. Aquela
que lhe trouxe prosperidade em todas as formas. Sua linda e
preciosa Freya agora estava perdida.
Kazel sabia que ela sofria sem ele. Ela sofria por sua ausência e a
saudade de casa. Ele sentia também vergonha ao reconhecer que Freya o
veria como uma pária quando finalmente voltasse para a casa e encontrasse
tudo daquele jeito.
Miséria.
Mas ele a convenceria do contrário. Assim que Freya estivesse de volta
tudo passaria. As coisas seriam como antes outra vez.
— Mestre? — Mudié o chamou de volta. — Os rapazes esperam o
pagamento.
Sim, claro.
Kazel virou-se para enfrentar os três rapazes responsáveis por coletar as
turistas e deu um sorriso.
— Rapazes, obrigado pelo serviço de vocês. — Então completou em
alemão. — Que o Príncipe abra as portas para vocês.
A próxima coisa que foi vista foi a arma sendo tirada de suas costas e ele
acertou três tiros. Direto nas cabeças. As meninas mais próximas ficaram
com sangue sob suas peles, mas nem para isso Kazel ligou. Ele olhou
novamente a fila de garotas e se sentiu tão profundamente decepcionado que
poderia ter chorado.
— Elas não são bonitas — disse por fim, levantando a
arma. Mudié correu para segurá-lo.
— Mestre, mestre! O que está dizendo? Com todo respeito, meu senhor,
não podemos nos desfazer delas. São as únicas em semanas!
— Podemos conseguir melhor.
— Mestre. — Mudié falou lentamente. — Elas são um meio para o fim.
Vamos aproveitar seus serviços e conseguiremos algo novo em breve.
Quando formos a Praga, talvez?
Mudié ainda apoiava seu mestre, embora não mais cem por cento como
foi antes. Ele começava a ver que Kazel não tinha interesse em fazer dele
mais do que um escravo com benefícios. Ele seria sempre um serviçal, a
sombra do rei e não gostou. Mudié queria ser o rei.
Ele sim estava comprometido com a causa enquanto Kazel passava seus
dias lamentando-se pela perda de Freya.
Mudié quis pegar a arma e tirar a vida de seu mestre, pensando que tudo
seria mais fácil se acabasse exatamente ali. Não tinha nenhum guarda por
perto e ele podia dizer a eles simplesmente que um dos rapazes da entrega
acabou com o mestre antes que Mudié os eliminasse. Ainda sairia como um
herói.
Ele olhou para a arma, mas não teria tempo de pegar, pois Kazel mesmo
a colocou na cabeça e indicou o dedo no gatilho.
— Não seremos aceitos em Praga — sussurrou com os olhos vidrados.
— Não seremos mais aceitos em nenhum lugar. Todos nos viraram as costas,
todos... todos... todos...
— Mestre. — Mudié o chamou, mas orava para que o dedo escorregasse
de uma vez e explodisse sua cabeça.
— Preciso dela. Não posso viver sem ela, meu amigo. Não posso. Não
quero.
— Senhor, nós daremos um... — O som do gatilho sendo disparado o
calou, mas o sangue não veio, Kazel desabando sem vida não aconteceu e a
arma caiu como se pegasse fogo da mão de seu mestre.
— As balas acabaram. — Kazel refletiu após um minuto de silêncio
entre os dois.
— Mestre, acaba de tentar se matar!
— E não tinha nenhuma bala — sussurrou novamente, mas tinha algo
diferente na voz agora.
Esperança?
— Mestre...
— É um sinal. É um sinal do príncipe. — Ele passou as mãos pela
cabeça. — É um sinal! O príncipe não quer que eu morra, ele quer que eu
viva. Que eu viva para ele, Mudié! Ele quer que eu saiba que terei de volta
tudo o que perdi, mas para isso preciso estar vivo e lutar.
— Eu estou feliz que não conseguiu fazê-lo, mestre. — Sua voz era
rouca, decepcionada.
Talvez ainda desse tempo de bater a arma repetidamente na cabeça do
mestre?
— Ajude-me. — Kazel pediu, avançando os passos e segurando o rosto
de Mudié tão próximo que o fez lembrar das vezes que se beijaram e se
tocaram com intimidade escaldante — Ajude-me, meu amigo. Vá comigo a
Alemanha e quando voltarmos, eu prometo pelo Príncipe que tudo isso será
seu.
Mudié ficou mudo. Ele sempre ouvira que seria recompensado, mas
nunca foi assim. Kazel nunca lhe prometeu algo tão concreto. Tão...
verdadeiro. Seus olhos brilharam com lágrimas não derramadas.
Não havia outra resposta para dar.
— Sim, mestre.
Kazel sorriu. Riu e gargalhou, então agarrou a mão das meninas mais
novas na fila e com os cabelos mais cumpridos e as levou para a grande cama
instalada no canto da sala podre.
Mudié observou. Mudié contemplou seu império.
Mudié arrependeu-se do ódio que sentiu por seu mestre e prometeu a si
mesmo que faria de tudo para ajudá-lo a encontrar sua feiticeira, então
conquistaria seu reino por si mesmo.
Ele estava pronto para governar. Mas primeiro, iriam a Alemanha buscar
o que lhes foi tirado.
"Dias escuros sem faróis na estrada
Foda-se tudo e corra
Por que todo mundo está preocupado?
Porque eu estou apenas me divertindo, divertido e divertido
Não há nada de errado comigo"
RITA ORA, HELL OF A LIFE
— Onde nós vamos agora?
Ele ajeitou o óculos escuro no rosto e segurou o topo da minha perna
com a mão livre. Me senti leve com o toque. Minha terapia acabara há dez
minutos e eu esperei que ele voltasse para me pegar, assim como ordenou que
eu fizesse.
— Para casa.
— Podemos pedir aquela comida engraçada outra vez?
— Japonesa. — Seu lábio subiu um pouquinho ao me corrigir.
— Isso, eu adoro aqueles rolinhos fritos.
— O nome dos seus rolinhos é hot roll.
— Isso. — Dei risada, pousando minha mão por cima da dele. —
Mestre, tenho permissão para ir comprar algumas roupas?
— Você não faz isso pela internet?
— Sim, mas eu vi um filme onde as garotas fazem compras no Shopping
e... bem...
— O quê?
— Eu queria saber como é.
— Quer ir fazer compras em um shopping? — Eu assenti e ele levou
alguns segundos para responder. — Kirina levará você, então.
— Eu gostaria de ir com o senhor.
Sua mão apertou em minha perna, mas não sei se ele percebeu.
— Comigo? Por quê?
— O senhor me protege, mestre. — Dei de ombros. — Se vou aprender
coisas novas quero que seja ao seu lado.
Eu não o olhava quando disse isso, mas saiu de mim e eu sabia que ele
não gostou do que ouviu. Uma coisa que eu percebia a cada dia sobre Siriu
era que ele não gostava de saber o quanto eu me importava com ele. Fugia
dos meus toques e das vezes que eu buscava conforto nele e sempre que eu
deixava sentenças como aquelas escapar, ele se afastava de mim ainda mais.
Eu suspirei, pensando que apenas minha confiança não seria o suficiente
para conquistar a sua, então... o que eu teria que fazer para ter meu mestre por
inteiro para mim?

Eu olhava para tudo encantada. Luzes, pessoas, cores vivas e músicas se


misturavam no interior daquele lugar. Eu sabia que era lindo pelos filmes que
vi, mas estar ali era arrebatador. Naquele momento, abri uma nova caixinha
em minha mente, onde nela eu jogaria coisas boas. Lembranças que eu
recorreria sempre que quisesse pensar em algo bom, sempre que a realidade
se tornasse difícil de suportar. Alguém que veio de onde eu vim não podia
acreditar que jamais voltaria, e caso eu voltasse, teria aquela caixinha para me
apegar.
Comecei a jogar alguns momentos lá. Como a primeira vez que vi meu
mestre, a primeira vez que ele me tocou, a primeira vez que vi um cavalo, a
primeira vez que Onira me abraçou, a primeira vez que Kirina me ensinou
algo tão simples como aplicar um batom sozinha e a última e estranhamente
dolorosa: A primeira vez que fiz algo que toda mulher da minha idade
cresceu fazendo, entrar em um shopping.
Ao meu lado, mestre caminhava com as mãos nos bolsos de seu casaco
escuro e eu sentia seus olhos em mim. Era engraçado que ele não os desviou
nem por um segundo. Eu queria pegar sua mão como vi em “As Patricinhas
de Beverlly Hills”, mas sem sua permissão eu não podia, e honestamente
depois de ontem, não estava preparada para mais uma lição.
— Isso é perfeito — sussurrei, dando ao mestre um sorriso tão grande
que fez o canto do lábio dele subir. Eu queria um sorriso completo, mas podia
me contentar com aquele movimento pequeno. — Olha só quantas lojas!
Quantas roupas, quantos sapatos e joias. Eu posso escolher algo? Onira me
disse que eu ainda podia usar seu cartão.
Ele chegou tão perto que pude inalar seu cheiro. Aquela coisa gostosa de
sentir que as pessoas usavam. Perfume. Sim, eu queria um desses também.
— Onira não tem mais obrigações com você. Pegue o que quiser e eu
pagarei por tudo.
— Mas mestre, e se eu quiser muitas coisas?
Isso me rendeu um sorriso dele um pouquinho maior que o anterior.
— Parece que já vem impregnado em vocês. — Balançou a cabeça. —
Eu tenho mais dinheiro do que Onira sonharia em ter um dia, reinheit.
Aponte e será seu. Enquanto isso eu vou pensar em como poderá me
agradecer por minha generosidade depois.
Dei risada, escapando de seu olhar para apontar a primeira loja que vi.
— Quero entrar ali.
Ele fez um movimento com a mão.
— Vá em frente.
— Prada. — Li em voz alta, vendo apenas bolsas em primeiro lugar. —
Na verdade, acho que não preciso disso.
Mestre me deu um longo olhar antes de suspirar e segurar meus
cotovelos com delicadeza, inclinando a cabeça para o lado.
— Olhe para tudo e o que achar bonito nós vamos pegar.
Uma mulher nos encontrou quando estávamos dentro da loja, estava
muito bem vestida, como Onira quando vai fazer suas exposições. As luzes
eram tão claras que faziam as bolsas reluzir.
— Olá, eu sou Manya e serei sua consultora hoje. Procuram algo
específico ou gostariam de ver a nova coleção?
Eu não sabia o que dizer nem a ela e tampouco ao mestre por ter me
levado até lá. Ele pareceu perceber.
— Deixe-nos — disse a ela. — Eu a chamarei quando ela escolher tudo
o que quer.
Os olhos dela piscaram nele antes que desse um lindo sorriso e saísse,
mas não sem jogar um último olhar para trás.
— Ela o quer, mestre — falei quando comecei a andar lentamente pela
loja, olhando as vitrines, passando as mãos nas bolsas que estavam em
exibição.
— Ela não pode me ter.
— Não? — Fiz uma pausa nas bolsas e o encarei.
— Não — respondeu suavemente, embora seus olhos fossem gentis, eu
queria que ele me abraçasse para confirmar o que dizia.
— Tenho permissão para dizer a ela?
— Não, Freya. Escolha o que for do seu agrado e vamos para a próxima.
— Eu não quero nada, então. — Cruzei os braços. — Tudo é feio.
— Por que está tão empenhada em fazer birras nos últimos dias? — Ele
finalmente me tocou como eu tanto queria, segurando meu queixo para olhar
em seus olhos.
— O que é “birra”?
— Teimar comigo constantemente. Será que você precisa de outra
punição? Eu não vou ser bonzinho como fui da última vez.
— O senhor estava sendo bom?
— Tão inocente — murmurou baixo, parecia falar consigo mesmo. —
Eu não me importo de mimar você, Freya. Vou gastar meu dinheiro, te
compro uma casa nova, roupas, te levo a outro país se quiser. Mas pare de me
desafiar. Você não quer ver a parte feia de mim. Entendeu?
Ele beliscou a ponta do meu queixo como se para confirmar suas
palavras e eu assenti, feliz ao perceber que a consultora tinha visto a cena.
— Sim, mestre.
— Agora continue. Pegue suas bolsas e vamos para a próxima.
— Podemos comer aqui também? Em público?
— É melhor não. Você já teve exposição demais por um dia.
— Qual é o problema nisso, mestre?
— Ainda estamos te escondendo. Quanto menos olhos te verem, melhor.
Já estou quebrando minhas próprias regras ao trazê-la aqui, só viemos porque
não estamos perto de casa.
— Não?
— Não — apontou para as duas bolsas que peguei sem reparar demais.
— Serão essas?
— Sim, obrigada, mestre.
— Me agradeça mais tarde. — Ele virou para chamar Manya e eu me
agarrei ao seu braço.
— Por que isso? — Ele fez uma pausa, olhando-me com intensidade.
— Para que ela saiba que não deve olhá-lo — falei me sentindo
estranhamente tímida, mas corajosa. Talvez eu fosse punida por isso, mas não
daria aquela mulher a chance de tê-lo.
Eu nunca tive direito a nada. Pela primeira vez eu tinha algo meu. Ainda
que ele nunca tivesse dito isso e nunca fosse dizer. Dividimos uma casa, eu
tinha o seu corpo e ele possuía o meu. Manya não podia olhá-lo de nenhuma
forma.
— Olhe para mim, Freya. — Eu o fiz. — Você é minha, mas eu não sou
seu. Eu matarei qualquer um que olhá-la, que ousar tocá-la, que pensar em ter
você. Mas eu sou o seu mestre. Comporte-se como deve fazer e pare de me
desafiar.
Eu ouvi suas palavras com uma dor no peito que não senti nem quando
Kazel me puniu das piores formas. Aquela dor não era física, era dentro do
meu coração. Rejeição como nunca recebi antes. Manya nos levou para
efetuar a compra e saímos com um agradecimento. Embora eu não tivesse
mais vontade de conhecer aquele grande lugar, o mestre me levou em uma
sequência de lojas e escolheu roupas para que eu provasse. Me senti
agradecida quando pegou apenas saias compridas e vestidos longos.
Ele me fez experimentar três sapatos altos e eu me desequilibrei,
contando com seu aperto de aço em minha cintura para me manter de pé em
frente ao espelho. Ele encarou meus olhos pelo reflexo, segurando minha
garganta como tinha feito na noite passada e puxou a cortina atrás de nós, nos
fechando para o mundo lá fora.
— Continue olhando para mim — ordenou, e abrindo o zíper do vestido
amarelo claro que me ajudou a vestir minutos antes, mestre o deixou
escorregar aos meus pés, acariciou-me até que eu estava contendo meus
gemidos e observei seus olhos brilharem no espelho grande.
Ele puxou o tecido que cobria a minha intimidade para o lado e se
afundou em mim.
Siriu começou a falar coisas que eu não entendi. Tentei me concentrar
nisso para não gritar quando comecei a chegar perto do meu limite com ele
esfregando-se nos lugares que me deixavam mole dentro de mim, mas não
entendia. Talvez fosse outra língua.
Eu queria saber falar outras também, assim responderia a ele quando
meu corpo tremeu e ele tampou minha boca, escondendo meu grito. O mestre
se retirou de mim e atirou seu líquido em minhas costas e bunda. Ele esperou
que eu voltasse a respirar com calma antes de se afastar e fechar suas calças,
recolocando o casaco e sentando-se na poltrona do canto.
— Esfregue meu esperma em sua bunda como se fosse um creme,
reinheit.
Eu o fiz, olhando-o pelo nosso reflexo como me mandou.
— O meu creme — murmurou, observando meus movimentos. —
Minha göttin. Por que traz minhas sombras a superfície? — Ele sussurrava
sem piscar.
Nenhuma de suas palavras fazia sentido para mim. Eu só queria que
aquele momento passasse e voltássemos a como tudo estava ainda no carro,
antes de eu tentar exigir algo que ele não queria me dar. Continuei
esfregando, meus braços começaram a ficar levemente doloridos por torcê-los
para trás repetidas vezes.
— É o suficiente. — Levantou-se e pegou o vestido que usei para sair de
casa, recolocando-o em mim. — Espero que todos eles sintam meu cheiro em
você.
Eles?
De repente eu entendi. No meio de várias coisas que não fazia ideia do
significado, aquilo clareou em minha mente. Mestre estava me marcando.
A tatuagem em minha nuca perdeu completamente seu peso. Meu
mestre me marcou como ninguém fez antes e eu abaixei a cabeça para
esconder o sorriso que estampava minha felicidade. Me sentia vitoriosa.
— O senhor está sempre no controle, mestre? — Não sabia de onde
surgiu a pergunta, mas ela escapou como a maioria das coisas em minha
mente faziam.
Ele franziu o cenho, fazendo uma pausa antes de puxar a cortina para
voltarmos a frente da loja, segurava nos braços seis vestidos que escolheu
para mim.
— Sim.
— Por quê?
— É simplesmente quem eu sou, Freya.
Ah, meu mestre...
Eu desci da pequena plataforma algumas polegadas mais altas que o
chão e o encontrei lá embaixo, levando a ponta dos dedos ao seu peito sem
pedir permissão para tocá-lo.
— E quem você é quando ninguém está olhando?
Ele me deu um olhar duradouro que só desviou quando ouvimos um
burburinho de risadas lá fora.
— É o suficiente por hoje. Vamos voltar a minha casa.
Com essa nova rejeição eu tive a certeza de que havia alguma razão para
que meu mestre me afastasse. Ele não gostava dela e estava lutando contra
isso. Mas seu coração me reconhecia assim como o meu fazia com ele.
Não podíamos nos separar mais.
"Me dê amor como nunca antes
Porque ultimamente eu tenho desejado mais
E faz algum tempo, mas ainda sinto o mesmo
Talvez eu deveria deixar você ir"
ED SHEERAN, GIVE ME LOVE
Quando eu entrei na casa de Onira uma semana depois, fiquei
momentaneamente sem saber para onde ir. A quantidade de pessoas
trabalhando lá dentro me surpreendeu, assim como a decoração que já
ganhava forma. Suspirei com felicidade. Seu casamento seria em dois dias.
Ela queria que fosse um domingo frio e esperava que nevasse mesmo que
apenas um pouco, mas embora tenha dito algo sobre a previsão do tempo não
indicar que seu desejo se realizaria, ela também deixou claro que tinha um
plano B. Em suas palavras “nem que precisasse recrutar uma equipe para
ficar jogando neve artificial de cima do telhado durante a cerimônia.”
Eu tinha dado risada da piada, mas depois percebi que ela falava sério.
Eu nunca obviamente presenciei um casamento, tal experiência era
apenas imaginativa para mim. A glória do amor dos dois tomaria uma forma
concreta e eterna. Eu sabia que seria para sempre porque os dois se amavam
mais do que tudo. Dava para ver em seus olhos, nos gestos, palavras e
cuidados.
Crescendo eu nunca tive a experiência do que era amar ou ser amada,
tudo era distante e teórico, portanto, aprendi a definir as coisas baseada no
que via nesse novo mundo. A chuva era chuva porque caia do céu e molhava.
O sol era o sol porque brilhava e esquentava. O amor era Onira e Demeron.
Durante os meses que vivi com os dois me peguei querendo aquilo. Talvez
fosse o que mais ansiei em minha recente liberdade, mas nunca ousei esperar
que realmente acontecesse. Pelo menos não até dias atrás quando ele me
recebeu em sua casa.
Foi assim que Onira me encontrou, ainda parada perto da porta
observando tudo com um sorriso no rosto e feliz por ela.
— Você chegou. — Ela correu para me abraçar com um sorriso
congelado no rosto, mas era tão feliz que o meu também aumentou.
— Cheguei muito cedo?
— Não! Está perfeito.
— Em que eu posso ajudar? Varrendo lá fora ou posso cortar as frutas se
for melhor?
Onira riu, balançando a cabeça como se eu contasse uma piada.
— Não seja boba. — Passando o braço em volta de mim, ela me guiou
escada acima. — Nós não viemos aqui para isso. Hoje é o meu dia e das
minhas damas de honra.
Eu não sabia o que aquilo significava, mas a segui de perto. Nós
entramos em seu quarto, onde Naya e Slom estavam sentadas em cadeiras
inclinadas, enquanto duas mulheres mexiam em seus pés.
— Meninas, nossa terceira daminha chegou!
— O que estamos fazendo? — perguntei quando ela me empurrou para
uma cadeira vazia e rapidamente começou a preparar algo em sua estante.
— Tendo um dia de meninas. Eu não posso me casar com as minhas
daminhas feias, vocês todas precisam de cuidado, é óbvio.
Ela revirou os olhos com sua brincadeira e começou a espalhar uma
massa gosmenta em meu rosto.
— Isso aqui vai esfoliar sua pele e depois hidrataremos. Vamos deixar
agir enquanto cuidamos do cabelo e faremos a unha por fim. Inclusive, como
os vestidos que usarão serão em tons de azuis, escolham esmaltes neutros.
— Eu nem vou discutir. — Naya levantou a mão, tirando uma coisinha
redonda de um dos olhos para piscar para mim. — Olá, querida.
Eu sorri para ela.
— No fim você escolherá tudo desde nossos penteados a maquiagem e
nossos sapatos. — Continuou.
— E a bolsa também. — Slom falou dessa vez, me dando um sorriso. —
Ela é uma mal educada, não é? Nem deixa você nos cumprimentar primeiro.
— Como você está, Slom?
Ela bufou.
— Com minha bunda quadrada de estar sentada nessa cadeira pelas
últimas duas horas e não aguentando mais ouvir Naya em seu eterno dilema
sobre terminar ou não seu noivado já fracassado.
— Não é um fracasso. — Naya rebateu. — Eu pararia de falar se
pudesse sair daqui, mas Onira provavelmente vai me costurar na cadeira.
— Vocês me fazem parecer a noiva psicótica!
— Mas você é.
— Totalmente.
— Bem, é para isso que servem as damas de honra. Para me controlar
em meus piores surtos pré-matrimoniais.
— Não estamos fazendo um bom trabalho se você estava até poucas
horas ameaçando o coordenador da cerimônia.
— Ele queria mandar em tudo. — Ela falou com indignação.
Naya riu.
— Esse é o ponto de sua profissão.
— Não importa. — Onira deu de ombros e começou a dividir meu
cabelo.
— É bom que esse seja seu único casamento, pois ele vai fazer sua
caveira para todos os cerimonialistas da Alemanha. Se for se casar vai ter que
caçar um noivo fora do país.
— Então seremos dois caçando. Eu atrás de um noivo enquanto
Demeron me caça de volta. Ele oficialmente proibiu a palavra divórcio dentro
de casa.
— Vocês nunca vão se separar. — Eu falei pela primeira vez e Onira me
deu um sorriso grato.
Eu não sabia muito bem o que significava ser uma dama de honra, mas
pelo que ela me ensinou era estar ao seu lado em todos os momentos, menos
quando ela saísse para a lua de mel. No mais, eu só precisava ser sua amiga
normalmente. Embora eu não me considerasse tão amiga sua quanto ela era
minha, jurei tentar. O placar jamais estaria justo, por que o que eu poderia
oferecer a ela? Não sabia de nada.
Enquanto ela fazia tudo, eu apenas esperava por suas instruções para as
coisas mais simples. Eu queria ser como Slom e Naya. Elas eram tão
inteligentes e confiantes. Eu jamais seria assim. Mesmo meu mestre já
percebera.
Mas a felicidade de ter sido escolhida para estar ali com ela não podia
ser medida e eu sentia pela primeira vez que as coisas em minha nova vida
começavam a se encaixar. Eu tinha Onira, tinha Kirina e tinha ele. Siriu. Era
tudo o que precisava.
Isso significava o meu lar.
— Por que nossos vestidos serão azuis? — Naya perguntou. — Eu
pensei que você concordou com o seu design que dourado era melhor para
ornar com tudo.
— Não, isso era ideia dele. Eu sempre quis azul. É a cor dos olhos do
meu noivo, como poderia escolher outra?
Slom fez um barulho de engasgo e vômito, nos arrancando gargalhadas,
mas Onira não achou graça.
— Quando você se apaixonar eu estarei lá para te provocar a cada
minuto.
— E eu vou me juntar a ela. — Naya completou.
— Deus me livre — disse Slom. — Já segui esse caminho uma vez e
não deu nada certo para mim. Nunca mais vou me apaixonar. Só se for por
uma mulher. Chega de homens. Agora faço parte do movimento morte aos
paus.
— Droga. — Naya suspirou, perdendo o sorriso. — Eu esqueci
completamente disso. Ainda me sinto culpada por ter saído com ele naquela
época.
— Não foi culpa sua. Ele é o que é.
— Não, sério Slom, talvez se eu não estivesse ocupando tanto tempo
dele vocês teriam a chance de se conhecer melhor.
— Não havia o que conhecer. Ele foi o melhor sexo da minha vida, mas
era isso. Eu mal falava, sabia? Ele foi bem claro em dizer que nada além do
meu corpo era do seu interesse. Ainda me perguntou se eu podia lidar com
isso e eu disse que sim, então foi culpa minha também.
— Ele podia ter sido mais sensível. — Naya franziu o cenho. Onira
ficou estranhamente quieta.
— Eu não esperava nada dele e nem sei o porquê ainda me deixo pensar
nele. Só... vamos deixar pra lá, certo? Siriu Konstantinova não é mais parte
da minha vida.
A mão de Onira congelou na minha cabeça, assim como eu me senti
esfriar por dentro. Fitei Slom. Siriu? Ela estava apaixonada pelo o meu
mestre?
— Você não pode tê-lo. — Franzi o cenho, empurrando a mão de Onira
da minha cabeça.
— O quê? — Sua expressão confusa passou de mim para Onira, e para
mim novamente.
— Freya. — Onira me chamou, mas tudo o que eu via era Slom tocando
o meu mestre e ele a tocando como fazia comigo.
— Ele é meu.
— Ela está com Siriu? — Naya perguntou com surpresa.
— Qual é o problema? Eu sou tão impossível assim de querer?
— Ninguém disse isso, querida. — Onira entrou na minha frente,
sorrindo com simpatia.
— Vocês duas não podem tê-lo mais. Eu o conquistei para mim.
— Onira? — Slom a chamou, seu tom de voz exigia uma explicação.
— É uma longa história. — Minha amiga disse. — Freya está passando
uns dias com Siriu. Querida. — Ela voltou a me fitar. — Slom não o quer,
está bem? Nem Naya. Naya está noiva.
Eu olhei para as duas. Naya me observava com um sorriso pequeno e
verdadeiro, mas Slom não. Ela parecia tão machucada que me fez recordar de
mim mesma em meus momentos mais difíceis.
— Sinto muito. — Eu disse a Slom. — Eu pertenço a ele e ele
pertencerá a mim um dia também.
— Você é uma criança — disse ela, fazendo-me franzir o cenho.
— Que soube agradá-lo melhor do que você.
— Oh, meu Deus. — Naya sussurrou, dispensando as mulheres que
trabalhavam em seus pés e de Slom. — Isso acaba agora.
— Freya. — Onira chamou minha atenção. — Não pode dizer coisas
assim. É rude e desagradável.
— É a verdade. Eu não sou uma criança. Tentei ser simpática sobre sua
dor e ela me ofendeu.
— Simpática? — Slom zombou, levantando-se e limpando o rosto com
uma toalha — Agora entendo o porquê ela passou tanto tempo com Kirina. É
uma de suas prostitutas, não é?
— Pare com isso. — Onira disse a ela. — Vocês não vão acabar com um
dia que deveria ser perfeito para mim. Meu casamento será em dois dias!
— Ele virá com ela, não é?
— Eu ainda estou aqui — falei, ficando mais irritada a cada minuto. Em
minha contagem, ela havia me ofendido outra vez, embora eu não
conseguisse ver como ruim ser chamada de “prostituta”. Eu tinha amigas no
clube de Kirina que viviam daquilo e elas eram além de boas comigo.
— Siriu não vai vir — Onira disse. — Ele não se daria o trabalho de
perder o precioso tempo vindo em meu casamento. Ele odeia tanto a mim,
quanto Demeron.
Ele não estava planejando ir ao casamento? Eu não sabia. Em minha
mente, quando ele chegou em nossa casa e me presenteou com joias e um
sapato para ir à festa, eu imaginei que me faria companhia. Até onde eu sabia,
as pessoas sempre iam em par naqueles eventos.
Slom me deu um olhar desagradável, e embora eu estivesse descontente
com ela, não consegui devolver. Nada do que eu disse foi com intenção de
ser cruel ou ferir Onira. Estava apenas dizendo a verdade. Meu mestre era
meu.
— Vamos voltar aos nossos tratamentos de beleza e fingir que esse
momento horrível não aconteceu, certo? — disse Naya. — Por Onira. Somos
suas amigas e Siriu não está aqui. Todas saímos com ele e fomos fodidas por
ele de alguma forma, isso está claro. Agora seguimos em frente.
— Eu não saí com ele. — Onira torceu o nariz.
— E eu não fui fodida. — Naya riu, batendo na ponta do nariz dela e foi
até cada uma de nós, nos levando para nos sentar nas cadeiras novamente. —
Agora comportem-se e sorriam, mesmo que for um sorriso falso. Nossa
japonesinha está tentando ter um dia de princesa aqui, hello-ooo.
Abrindo a porta para que as mulheres entrassem novamente, Naya
sentou em seu próprio lugar e suspirou.
— Se um dia eu desistir de cantar, posso virar uma controladora de
crises.
As três riram, menos eu, pois não entendi o que disse.
— Sinto muito. — Eu disse baixinho a Onira, que estava sentada ao meu
lado.
Ela me deu um pequeno sorriso.
— Está tudo bem. Só estou preocupada com você.
— Por quê?
— Porque você está a poucas semanas com ele e age assim. Tem certeza
de que não quer voltar a ficar aqui por um tempo?
Eu abri a boca para dizer a ela que não comecei a agir assim. Eu sempre
fui daquele jeito. Se o problema na empresa de Kurton Ward não foi o sinal
que ela precisava para ver, eu não sabia o que seria preciso. Mas ainda me
faltava coragem para dizer a Onira que eu não era a garota inocente que ela
acreditou desde a primeira vez que me viu.
Então apenas dei um pequeno sorriso e balancei a cabeça.
— Eu vou me comportar melhor.
Ela suspirou, claramente aliviada com minha compreensão sobre o que
acabara de acontecer e deu um aperto na minha mão. A conversa voltou a
acontecer entre as três. Embora agora eu sentisse o peso do olhar de Slom em
mim. Eu ainda não tinha nada a dizer.
Estar com meu mestre me deixava tão à vontade que eu por algumas
vezes o choquei com minhas palavras sinceras, mas ali, com mulheres que eu
deveria fazer amizade eu me sentia mais perdida do que nunca.
Os dias com Siriu eram fora da rotina. Nós comíamos a maioria das
vezes separados, ele em seu escritório e eu em meu quarto, seguindo ordens
suas. Ele aparecia quando eu já tinha caído no sono e me apresentou prazeres
que nunca conheci, ou já conhecia, mas nunca tinha visto o lado bom deles.
Ele exigia meu silêncio, minha submissão e minha confiança completa.
Mas, se eu pedisse o mesmo, ficaria sem vê-lo por um dia inteiro ou dois,
então aprendi a não pedir mais. Eu me aproveitava dos momentos que o
mestre estava comigo e apreciava quando exigia minha presença em seu
escritório apenas para sentar no chão ao seu lado enquanto ele trabalhava na
mesa.
Eu forçava conversas que ele participava por curtos minutos e depois
ficava em silêncio, me levando ao quarto como se minha insistência o tirasse
de si. Ele falava sobre suas sombras, o que era um dos muitos mistérios sobre
ele e nunca perguntei.
Havia vezes que eu o pegava me olhando com uma tristeza tão profunda
que tudo o que queria era me aproximar e implorar para que me deixasse
servi-lo, e o fiz. Foram muitas vezes que voltei ao meu quarto, carregada por
ele. Vezes em que ele me mostrou sob o peso de sua tortura que seu mundo
era seu e eu nunca faria parte dele.
Mas eu só tinha adoração por ele. Para o homem que me salvou e me
protegia. O homem que aprendi a amar como um conforto em meu
sofrimento. Ele era a tempestade quando minha mente calma começava a
pregar peças, me distraía de cair em minhas próprias armadilhas. Eu o amei
por isso.
Eu não podia desistir de dar a ele pelo menos um pouco do que me dava
mesmo sem saber.
— Eu não imaginei que seria corajoso o suficiente para falar comigo. —
Lucca DeRossi me disse assim que atendi sua chamada.
— Você raramente liga. — Recostei-me na cadeira de couro da minha
sala na Suprema Corte, observando a tela da TV rodando o noticiário.
— Serei breve, sabemos que se não ligo há uma razão. — Autoridades
do lado “certo da lei” era sua razão. Qualquer coisa que ele dissesse poderia
colocá-lo em risco, ainda que a família da máfia original, a Cosa Nostra
italiana prosperasse sob o controle de sua família há anos, ele sempre foi
cuidadoso. — Se há uma coisa que eu odeio, é traição.
— Como amigos antigos eu vou explicar para você.
— É claro que vai. — Cuspiu. — Eu respeitei você e sua família. Eu te
dei a minha amizade. Você jogou na fronteira com a Rússia e cuspiu em meu
nome, Siriu. Eu estarei presente no casamento de Demeron. Conversaremos
lá.
Suas metáforas filosóficas faziam as ameaças parecerem bonitas. Lucca
tinha um talento para fazer sangue parecer vinho e morte prosperar a vida. Eu
também o respeitava por aquilo.
— Veremos, Lucca.
— Eu estou de olho em sua menina de olhos amarelos, Senhor X. — A
ameaça na voz fazia o sotaque parecer ainda mais mortal, e eu sabia que ele
se sentia traído, por isso, levei a sério. E o ódio por ele sequer pensar em
ameaçar Freya borbulhando em meu peito fez imagens de eu o machucando
explodirem em minha mente. — Exigirei respostas e as terei. O relógio está
contando dois dias, juiz.
Ele desligou e eu apertei tanto o celular que a tela trincou, em seguida o
atirei na parede imaginando que era a cabeça de Lucca DeRossi. Maldito dia
em que fiz negócios com o maldito italiano. Eu me perguntava o que ele faria
para proteger sua esposa. Abriela DeRossi morreria acima de sua amada
famiglia e seus negócios? Eu duvidava.
Lucca jogava seu teatro de não se importar com a mulher, mas todas as
vezes que eu a vi ser mencionada vi também o ódio em seus olhos. O tipo de
ódio que eu mesmo carregava também, mas em direção oposta ao dele.
Lucca não suportava a ideia de alguém pensar em sua esposa, assim
como eu não suportava a ideia de não ser o único a destruir Kazel. Ou pelo
menos era assim antes. Agora, tudo o que eu via ao me comparar com o
mafioso era o mesmo ódio na mesma direção.
Proteção e posse.
Freya tinha a minha maior determinação agora e parte de mim odiava
reconhecer aquilo. Que protegê-la de Kazel em algum momento tenha se
tornado mais importante do que colocar minhas mãos sobre ele.
Então mude de ideia.
— Não comece o seu jogo, estúpido — murmurei, dando um soco no
lado esquerdo da cabeça.
As sombras sempre estiveram em desacordo com minha decisão. Eu
precisava pará-las tanto quanto precisava parar Kazel, mas elas não
aceitavam seu próprio fim. Ainda que a pequena parte sã que restava de mim
fosse destruída junto com a podre.
Sai do meu escritório e tranquei a porta, esperando que Sofire encerrasse
sua ligação para falar com ela, mas antes que pudesse vestir o casaco, o rosto
de Demeron me deu boas-vindas no final do corredor. Qual a parte de “não
envolvam meu trabalho com o submundo” a minha família não entendia? Eu
fui claro o suficiente todas as quinhentas vezes que repeti.
Fingir que não o vi estava fora de questão, Demeron era perspicaz
demais para cair e não deixaria para lá. Se ele foi até ali, tinha algo a dizer.
Sofire desligou o telefone e me encarou com um semblante cansado,
respirando fundo quando o celular tocou.
— Está finalizando o dia, senhor?
— Vou ter uma conversa com meu primo e sairei em seguida.
Fiz menção de voltar para dentro, mas ela me parou com um chamado.
— Sim? — perguntei, vendo Demeron a poucos passos.
— Amanhã é aniversário do meu filho.
— E daí? — Franzi o cenho.
— Eu gostaria de saber se posso ficar fora em home office. Nunca pedi
algo assim antes, mas meu marido está doente e compensarei na segunda-
feira e...
— Não — decretei e entrei, deixando a porta entreaberta.
Quando a contratei deixei claro o tipo de serviço que seria responsável e
inclusive, a paguei por fora para lidar com tudo, todos os dias da semana. Ela
não hesitou em aceitar. Disse que tinha disponibilidade total de sete dias e
vinte e quatro horas. Seu filho ainda faria muitos aniversários e seu marido se
curaria, ela podia lidar.
— Eu pensei que seu coração estava amolecendo, mas vendo sua
secretária quase chorando ali fora depois de uma breve conversa com você, vi
que estava errado.
— Sim, Demeron. — Meu tom era entediado. — Nem todos os homens
têm sede pela salvação como você. O que posso fazer?
Ele me deu um meio sorriso frio.
— Antes eu costumava sentir falta de quando essa sua pergunta era
verdadeira e não apenas uma oportunidade de me cobrar um favor mais pra
frente, mas agora que tenho Onira... eu simplesmente não me importo mais se
Regnar fodeu a minha esposa, se nosso pai condenou nosso irmão a morte ou
nossa avó está se perdendo na demência. Não me importo mais com você.
Parei de esperar que sua sede de vingança fosse deixada de lado e
pudéssemos trabalhar juntos, porque eu teria ficado ao seu lado. Mas você
virou as costas para mim e fez a última coisa que jamais vou perdoar. Você
me traiu. Meu próprio sangue.
Dormência me invadiu. Para não me afetar com as palavras de Demeron
eu me deixei ser engolido pelas sombras. Para não me sentir como o estúpido
que iniciou toda a tragédia que acabou com a nossa família, me deixei ser
dominado pela pior parte de mim.
— Essa coisa nova de coração aberto e toda a sensibilidade não te
cansa? — perguntei, ou uma parte de mim perguntou.
— Não. Mas, cansará em você quando estiver com a idade de Stark,
sozinho e arrependido. Implorando pelo o perdão dos filhos e se afogando em
bocetas que o fazem se sentir jovem por algumas semanas até enjoar, então
ele volta a perceber que sua vida é o próprio inferno que ele mesmo se
colocou.
— Eu agradeço o conselho. — Sorri. — Mas, quando eu precisar de
outro, te peço. Agora... por que veio até mim? Tenho certeza que com o seu
final feliz se aproximando não se daria o trabalho de vir apenas para tentar
alcançar o meu suposto coração.
— Não. — Ele deu um riso morto, e tirou um envelope de dentro do
casaco, jogando em minha mesa. — Vim avisar que os dois seguranças estão
sendo cuidados. A Liga os mandou para uma reciclagem, ficarão pelo menos
seis meses lá.
Reciclagem era um termo educado para o que eu fiz com Demeron mais
de um ano atrás nas celas que o mantive cativo.
— Bom. — Foi a única coisa que eu disse sobre o assunto, e apontei o
envelope. — E o que é isso?
— O endereço e nota de compra. É onde você deve ir para pegar seu
terno e estar devidamente apresentável ao lado de Regnar em meu casamento
amanhã.
Minha risada foi surpreendentemente verdadeira, mas ele não achou
nada engraçado.
— Então além de um convidado, sou também um de seus padrinhos?
— Por medidas de segurança, sim. Não vou deixar mais ninguém tão
perto de Onira.
— Deixe-me ver se eu entendi... Regnar — Dei ênfase no nome. — E eu
somos o seu suporte?
— Regnar não vai feri-la em público para não manchar sua reputação
pública e você não vai machucá-la na frente de Freya.
— Você me subestima, mas tem razão, não tenho nenhum interesse
imediato em machucar sua noiva. Agora porque pensou que eu aceitaria isso.
— Joguei o envelope de volta na mesa. — Eu desconheço.
— Lucca e seus irmãos virão. Assim como Viktor Zirkov como um
representante de Roman. Juan estará presente também. Assumi que seria
muita atenção em cima de Freya, e é claro que você não vai ousar negar na
minha cara que não dá a mínima, quando deu um tiro em seu único amigo
apenas para garantir que ele não a veria no clube de Kirina.
Eu não perguntei como ele sabia disso, porque não me surpreendia.
Demeron fazia questão de ter um olho em tudo o que podia. Eu não sabia
como Liémen estava depois daquele dia, mas não me importei em ir
descobrir. Nem meu lado bom e nem o ruim fizeram questão, na verdade.
— Inclusive, esse tiro literalmente saiu pela culatra visto ele estará lá
amanhã e Freya ao lado de Onira ficará em plena exibição, não?
— Não me tente a tirá-la do cenário, Demeron. — Lhe dei um olhar por
entre os cílios. — Eu não tiraria sua noiva do cenário, mas impedir a
cerimônia não seria difícil para mim.
— Experimente. — Enfiando as mãos nos bolsos, ele deu um passo
atrás. — Eu já disse mais do que pretendia. Preciso voltar para a casa. Minha
noiva e suas melhores amigas estão me esperando por lá.
Eu sabia que Freya estava na casa dele, a tinha deixado eu mesmo e a
observado se despedir com a porra de um sorriso que dividia o rosto quando
saiu do carro.
— Não falte ao meu casamento, Siriu. — Ainda que fosse um pedido,
não era.
— Não impedirei Freya de ir, portanto preciso estar junto com ela.
— E eu pensando que nosso laço especial o convenceria.
Ignorei sua zombaria.
— Mantenha a minha Freya segura, Demeron.
Ele se deteve na porta, olhando por cima do ombro para mim.
— Foi assim.
— Foi assim o quê?
— Que me tornei um cachorrinho, como você diz. Quando reconheci
que ela era minha.
Cerrei a mandíbula, saindo de trás da mesa.
— Saia daqui.
— Se quer saber não é tão ruim, Siriu. — Ele engoliu em seco. —
Homens como nós só devem esperar misericórdia. Mas ainda assim Odin nos
concede um milagre por vida. Para mim, ele mandou Onira. O que acha que o
nosso Deus faria por você?
"Se você tivesse apenas uma bala
Uma única oportunidade
Para ter tudo o que você sempre quis em sua vida
Você pegaria?
Ou deixaria escapar?"
EMINEM, LOVE YOURSELF

ANTES - 23 ANOS DE IDADE

“— Você precisa ir até o seu clube, filho — disse Stark. — Precisa


descobrir se há algo errado. Um sócio foi fazer uma visita e saiu cortando
relações comigo, promovendo ameaças reais contra mim. O que vocês
andam fazendo lá?”
Apressei meus passos com a pistola destravada em punho. Eu não
precisava de muito para saber que algo estava fora do lugar quando cheguei e
encontrei os seguranças e o gerente do clube, Dardo, correndo como se eu
fosse a peste entrando no estacionamento.
— Kazel! — gritei, desesperado para encontrar meu irmão e descobrir o
que diabos estava acontecendo ali.
Ignorei os clientes, surpreendendo-me com quão lotada a casa estava e a
nova decoração interna da qual eu não fui avisado. O barman levantou os
olhos por apenas dois segundos e correu para o fundo do bar, parecendo ter
visto o diabo em carne e osso.
— KAZEL!
Subi as escadas correndo até o escritório que deveríamos dividir e virei a
maçaneta, encontrando-a trancada. Comecei a bater porque sabia pelas luzes
vermelhas acima que ele estava lá dentro. Além do mais, o clube não estaria
aberto se um de nós não estivesse.
Tínhamos o gerente, mas quando eu concordei em deixar o clube na mão
dele durante a minha ausência, foi estritamente porque meu irmão garantiu
que cuidaria de tudo pessoalmente.
Quando Stark me pediu para assumir a Konstantine Business ao seu
lado, eu me senti tanto surpreso, quanto honrado e assustado. Meu tio me
criou e eu o orgulhei o suficiente para confiar sua empresa a mim, mas as
coisas com A Liga estavam aprofundando mais e mais em sujeira entre os
governos e assuntos privados contratados, requerendo mais de sua atenção.
Kazel e eu havíamos começado o nosso negócio depois de uma longa
estrada para livrarmos seu nome do terrível crime que aconteceu no hotel em
Vegas dois anos atrás, e quando compramos o prédio velho para começar
nosso próprio clube BDSM em Frankfurt, deixamos aquela página virar e
assumimos nossa nova realidade: os mais novos empresários da cidade.
O negócio era arriscado, mas muito bem planejado e nós tínhamos
investimento. Tanto eu, quanto ele, sabíamos também que se eu ajudasse
Stark pelo período de um ano que ele pediu, eu conseguiria contatos e novos
clientes VIP’s para o clube. Tudo estava indo perfeitamente bem. Pelo menos
até que eu não consegui mais passar no clube por três dias seguidos, depois
semanas que viraram meses.
Concordei em deixar a administração em suas mãos e quando A Liga
desse uma folga a Stark e ele reassumisse, eu voltaria a o que realmente
queria: expandir nosso negócio. Kazel e eu.
Como foi no exército. Parceiros, irmãos e cúmplices.
Ele abriu a porta completamente nu, exibindo um sorriso bêbado e vi um
vulto correr atrás dele.
— Meu amigo! Eu não estava te esperando até os próximos dois meses.
Não estava fora da cidade? — As palavras eram emboladas e cambaleava,
segurando-se no batente da porta.
— Que diabos...! — exclamei ao ver a decoração nova no interior.
Nossas estantes haviam sumido, assim como a escrivaninha e arquivos.
Havia... uma cama? Eu fitei seus olhos alcoolizados. — Você vai me dizer
que porra está acontecendo?
Ele gargalhou e me puxou para um abraço.
— Venha! Veja por si mesmo.
Ao entrar, eu desejei não ter olhado.
Em cima de uma cama de metros que pegava parede a parede, havia
quatro meninas nuas. Literalmente meninas.
Enquanto três contavam um montante de dinheiro, havia outra esticada
num canto, sangue escorrendo de seus seios nus e arregalei meus olhos a
perceber que seus mamilos haviam sido cortados, uma faca ao lado de seu
corpo e sangue pelo lençol.
Eu queria dar três passos atrás, virar e fingir que nunca vi aquilo. Fingir
que não era real.
— Eu não queria que descobrisse as mudanças que fiz assim, mas você
veio antes do que o planejado, meu amigo. O que houve? — Jogou o braço
sob meu ombro. — Stark o libertou?
— Kazel, o que... o que está acontecendo?
Ele franziu a testa e olhou na mesma direção que eu.
— Essas são Susie, Ellie, Martha e Glenda. Metade da Glenda.
Uma das garotas começou a sangrar pelo nariz, caindo em suas costas na
cama. Kazel correu até ela e eu assisti em estado de choque enquanto passava
a mão por seu corpo, murmurando palavras para acalmá-la e se inclinou para
uma bandeja cheia de cocaína, virando a cabeça da menina naquela direção.
Pânico.
Repulsa.
Indignação.
Traição.
Eu não sabia qual me fez reagir, mas em um segundo eu estava em cima
dele, arrancando suas mãos dela e esmurrando o rosto atordoado do homem
que convivi durante anos ao lado.
— KAZEL! EXPLIQUE PARA MIM. EXPLIQUE AGORA!
— Que diabos, Siriu! Eu sei que você não curte drogas, mas elas
precisam de um incentivo.
— Quem são elas? Por que isso... o que aconteceu com o clube?
— Elas estão contando nosso dinheiro. Dardo e sua assistente não
estavam sendo o suficiente.
— Nós recebemos pelo banco.
— Recebemos em dinheiro para serviços exclusivos agora — falou sem
dar muita importância, agarrando uma toalha para enrolar na cintura. Seus
olhos turvos e movimentos descoordenados.
— Serviços exclusivos? A única coisa que fazemos aqui é vender
bebidas, a porra das drogas e oferecer quarto para casais que querem
desfrutar dos espaços ou do salão aberto. Nós não drogamos meninas. Qual a
idade delas?
Ele deu de ombros, acendendo um cigarro.
— Eu estou variando, provando os gostos. Você vai entender quando
descobrir o montante de dinheiro que esses ricos pagam para ter o
entretenimento que estamos servindo aqui.
— Que. Tipo. De. Entretenimento?
Ele abriu os lábios e vi que começava a se irritar. Seu temperamento era
inconstante e na maioria das vezes não era são, mas eu nunca pensei que
levaria àquilo.
— Todo o tipo que não se venda fácil e nem barato.
— Me diga a idade. Eu quero a idade delas.
Revirando os olhos ele cambaleou até a garota ruiva, segurando seu
pescoço e o da menina negra de cabelos cacheados ao seu lado.
— Digam a ele quantos anos tem, meus benzinhos.
Dois pares de olhos drogados me fitaram e antes mesmo que me
dissessem eu sabia que não eram maiores. Mas ouvir treze e dezessete, meu
sangue ferveu. Ferveu a ponto de eu ver vermelho e um X muito bem
desenhado na porra do rosto de Kazel.
Ele se afastou com um sorriso depois de dar um beijo em cada uma.
— Antes que pergunte, Glenda mereceu o que teve. Sua punição foi
muito merecida — disse, apontando para a garota amarrada e imóvel.
Eu engoli em seco.
— Isso é piada. Tem que ser alguma brincadeira, porque eu admito que
estou assustado pra caralho e você precisa parar agora!
— Não se faça de santo, você sempre soube quem eu sou. Isso é o que
nós somos. Domínio, dinheiro, sexo e punições. — Ele segurou meu rosto,
encostando nossas testas. — É quem você é.
Eu o empurrei, fazendo Kazel esbarrar na mesa e rolar para o chão.
— Não me toque, porra! Eu não sou um estuprador e não me aproveito
de crianças!
— Mas me defendeu quando eu fiz isso!
— O quê?!
— Em Vegas, você sabia o que eu fiz e ainda me defendeu. Fez seu tio
conseguir me livrar das acusações. Me fez um homem livre para continuar o
trabalho.
— Eu fiz isso porque você me disse que era inocente!
— E você sabia que era mentira — gritou de volta, cuspindo saliva da
rudeza de suas palavras em meu rosto. — Você sabia que eu fiz aquilo e me
protegeu porque me reconhece como o seu igual.
— Se eu soubesse jamais teria ajudado. Eu o teria deixado apodrecer na
cadeia ou o mataria eu mesmo!
Ele balançou a cabeça como se estivesse ouvindo o discurso de uma
criança.
— Eu sei que é difícil abraçar seu lado sombrio, mas eu não vou julgá-
lo, irmão. Abrace-o. Abrace as trevas e aproveite ao meu lado o império que
estou construindo para nós.
Meu coração se quebrou. A porra do meu coração rachou com a dor
insuportável em meu peito. E quando eu apontei minha pistola para ele vi
uma história cheia de mentiras ser jogada ao vento. O vento poluído que eu
respiraria para sempre.
— Afaste-se dessas garotas. Agora.
Ele cerrou a mandíbula, estreitando os olhos em mim.
— Ellie. — Ele disse e de repente eu senti uma batida na cabeça,
enviando-me direto ao chão. O rosto de Kazel entrou em meu campo de visão
e se torceu em desgosto.
— Você terá tempo para pensar sobre ter levantado uma arma para o seu
irmão, Siriu. Mas saiba que estou profundamente decepcionado — sussurrou
e ergueu a garrafa que bebia. A última coisa que vi foi o vidro descendo em
direção a mim. — Voltarei para buscá-lo.
Quando acordei, estava no mesmo lugar.
O clube estava vazio, Kazel longe de ser encontrado e a garota, Glenda,
de dezesseis anos estava ainda no mesmo lugar na cama.
Morta e irreconhecível.
Eu chamei Stark primeiro e depois, a polícia.
Mas ninguém sabia de nada. Minhas investigações sobre as atividades
de Kazel durante a minha ausência levavam sempre ao mesmo lugar: pessoas
poderosas que não tinham nada a me dizer.
E a próxima vez que vi meu “irmão” ele era um dos homens mais
procurados no submundo em diversos países, mas também um dos mais
protegidos. Seu entretenimento lhe rendeu. Rendeu uma rede inteira de
escravidão e sangue.
Tudo debaixo do meu nariz, enquanto eu assinava seus papéis sem ler e
confiava cegamente nele, Kazel roubava meninas de suas cidades e as
traficava. Estuprava, torturava e lhes oferecia por uma fortuna para que
homens e mulheres tão doentes quanto ele, que faziam o mesmo.
O rosto de Glenda foi apenas o primeiro de incontáveis garotas que eu vi
passar fatalmente pelas mãos dele. E eu jamais me perdoaria por isso.
"O que eu não daria por aquela primeira noite, quando você foi minha
Tentei com tudo o que tinha te manter viva
Eu não aprendi
Com mil coisas para dizer
Nasci com o coração partido"
CARY BROTHERS, BELONG
Quando eu disse a Onira que ela e Demeron nunca se separariam, eu
falava sério. Mas minhas palavras só tiveram peso real ali ao dela ouvindo
um homem falar com os dois.
Eu segurava um buque no meio de Naya e Slom, e ao lado de Demeron,
Regnar Heinrich e quem eu menos esperava, Siriu. Eles vestiam ternos
pretos, contrastando com o cinza que Demeron escolheu para si. E nós
tínhamos os nossos vestidos de diferentes modelos azuis, com cabelos em
penteados também distintos. O sapato que meu mestre abotoou em meus pés
eram meu maior conforto e seus olhos fixos em mim durante toda a
cerimônia me manteve de pé. Se eu olhasse para a frente, onde todos os
convidados deles estavam sentados, tinha certeza de que deixaria que todos
vissem quão amedrontada eu me sentia.
Não fazia ideia do que estava acontecendo.
Seu casamento era um acontecimento lindo. O mais bonito que eu já vi
acontecer. O único, é claro, mas nada se comparava as palavras de amor e
devoção que eles diziam um ao outro na beirada do penhasco, com o céu e o
mar unindo-se de fundo atrás deles. O rosto de Demeron era sério, mas Onira
não continha sua emoção. Slom e Naya estavam tão sensibilizadas quanto,
mas eu não conseguia encontrar emoção onde não entendia. Estava me
esforçando tanto para dar sentido a tudo em minha mente que não consegui
sentir intensamente como elas.
Pelo o que Onira havia me dito, a mulher era certificada pela lei para
casá-los, mas nenhuma religião faria parte do casamento. A única coisa que
Demeron pediu foi que uma mulher os casasse, pois ele acreditava na força
que a mãe de seu Deus carregava sob os guerreiros. Sobre ele. Demeron não
acreditava em um Deus como a grande maioria e Onira não acreditava em
nada. Após assinarem consentindo que estavam ali por vontade própria, a
mulher lhes entregou uma caneta e ambos assinaram um livro sob a mesa de
toalhas brancas. Onira sorriu e soltou a mão de Demeron, pegando um
microfone que Slom, ao seu lado entregou.
— Eu estava perdida quando encontrei você ou você me encontrou, eu
não sei. Você acredita que seus deuses me mandaram como um presente não
merecido, mas eu acho que a vida te deixou escorregar por acidente para
mim. Eu não acho que alguém como eu poderia merecer tanto amor. — Ela
fez uma pausa, abaixando a cabeça antes de continuar. — Você vê a minha
dor mesmo quando eu não percebo que a estou sentindo, pois estou tão
acostumada com ela, que se tornou fácil esconder. Você aplaca os meus
pesadelos quando me segura firme e me mostra que nem tudo é tão ruim
quando se vive na escuridão. Você me ama e me protege mais do que
qualquer um já fez algum dia. Você me aceita e aceita que eu te queira por
inteiro. E hoje, diante de todos esses convidados como testemunha que vou
cobrar pessoalmente dos seus deuses a promessa que você me fez de termos
essa e mais dez vidas juntos. Talvez eu cobre mais algumas.
Algumas risadas foram ouvidas, mas Demeron permanecia sério. Os
olhos azuis brilhando no rosto dela, as sobrancelhas franzidas e os lábios
apertados enquanto observava a declaração. Ela já havia me dito que ele não
falaria nada e, também não pediu que ela falasse, mas ela quis. Ela quis tornar
público o quanto amava e protegeria Demeron.
Meus olhos desviaram para Siriu, encontrando-o em mim com uma
intensidade diferente que me fez ficar fixada ali. Só pude me afastar quando
Regnar entrou na frente dele e virou-se para trás. Quando encarou as pessoas
novamente segurava uma gaiola com algo dentro. Se movia e tinha olhos
atentos, um cinza profundo com um pequeno círculo verde no interior. Ele
abriu a gaiola e Demeron esticou o braço, fazendo a criatura... andar por ele.
Ela ou ele, ou o que fosse, se apoiava em Demeron com olhos afiados nas
pessoas, fazendo barulhos no fundo da garganta.
Eu me virei para Naya.
— O que é isso?
— Uma coruja. — Naya sorriu, parecendo encantada com a cena. — Ela
simboliza o amor dos dois, além de tudo. Ela enxerga através da escuridão e
consegue captar o que a maioria das pessoas não podem ver. Assim como
Demeron e Onira fizeram um com o outro. Ela é inteligente, silenciosa e tem
séculos de conhecimento guardado. Quer dizer... Demeron acredita que ela
passa seu conhecimento de geração para geração. É bonito.
Ela suspirou e eu me peguei fazendo o mesmo, encantada que o amor
dos dois fosse ainda mais profundo do que eu imaginava. Demeron esticou a
mão para Onira e ela o segurou, virando-se para encarar os convidados ao
lado dele. Eu pensei que tinha acabado e eles desceriam, mas de repente as
pessoas ficaram de pé e havia apenas o silêncio antes que Demeron
começasse a falar.
— “Grande Odin, possuidor das runas secretas, guia minhas mãos e
pensamentos para que minhas perguntas sejam obtidas com verdade e
correção. Em nome de Thor, Freeg e Baldur peço toda a intuição e
sensibilidade necessária para realizar esta grande obra. Invoco ainda a
sabedoria de Mimir, para que me permitindo sorver o líquido da fonte do
conhecimento, possa eu também dominar o segredo das runas. — Ele olhou
para Onira, inclinando-se para beijar sua testa. — A ti Senhor Odin, toda
honra e toda glória, agora e para sempre.”
Vi Siriu abaixar a cabeça, mas percebi seus lábios se movendo assim
como Regnar repetiu as palavras de Demeron junto com ele.
— Que assim seja e assim será — disse Onira, sorrindo para ele.
A coruja repete seu barulho, como se concordando com as palavras dele
e eles começam a andar, Demeron ajuda sua esposa a descer o pequeno
degrau antes de ouvirmos as pessoas começarem a bater palma quando os
dois caminharam pelo corredor. Os cabelos longos de Onira revelavam-se sob
o véu transparente, a pele pálida parecia brilhar com a luz. Tudo foi perfeito.
Após Naya encontrar Regnar e Slom enganchar o braço no de Heinrich, o
jovem garoto que eu havia conhecido na casa de Siriu, foi a minha vez de
encontrar o mestre.
— Você está... — Ele fez uma pausa, franzindo o cenho ao passou o
braço pela minha cintura e me grudando ao seu lado. — Eu nem sei como
diabos elogiá-la.
Eu sorri.
— Eu agradeço, mestre.
Ele virou para frente e seguimos os casais que nos guiavam até o fim do
corredor.
Definitivamente perfeito.

Eu fiquei ao lado do mestre pelo o tempo que se seguiu após a cerimônia


enquanto os convidados tomavam lugares nas mesas pelo enorme jardim. Me
lembrou as festas na Kambarys, menos as roupas. Nas festas que Kazel
costumava dar, quando não estavam todos nus, estavam com vestidos longos
e brancos. A música era diferente também. Havia no casamento o que Onira
chamava de banda, com uma mulher cantando e três homens sentados atrás
dela tocando instrumentos. Eu havia aprendido tantas coisas naqueles dias
antes de seu casamento que parecia um milagre.
Como nossa cabeça poderia guardar tantas informações eu nunca iria
entender.
O mestre era conhecido por muitas das pessoas que estavam ali. Ainda
que ele não parasse para conversar com ninguém, as pessoas se aproximavam
de onde estávamos para cumprimentá-lo e todos pareciam interessados em
quem eu era pelos olhares, mas mestre não me apresentou e eu estava grata
por isso.
Kazel não perdia tempo em me oferecer aos seus amigos, enquanto Siriu
os repreendia quando me olhavam demais.
— Não precisamos ficar muito tempo — disse ele quando um casal se
afastou, mas ainda lançavam olhares rápidos em nossa direção. — Eu vou
perder a cabeça se continuarem te comendo com os olhos desse jeito.
— Seu cheiro está em mim, mestre. Como o seu creme. — Dei uma
risadinha quando ele apertou o meu quadril, estreitando os olhos em minha
direção.
— Eu pensei que você quisesse tomar outro banho?
Dei de ombros.
— Achei que lhe agradaria saber o que está por baixo do vestido.
Ele abaixou a cabeça, escondendo como o canto dos lábios contraíram,
mas eu não podia esconder o meu sorriso. O silêncio seguiu por vários
minutos depois e eu pensei em algo para dizer. Queria aproveitar o humor
calmo do mestre. Ele era um bom conversador quando me permitia ter um
tempo de sua atenção.
— O que Demeron disse enquanto segurava a coruja foi muito bonito,
não foi? — comentei ao vê-los dançar.
— Sim. Muito eloquente dada a ocasião.
— Mestre, o que é eloquente?
— Significa que era o certo a dizer naquele momento. Ele pediu a
benção de Odin e sabedoria para lidar com a nova vida ao lado de Onira.
— O senhor não aprova — constatei.
— Acho que ele está sofrendo depois de tantos anos sendo torturado de
diversas formas. Está se deixando levar por algo que pode matar tanto ele
quanto ela e quando perceber isso verá que a melhor coisa que deveria ter
feito era seguir seu caminho sozinho.
Eu franzi o cenho, observando Siriu com atenção redobrada. Ele foi tão
sincero sobre o que pensava que me deixou surpresa. O mestre nunca mentia,
mas também nunca me dava tanto sobre si mesmo.
— Nem todos querem estar sozinhos, mestre — sussurrei, colocando
minha mão acima da sua em minha cintura. Ele se afastou ao sentir meu
toque, deixando apenas a palma descansar em minha coluna.
— Que aproveitem enquanto durar — disse por fim.
Eu não queria seu silêncio novamente, então me virei para ele
completamente.
— O senhor repetiu as palavras eloquentes junto com ele. Sabia que ele
diria aquilo.
— Sim, eu sabia.
— Como?
— Eu já as disse antes. É uma das orações que eu costumava dizer todos
os dias ao acordar e antes de dormir.
— Mesmo? — Mordi o lábio, segurando seu braço outra vez. — Pode
me ensinar?
Ele estreitou os olhos azuis em mim e eu me peguei buscando meu
reflexo nas irises.
— Vou te ensinar algo mais eloquente a este momento. Está pronta?
— Sim — sussurrei cheia de ansiedade. Ele me observou por mais um
momento enquanto bebia o líquido em seu copo e deslizou a língua sobre os
lábios quando terminou.
— “Poderosa Freya, ajude-me a encontrar meu caminho. Mostre-me a
chave da magia e justiça. Oriente-me nos momentos difíceis e me dê
agilidade e coragem para superar meus obstáculos. — Ele parou e eu
implorei silenciosamente que continuasse, pronta para ajoelhar e rezar para
que ele seguisse em frente, mas não foi preciso. — Dai-me energia pura e
restauradora do teu amor. Minha alma e coração te pertencem e honrarei
teu nome eternamente. Em nome do Fogo, do Ar, da Terra e da Água. A mais
bela entre todas as deusas, com tua luz ilumine o meu caminho.”
Quando ele terminou eu tinha lágrimas nos olhos. Siriu franziu as
sobrancelhas, fitando o copo vazio como se estivesse tão confuso quanto eu.
Eu entendia a essência de algumas palavras, mas não importava o significado,
não quando ele as falou como se orasse para mim. Como se me implorasse
por tudo aquilo.
Eu já sabia que seria impossível ir para longe dele, mas depois daquele
momento... Não queria nenhum outro alguém, outro lugar ou outro
sentimento.
Kazel era nada. Menos que nada.
Eu queria aquele sentimento que me arrebatava, rasgava cada fibra do
que eu sentia, martelava em minha mente como se ele fosse a única coisa que
já conheci. O sentimento de que a qualquer momento o mundo poderia
explodir e eu seria despedaçada.
Eu queria Siriu Konstantinova e por mim, ele poderia ser a bomba a
acabar com tudo. Não me importaria. O céu cairia sob minha cabeça e eu
assistiria olhando para cima com louvor se ele fosse o único a dar a ordem
final.
— Venha dançar comigo. — Ele disse e ergueu a mão, esperando que eu
aceitasse seu pedido.
— Mesmo?
— Eu não sou um homem de muitas brincadeiras, sou?
— Não. — Eu sorri e aceitei. Embora soubesse que não tinha muita
escolha. Mas eu queria. Eu queria dançar com Siriu e com todas aquelas
pessoas olhando-me como alguém normal, mas acima de tudo, queria estar
em seus braços pelo máximo de tempo que fosse possível.
Ele era tão bonito, grande, forte e tinha os olhos mais confiantes. Nem
mesmo Kazel quando fazia comigo as piores coisas, parecia daquele jeito.
Siriu só respirava e eu me sentia em perigo, porém segura ao mesmo tempo.
— Acha que consegue fazer isso?
— Dançar?
— Dançar. — Ele confirmou, o canto direito da boca se ergueu e eu
senti mais um daqueles sopros no estômago.
— Não igual a eles.
— Basta me deixar segurá-la — disse ele e passou a mão por trás das
minhas costas, a outra segurando com firmeza minha mão direita. Seus dedos
contornaram a pulseira que ele havia me dado mais cedo. — Tudo fica bonito
em você.
— Tenho permissão para dançar olhando em seus olhos, mestre?
Ele pensou por um curto momento, então assentiu e começou a me guiar
numa dança só nossa. Os outros homens não se moviam como ele e as
mulheres não pareciam felizes como eu. Elas não tinham Siriu.
— Obrigada, mestre — sussurrei bem abaixo de seu ouvido e ele
apertou as mãos em minha cintura, puxando-me para mais perto.
Nós voltamos ao nosso lugar depois de duas músicas, mas o sorriso
aberto em meu rosto não podia ser contido nem mesmo quando um homem
sozinho se aproximou de nós. O mestre se recompôs, deixando ir a expressão
aberta que me mostrava e se fechou outra vez.
— Aqui está o casal mais comentado da festa.
Ele era apenas um pouco mais baixo que Siriu, tinha cabelos escuros e
vestia um terno listrado, uma taça em uma mão e na outra, um copo redondo.
Siriu esqueceu nossa brincadeira no mesmo instante.
— Eu pensei que não estivesse recuperado o suficiente para vir, Liémen.
— Ah, que isso... eu não perderia sua cara de surpreso ao me ver. — Ele
virou os olhos para mim, analisando-me com uma intensidade diferente da
que os outros homens tinham ao me ver. — E você é Freya. Trocadilho
interessante. — Ele riu para Siriu, que não o acompanhou — Eu estava
ansioso para conhecê-la formalmente, querida. Nosso último encontro não foi
dos melhores.
Ele deu um passo à frente e eu, um atrás.
— Mestre?
O homem perdeu o humor na expressão, alargando as narinas em Siriu,
que me apertou mais ao seu lado.
— Está tudo bem, reinheit. Liémen já está indo. As convidadas estão
ansiosas para dançar com ele.
Liémen deu um sorriso fino, parecia tenso.
— É verdade, mas visto que é o primeiro evento social de Freya eu achei
que poderia começar com ela. Me dá a honra, querida?
— Não é o meu primeiro. — Eu disse sem pensar, mas algo em seus
olhos me fazia ficar nervosa.
— Ah, não?
Fiquei em silêncio e por alguns segundos, Siriu também, até que me
soltou ligeiramente e segurou o meu queixo, fazendo-me encará-lo.
— Diga a ele, göttin.
— Mestre?
— Está tudo bem. Liémen não dirá a ninguém. Conte a ele sobre os
eventos que já participou. Será bom que ele saiba o tipo de vida que teve
antes de ousar ameaçá-la outra vez perto de mim. — Mestre encarou Liémen.
— Pois se o fizer, será a última que fará nessa vida.
Liémen franziu a testa e me observou. Eu acatei a ordem do meu mestre
como me foi dito.
— Kazel me apresentava em bailes como esses. Eu servia seus amigos.
— Servia? — perguntou, sua carranca aprofundando.
— Sim, com o meu corpo.
Liémen deu um passo atrás, fitando Siriu com uma expressão estranha
no rosto.
— Kazel?
Meu mestre apenas assentiu e me soltou por completo.
— Está vendo Kirina ali naquela mesa, reinheit? — Eu arranquei meus
olhos do rosto atordoado do homem para procurá-la e assenti. — Muito bem,
vá para ela agora. Eu a pegarei de volta em breve.
— Sim, mestre.
Senti um estranho impulso de virar-me para o homem e me despedir,
mas dei apenas um sorriso a Siriu e segui sua ordem, caminhando até Kirina
em passos lentos. Uma mão me parou no meio do caminho e virei-me para
ver Naya segurando o meu braço.
Eu lhe ofereci um sorriso, fazendo o mesmo com outras três lindas
mulheres que estavam sentadas com ela. Ignorei os homens que se sentavam
muito perto de cada uma, imaginando que eram seus mestres. Ou como
Demeron era para Onira.
— Freya. — Naya se levantou e sorriu. — Me deixe lhe apresentar
algumas amigas. Essas são Abriela, Alessa e Anita. Elas falam inglês, então
você pode dizer “Olá”.
— Olá. — Fiz como pedido, mantendo o sorriso no rosto.
As três acenaram. Eram realmente muito bonitas, mas ainda que tão
parecidas, não podiam ser mais diferentes. Uma delas, Abriela, tinha um
sorriso completo no rosto, segurando a mão de um homem que parecia rude.
Os olhos azuis me deixando desconfortável de olhar, então voltei a fitá-la.
Como se me entendesse, Abriela piscou e balançou a cabeça muito
sutilmente.
— E estes são seus maridos, Lucca, Dante e Luigi.
Eu assenti, mas não fitei nenhum deles.
Anita exibia-se em uma roupa tão bonita e não tinha vergonha do seu
corpo, eu podia ver. Ela me lembrou de Kirina. Havia uma marca
atravessando seu rosto e enrugando a pele, mas ela era tão bonita que aquilo
parecia ter nascido com ela. Era uma marca de nascença? Eu ouvi falar sobre
elas.
— Pode dizer a ela como é linda, por favor, Naya? — Eu não queria que
soasse estranho ou rude, mas eu precisava dizer.
Naya fez como eu pedi, o que me rendeu um sorriso ainda maior de
Anita e o homem ao seu lado me mandou um beijo. O que me fez desviar o
olhar na hora, me arrependendo de ter falado sobre sua esposa. Eu fitei a
terceira delas quando a risada de Anita encheu o ar.
Pelo menos não ficou zangada comigo.
Eles definitivamente eram um daqueles casais como os que Kazel levava
para me conhecer.
Alessa não sorria e não fez nada além de acenar rapidamente e uma
única vez para mim. Algo me fez querer chegar perto e simplesmente tocá-la,
mas me contive e fiquei onde estava, encarando seus olhos verdes vazios. O
homem sentado ao lado dela era quase tão desconfortável de olhar quanto o
primeiro, mas seus olhos não estavam em mim. Estavam na mulher.
Naya me tirou do constrangimento.
— Quer sentar aqui conosco?
— Ah, obrigada, mas mestre me mandou ir até Kirina.
Ela franziu o cenho.
— Mestre? Ah, sim, Deus, isso é estranho. Ok. — Ela riu, revirando os
olhos e me dando um aperto no ombro. — Nos vemos depois, então.
Eu olhei para os três casais uma última vez antes de voltar a caminhar
até Kirina.
“Eles falam de mim por namorar demais
Sonhar demais
Amar demais
Me culpam por querer demais coisas que mal senti
Mas e você?
Pode me culpar quando é o único despertando tudo isso em mim?
NAYA, THEY TALK TOO MUCH (ELES FALAM DEMAIS)
— Mas que porra foi isso? — Anita perguntou, franzindo a testa.
— Esta é Freya. Ela é nova por aqui e é um doce, não estranhem a
timidez.
— Ela não me parecia tímida — disse Alessa. — Parecia outra coisa.
— Tipo o quê? — brinquei. Eu entendia a constante paranoia das três,
eram casadas com chefes de uma máfia poderosa e viam perigo em tudo, mas
eu sabia que Freya não representava risco à uma simples mosca.
Alessa me olhou no fundo dos olhos e deu de ombros, deixando o
assunto de lado, mas eu via seus olhos irem para Freya sentada numa mesa
um pouco a frente com Kirina.
— O que ela quis dizer com mestre? — Abriela perguntou, inclinando-
se como se não quisesse que ninguém a ouvisse.
Eu quase me engasguei com champanhe.
— Ela está com Siriu e ele... bem... — Fiz uma pausa, sem saber como
explicar. — Ele tem certos... gostos... para relacionamentos.
— Chicotes e algemas, hein? — Anita gargalhou, sem fazer questão de
falar baixo. — Eu preciso de mais álcool para essa conversa. — Acenou para
um garçom e quando se aproximou, ela tirou a bandeja de suas mãos e
colocou na mesa. — Continue trazendo.
O homem ia debater.
— Você ouviu a senhora — disse Luigi, e o empregado se foi num
piscar de olhos.
— Eu não sei bem como funciona — murmurei, finalizando minha
própria taça.
— Eu gostaria de não ter que falar ou ouvir sobre isso — disse Lucca,
me dando um olhar significativo, mas que não entendi.
— É apenas sexo. Todo mundo trepa. — Anita rebateu, me dando um
tapinha na perna — Vamos, cuspa. Você nos contou que saiu com ele quando
foi a Roma. Ele pratica o joguinho de escrava e meu amo?
Abriela arregalou os olhos, inclinando-se para a frente.
— O quê? Como tochas e velas e tudo?
Lucca quase cuspiu a própria bebida, enquanto Luigi riu com a cabeça
deitada no ombro de Anita.
— Abriela. — Ele tentou pará-la, mas a mulher não podia ajudar a si
mesma com sua inocência. Até eu ficava surpresa com o quanto Abriela
conseguiu manter de si mesma mesmo depois de se casar com o infame
Lucca DeRossi.
— Eu só estou curiosa.
— Você está curiosa sobre o pau de outro homem na minha frente e dos
meus irmãos. Preciso levá-la para dentro e discutir sobre isso?
Ela corou, abaixando os olhos antes de dar de ombros.
— Se achar necessário... — Eu pensei ter ouvido ela dizendo “meu
senhor”, mas não tinha certeza.
Ele tirou o guardanapo do colo e o jogou na mesa, esticando a mão para
sua esposa segurar.
— Voltaremos logo.
— Ou não. — Anita inclinou a cabeça para trás, prestes a jogar uma
dose inteira para dentro, mas Luigi a parou.
— Eu fiz uma exceção por ser um casamento estressante, mas já chega.
Ela fez um bico.
— Você está todo mandão. Vou ter que te chamar de mestre também?
— Eu não preciso de rótulos pra espancar sua bunda, amore.
Alessa torceu o nariz.
— Limites, pessoal, limites. — Ela fitou o marido. — Me tire dessa
miséria e leve-me para dançar, senhor DeRossi.
Dante desabotoou o terno e sorriu sutilmente para ela.
— É claro. Mas toda essa conversa me deixou com vontade de levá-la
para conhecer a casa.
Alessa riu baixinho, escondendo o rosto no peito dele enquanto a
arrastava para a pista que as mesas, em um círculo formou.
Eu me peguei ali com o casal mais depravado que já conheci na vida e
ambos me encaravam com aquele mesmo sorriso diabólico no rosto. Eu
conheci Anita quando ela estava viajando e superando algum tipo de trauma
que aconteceu em sua vida. Era casada, mas estava separada de seu marido.
Ela era divertida e eu estava em turnê, não demorou para descobrirmos que
gostávamos de nos divertir da mesma forma. Eu a levei as festas que fui
convidada durante um mês e ela foi a melhor companhia que uma garota
carente e desesperada para fugir da mídia poderia imaginar.
Nos demos bem. Depois nos encontramos em um evento organizado
por Aya Maria Herrera no México, que descobri que tínhamos conexões de
vários lados.
Seu marido era exatamente como ela. Perigoso, louco e apaixonado pela
vida. Ou pelo menos parecia.
— Como eu sei que vocês dois não foram se atracar em algum canto lá
dentro apenas para não me deixar aqui sozinha, vou ter misericórdia de minha
solidão e deixá-los.
— Não seja boba, Naya — disse Anita. — Você pode ficar o tempo
que...
— Aproveite as danças, querida. — Luigi a interrompeu, levantando-se
e puxando-a com ele. Derrubaram uma cadeira chamando grande atenção,
mas saíram rindo como se não tivessem feito nada demais. Balancei a cabeça,
sorrindo enquanto olhava ao redor e me decidia a quem me juntar para ter a
próxima entediante conversa.
Estava cheia de pessoas ao redor, mas nunca me senti mais sozinha.
Qualquer mesa que eu decidisse me sentar, teria assunto. Todos me
conheciam fosse por Stark ou pela mídia, mas não realmente por mim.
— Parece perdida, mein engel.
Eu sorri ao ouvir aquela voz, virando-me para encontrar quem eu menos
esperava.
— Eu pensei que você estava categoricamente proibido de vir.
Os olhos pretos brilharam nos meus, suas mãos enlaçando minha cintura
ao me levar para dançar. Eu não perdi quantas cabeças viraram-se em nossa
direção.
— Meu padrinho vai matá-lo.
— Ele ou o seu noivo? — Ele me deu um sorrisinho perigoso,
estreitando os olhos. — Eu não gosto de mentiras, engel.
— Eu não menti. Meu noivado terminou há semanas.
— Seu noivo já sabia disso quando eu te comi sobre a mesa do meu
escritório na boate? — sussurrou tão perto do meu ouvido que minhas pernas
fraquejaram, mas ele me segurou.
— Não fale assim. — Dei um tapa em seu peito, tentando fingir que
olhos e câmeras não apontavam para nós dois.
— Estou mentindo?
— Não, mas não tem que ser rude — suspirei. — E se não quer ser a
capa de muitas revistas e jornais pela manhã como o seu próximo fracasso de
noivo, deveria se afastar.
— Eu não me importo. — Ele me segurou mais perto. — Mas, visto que
você passou as últimas semanas dormindo em minha cama, duvido que
sejamos um fracasso.
Eu dei risada, ignorando de vez os olhares e apreciando o primeiro
homem que não apontou a puta que eu era, por ter mais namorados e noivos
no mesmo ano do que um vidente faz previsões sobre celebridades.
Kurton me girou e pegou-me em seu peito de volta, os olhos pretos
focados apenas em mim.
— Eu sempre gostei de quebrar recordes.
"Eu quero ser aquela fantasia que você tem em mente
Voando sobre o mar para um lugar que eles nunca irão nos encontrar
Deveríamos sair enquanto somos jovens
Por que um dia vamos questionar"
LANA DEL REY, PARIS
— Alguns saem tão bêbados que gritam aos quatro ventos que Kirina
prática magia lá dentro. — O homem que se sentou à nossa frente alguns
minutos atrás falava sem parar. Olhava para Kirina como se ela fosse o doce
mais saboroso da festa.
Eu fitei meu prato com variados tipos de krapfen e comi mais um,
deixando um gemido escapar. Nossa, como era bom! Kirina já tinha comido
dois cheios quando eu cheguei, e ela e me obrigou a provar todos os sabores
até que eu me apaixonasse por eles, e eu me apaixonei. Me perguntava se
comê-los em todas as refeições seria um problema. Quer dizer, as pessoas
podiam viver de krapfen, certo?
— Eu tenho certa fama. — Ela ri, abraçando-me mais perto e
chacoalhando sua taça de champanhe. — Que atrai os melhores associados e
clientes e, além disso... Não me envergonho do meu dom. Olhe só, Duhan, eu
acho que sua esposa está procurando por você. — Ela apontou para trás e o
homem arregalou os olhos.
— Onde?
— Ela acabou de entrar na casa!
Duhan levantou-se e se ajoelhou ao lado da minha amiga, beijando suas
mãos e sua coxa antes de se levantar.
— Obrigado, meu coração. Nos veremos em breve.
Ela riu.
— Eu vou esperar.
Quando o homem se afastou o suficiente, ela revirou os olhos.
— Pobre coitada de sua esposa.
— Você tem um dom? — perguntei com surpresa. A conhecia há vários
meses e não fazia ideia.
— É claro querida. — Ela sorriu. — Todas nós temos um dom.
Eu sabia qual era o meu depois de Kazel ter dito tantas vezes, mas o
dela... nunca imaginei mesmo.
— E qual é o seu?
— Eu curo corações partidos. — Ela virou sua taça, bebendo todo o
líquido que restava lá dentro.
Fitei Siriu de canto dos olhos e desejei ter aquele dom eu mesma para
usar nele.
— Sei o que está pensando, krasivyy.
— Ele poderia usufruir dessa magia.
Kirina riu, nós falávamos baixo, de modo que as outras pessoas perto
não podiam ouvir.
— Não, meu bem. O problema com Siriu é exatamente o contrário. —
Ela soprou em meu ouvido. — Ele não tem um coração para consertar,
Krasivyy.
— Eu não acredito nisso — murmurei de volta, observando-o de longe.
Ele estava com mais dois homens conversando não muito longe de mim. Não
vi Liémen em nenhum lugar, mas um pequeno sorriso se formou em meu
rosto quando notei Blair ao seu lado, segurando um urso e um copo de
plástico na mão pequena.
— Proteja o seu coração, minha doce Freya. — Kirina murmurou,
acariciando minha bochecha antes de dar um beijo e me soltar. — Siriu não
sabe cuidar bem de quem decide amá-lo.
— E você sabe disso porque o ama.
— Sim. — Ela respondeu sem desviar os olhos dos meus ou perder o
sorriso. — Mas nunca estarei com ele. Nunca estive e nunca me deixaria
ficar. Eu fui uma garota inocente certa vez, como você. Meu coração já tinha
sido partido, é claro. Meu corpo já tinha conhecido outros corpos, mas em
espírito... eu ainda era uma menina inocente. Eu dei a ele o meu amor e ele
me arruinou. A única coisa que me consola nisso é que ele se destruiu junto
comigo.
Eu suspirei, balançando a cabeça.
— Eu tenho uma raiva terrível de qualquer mulher que pense sobre ele
dessa forma. Slom Ward me odeia agora porque eu a ameacei sem saber que
estava fazendo isso.
Kirina riu.
— Mas não sente o mesmo comigo?
— Não — sussurrei.
— Isso é porque você sabe que não sou uma ameaça. — Ela fez uma
pausa quando olhou para longe por um curto momento. — Ele mesmo te
garantiu isso, não é?
Eu assenti porque era verdade, mas não gostei do brilho de tristeza que
vi em seus olhos.
— Eu disse a ele que nunca mais o olharia se ele a amasse. Jamais
poderia te machucar assim, Kirina, não depois de tudo o que fez por mim.
Ela segurou minha mão e balançou a cabeça, escondendo a tristeza e
voltando a sorrir.
— Não diga bobagens pois isso seria em vão. Como eu já disse, não
tenho nada. A minha única parte boa morreu a mais de dezoito anos, junto
com tudo o que já foi precioso para mim. Amo você, amo Blair e Kaladia,
amo Siriu e Demeron. Amo Harlen de paixão. — Ela riu ao dizer. — Mas
não da forma como um amor para a vida deve ser. Então, se é da minha
benção que você está atrás... você a tem.
— Ele é a única coisa que eu tenho, Kirina — sussurrei, sem coragem de
encarar seus olhos. — Isso me faz louca? Pensar em desistir de mim mesma
se ele me deixar?
— Faz — disse sem hesitar. — Mas geralmente o amor é assim. Louco.
Um homem de repente apareceu e tocou seu ombro, dando-lhe um
sorriso íntimo. Kirina jogou a cabeça para trás ao rir antes de se levantar.
— De jeito nenhum você está aqui. Freya, esse é Viktor Zirkov. Um
homem que você não quer conhecer.
O loiro de olhos claríssimos me deu um sorriso aberto até demais,
aproximando-se para beijar meu rosto.
— Freya... é um prazer finalmente conhecê-la.
— Eu... — Fui cortada antes mesmo de continuar a frase. Siriu me
puxou para o seu lado, olhando para Viktor como se fosse atacá-lo.
— Você não quer ter mais um inimigo nessa festa, Zirkov.
— Eu não sei. — Ele riu, dando um olhar cúmplice a Kirina. — Pelo o
que ouvi por aí, Freya valeria a pena. A menina dos olhos amarelos é como o
submundo a tem chamado.
— Quem me chamou? — Arregalei os olhos.
Viktor estreitou os olhos em mim.
— E percebo que os boatos são verdadeiros. Kazel fez um trabalho dos
grandes nela, sim?
— Vá para perto de Onira e não saia de lá. — Siriu me disse, encarando
meus olhos com uma ordem silenciosa como fazia no quarto e eu sabia que
não me deixava espaço para como ele dizia... desafiá-lo.
— Sim, mestre — respondi baixinho, dando um sorriso a Kirina e
evitando encarar Viktor.
Eu olhei ao redor procurando por Onira e encontrei os olhos de variadas
pessoas em mim. Todos encaravam-me como se soubesse exatamente o quão
perdida eu me sentia. O estranho centro das atenções. Eu queria voltar atrás e
grudar ao lado do mestre, ignorando sua ordem de me afastar, mas o melhor
para mim era seguir sua ordem e ficar perto de Onira até que estivesse pronto
para me buscar.
Suspirei ao contornar a grande roda onde as pessoas dançavam,
desejando por um minuto que estivesse ali no meio novamente. Queria que
Siriu me levasse para dançar outra vez e ficássemos ali até que a festa
acabasse. As únicas vezes que dancei foram quando Kazel me ordenava e
nunca era tão divertido como aquelas pessoas faziam parecer.
Entrei na grande casa e comecei a procurá-la. Pelo primeiro andar, onde
encontrei apenas dois convidados e desci as escadas novamente. Vários
segundos se passaram quando bati na porta do escritório de Demeron,
sabendo que não deveria entrar sem autorização e esperei, mas ninguém
apareceu. O térreo estava ainda mais vazio. Olhei para a janela da sala, não
vendo nem dez pessoas na frente da casa. Todos estavam no enorme local da
festa que acontecia com a vista do penhasco.
Resolvi voltar para fora e ficar sozinha em algum canto a vista do
mestre. Eu poderia explicar que não encontrei Onira quando ele fosse até
mim.
— Freya. — Eu me virei ao ser chamada, encontrando um desconhecido
de terno e cabelos curtos, pretos, me parou antes que eu pudesse sair
novamente. — É Freya, não é?
— S-sim. — Outro homem se aproximou dele, fitando-me com uma
intensidade que me incomodou. Naquele momento, mais do que nunca eu
quis correr de volta para o mestre.
— É ela. — O recém chegado disse. — É quem o mestre procura.
Senti um alívio imediato.
— Ele me quer de volta?
— Sim, mas devemos ir para outro lugar. O mestre a espera em uma
casa segura onde poderão se encontrar.
Eu suspirei, sabendo que conversar com Siriu talvez significasse outras
coisas.
— Ele está com raiva de mim?
— Sim, Freya — disse o que me viu primeiro. — Você foi uma menina
muito má, mas o mestre está disposto a perdoá-la após você receber sua
punição.
Ele nunca tinha realmente me machucado, mas as palavras daquele
homem estranho carregavam uma promessa que fez meus olhos marejar.
— Ele vai me matar?
— Jamais. — O segundo disse, erguendo a mão para tocar o meu braço,
mas parou antes que o fizesse. — Ele quer vê-la. Está pronta para voltar?
— Sim — sussurrei. — Estou pronta para o mestre.
— Como sairemos? — o primeiro perguntou, olhando ao redor como se
procurasse algo.
— Vamos seguir o plano do mestre, sairei com ela e pensarão que é uma
convidada qualquer. Darei o sinal e vou esperar por dez minutos no carro até
que você apareça. Se for pego...
— Eu já sei. O mestre pode confiar que farei o que devo.
O segundo assentiu e eles se aproximaram, selando os lábios por alguns
segundos. Quando se afastaram, o segundo abriu uma bolsa que segurava e
me deu um casaco vermelho, juntamente com algo cheios de fios escuros. Era
parecido com cabelos.
— Coloque isso em sua cabeça, mas amarre bem o cabelo antes.
Franzi o cenho.
— Por quê?
— O mestre ordena que faça isso, escrava. Quer que ele tenha mais um
motivo para puni-la se nos atrasar?
— Não! — disse imediatamente e fiz o que me foi mandado. Ambos me
ajudaram quando minhas mãos começaram a tremer.
— Muito bem. Todos os importantes estão na festa na parte de trás da
casa, há apenas seguranças a partir da porta da frente. Vou sair de braços
dados com ela e você já sabe o que fazer.
— Sim, certo. Boa sorte.
— Estaremos juntos de novo, meu amor. — Eles sorriram um para o
outro e o segundo me fitou. — Chegou a hora. Está pronta para voltar para a
casa?
Apesar do arrepio que cobriu minhas costas, eu assenti, sabendo que
assim que a minha lição acabasse, Siriu voltaria a ser exatamente aquilo:
minha casa.
Depois de lidar com Viktor Zirkov com palavras rápidas, segui Luigi
para dentro quando me disse que seu irmão queria ter uma reunião privada.
Dando um olhar rápido em volta da festa, não vi Freya e deduzi que já estava
com Onira. Passamos pelo escritório pequeno do primeiro andar e subimos a
escada, indicando que Lucca preferiu a privacidade do segundo andar.
Encontrei os outros dois irmãos já lá em cima com bebidas nas mãos e
um silêncio que fazia a música lá fora parecer estar sendo tocada no mesmo
cômodo.
— Eu pensei que para um espião seu primo seria mais inteligente do que
fazer a festa de casamento na própria casa — disse Dante, analisando uma
das esculturas de Onira antes de colocá-la de volta sob a mureta da lareira.
— Principalmente se convidar tantos inimigos. — Luigi completou,
girando uma faca que sempre carregava consigo entre o indicador e o
polegar.
— Ele não convidou nenhum desafeto declarado, a não ser que esteja
prestes a ser traído eu suponho que não seja tão estúpido assim. E vocês é
claro, enfrentaram uma barragem de segurança suficientemente clara para
entrar aqui — constatei, fitando Lucca com minha mensagem. Meu amigo,
como eles se referiam em seus termos da famiglia dos quais eu pouco
entendia, estava silencioso, encarando a janela que dava vista para o
penhasco e abaixo, onde a festa acontecia.
Eu preferi não mencionar que Demeron planejava se mudar após o
casamento. Fazer a festa ali seria apenas uma armadilha para qualquer um
que quisesse ferrar com ele no futuro.
— Eu me sinto enjoado ao ter que ver minha esposa no mesmo lugar
que Viktor Zirkov.
— Eu pensei que estaria acostumado, visto que ele passou um tempo
com sua família. — Eu disse. — Sua sobrinha, para ser mais específico.
— Não fechei negócios com você por ser um fã de fofocas, Siriu —
disse Dante. — Mas sim um homem que parecia respeitar tradições.
— Minha filha está casada com um italiano de sangue e berço. — Luigi
defendeu. — O resto é boato. A união de Antony com a filha de Roman
Zirkov não agradou a todos e é claro que alguém teria que sair como dano
colateral. Elena infelizmente pagou esse preço.
— Então nada aconteceu? — perguntei me sentindo divertido.
Raramente tal coisa acontecia, mas o esforço que eles faziam para parecer
perfeitos me irritava e ao mesmo tempo, me fazia respeitá-los mais. A minha
família nunca se uniria de tal forma.
Ao contrário, a matriarca da família estava ficando louca, meus primos
viviam em pé de guerra e uma criança era tão negligenciada a ponto de
buscar segurança em alguém como eu.
— Nada aconteceu. — Lucca garantiu, fitando-me. — Pode me dizer o
mesmo sobre sua recente história com Roman?
— Eu não tenho acordos com a Bratva se é o que quer saber. Devo a
Roman um favor e isso é tudo.
—Por quê? O que ele te deu que minha famiglia não poderia ter dado?
— Não é sobre sua guerra com ele, DeRossi.
— Tudo é sobre isso. Você está com a Cosa Nostra ou com a Bratva.
Está com a Rússia ou a Itália. Está com a Sicília ou com Moscou? — Ele
balançava a mão no ar, aproximando-se de mim a cada palavra. — Está
comigo ou com Roman Zirkov.
— Então eu não estou com ninguém.
— Você é um homem morto — disse Luigi, dando de ombros como se
eu fosse só uma pedra em seus sapatos de couro caros.
— Você é mais inteligente que o seu orgulho, Lucca. Dutch não vai me
virar as costas, Ward também não. Não espere apoio de Stark contra mim.
— Os Kings não estão em questão.
— Se estivessem. — Dante argumentou. — Juan Carlo e Liémen
estariam ao nosso lado.
Lucca ergueu as sobrancelhas na menção do último, sabendo que
Liémen era o que eu tinha de mais próximo de um amigo.
— Problemas no paraíso?
— Se o paraíso for amarelo e tiver longos cabelos castanhos... — Luigi
falou cheio de seu humor torcido na voz.
— O submundo sabe que sua cabeça está virada com essa menina de
Kazel — disse Dante e eu me recusei ao dar o gosto de corrigi-lo. Mas por
dentro soquei a porra de sua cara de menino bonito por dizer que Freya
pertencia a outro. — Seus inimigos sabem. Há um preço pela cabeça dela
sendo negociado, movimentos estão sendo feitos. Se você não fizer a aliança
certa, cairá.
— Tudo isso é sobre quantas pessoas estão ao seu lado? — Eu me sentei
e joguei os braços no encosto do sofá, encarando Lucca com desdém. — Seu
cabo de guerra com Roman? Eu pensei que o recreio tivesse acabado quando
seus filhos se casaram e tiveram seus netos.
— Não somos vikings, como você e sua família se considera. — Lucca
desprezou, atacando as nossas crenças como fazia sempre que tinha a chance.
— Nossas guerras não acabam com casamentos e entrega de dote. Acabam
com sangue, famílias perdidas e nomes esquecidos. Eu destruí cada um dos
meus inimigos e vou continuar fazendo isso até que a Cosa Nostra esteja
completamente segura.
— Seria bom você saber que Roman encontrou uma forma de se aliar a
Yakuza, Lucca. Talvez isso o faça pensar melhor sobre seus modos de lidar
com a traição que eu não cometi.
Surpresa brilhou em seus olhos e ele fitou seus irmãos em busca de
respostas. Nenhum deles tinha uma dica sobre a informação.
— Isso é impossível. A Yakuza não fecha acordo com gente de fora há
cinco décadas.
— Não fechavam porque seu oyabun era tradicionalista, mas como
vocês devem saber, Shakiro Yosun faleceu dois meses atrás.
— E seu filho assumiu. — Dante indicou, mas eu balancei a cabeça.
— Quebrando o galho de vocês com esse montante de informação eu
vou esperar que me paguem algum dia, é claro.
Lucca cerrou a mandíbula, sabendo que eu estava certo e minha suposta
traição era um pedaço de merda comparado a o que eu dizia.
— Fale.
— O filho de Yosun não assumiu porque seu primo psicopata o matou
durante a cerimônia e ocupou o trono.
— Katana? — Luigi largou a faca, franzindo o cenho. — Katana está
preso a metros infinitos da superfície em algum fim de mundo por aí.
— Sibéria. — Eu esclareci, rindo ao perceber a ironia. — Yosun pensou
que era inteligente manter o homem preso debaixo do nariz dos inimigos
onde ninguém nunca o alcançaria.
— Deixe-me adivinhar. — Luigi rosnou. — Roman fodido Zirkov
soltou o psicopata.
Eu ergui as sobrancelhas.
— Você não está com a melhor humor para criticar alguém como
Katana, visto que seus gostos e humores são teoricamente parecidos —
ironizei. — Mas sim. Roman percebeu que se soltasse o bichinho de volta no
jardim ele daria conta de matar as formigas.
— E em troca da liberdade ele se aliou a Roman — disse Dante. — Isso
é impossível.
— Até mesmo os mais idiotas associados da Yakuza sabem que Katana
é fodidamente louco para assumir a organização. — Lucca cuspiu. — Ele
esquartejou a própria família e Yosun só o parou porque ele foi ousado
demais ao tentar matá-lo também.
— Eu não sei e não me importo. Não pretendo ir a Rússia, nem a Itália e
tampouco no Japão para descobrir como a organização está lidando com o
novo chefe.
— Eu preciso voltar a Itália — disse Lucca, dando um olhar agitado pela
janela.
Eu imaginava que sua principal preocupação era levar sua esposa de
volta ao solo tão sagrado de seu país.
— Estamos quites, Lucca. — Eu disse antes que saísse.
Ele me encarou com ódio brilhando nos olhos antes de acenar uma única
vez e sair, sendo seguido por Luigi. Dante fez uma pausa, me dando um olhar
significativo.
— Mudié entrou em contato conosco dois dias atrás para tentar fechar
uma parceria. Ele disse que estava prestes a vir a Alemanha tratar de negócios
antigos.
Estreitei meus olhos no subchefe.
— Por que está me dizendo isso?
— Porque agora você nos deve.
Eu rosnei, amaldiçoando o filho da puta. Italiano desgraçado nunca
sairia sem uma vantagem. Esperei cinco minutos antes de sair e ir em busca
de Freya. O conhecimento de que Mudié estava novamente tentando fazer
ligações tão ousadas me soava estranho. Ele não procurava se separar de
Kazel? A única coisa que poderia interessar a eles na Alemanha seria Freya.
Ou Onira. Mas eu não acreditava que se daria ao trabalho de vir por Onira.
Freya era um motivo maior. E saber disso me fez caminhar mais rápido
atrás dela.
Eu parei no meio da escada para o térreo ao ver Demeron e Onira saindo
do escritório. Ele arrumando o cinto e ela colocando alguns fios do cabelo de
volta para trás.
— Onde está Freya?
Onira parou de sorrir ao me ver, erguendo o queixo.
— Da última vez que a vi ela estava com Kirina.
— Eu a mandei vir ficar com você enquanto resolvia um problema.
— Ela não veio. — Deu de ombros.
Eu me obriguei a permanecer calmo com suas palavras.
— Dante me alertou sobre Mudié estar procurando problemas. —
Lancei um olhar para sua nova esposa. — Mantenha-a perto de você.
Ele assentiu.
— Vou ajudá-lo a procurar Freya, ela deve ter voltado com Kirina
quando não encontrou Onira.
— Sim — murmurei.
Mas as sombras revirando minha mente a cada passo que eu dava para
fora me diziam o contrário.
"E é pacífico lá no fundo
Porque de qualquer maneira você não pode respirar
Sem necessidade de rezar, sem necessidade de falar
Agora que estou no fundo
Mil milhas em direção ao leito do mar
Achei um lugar para descansar minha cabeça
E os braços do oceano estão me carregando
Nunca me deixe partir"
FLORENCE AND THE MACHINE, NEVER LET ME GO
Embora houvesse o medo enraizado em mim, eu tentei me manter
tranquila por todo o caminho. Mesmo quando os dois homens que me
levaram para fora da festa me enfiaram no carro eu me apeguei ao
pensamento de que tudo ficaria bem no final.
Mestre foi muito claro sobre o que aconteceria se eu o desafiasse outra
vez. Nenhum outro homem deveria me tocar e eu deixei que Viktor Zirkov
fizesse isso, agora estava indo receber a minha punição. Por isso o mestre me
mandou encontrar Onira e, também por isso seus homens me abordaram
antes que eu pudesse alcançá-la. Eu esperava que sua fúria levasse em
consideração que fui com eles de bom grado. O mestre tinha mãos firmes,
mas sempre me recompensava quando eu o obedecia sem fazer birra.
Condenei-me por ter sido tão boba. Eu ainda poderia estar na festa e ao
lado dele se não tivesse sido tão boba.
Mesmo Kirina me disse que eu tinha que parar de falar bobagens.
Prometi a mim mesma que assim que aquela punição acabasse, o que
quer que mestre fizesse, eu receberia e mudaria. Como queria que me
mantivesse ao seu lado se não podia sequer me comportar? Só tinha que
seguir uma simples regra e falhei.
O carro percorreu um longo caminho antes de começarmos a andar por
ruas mais estreitas, muros estranhos e pessoas sombrias. Eu nunca tinha visto
um lugar como aquele. Era tudo feio e escuro. Siriu era forjado em tanta
elegância que imaginá-lo ali era impossível para mim, mas afinal, o que eu
sabia sobre o mestre?
Nada.
Eu nunca cheguei perto o suficiente para realmente saber algo sobre ele.
Quando finalmente paramos em frente a uma casa horrível, um dos
homens saiu e me forçou para fora, encarando meus olhos arregalados.
— Siga as ordens do mestre corretamente e tudo terminará logo.
Ele me levou para dentro, empurrando a porta que rangeu e o barulho
ecoou pelo lugar. Havia um colchão no canto de uma parede e uma janela
tampada por madeiras, apenas alguns fios de luz adentrando. Jogando-me em
cima, os dois homens tiraram o casaco grosso que eu vestia afim de me
proteger do frio e levaram os meus sapatos também, arrancando meu colar e
brincos. Eu fiquei apenas com o longo vestido azul que mestre havia
escolhido para mim.
Onira queria ser a única a decidir os três modelos; para mim, Slom e
Naya, mas Siriu não lhe deu nenhuma chance sobre mim. Eu me lembrava de
ter ficado tão encantada quando me vi vestida nele que o beijei com paixão e
mestre não resistiu a me tomar.
Mas, ali naquela casa, eu encarava as paredes manchadas e o lugar com
o teto tão baixo que parecia sufocante, sem conseguir ver meu mestre ali
dentro. Era impossível.
Perguntei-me como o homem que havia me dito palavras tão bonitas
naquele mesmo dia podia ter um lado tão... do mal?
— Olá, minha linda feiticeira. — Eu levei dois segundos para ouvir e
reproduzir as palavras, então me dei conta de que a voz que me
cumprimentou não foi a que eu esperava. Na verdade, senti gelo percorrer
meu corpo e meu coração começar a bater lento. Tão lentamente que minha
respiração se tornou rasa. Deveria ser o contrário pelo o que eu sabia, tudo
dentro de mim deveria estar acelerado, assim como meus pés correndo para
escapar de alguma forma, mas uma vida comandada por sua voz me fez ficar.
De repente, não existia mais Onira, Demeron, Kirina e nem a doutora
Katya. Tudo o que eu tinha era uma sombra distante, olhos azuis desfocados
que não alcançavam meus ouvidos.
Siriu.
Mestre.
E havia medo. Um medo tão profundo que se agarrava as profundezas
do meu ser e empurrava-me para a caixinha onde eu escondi coisas boas, mas
eu não conseguia entrar. Eu não podia entrar porque a voz me segurou firme
com ele.
Bem ali.
— Eu a procurei por muitos meses. Quase um ano. Fui da miséria a
desgraça sem você. Enfrentei fronteiras proibidas para consegui-la de volta,
tem ideia de quantas vezes o pensamento de estarmos juntos me deu forças
para continuar?
Ele terminou seu giro em volta de mim e parou em minha frente. Eu não
podia obrigar meus olhos a permanecerem no chão, tinha que olhar para cima
e confirmar o pesadelo. Se fosse seu rosto muito bem conhecido e aqueles
olhos cruéis, eu desistiria no mesmo momento.
E era.
Ele ainda parecia exatamente igual. O cabelo, uma roupa que agora eu
sabia ser chamada de “terno”, o mesmo brilho perigoso no olhar e aquela
fome. Fome de devorar meu sofrimento e se saciar das minhas lágrimas.
Imagens e memórias de uma vida começaram a bater na porta principal
da minha mente. Elas explodiram a um ponto de que eu sabia que se as
deixasse entrar seria afogada por tudo o que ele me fez.
Todas as vezes que me fez sangrar por diversão e me ensinou a esperar
por aquilo. Quando sem qualquer motivo me fazia sofrer e nem sequer
aproveitava, só estava entediado e queria fazer sua posse implorar por
misericórdia. O conhecimento de que me tirou a normalidade do mundo...
que eu era louca por culpa dele. Que jamais seria como Onira, Slom, Kirina e
Naya.
Que nunca seria digna do amor como elas eram.
Foi tudo ele.
Aquele terrível homem que me aprisionou em suas trevas e me fez me
tornar parte delas. Ele forjou tudo o que havia de ruim em mim e gostou. Me
fez gostar.
— E agora eu a encontro apenas para saber que não sentiu a minha falta.
Não levou muito tempo depois que pisei em Berlim para descobrir que Siriu
Konstantinova tinha uma nova protegida. Apenas uma pesquisa rápida me
levou a uma foto. Quão estupido ele é ao levá-la em um shopping? — Kazel
riu. — Ele é um homem público e se esqueceu que estar à vista de todos
chama a atenção? — Ele ficou sério. — Você estava sorrindo, feiticeira. E
isso me machucou profundamente. Você se perdeu. Está defeituosa. Como
vou levá-la comigo e me orgulhar de meu mais precioso bem se não é mais
tão preciosa assim? Se atreveu a chamar outro homem de mestre, andou pelas
ruas como se tivesse o direito de fazer isso. — Ele jogou a perna para cima e
pisou em minhas mãos que se agarravam uma a outra em meu colo, pisou
com força especificamente em uma delas. — Como vou conviver e olhar esta
mancha horrenda?
Eu me torci com a dor de perceber que meus dedos não estavam no
lugar quando levantou o pé.
— Siriu logo estará aqui. Assim que perceber que você saiu saberá que
eu a levei, então vai começar a cobrar favores para encontrá-la. E durante
meus meses de pesquisa, adivinha o que eu descobri? — Ele gargalhou, não
querendo que eu realmente respondesse. — Ele guarda tudo aqui. É óbvio!
Quem acharia que um dos juízes mais influentes do país teria uma casa no
meio do lixo de Berlim e guardaria toda a fonte de seu poder nela? — Ele
abriu os braços e suspirou. — Eu vou reerguer o meu império com essas
informações. Vou chantagear os contatos de Siriu com as informações que
roubei dele e terei de volta tudo o que era meu. Menos você, é claro. Você
ficará e servirá a outro propósito. Pergunte-me qual.
Eu engoli saliva seca e desviei meus olhos para o chão quando ele me
fitou.
— Qual será meu propósito?
— Você ficará com Siriu.
Minha cabeça disparou, meus olhos procurando os seus para confirmar
se ouvi certo. Aquilo não me parecia punição. Na verdade, imaginei que me
mataria quando me encontrasse ou pior, me levaria para longe com ele. Mas
deixar-me com o meu mestre? Parecia bondade. Uma bondade da qual Kazel
não era capaz.
— Você está surpresa, feiticeira. — Ele se ajoelhou no chão à minha
frente e agarrou meu vestido com as duas mãos, rasgando-o e rasgando para
baixo até que ele se abriu por toda a frente. Eu extava exposta com o tecido
pendurado em meus ombros e minha calcinha tampando a intimidade que um
dia foi sua, mas não era mais. Meu desespero não foi que me matasse, mas
que me tocasse novamente.
Eu não pertencia mais a ele. Siriu me tinha.
Ele arrastou a ponta dos dedos pelo interior da minha coxa e fechou a
mão em meu sexo, eu caí para trás, afastando-me dele. Seu rosto torceu em
desgosto e me agarrou pelo cabelo, puxando-me de volta.
— Traga sua boceta bem usada para mim e me deixe ter uma despedida
decente, puta.
— Não — sussurrei, fechando os olhos.
— O que disse? — ele riu, puxando minha calcinha com dedos violentos
e me beliscando no processo, em seguida, enfiou dois dentro de mim. Eu
estava seca e sua invasão doeu, fazendo-me gemer do pior modo. — Seca,
feiticeira. — Ele estalou a língua, acrescentando mais um dedo e balançando
a mão para forçá-los dentro. — Se umedeça, Freya. Receba-me de bom
grado.
“— Seu corpo é meu, Freya. Você apenas o guarda para mim.”
“— Freya, olhe para mim... você é minha.”
“— Espero que todos eles sintam meu cheiro em você.”
— Eu não posso — sussurrei, tentando me afastar outra vez.
— Faça como eu digo, escrava. — Sua mão se ergueu como eu conhecia
bem e bateu direto em meu rosto. Ele me deixou zonza com a força do murro
dado de lado, atingindo minha bochecha e têmpora. Eu caí para trás de costas
e senti Kazel liberando seu pênis, o penetrando em mim.
Eu fechei os olhos, pensando que Siriu o mataria por me tocar,
encontrando conforto nas visões de sua morte.
— Sua boceta está larga e usada. — Ele cuspiu em meu rosto, mordendo
minha bochecha até arrancar um grito do fundo da minha garganta. — E você
está tão sensível a dor, minha feiticeira. O diabo tem sido bonzinho com
você? — Ele segurou minhas pernas na curva do braço até erguer minha
bunda para cima e começar a empurrar seu membro em meu ânus, fechando
os olhos quando viu o quão seca e apertada eu estava ali. — Eu senti sua
falta, feiticeira — sussurrou e ao acariciar meu rosto onde havia tirado
sangue, empurrou-se para dentro de mim. Eu gritei com a invasão sentindo
seu pau abrir-me de dentro para fora. O que eu sentia molhar não era
excitação, era sangue.
Quantas vezes Kazel não havia me deixado seca apenas para infligir
aquela mesma dor?
— Siriu — sussurrei. — Ele virá. Meu mestre virá... — As palavras me
escapavam como uma oração silenciosa, mas ninguém além de Kazel podia
ouvir e seus olhos ficavam ainda mais cruéis conforme o nome de outro
homem saia da minha boca.
— Sua punição é ficar aqui e ser para Siriu a lembrança constante de
que ele nunca vai me pegar. Eu vim e peguei o que era dele... você e todo o
poder que ele tinha sobre outros homens. Mas ele jamais me alcançou... eu
vim bem debaixo do seu nariz e tomei tudo. Assim, feiticeira... cada vez que
ele te olhar, verá o próprio fracasso. Em breve eu começarei a enviar a ele
fotos e vídeos de você com outros homens, com dezenas deles. Do seu corpo
usado e de como você adorava ser manchada e adorada por todos aqueles
bastardos sujos. Siriu verá que no fim ele trocou seu maior objetivo de vida
por uma putinha sem valor que goza sob o comando de qualquer um que
souber enfiar o pau nela direito.
Meus olhos embaçados encaravam o teto, mas eu não tinha como selar
meus ouvidos para suas palavras. Eu ouvi cada uma delas e sabia que era
verdade. Mestre sempre deixou claro o que eu era para ele e agora... agora eu
não podia ser nada. Não se tirei dele tudo o que Kazel dizia.
— Eu não vou fazê-la gozar agora, feiticeira. — Ele riu e beijou abaixo
do meu ouvido, gemendo com a voz rouca ao se derramar em meu interior e
sair, fazendo-me ofegar com a dor. Ele passou os dedos por onde gozou e
trouxe ao meu rosto, mostrando vestígios do meu sangue e seu líquido
esbranquiçado. — Você sangrou assim quando era uma garotinha — refletiu.
— Eu amo o seu sangue, Freya. Sempre vou amar. Mas encontrarei uma
substituta para você. O sofrimento de Siriu é mais importante do que ter seu
corpo usado e defeituoso de volta. Levante-se e deite-se na cama. Devemos
nos preparar.
— Para quê? — perguntei com a voz fraca, minha bunda latejava de dor,
assim como o meu rosto e meu braço que em algum momento foi torcido.
— Siriu chegará em breve. Não queremos que ele perca nada.
— Você tinha que morar na porra do meio do mato onde não é possível
colocar sequer uma câmera. Eu nunca deveria tê-la trazido. Isso é culpa sua
— esbravejei, apontando para Demeron.
— Eu tenho câmeras, mas de alguma forma eles as cegaram.
— Como? — rosnei. — As coloque para funcionar novamente!
— Há muitos jeitos de fazer isso e você sabe, Siriu. A Liga está
trabalhando nisso. Nós vamos encontrá-la.
Soltei um riso amargo, porque nem ele acreditava naquilo.
— Quando? Daqui a mais 18 anos? Lamento dizer, ela estará morta até
lá. Como você bem sabe Kazel não as deixa passar dos 25.
— Não há possibilidade de ela ter saído sozinha? — Dante perguntou.
— Ela ainda está confusa com o novo mundo, não?
Eu encarei o italiano cego de fúria. Havíamos os alcançado assim que
percebi que Freya não estava em lugar algum e eles voltaram, mandando
apenas as três mulheres DeRossi a um lugar seguro antes disso, mas naquele
momento eu me arrependia de ter feito a escolha. Principalmente com aquele
italiano falando porra de besteiras em meu ouvido!
— Você quer me foder, Dante? — perguntei — Hum? Como me diz
algo tão filho da puta quando me disse ainda hoje que Mudié tinha planos de
vir ao país?
Ele deu de ombros, mostrando que não estava realmente preocupado
agora que sua mulher estava fora de risco.
— Ele não sairá do país com ela — disse Demeron.
— Quem te garante isso? — rebati. — Ele entrou quando deveríamos
saber no segundo que chegasse próximo a qualquer fronteira!
— Eu já estive no seu lugar e me descontrolei do mesmo jeito, acredite
em mim quando eu digo que não é a melhor forma de lidar com isso. — Luigi
DeRossi falou, pousando um copo vazio na mesa de Demeron quando me
encarou.
— E como sua esposa voltou? — Joguei de volta. — Com a porra da
cara deformada, a cabeça fodida e abusada em todos os buracos do corpo?
Luigi foi rápido em pegar sua faca de onde quer que aquela porra
estivesse guardada e atirá-la em meu ombro, correndo para mim e me
empurrando contra a parede.
— Implore pela minha ajuda e você não a terá, filho da puta. Fale da
minha esposa novamente e eu vou dizimar toda a sua família como se fossem
nada enquanto você assiste.
Soltando-me, ele puxou sua faca de volta e jogou um olhar a Lucca.
— Eu estou pegando Anita e vou voltar a Sicília. Esse desgraçado pode
pegar seu cérebro de merda e ir se foder. Não conte com a minha ajuda para
nada quando se trata dele.
Ele saiu batendo a porta e eu tirei o terno. Lucca tinha um sorriso de
merda no rosto quando descruzou a perna, levantou do sofá e me entregou
alguns guardanapos.
— Não é a melhor ideia falar sobre a esposa de um homem feito. Se
fosse eu no lugar dele teria jogado a faca mais quinze centímetros a direita e
você não respiraria agora.
— Estamos todos exaltados. Alessa e Abriela estavam na festa também,
esse louco de merda podia ter levado qualquer uma delas junto. — Dante
refletiu. — Kazel precisa ser parado.
— Alguma ideia de como começar a fazer isso? Siriu tem tentado há
duas décadas e não funcionou para ele — disse Demeron.
Eu estava tentando consertar-me para sair daquele cômodo e pensar com
clareza antes que fosse realmente morto ou matasse um deles.
— Até agora. Uma mulher nunca esteve envolvida antes. — Lucca
continuou. — Ele se importa com Freya e vai fazer algo agora. Não vai, mio
amico?
Eu ignorei sua insinuação.
— Tenho uma lista séria de nomes que não vão me negar nada —
admiti, vestindo o terno novamente e segurando um gemido. Como Luigi
acertou aquela porra tão profundamente a ponto de estar alastrando dor a cada
movimento meu era um mistério. — Preciso sair.
— Vou acompanhá-lo — disse Dante.
— Não. — O parei. — Não vai.
O lugar onde eu iria para buscar fontes a qual jurei nunca recorrer para o
meu próprio bem era um que eu queria manter em segredo absoluto de
qualquer pessoa. Um subchefe da máfia italiana não era exceção.
— Siriu, todos queremos acabar com isso de uma vez — disse Demeron.
— Não vê que chegou a um ponto que não pode mais lutar sozinho?
— Vocês descobrem algo daqui e eu vou cuidar dessa parte sozinho.
Estarmos todos no mesmo lugar só nos torna inúteis.
Avancei para a porta, mas fiz uma pausa antes de sair, fitando Dante por
cima do ombro.
— Eu vou saber se você me seguir.
Sua resposta a minha ameaça foi um erguer de sobrancelha, mas não
esperei para ver se diria mais alguma coisa. Encontrei Luigi saindo dos
fundos da casa, praticamente arrastando sua esposa junto dele. Eu não me
sentia arrependido pelo o que falei. Eu não cuidei de Freya assim como ele
não cuidou dela e ambas foram atingidas por pessoas que não deveriam tocá-
las.
O que me deixava com sangue nos olhos era o fato de que ele a teve de
volta. Qual motivo tinha para reclamar? A chance de que eu nunca visse
Freya outra vez era grande e pensar nisso me fez parar meus passos,
encarando o chão por um minuto ou dois. Eu não sabia.
Apenas fiquei ali parado, contemplando a minha vida antes que ela
aparecesse, antes que eu tivesse uma razão diferente para viver. Antes, eu
precisava continuar até que atingisse a minha meta de matar Kazel e destruir
a Kambarys, mas quando ela veio até mim perdida, implorando que a
salvasse, aos poucos o que havia adormecido dentro de mim acordou.
Você a perdeu.
Há quanto tempo eu não ouvia as sombras com tanta frequência antes de
ela aparecer? Mesmo o meu lado ruim precisava de sua pureza. Em meus dias
ruins ela ficou e quando esperou minha bondade, eu lhe dei punição. Eu a
puni por querer estar perto de mim. Decretei como errado que me visse como
algo além do próprio diabo e ela aceitou.
E eu lhe entreguei em uma bandeja de prata nas mãos de Kazel.
Se Freya não passasse o resto de seus dias me odiando, eu realmente
merecia queimar no inferno. Eu merecia de qualquer jeito, mas sua
misericórdia sobre mim faria a dor ser ainda mais merecida.
"Que haja sempre anjos
para cuidar de você
Para guiar você em cada passo do caminho
Para guardar você e mantê-lo
seguro de todo mal"
SECRET GARDEN, SLEEPSONG
Duas teorias passavam na minha mente.
Freya foi levada por Kazel ou Freya foi levada por Mudié. Era muito
simples de resolver para mim. Eu mataria o filho da puta que a tirou da casa
do meu primo e em seguida, iria atrás de matar o outro apenas por garantia.
Em minha casa muito bem escondida na periferia de Berlim, um cofre
com as maiores informações e podres de políticos, empresários,
personalidades da mídia e até atletas estava escondida sob a minha posse.
Cada um deles me ajudaria a colocar as mãos em Kazel para ter Freya de
volta, não importava o preço que colocariam em minha cabeça após isso, eu
daria um jeito de sair como sempre fiz.
“— E quem você é quando ninguém está olhando?”
A voz dela veio acompanhada de uma imagem fugaz do rosto e me
peguei comparando o sorriso que me deu na última vez que nos vimos, ao
sorriso vazio que exibia quando foi me ver na Corte. Ninguém nunca tinha se
enfiado a força em minha vida como Freya fez, ninguém ousou. Eu fiz muito
claro para todos verem que não queria companhia. Família, amigos,
felicidade... não, eu não precisava de nada daquilo. Mas agora Freya foi
levada e eu simplesmente não conseguia ver a mim mesmo entrando naquele
apartamento outra vez. Ou em minha sala na Corte. Inferno, não me via em
qualquer lugar que ela esteve.
Ela voltará para nós.
Estacionei a BMW de qualquer jeito na calçada estreita, deixando um
espaço limite para outros carros que quisessem passar, mas novamente, eu
não dava a mínima. Cada minuto perdido levava Freya para mais longe e no
momento, em que Kazel ou Mudié conseguissem sair da Alemanha recuperá-
la se tornaria tão difícil quanto foi encontrar o desgraçado todos esses anos.
Minha intenção era entrar, pegar o que precisava e sair, mas assim que
pisei dentro da casa e fechei a porta, minha mente esvaziou. Meu corpo ficou
dormente. O único reconhecimento de humanidade que senti em mim foi a
bolha de pânico que começou a subir pela garganta na forma de um grito,
mas uma mão escura agarrou a bolha antes que pudesse explodir para fora,
calando minha voz. E no segundo em que adentrei o quarto completamente e
fixei os olhos na imagem completa de Freya, aquela mão segurou o último
resquício que havia em mim e empurrou para o fundo, onde o homem não
alcançava mais o controle.
Restou apenas o diabo.
E o demônio a frente dele não era páreo.
— Ele é uma piada — murmurei, fechando os olhos para calar qualquer
voz dentro de mim e sorri para Kazel. — Velho amigo... finalmente chegou o
dia que irei matá-lo?
— Ainda não. Deixe-me adivinhar — Ele se aproximou, mostrando-me
de perto o rosto que passei os últimos anos da minha vida caçando. — Veio
buscar material de chantagem? Assim poderia voltar a sua pena perpétua de
me caçar?
Inclinei a cabeça para o lado, abrindo a boca como se fosse dizer algo,
mas não o fiz. Corri para a frente e o peguei num movimento rápido,
agarrando sua cabeça e dando um soco certeiro onde o faria desmaiar, mas
antes eu queria fazê-lo sentir um pouco de dor. Queria que Freya
presenciasse.
— Eu vou fazer os piores homens que conheço violar você — sussurrei
como uma promessa. — E quando eles terminarem, vou torturá-lo por muitos
dias até que seu corpo esteja morto para sentir... e então, só então você
morrerá. E será pela porra das minhas mãos.
O esmurrei novamente, torcendo a mão para a frente de modo que o
pulso estalou quebrando e ele ficou de joelhos a minha frente, um grito
silencioso torcendo a feição.
De onde eu vi quando entrei, Freya estava imóvel na cama e aquilo me
fez sentir mais uma dose de terror. Eu precisava olhar para ela e garantir que
estava respirando.
E talvez aquele tenha sido o maior erro que já cometi.
Mesmo a pior parte de mim queria ver se ela ainda estava respirando, se
restou algo depois de o que quer que Kazel tivesse lhe feito. E naqueles
poucos segundos que desviei o olhar dele para ela, Kazel agiu. A dor da faca
cravando em minha perna não teria me impedido, mas me atrasou tempo o
suficiente para que Kazel pegasse uma arma e a atirasse em mim três vezes,
fazendo meu corpo estremecer com um choque poderoso e depois, eu desabei
como a água caindo do alto de uma cachoeira.
O baque do meu corpo desabando de bruços fez Freya saltar, e assisti
quando Kazel disparou contra ela também apenas uma vez. Tranquilizantes.
Tentei abrir a boca, mas meus lábios estavam pesados e embora minha
visão fosse clara, eu desejei que minha respiração não parecesse tão pesada,
assim poderia ouvir tudo.
Seus pés bateram lentamente perto da minha cabeça e ele se ajoelhou
para me fitar de perto.
— Poderia ter sido diferente, irmão. Deveria ter sido. Era para ser eu e
você governando as Kambarys juntos. Seríamos invencíveis. Imortais.
Eu queria lhe dizer o quão ridículo ele estava, com mais quarenta anos
nas costas e ainda repetindo a mesma ficção barata que o fez cometer tantos
crimes contra pessoas inocentes, mas tudo o que consegui foi uma série de
chutes na coluna, pernas e rosto. Freya tentava se debater no colchão que eu
tantas vezes dormi sem nem me importar em colocar lençóis em cima, mas os
pés amarrados bem esticados e as mãos presas em um cano solto da parede
não a deixavam ir longe. Ela não conseguia falar também, mas de onde eu
estava não podia ver o porquê.
— Visto que a minha feiticeira não consegue mais se referir a mim
como deveria, eu resolvi consertá-la. — Ele riu quando me puxou pelos
braços para perto do colchão, arrastando meu rosto pelo chão duro e virando
meus olhos na direção de Freya. — Se ela não quer falar o que eu quero
ouvir, prefiro que não diga nada.
Só então eu vi. Os lábios de Freya estavam colados, rasgados com
sangue seco escorrido pelo queixo. Ele cortou...? Não. Ele não cortou sua
língua. Ele não tirou a voz da minha deusa. Não podia.
Seus olhos amarelos aterrorizados encontraram os meus e eu pisquei,
tentando dar algum conforto a ela, alguma pista, alguma esperança de que as
coisas ficariam bem. Mas não podia.
Kazel saiu de perto de mim e tirou o cinto e tanto eu quanto Freya
sabíamos que as coisas não ficariam bem.
— Então... depois de ter implorado por seu mestre por quase meia hora,
a nossa putinha aprendeu com o meu pênis em sua garganta que não deve
chamar por outro quando estiver comigo. Mas ela insistiu. Eu resolvi dar um
pouco de água. — Ele piscou para mim enquanto se ajeitava no meio das
pernas dela. Os olhos amarelos continuavam fixos em mim. — Foi um
grande engano eu ter derrubado um pouquinho de ácido no copo, não foi,
feiticeira?
Minha respiração pesada acelerou. Eu fiz de tudo para me levantar,
explodi provavelmente algumas dezenas de veias do cérebro tentando fazer
meus músculos encontrarem força para me erguer, mas foi em vão.
— Mas, relaxe, foi apenas um pouquinho. Ela cuspiu assim que sentiu e
vai viver. Não deve falar mais e isso é sorte a minha que não vou ter que
ouvir seu desrespeito outra vez. — Ele soltou um grito quando a penetrou. —
Azar o seu que estará com esse estorvo defeituoso o resto da vida, a não ser
que se livre dela. — Kazel tirou os olhos de mim por um momento e a
observou. Mesmo com o rosto aterrorizado, brutalizado e morto dela virado
para mim, ele acariciou sua bochecha, beijou cada centímetro da pele e
arremeteu-se dentro dela como se fosse bem-vindo ali.
— Ah, doce Freya... eu sentirei sua falta. Ainda que esse mundo tenha te
corrompido eu vou guardar você na lembrança como a minha pequena
garotinha. Vou fingir que Demeron nunca a levou embora e encontrarei outra
para lhe dar seu nome. Vou continuar de onde eu parei, meu amor. Por você...
será tudo por você.
Ele levantou a mesma faca que havia tirado da minha perna e ergueu
sobre ela, deslizando em sob sua pele em variados lugares enquanto invadia o
corpo imóvel.
— Eu preciso marcá-la — murmurava. — Apenas minha semente não
será suficiente. — Após o que pareceu uma eternidade, Kazel jogou a faca de
lado e se retirou dela, abaixando até que estivesse deitado perto de mim. Ele
me fitou e sorriu. — Como seria se eu tirasse dela o prazer que agora te
pertence, Senhor X? Eu aposto que seria tão bom quanto transar com você. É
isso, Freya, me de seu mel, feiticeira.
Os olhos opacos nem sequer piscaram nos meus, mas Kazel não a
deixaria ir. Não enquanto não me vencesse naquele jogo que existia apenas
em sua cabeça doente.
Ele enfiou os dedos nela, lambendo e chupando Freya até conseguir
arrancar uma reação dela. Mesmo que não houvesse um brilho ou
reconhecimento no olhar, seu corpo respondia. Kazel virou-se para olhar para
mim com o queixo brilhando da lubrificação e voltou a se dedicar a sua
tarefa. Ele se deu por satisfeito apenas quando ela gozou três vezes. Não
foram mais do que tremores e espasmos corporais, mas ele se sentiu
vitorioso. Ergueu-se para beijá-la e quando se afastou, uma lágrima solitária
deslizou pela têmpora de Freya. A mão esticada em minha direção tremeu, e
as pontas dos dedos se moveram, como se ela se esforçasse para me alcançar
tanto quanto eu fazia para chegar perto dela, mas seu corpo ainda que não
estivesse drogado como o meu, foi abusado tão violentamente que não havia
forças naturais para nada.
— Eu estou quase satisfeito. Preciso de apenas mais uma coisa — disse
Kazel, então saiu de cima dela e a rocha que estava sob o meu peito
evaporou, tirando o peso do desespero e o medo de que tirasse sua vida na
minha mente.
A próxima coisa que senti foram as mãos de Kazel movimentando-se em
minhas calças. Eu quis rir e ri por dentro, percebendo que a última coisa que
o lunático queria era ver o meu pau.
— Me dê o seu gozo e vou embora. Foram anos esperando por isso e só
preciso de um gosto.
Ele encontrou meu pênis mole e tão morto quanto os olhos de Freya. Se
pensava que vê-lo arrancar a alma e espírito da minha reinheit ia me deixar
excitado estava muito errado. Redonda e tremendamente enganado. Mas era
o que esperava e eu vi a decepção encher seu rosto ao me segurar e não
receber nenhuma reação de volta.
— São as drogas — sussurrou e abaixou a cabeça, colocando meu
membro na boca.
Não, não era a porra das drogas. A minha sede de sangue e vingança já
nada tinha a ver com seus crimes e anos acumulados de ódio. Agora era
pessoal. Era tudo sobre Freya.
Como ele se atreveu a pegar o meu sol e jogá-la no fundo de um poço
escuro onde jamais poderia brilhar outra vez.
Eu desviei os olhos de suas mãos para fitá-lo nos olhos, e mesmo que eu
não pudesse me mover, ele sentiu a promessa silenciosa que eu gritava com
os olhos, pois afastou-se, ficando de pé em movimentos bambos.
Morte. Sangue. Destruição.
Não importava se os confins da terra eram desconhecidos, eu os acharia
se Kazel fosse para lá. As portas da porra do céu estavam lacradas para mim,
mas eu as invadiria se Kazel se escondesse lá dentro.
Eu iria ao inferno e queimaria apenas para vê-lo queimar comigo.
— Bons sonhos. — Ele sussurrou e se aproximou, disparando um último
tiro que me deu mais alguns segundos de clareza, apenas o suficiente para vê-
lo erguer uma bolsa e se afastar. Então eu apaguei.
“Ele está atirando luz e estou me sentindo novamente
É este amor que eu estou sentindo novamente”
PHANTOGRAM, 16 YEARS
— Alguma pista? — Regnar me perguntou assim que eu o encontrei
fora de casa.
— Siriu não quis companhia em sua busca.
— É claro que não quis e vocês o deixaram ir, como sempre — disse
Kaladia, demonstrando sua irritação. — Ele está instável com algo pela
primeira vez em anos e você achou boa ideia deixá-lo no meio dessa crise?
— Siriu está instável? — Regnar zombou, erguendo as sobrancelhas
para a esposa.
— Você se finge de idiota ou todo o gel de cabelo está afetando seu
raciocínio? Ele está obcecado por aquela garota e ela foi levada. É claro que
Siriu fará besteira.
— Eu estou ciente da nova condição de nosso primo, por isso tomei
providências.
— Que tipo? — Meu irmão parecia interessado. Ele passava longe de
todo o caos da Liga na maioria das vezes, por isso, saber que Siriu havia se
ligado a alguém era como uma rara turnê mundial acontecendo
exclusivamente para ele.
— Freya está vivendo com ele e eu me preocupo com a segurança dela
também. Fiz alguns dos meninos pegarem acesso ao circuito de câmeras do
apartamento e estou rastreando seu carro agora mesmo.
Kaladia bufou.
— Ele vai te matar.
— Tentará, mas prefiro sua raiva do que ter Freya levada e ele fazendo
alguma loucura porque não sabe lidar com o que está passando.
— Como quando levaram Onira de você? — perguntou ela, me jogando
a pergunta com tanta intimidade que parecia esquecer que seu marido estava
ao meu lado.
— Sim. Exatamente desse jeito.
— Por que está curiosa, bruxinha? — Meu irmão perguntou. — Fere os
seus sentimentos que Demeron não tenha lutado por você? — Fez um bico,
provocando-a.
— Não. — Ela ergueu o queixo. — Na verdade, só as acho sortudas.
Pelo menos os homens com quem estão se importam de tentar salvá-las.
Ainda que pareça impossível.
Dito isso, ela nos deu as costas e saiu como se não estivéssemos ali. Eu
cocei a barba rala, permanecendo ao lado de Regnar porque não tinha escolha
a não ser esperar as notícias que viriam.
— Você precisa aparecer com toda a sua poupa de herói mal
compreendido, não é? — Cuspiu.
— Como é? — Dei um sorriso fechado. — Acha que quero me jogar
para a sua mulher?
— Eu não sei. Pode ficar pensando que vou achar que tiro trocado não
dói.
Eu o encarei por alguns segundos antes de segurar seu ombro e decidir
acabar com aquela história de uma vez.
— Regnar, independente do que você fez ou ela fez comigo, eu nunca
trairia meu irmão desse jeito. Você foi um filho da puta, sim, mas não estou
mais segurando isso sobre sua cabeça, na verdade sou muito grato. Foi graças
ao caso de vocês que hoje estou com Onira.
Ele torceu o nariz, segurando o meu ombro também.
— Não, não foi. Se você conhecesse Onira ainda casado com Kaladia,
teria deixado a minha bruxinha e ficado com a sua japonesa. Não se engane,
irmão. Você é tão filho da puta como eu. Eu vou deixá-lo para ir vestir sua
capa de salvador do dia e vou cuidar das minhas coisas — apontou na direção
que Kaladia saiu.
— Eu pensei que você fosse atrás de Siriu comigo.
— Você pode lidar com ele sozinho. — Jogou o terno sob o ombro e se
apressou para alcançá-la.
Eu suspirei minha frustração e condenei todos os inúteis homens da
minha família. Ao menos Onira estava lá dentro segura e feliz depois de ter
finalizado a festa. Eu ainda não havia lhe dito sobre Freya, queria evitar por
pelo menos mais algumas horas ter que jogar a notícia que acabaria com toda
a felicidade que estava sentindo.
Olhei para o lado com o barulho de um carro dando partida, vendo
Dante entrar no banco traseiro onde eu apostava que seus irmãos já
esperavam e observei se afastar. Eu havia dispensado os italianos para cuidar
das coisas por mim mesmo. Eu lidei com muitos homens, mas dever um
favor a Lucca DeRossi era algo que eu riscava da lista sempre que tivesse
opções.
Siriu e eu encontraríamos uma forma de pegar Freya de volta. Ele só
precisava me deixar ajudar.
Meu telefone tocou no bolso e eu o peguei, atendendo a chamada de
Drux.
— Conseguiu algo?
— A localização do carro dele foi difícil, acho que Siriu mandou alguém
instalar algum tipo de protetor no GPS.
— É claro que o fez — murmurei. — Mas você passou por cima?
— Óbvio. Eu sou bom pra caralho nessas coisas.
— Chega de enrolação e me envie, eu tenho pressa.
Segui em direção ao carro, já tirando a chave do casaco para esperar a
atualização no meu mapa.
— Estou enviando a rota direto para o seu carro.
— Bom trabalho, Drux.
— Espera, precisa de reforços?
— Eu avisarei se precisar de algo.
Desliguei e tomei meu lugar no volante, girando a chave para alcançar
meu primo o mais rápido possível, mas antes que pudesse acelerar, a porta do
lado abriu e Liémen entrou, sentando-se e tirando a arma da cintura. Após
destravar ele a pousou na perna. Eu só o encarei.
— O que está esperando?
— Você não vai comigo, Liémen.
— Muito bem, soldado, eu tenho meus motivos e vou. Você pode
acelerar o carro ou podemos esperar e ver o que Siriu fará a cada segundo que
não chegamos para controlar sua bunda.
Eu puxei uma longa respiração, detestando estar na presença do homem,
mas reconheci que tinha problemas maiores. Liémen e eu nunca nos demos
bem e todos no submundo estavam cientes disso. Ele tinha suas coisas e eu,
as minhas. Simplesmente não nos misturamos. Seu convite ao meu
casamento foi apenas Onira aceitando a lista de convidados que Angelina
impôs. Minha noiva ainda estava lutando pela aceitação de minha avó,
mesmo que eu a dissesse para deixar de lado. Com Onira não era tão fácil.
“Alguém que passou a vida sendo rejeitado não recusa qualquer família
que pode ter, Demeron. Além do mais, não vai me matar convidar alguns
amigos dela.”
Foi o que ela disse e assim, o assunto estava encerrado. Minha agora
esposa, não lidava bem com pessoas a contrariando. E Odin sabia que eu
tinha uma falha de sempre fazer o que ela queria. Até onde era seguro para
ela, é claro.
— Temos alguma pista?
Fitei o homem de canto do olho, ele estava tenso em cada músculo e os
olhos sérios. Postura que eu raramente via em Liémen.
— Meus homens encontraram o carro que ele usa. Com sorte o
encontraremos lá.
— Se a BMW está lá, Siriu também vai — disse. — Ele não deixa
aquela lata velha fora de vista.
— Então seu interesse nisso é puramente fraterno?
— Eu aposto que sua mente está se revirando em possibilidades, não é,
soldado? — Ele riu. — Vou deixá-lo tirar suas próprias conclusões.
Eu joguei um olhar duvidoso para o mapa quando vi onde estrávamos,
mas estava correto. A linha vermelha marcava ainda mais o interior da região.
— O que Siriu faria na favela?
— É uma boa pergunta — murmurei e desacelerei conforme as ruas
ficavam mais estreitas, embora eu quisesse pisar fundo e encontrá-lo de uma
vez.
Um sentimento ruim me invadiu. Uma ansiedade inquietante para achar
meu primo.
— Ali. — Liémen apontou dois minutos depois, e mal estacionei atrás
da BMW antes de pular do carro e correr para a casa que estava estacionado
na frente. A porta estava entreaberta e enquanto Liémen cuidava das minhas
costas eu empurrei a madeira pesada e barulhenta. A rua estava deserta,
nenhum barulho foi ouvido de dentro além das dobradiças velhas.
Liémen franziu o cenho.
— Tem algo errado. — Guardando a arma, ele correu para dentro antes
de mim e eu o segui, amaldiçoando o idiota descuidado, mas o palavrão
morreu em minha boca quando vi meu primo no chão e a imagem de Freya
em um colchão sujo, nua, ensanguentada e amarrada. — Não. — Liémen
sussurrou e correu para ela.
Eu fiz o mesmo com Siriu, agachando ao seu lado e sentindo o pulso,
meu coração não se acalmou ao ver que estava vivo, muito pelo contrário. Eu
olhei para Liémen, que desamarrava Freya com cuidado surpreendente e
tentava esconder sua nudez com o próprio terno. Me levantei, tirando o
celular do bolso e chamando Stark e Regnar. Depois chamei Kirina, pedindo
que trouxesse uma médica e voasse para lá.
Fechei a calça do meu primo antes que mais alguém chegasse e me
encostei no canto, deslizando até o chão.
Eu já tinha visto muita coisa fodida na vida, nas Kambarys inclusive, e
não tinha dúvidas de que o autor daquela obra era Kazel. Nosso maior temor
não se cumpriu, pois Freya estava lá. Mas eu não tinha certeza de quanto dela
restou.
"Nós lutamos duramente, nós lutamos bem
Nas planícies, demos-lhe o inferno
Oh, será que algum dia estaremos livres?
Corram para as colinas, corram por suas vidas"
IRON MAIDEN, RUN TO THE HILLS
Por mais de um século a guerra entre Bratva e a Cosa Nostra foi
lendária.
Nunca houve uma trégua, nem entendimento e muito menos um acordo
de paz.
Não.
Fora de cogitação.
Não gostávamos de paz. Queríamos terror. Acelerava o nosso corpo e
adrenalizava a nossa mente ver nossos estragos na TV, assistir o pânico dos
nossos inimigos e beber cantando nossa vitória. Não seríamos a máfia mais
notória se fossemos como um acampamento de escoteiros.
Meninos italianos nasciam para se tornar soldados e matar russos e
meninos russos nasciam para mutilar italianos fossem soldados ou civis.
Meninas italianas nasciam para casar e formar alianças entre famílias
italianas para reforçar a força de la famiglia e meninas russas nasciam para
servir quando a bratva determinava que a hora de mover alguma peça
importante do tabuleiro chegava.
Foram incontáveis mortes, ameaças e família destruídas. De ambos os
lados nós matamos entre nossas duas nações primeiro e perguntávamos
depois. Mas, pela primeira vez, algo mudou. Era pura sorte que eu estivesse
vivo para ver tal coisa acontecer.
Os italianos não gostaram do acordo entre os chefes, mas a palavra deles
era lei tanto aqui quanto lá. Porém, isso não impedia que sussurros fossem
iniciados, que revoltas renascessem e desejo de se levantarem contra seus reis
surgissem. Eu mesmo não havia levado bem a ideia de que por minha irmã e
Antony DeRossi, a bratva recuaria dos ataques contra a cosa mostra, não era
o certo, não depois de tudo o que fizemos.
Roubamos, matamos, pegamos sem permissão e não nos importamos
com as consequências.
Nossos ideais eram egoístas, mas jamais admitiríamos isso.
Dinheiro, poder e sangue governavam os guerreiros bratva.
Homens treinados para fazer o que lhe foi ensinado desde que vieram ao
mundo: matar carcamanos.
Quando meu pai, Roman, e Lucca DeRossi, o chefe da máfia italiana,
decidiram usar o casamento dos filhos para impor um limite na guerra, eu
sabia que era uma questão de tempo até que tudo desabasse.
O acordo era simples.
Itália não atacava a Rússia e Rússia não atacava a Itália. Dentro da
fronteira dos dois países, havia proteção. Mas fora?
Digamos que nossas unidades nos EUA não aceitaram tão bem assim.
A guerra era pelo território e tanto os soldados italianos quanto os
guerreiros russos não deixariam passar. Se alguém cruzasse a linha
estabelecida nas reuniões mensais, haveria sangue.
Eu não queria paz.
Eu queria pegar minha irmã e meus sobrinhos, Benjamin e Carmina e
dar o inferno para fora de lá. Mas Anya tinha sua teimosia como escudo e
aquelas palavras doces como arma. Ela deveria ter sido criada em nossa casa,
na Rússia como a princesa que era.
Ao invés disso, sua mãe, uma traidora da Cosa nostra a levou embora
sem que meu pai soubesse de sua existência.
Luigi DeRossi fez duas coisas boas em sua vida: engravidou sua esposa
de Elena DeRossi e matou a maldita Evangeline Berlot.
Eu mesmo gostaria de ter acabado com a vida da mulher que condenou
minha irmã, mas estava feliz que ela não andava mais por aquela terra. Me
consolava saber que quando minha hora de descer ao inferno chegasse eu a
encontraria lá embaixo.
Minha irmã não era uma “puro sangue”, mas isso não importava para
nós.
Se tinha algo em que não éramos ligados, era sangue. Família sempre foi
conquistada, não dada no nascimento.
Desviei o olhar da rua para a tela do meu telefone onde uma foto antiga
enfeitava a tela inicial. Os cabelos ruivos presos no alto da cabeça curtos
naquela época eram apenas uma lembrança. Os olhos verdes brilhantes, as
sardas enfeitando a ponta do nariz e as maçãs do rosto... tudo nela brilhava.
Até eu.
Até eu encontrá-la e colocar uma aliança em seu dedo.
— Olhe para a rua, quero chegar em casa vivo.
Olhei para o meu mais antigo e talvez único amigo, Volodya
Bazehnkov, ou como todos o chamavam, Volya, que estava comigo desde
que podia me lembrar. Eu fui um adolescente estúpido e irritadiço sem reais
razões e meu pai não deixou de me punir por isso. Em uma das noites que fui
proibido de voltar para a casa, estava vagando pela rua quando fui parado por
um garoto da minha idade.
Entretanto, não foi a faca que ele colocou em meu pescoço que me
assustou, foram seus olhos. Só havia uma raiva incontida lá dentro, como se
ele fervesse e apenas extravasar o sentimento o deixaria menos louco.
Nossa amizade começou com um acordo. Eu lhe arranjava comida e ele
me ensinava a lutar.
Durou apenas alguns meses até que meu pai descobrisse e acolhesse
Volya na Irmandade como se sempre tivesse sido um de nós. O tiramos da
rua e ele aprendeu que família vinha por merecimento. Volya ganhou o
respeito do meu pai, assim como sua afeição. Nos tornamos irmãos pela vida
e foda-se o sangue.
— Por que não dirige, então? — perguntei, sentindo imediatamente o
alívio de voltar a conversar com alguém na minha língua mãe.
— Porque não sou a porra do seu chofer.
— E eu pensando que depois de meses seria recebido com pelo menos
respeito.
— Se quer respeito deveria ficar com sua nova família.
— Qual é a porra do problema, Volya? — Acelerei o carro, apertando os
dedos no volante para me impedir de socar o imbecil. Desde que me pegou
fora da Itália e passou comigo pela Alemanha cumprindo as ordens que
Roman nos deu, e depois todo o caminho até a Rússia o cara vinha sendo um
chute nas bolas.
Ele virou seus olhos escuros para mim. As tatuagens cobrindo-o do
queixo para baixo se retorceram. Marcas de uma história que nem eu sabia
todos os detalhes.
— Eu não sou idiota e muito menos surdo — apontou a tatuagem abaixo
do olho. — Sempre de olho.
— Que merda isso significa?
— Não se faça de estúpido, Viktor. Você fez uma grande merda nesses
meses. Seu pai não me deixou ir te buscar e colocar um pouco de juízo na sua
cabeça fodida.
— Meu pai sabia que eu estava em uma missão, parece que você não se
atentou as coisas direito ou não estaria enchendo a porra do meu saco.
— Sim, sua irmã, hein? Eu não a vejo por aqui.
— Ela ficou com o italiano e você sabe disso, todos nós pagamos o
preço.
Era verdade. Poucos traidores de ambos os nossos lados tinham se unido
para mandar uma mensagem a Lucca DeRossi e meu pai por misturar nossa
gente, mas não surtiu o efeito desejado. Anya ainda se casou com Antony
DeRossi e a única ferida na história foi Elena.
— Acontece que não foi só lá que as coisas ficaram ruins. Coisas
aconteceram quando a notícia chegou aqui.
— O quê?
— Você parece ter esquecido em seu tempo lá que havia pessoas para
cuidar desse lado do oceano, irmão.
— Fale de uma vez, Volya. Me torture ou me encha de socos mais tarde.
— Osso Russo e Kolokol estão lutando duas vezes mais do que faziam,
por que você acha? — Seu tom de voz me preocupou, mas tentei me acalmar
porque conhecia bem os meus cunhados.
— Eles podem ir cuidar da própria vida.
— Kolokol foi preso, Viktor. Ele estava guardado nos Estados Unidos
esperando julgamento por ter matado um guerreiro com os irmãos de lá, mas
Nikolai interveio e o trouxe de volta, ainda assim ele será julgado e punido
em Moscou.
Desacelerei, perturbado com a nova informação.
— Quando foi isso?
— Quando você acha, caralho? Todos sabem da sua história com a
menina italiana.
— Não existe uma história.
— Ah, não? Diga isso ao Osso. Kolokol estava prestes a entrar numa
luta quando a conversa de que você estava se enroscando com a italiana
surgiu. Ele perdeu o controle e descontou no oponente em cima do ringue
diante de todas as malditas pessoas assistindo. Osso tentou pará-lo, mas
ninguém o deixou subir. Então além de ver o irmão ser levado para o
subterrâneo, ainda soube que a irmã estava sendo desrespeitada pelo marido
com o nosso inimigo.
— Bem, minha esposa me expulsou de casa, não foi desrespeito.
A informação não era de conhecimento público, pois, assim que fui
expulso de casa, meu pai me convocou para ir a Itália. Eu duvidava que ela
fosse dizer a alguém o que aconteceu.
— Você se divorciou dela? A devolveu a seus irmãos?
— Você sabe que não.
— Então a única coisa que sabemos é que você trocou a sua mulher
russa, que todos amam e respeitam por uma italiana que ninguém conhece e
dá a mínima. Depois disso ninguém mais está surpreso por ela estar ficando
louca.
Bati no volante com força, o carro deu uma leve derrapada antes de
retomar em linha reta.
— Não fale assim dela, porra!
Volya não insistiu. Ele sabia melhor do que me empurrar naquele
momento.
As palavras de Elena DeRossi voltaram-me como um suspiro no ouvido.
“Eu tenho dias sombrios, Viktor. Dias que eu gostaria que houvesse
alguém lutando por mim, então, confie no que estou dizendo e ao invés de
quebrar o coração dela vá honrar seus votos. Mostre que ela é digna da
vida, merecedora do amor. Coloque o brilho de volta em seus olhos.”
Peguei a estrada sinalizando Moscou e entrei.
Sabia que existia uma porra de furacão para acalmar quando pisasse em
casa.
Sabia que seria mais fácil fazer sol na Sibéria do que ter minha esposa
de volta como era antes.
Sabia que minha verdadeira, olhos verdes, estava afundada na loucura
que eu mesmo a coloquei.
Eu estava voltando para a casa e Maryia saberia que não estava acabado.
Na verdade, aquele era o início de uma outra história para contar...
"Você nunca desiste
Quando eu estou caindo aos pedaços
Seus braços estão sempre abertos
E você é rápido para perdoar quando eu cometo um erro
Você me ama em um piscar de olhos
Eu não mereço seu amor
Mas você o dá para mim de qualquer maneira
Eu não sou o suficiente
Você é tudo que eu preciso"
PLUMB, I DON'T DESERVE YOU
— Terá que falar comigo eventualmente.
Eu encarava a parede por cima do ombro de Demeron enquanto jogava o
casaco por cima dos ombros e continuava a ignorá-lo.
— Não há nada a dizer.
— Na verdade, eu tenho uma lista considerável — rosnou.
— Leve para Regnar, então. Tenho certeza de que os dois tem se
divertido muito com tudo isso.
— Com o quê? — Demeron rebateu. — Com Freya quase morta ou
você ter perdido de vez a cabeça?
— Minha cabeça continua no lugar — respondi seco, curto e grosso.
Demeron suspirou.
— Vou te levar ao apartamento.
— Eu tenho as chaves do carro, sinta-se livre para ir aproveitar sua lua
de mel.
— Minha esposa está ocupada sofrendo pela mulher que considera uma
irmã e eu estou aqui te oferecendo algum apoio. Que tal ser agradecido?
Eu me virei antes de abrir a porta e escapar do quarto e o encarei.
— Que porra você quer de mim? Um “obrigado”? Obrigado. Você
salvou a vida dela, siga em frente.
Ele me segurou, fixando nossos olhares.
— Acha que é isso? Estou querendo ouvir como você está aqui por
causa de mim?
— Eu te torturei, Demeron! Eu me recusei a salvar Onira quando você
precisava, eu te fiz perder tudo naquele dia que Style o traiu! Por que porra
você continua aqui, empurrando e empurrando?
— Porque nós somos família.
Eu bufei, saindo de uma vez. O hospital não estava cheio e eu passei
pelo corredor olhando dentro dos quartos com as portas abertas para verificar
se ela estaria ali.
— Ela está no quarto andar. É onde os casos mais graves ficam.
— Eu vou até a administração acertar a conta — falei e apertei o botão
quando entramos no elevador.
— Já está pago.
Evitei fitá-lo para não socar seu rosto.
— Irei devolver cada centavo.
Ele ficou em silêncio e eu tomei nota de todos os meus ferimentos
enquanto subíamos. Eu não podia ficar naquela cama por uma noite inteira.
Foi o suficiente ter dormido ali e passado o dia. Minhas costelas em breve
ficariam bem e os machucados no rosto curariam logo. Eu não merecia
sequer um remédio para dor de cabeça depois do que deixei acontecer com
Freya.
Um simples comprimido não a livraria da dor de tudo o que Kazel fez.
Fechei os olhos quando uma tontura me atingiu e me apoiei na parede de
metal.
— Você deveria ficar em observação.
— Você ficaria? — Lhe lancei um olhar, satisfeito quando cerrou a
mandíbula e fechou a boca.
Se fosse ele em meu lugar não ficaria, então não deveria cobrar
hipocrisias de mim. Sob suas instruções, eu segui até o quarto onde ele sabia
que Freya estava assim que paramos no quarto andar e o deixei lidar com a
enfermeira que tentava me parar. Inferno, eu compraria a ala se fosse
necessário para vê-la.
Quando me vi de frente para a porta indicada, decidi puxar o band-aid.
Ela merecia minha coragem e firmeza para lidar com isso. Depois do que
passou... Odin...
Lembrei-me de seus olhos desesperados em mim, implorando em
silêncio como se as lágrimas fossem gritos de socorro e eu não pude ir. Não
fiz nada para impedir que fosse brutalmente machucada. Mais. Uma. Vez.
Entrei de uma vez e avancei, encontrando Freya tão imóvel quanto,
quando entrei na minha casa e a encontrei com Kazel. Nem de longe parecia
a mulher que me olhava com olhos brilhantes e me jogava perguntas sinceras
que ninguém mais tinha coragem.
Minhas pernas quiseram fraquejar e eu me aproximei para segurar as
barras ao lado da cama e olhá-la de perto, tomando ciência de cada
machucado que cobria a pele perfeita. Ainda perfeita.
— Você verá a minha filha pela última vez. — Eu me virei ao som da
voz que ecoou pelo quarto, encontrando Liémen sentado numa poltrona num
canto escuro.
— O que disse?
— Freya será enviada para um lugar seguro assim que estiver
recuperada. Eu tenho os exames de DNA prontos para ser exibido a toda a
sua família de modo que nenhum de vocês vai ser estúpido o suficiente para
tentar levantar a voz sobre reivindicá-la para cima de mim. Então, vá em
frente e aproveite um último olhar nela. Eu pretendo não deixar a minha
menina as vistas de qualquer um de vocês mesmo depois de morto.
— Sua menina? — Eu franzi o cenho, perguntando-me quanto dos
medicamentos ainda estava em meu sangue. — A parte da minha filha ainda
está entupida nas portas dos meus ouvidos.
Enfiando as mãos nos bolsos, ele se aproximou com os olhos cravados
em mim.
— Eu vou simplificar porque Freya pode acordar a qualquer momento e
não quero que o veja aqui. Lembra-se quando estávamos negociando se você
aceitaria o pedido do Governador sobre declarar seu sobrinho inocente das
acusações no tribunal há vinte anos atrás?
— Sim — respondi sem hesitar, afinal, não tinha como esquecer uma
das maiores injustiças que cometi em troca de um favor.
— E o telefonema que eu recebi enquanto ainda conversávamos com
ele?
Eu dei um passo atrás, desviando meus olhos de Liémen para Freya
imóvel na cama.
— Isso é impossível.
— É mesmo? Alguns meses depois não soubemos que Kazel esteve no
país naquele mesmo dia?
— Eu coloquei os olhos na minha filha uma única vez, nem sequer a
peguei e ele a levou. Ele levou a minha garotinha antes que eu tivesse a
chance de protegê-la.
Eu me lembrava. O acompanhei até o hospital e ele me deu a honra de
ser o único que conheceria sua filha, porque confiava em mim. Lembrava-me
de Liémen quase destruindo Berlim e conseguindo igualmente inúmeras
ameaças de morte devido aos estragos que fez depois daquele dia. A mulher
que havia engravidado dele era alguém comum, uma mulher que ele não se
permitiu assumir ao seu lado para mantê-la segura. Mas, no fim não adiantou,
pois sua amada morreu no parto, logo que a criança nasceu.
“— Voltarei para buscá-lo.” As palavras que Kazel me sussurrou anos
antes daquele dia sopraram em meu ouvido como uma canção amaldiçoada.
E ele voltou, mas levou Freya ao invés de mim.
— Por isso me perseguiu querendo saber sobre ela? — perguntei. —
Mas como... como desconfiou? Nós não tínhamos certeza se havia sido Kazel
naquela época.
— Seus olhos. — Ele lançou um sorriso triste na direção dela, eu nem
sabia se percebeu que estava fazendo. — Os olhos amarelos dos quais uma
menina na boate de Kirina me falou. Eu tinha perguntado o porquê sua chefe
andava tão sumida e a garota não demorou a começar a falar, me contando
que havia uma jovem estranha recém resgatada das Kambarys. Quando ela
me falou dos olhos amarelos eu soube. Eu só... eu sabia.
— Liémen...
— Você percebe o quão fodido é, certo? Ela é minha filha e não há
nenhuma chance de eu deixá-la ficar com você. Quando eu tive a
confirmação naquele dia e depois a vi te chamando de... porra, de mestre no
casamento de Demeron eu quis arrancar a sua cabeça do caralho!
— Se você tivesse me dito... — Comecei a falar, mas parei. Se ele
tivesse me dito, então o quê? Eu abriria mão de Freya? Muito provavelmente
não. Minha obsessão pela jovem mulher estava no auge quando Liémen
começou a grudar em mim querendo saber sobre ela. E eu estava tão fora de
mim com a cabeça grudada nela que nem sequer percebi que meu aliado mais
antigo estava agindo estranho com toda aquela história.
— Isso não importa mais. — Ele foi até ela e levantou o lençol, onde
toalhas cobriam seus seios e o sexo, mas deixava todo o restante da pele
exposto. — Veja esses machucados. Cicatrizes que ela vai carregar para
sempre.
Eu me lembrava. A dor que senti ao ver Kazel a marcando daquele jeito
voltou ao perceber que era permanente.
— Suas pregas vocais foram gravemente danificadas, mas não
completamente. Os médicos não acham que ela vá perder completamente a
fala, mas com certeza não será como antes. Há feridas íntimas. — Ele puxou
uma respiração trêmula, a cobrindo de volta. — É claro que você sabe o
porquê.
— Ele me fez assistir.
Liémen assentiu.
— Imaginei isso também. A partir daqui não temos mais negócios
juntos. Eu não posso olhar para você e ver um dos homens que abusou da
minha filha.
Eu não era culpado de suas acusações, mas não o contrariei.
— Não estou me declarando seu inimigo, afinal, ainda trabalharemos
juntos em uma última questão.
— Vingança — falei e ele assentiu.
— Mas fora isso... Você vai ficar longe de Freya. Você vai fingir que
nunca a conheceu e que ela não significa nada para você. Não apenas porque
eu estou mandando, mas porque sabe que é o certo. Se ela conseguir se
recuperar disso tudo será um milagre.
Eu fitei o rosto desacordado enquanto Liémen falava. Ouvindo o
diagnóstico dos médicos e cada palavra sincera que ele dizia.
Ela nos pertence.
Eu não fui o suficiente para cuidar dela. Não a protegi como deveria e
agora ela estava quebrada para sempre por minha culpa. Eu vi o espírito de
Freya se abater e cair. Cair tão profundamente que nem mesmo mergulhando
além da borda seria possível recuperá-la.
Era o certo a fazer.
O que Liémen me dizia estava fodidamente certo.
— O que vai dizer a ela?
— Isso não é da sua conta, Siriu.
Levou tudo de mim para me manter no lugar ao ouvi-lo. Eu queria
rebater que tudo sobre ela era da minha conta, mas não podia. Não mais.
— Você deveria me matar — falei.
— Eu sei. Mas você merece um castigo melhor do que isso. Eu vejo o
sofrimento em seus olhos e isso é o bastante para mim, pelo menos por agora.
Assenti, forçando meus pés a recuarem até a porta, mas parei antes de
fechá-la. Freya se moveu, foi apenas um pouco, mas vi os olhos tremularem
quando o rosto virou em minha direção. Eu ia avançar para dentro novamente
quando Liémen se apressou e bateu a madeira na minha cara. Separando-me
de sua filha... para sempre.
A primeira vez que vi Freya foi semelhante a quando eu batia o martelo
na corte, decidindo o futuro ou o fim dele para alguém.
Eu poderia tê-la mandado embora, podia tê-la deixado presa e isolada
até que Kazel estivesse neutralizado permanentemente, mas não fiz isso. As
sombras venceram com seus desejos acima do que eu deveria ter feito.
Provavelmente foi a única alma inocente que já encontrei. Fatalmente
arranquei tudo o que havia de puro nela.
Aquela era a minha culpa para carregar eternamente.
"Tudo é escuro
É mais do que você pode aguentar
Você está em minhas veias e eu não consigo te tirar"
ANDREW BELLE, IN MY VEINS
— ... Freya? Freya!
Sobressaltada, olhei para trás, onde Kirina me chamava da porta.
— Sim?
— Eu estava perguntando se você ficará bem enquanto eu saio.
— Sim. — Lhe dei um sorriso como consegui, assentindo.
— Certifique-se de não deixar ninguém entrar, está bem, krasivyy?
Eu assenti novamente, evitando falar visto que minha garganta estava
mais dolorida que o normal. Eu esperei que ela trancasse a porta para levantar
e ir observar pelo olho mágico quando o elevador chegasse ao térreo. Quando
o fez, fui até meu novo quarto e sentei em frente ao espelho, observando meu
rosto.
Minha rotina seguia a mesma nas últimas três semanas que saí do
hospital. A diferença era que agora eu tinha um pai e ele me disse que
garantiria que eu me sentiria normal. Professores entraram e saíram da minha
nova casa onde eu fiquei isolada de todos, e apenas Kirina tinha permissão de
me visitar.
Pessoas foram contratadas exclusivamente para me atender quando eu
ligasse. Meu... pai, disse que era apenas eu ligar quando tivesse uma dúvida e
estas pessoas me explicariam o que eu quisesse saber. Quando acordei
naquele hospital esperava ver Siriu. Esperava que ele fosse o único a me levar
para a casa e me proteger em nosso lar. Mas eu passei uma semana inteira lá
e ele nunca apareceu.
Havia apenas esse homem que me explicou o que significava para mim
e garantiu que não sairia mais do meu lado. De repente eu entendi o porquê
tinha me sentido tão estranha com relação a ele no casamento de Onira. Eu o
reconheci mesmo sem saber.
E ele me quis vendo-me naquela situação.
Eu tive momentos de raiva dele no decorrer dos dias, quando ele se
recusava a responder se eu perguntasse sobre Siriu e sua
resposta categórica em dizer “não” sempre que eu pedia para ver Onira.
Eu aprendi um monte de palavras também, mas não via utilidade para
elas visto que mal conseguia falar mais. Fosse o que quer que Kazel me fez
naquele dia, ele fisicamente levou a força da minha voz, deixando apenas um
sussurro rouco e baixo, e quando eu me esforçava para falar mais alto, a dor
insuportável lembrava-me que eu não podia mais fazer tal coisa.
Liémen tinha estado presente todos os dias. Ele comia comigo em todas
as refeições e saia muito, mas sempre voltava para sua casa antes que eu
dormisse. Sua casa, sim. Não importava quantas vezes ele me disse que
aquele lugar era meu também, eu não via assim. Minha casa era Siriu e ele
não estava comigo, então eu me sentia tão sozinha como
quando Demeron me libertou.
Kirina me deixou falar com Onira no telefone, mas me fez prometer que
não diria ao meu pai, o que eu concordei na mesma hora. Tudo para falar com
ela. Só que Onira também não me falava sobre ele. Ninguém falava.
Encarando meu reflexo no espelho, eu tentava enxergar o que havia
mudado. Meu cabelo continuava o mesmo, assim como o meu rosto. Embora
por dentro minha boca tivesse ficado muito danificada, Liémen garantiu o
que chamou de “cirurgias plásticas” e dentistas para consertar. Eu ainda
sentia a pele grossa por dentro e não deixei que meu pai continuasse enviando
médicos para me avaliar. Eu não queria arrumar nada.
Os médicos da fala, que eu cansava só de pensar no nome, me
garantiram que com o tempo as dores iriam embora e eu poderia voltar a falar
em um tom normal, mas não podia mais abusar. Palavras lentas, baixas e
muitas vezes eu precisaria de paciência, pois sairiam embaralhadas, mas eu
ficaria bem.
— Sei que é mentira — falei devagar, encarando meus olhos cansados.
Eu não ficaria bem até que estivesse em casa.
Com ele.
Por que meu mestre havia me mandado embora?
Meus defeitos tornaram-me um fardo muito pesado?
Eu tinha pesadelos com as palavras de Kazel todos os dias. O modo
como avisou que Siriu não aguentaria olhar para mim, como prometeu que
nosso sofrimento seria melhor do que a morte... tudo fazia sentido para mim.
Embora eu não quisesse aceitar, ele estava certo.
Eu ainda relutava a decisão de Siriu e sua rejeição diariamente.
Queria escapar e ir atrás dele, mas seria em vão. Sabia que os homens
que me protegiam para o meu pai me pegariam antes que saísse do elevador.
Já tentei antes e falhei.
Se meu mestre não viesse me buscar eu jamais seria livre novamente. E
algo dentro de mim me dizia que aquilo nunca aconteceria.
— Siriu... está me ouvindo? — Eu tirei os olhos da janela para fitar
Stark na cabeceira da mesa.
— O que disse?
— Colton. Colton McNaugh tem tentado falar com você e não
conseguiu. Seu telefone está com problemas?
— Não tenho nada a dizer a ele.
— O escândalo nos jornais me parece um assunto importante a tratar.
Ele me diz que você era o único a saber daquilo e me pediu ajuda. Não, na
verdade... me implorou por ajuda.
Voltei a olhar para fora, pensando que não queria estar ali. A sala de
reuniões na Konstantine Business parecia pequena demais para meu tio e eu.
Meu mentor. O homem que me deu sua empresa para que eu caçasse Kazel, e
agora tudo estava perdido. Quando ele encontrou o meu esconderijo naquela
casa acabada, levou consigo material de chantagem para reestruturar a
Kambarys como quisesse e fazer algo muito maior. Além de ter destruído
Freya, estava disposto a acabar com qualquer um que lhe dissesse “não”.
Colton era um exemplo disso.
— Ele sabe que eu não vazaria a informação.
— Acha que ele se importa com quem foi? A única coisa que interesse é
que o mundo sabe como ele ganhou dinheiro para construir sua empresa
multibilionária. As pessoas vão cobrar dele, Siriu, e ele vai cobrar de você.
— Todos eles vão, Stark. É apenas uma questão de tempo até
descobrirmos quem será o primeiro a colocar uma bala em minha cabeça.
— Ninguém fará isso. Não vão arriscar cortar ligações comigo assim e
muito menos provocar os seus aliados.
— Não estou preocupado.
— Pois deveria! — Ele se ergueu e andou pela sala, o estresse
evidenciado no rosto duro era minha culpa.
Assim como a atual situação de Freya.
— Você tem que fazer uma lista de nomes e entrar em contato com as
pessoas de quem Kazel tem informações, Siriu. Ainda podemos consertar
essa bagunça.
— Como eu disse... não estou preocupado.
— Ah, por Odin em Valhala! Quer morrer? Hum? Essa é a sua grande
fuga, desistir e deixar que Kazel vença depois de todos estes anos?
Ele não sabia de nada. Morrer era algo que eu queria há muito tempo,
mas agora não tinha mais tanta certeza. O único bem que minha morte faria
seria me impedir de ir atrás de Freya e levá-la para longe. Onde ninguém a
encontraria e a tiraria de mim outra vez.
— Não há nada que possamos fazer. Kazel tem os meus contatos, tem os
podres dele e de suas famílias. Ele usará isso para ter mais dinheiro e voltar a
deixar a Kambarys segura. Em breve os membros se sentirão seguros para
voltar as atividades.
— E você diz isso com tamanha calma?
— Não estou calmo, Stark. — Mas, minha voz sim, perigosamente na
borda de estourar. — Estou puto. Me sinto cada dia mais tentado a assassinar
qualquer um que passe a minha frente. Mas, não posso, ou posso?
— É claro que não — disse pausadamente.
— Então prefiro manter a aparência enquanto penso em como eliminar
aquele lixo da terra e todos os seus amigos A não ser que já tenha uma ideia?
— Estou pensando sobre isso. Aliás, temos nos reunido no clube de
Kirina para discutir a situação e os avanços que ele tem feito desde que...
bem, desde que voltou ao país e saiu.
— Você pode dizer, Stark. Desde que eu o deixei entrar, abusar daquela
mulher inocente e sair mais poderoso do que nunca.
— Não preciso ficar esfregando em sua cara uma culpa que já te corrói.
Vamos dar um jeito definitivo nessa crise. Eu sei que vamos.
Ele saiu da sala e eu me vi sentado ali pela próxima hora. Pensar era o
que mais fazia nos últimos dias. A alternativa era arrancar Freya da casa de
Liémen e declarar guerra ao homem. Um luxo que no momento eu não podia
me dar. A cada dia longe dela eu me tornava mais louco, mais perigoso, mais
instável dentro da minha mente.
Parecia que eu estava preso num pesadelo que não tinha fim onde ela era
tirada de mim repetidamente e eu nunca podia evitar. O relógio marcava as
horas ao contrário e sempre no mesmo minuto eu perdia Freya.
Aquilo me fez ver que ela era a minha sanidade.
Eu sabia que com o tempo ela superaria. Viriam outros homens, alguém
bom que finalmente conquistaria seu coração e mereceria aquilo.
Nós vamos esquartejá-lo.
A voz das sombras dia após dia se tornava a minha própria voz. E seus
pensamentos me guiavam em minha loucura.
Eu era um homem dividido em dois: dor e loucura angustiada contida.
Quando Freya chegou, ela levou a dor. Mas, quando se foi, deixou
apenas a loucura. Eu me sentia mais e mais descontrolado sem ela por perto.
Sem a minha göttin. Minha reinheit. Odin sabia dos meus pensamentos sujos,
de quantas vezes me derramei pensando nela e quis buscá-la para foder
aquela pequena boceta que me pertencia outra vez. Para ouvi-la me chamar
pelo o que eu era em sua vida: mestre.
Mas então o resquício de algo que eu não sabia o que era me impedia. E
eu me via voltando atrás, lembrando-me de que era indigno dela assim como
Loki era fodidamente indigno de Valhala.
Agarrei minha cabeça quando as sombras começaram a gritar por Freya
e condenei meus deuses por me punirem daquela forma. Mas aguentei a dor
porque sabia que merecia.
"...se pudesse ver seu rosto mais uma vez
Eu poderia morrer como um homem feliz
Quando você disse seu último adeus
Eu morri um pouco por dentro
Eu deito e choro durante toda a noite
Sozinho, sem você ao meu lado"
KODALINE, ALL I WANT
— Tem planos para hoje?
Eu fitei o rosto do meu pai e pensei um pouco, refletindo sobre o que
responder. Eu não sabia se tinha planos. Quer dizer, não havia muito o que
fazer. Além de não poder sair, ele não deixava ninguém além de Kirina me
ver.
— Eu acho que não.
— Ótimo. — Ele sorriu para mim. — Quando eu chegar podemos ver
alguns filmes. O que acha? Trarei um novo vinho, talvez você goste mais
deste do que o último.
— Eu não gostei de nenhum até agora.
— Este é um gosto adquirido, filha.
— O que isso significa? — Franzi o cenho, mordendo mais um pedaço
do pão doce.
Ele bebeu o suco que havia preparado antes de responder.
— Quer dizer que vai aprender a gostar. Não é imediato. Há muitas
coisas que nosso paladar precisa se acostumar primeiro antes de
aproveitarmos o gosto.
— Ah. O senhor aprendeu ou gostou imediato?
— De imediato ou imediatamente. — Me corrigiu gentilmente e quando
eu assenti que havia entendido, ele respondeu minha pergunta. — Eu aprendi.
Na verdade, só bebia coisas fortes. Destilados na maioria, mas sua mãe... —
Ele parou de falar, assim como fazia todas as vezes que me falava sobre a
mulher.
Elana Schontinz.
Ela era alemã, tinha vinte e cinco anos quando deu à luz a mim e morreu
no parto. Meu pai era apaixonado por ela e apenas pelo jeito que fala de suas
lembranças eu sei que foi uma boa mulher. Ela parecia frágil e seria destruída
se tivesse estado viva quando eu fui levada por Kazel. Meu pai havia dito que
encontrou conforto em saber que era o único a sofrer minha perda, mas eu
não podia imaginar como foi para ele perder tanto a mulher que amava,
quanto a filha. Eu já conseguia entender que fui o único pedaço dela que
sobrou e isso também lhe foi tirado.
Aquela foi a única vez que falamos diretamente de Kazel e meu passado.
“— Vamos olhar para a frente, Freya. Eu tenho dezenove anos como o
melhor pai desse mundo para compensar você.”
E eu não lutei contra. Como poderia? Mesmo querendo Siriu
desesperadamente, Liémen me procurou por quase vinte anos. Eu também o
queria em minha vida, por mais que a distância de Siriu me doesse a cada
minuto. Meu pai, assim como Kirina e as ligações de Onira eram onde eu
achava conforto.
— Eu sei que eu deveria te contar mais sobre ela e prometo que vou. —
Ele suspirou, segurando minha mão. — Só preciso de um tempo e vou
melhorar.
— Está tudo bem, pai. — Usar a palavra não era difícil para mim. Era
como qualquer outra que eu aprendia diariamente, mas para Liémen
significava o mundo. Seus olhos brilhavam e ele sempre ficava emotivo
quando eu o fazia. — Eu sei o que é amar alguém e não poder estar com ela.
Ele não gostou do que eu disse e deu um sorriso forçado, como sempre
evitando falar de Siriu.
— Você está mais inteligente a cada dia, querida. — Se levantou e deu
um beijo em minha testa. — Papai estará de volta mais tarde. Compor... —
Ele começou a falar, mas parou e deu apenas um sorriso.
Eu o observei sair acenando com a mão cheia de geleia do pão e pensei
na enorme lista de coisas que meu pai evitava me dizer. “Comporte-se”, “eu
mandei fazer”, “boa menina”, “muito bem, Freya”. Até mesmo o tom de voz
que usava. Ele sempre prestava atenção nas pequenas coisas. Quando eu disse
a Katya, ela me explicou que ele não queria me levar de volta a cenários da
Kambarys. E que também era muito doloroso para Liémen pensar nas coisas
que eu sofri lá dentro.
Depois de entender isso, fiquei grata e aliviada que ele nunca perguntou
nada. Eu não sabia qual seria a minha reação se meu pai exigisse saber.
Quando fui libertada, eu não veria mal em lhe dizer detalhe por detalhe, mas
entendendo um pouco das relações do mundo normal, eu sabia que um pai
não quer ver a filha de tal forma. E que Liémen morreria antes de me tocar
como aqueles homens fizeram.
Eu peguei o celular sem um chip que ele me deu e deslizei meu dedo
pela tela, apertando bem em cima do aplicativo de vídeos. Ual. Já sabia o que
era “mágica” e aqueles aparelhos pareciam muito com magia. Quer dizer,
com um toque eu tinha acesso ao mundo. Uma porta infinita por onde eu nem
podia passar, mas podia chegar a qualquer lugar.
Eu coloquei em um dos vídeos que uma das especialistas contratados
por Liémen escolheu para a semana e comecei a assistir. Eu passei por tarefas
domésticas, organização de objetos nos cômodos de uma casa e o que mais
gostei: nomes de roupas.
Agora eu sabia tudo sobre todas as vestes. Amei aquele pedaço de pano
chamado “cachecol”, queria poder usá-lo não só nos dias frios, mas no calor
também.
Doutora Katya estava muito entusiasmada e tinha certeza de que não
demoraria muito até que eu nem soubesse mais a sensação de não saber algo.
Confuso, mas eu entendi. As coisas estavam mais fáceis, pelo menos quando
se tratava de minha educação.
Eu ainda não tinha dito a doutora o que aconteceu. Que fui para o
hospital e sobre Kazel ter posto as mãos em mim novamente, porque falar
sobre isso significava falar que Siriu me deixou. E eu estava me dando bem
com um costume das pessoas desse mundo: fingir.
Eu fingia bem. Fingi que o mestre estava em uma viagem e voltaria para
me buscar. Foi meu consolo também. É claro que a doutora notou o problema
em minha fala, era impossível não notar, mas não me pressionou. Ela nunca
pressionava.
O vídeo deu uma pausa para um daqueles anúncios que eu não pulava,
pois descobri que as pessoas ganhavam seu dinheiro conforme quem assistia
não os pulasse. Eu apreciava demais aquelas aulas, todas elas, então, se não
pular os vídeos curtos e chatos eram o sacrifício para continuar tendo mais e
mais, eu aceitava.
Só que dessa vez o anúncio não era chato.
Primeiro eu ouvi uma voz muito conhecida, então uma luz iluminou um
lugar enorme e a câmera ficou bem pequena no rosto de quem falava. Não!
De quem cantava.
— Naya! — gritei, rindo feito boba. — Onira não vai acreditar nisso!
Era Naya. Ela estava linda e dançava fazendo caras diferentes, vestia um
tipo de roupa que eu nunca a vi trajar e parecia olhar direto para mim. Eu não
conseguia parar de sorrir. Sua voz era linda e o vídeo ficou ainda melhor
quando a câmera se afastou, mostrando tanto ela quanto as várias dançarinas
um pouco atrás, dançando uma música contagiante em movimentos idênticos.
O público apareceu e eu vi pessoas gritando, chorando e cantando junto. Um
monte de pessoas. Nossa, eu nunca vi tanta gente em um lugar só. E todas
estavam lá para ver Naya.
Eu decidi fazer uma pausa nas lições e descobrir um pouco mais sobre
sua profissão. Eu sabia que ela fazia algo diferente de todos que conhecia,
mas não imaginava que fosse tão grande assim. Pesquisei seu nome do
mesmo jeito que estava escrito no vídeo de anúncio e encontrei um número
de resultados que eu nem sabia falar.
Apertei no primeiro, esperei o anúncio e comecei a ver.
Ela era incrível. Não me passou despercebido que por um momento
apenas meu fingimento tinha sido real, e enquanto assistia Naya a dor por
Siriu foi esquecida, então continuei vendo. Mas, todas as vezes que ela falava
de amor em suas canções, meu coração doía.
E mesmo que Naya fosse incrível, eu desejei ter pulado seu anúncio
apenas para não sofrer ao ouvi-la cantar a minha realidade.
Comecei a sorrir quando vi Liémen entrar na boate e sai de trás do bar
para receber a minha menina, mas o sorriso sumiu quando percebi que estava
sozinho.
— Onde ela está?
— Quem?
— Não se faça de bobo, Liémen. — Joguei o guardanapo ao meu novo
barman e apoiei as mãos na cintura, estreitando os olhos. — Eu te pedi para
trazer Freya hoje.
— Ah, isso. — Deu de ombros. — Desculpe, meu bem. Eu sei que
Freya esteve aqui antes, mas não acontecerá novamente.
— Eu não vou machucá-la. Ninguém aqui vai.
— Eu sei, mas prefiro que ela comece a se acostumar a uma vida onde
não verá os mesmos rostos do passado.
Eu suspirei, frustrada.
— Ele não vai vir. Você sabe que Siriu mal está saindo da Corte. Freya
não o veria aqui.
— Eu prefiro evitar e para registro... estou feliz que ele tem se isolado.
Ele sorriu e pediu uma bebida no bar. Parecia leve como eu nunca o
tinha visto antes.
— Eu pensava que vocês eram amigos.
— Éramos. Até o momento em que ele fodeu minha filha como se fosse
uma boceta qualquer... — Fechou os olhos, cerrando os punhos. — Ele a
ordenou chamá-lo de mestre. Siriu fez tudo o que faz com suas putas. Com.
Minha. Filha.
— Ele não sabia quem ela era. E quantas filhas você também não fodeu
por aí, Liémen?
— Elas não eram a minha.
— Siriu cuidou dela e a protegeu. Ela implorou por sua atenção. — Eu
nem sabia o porquê estava tão decidida a defendê-lo, mas o fiz. — Ela
literalmente fez tudo para que Siriu a notasse. Pode ter certeza de que Freya
nunca foi como uma puta pra ele.
— Então é bom que ele respeite a distância que eu impus também.
Sendo um dos homens mais poderosos e respeitados no submundo da
Alemanha, assim que Liémen decretou que havia recuperado sua filha – da
qual ninguém tinha conhecimento – ela se tornou uma princesa muito bem
protegida. Sua foto foi espalhada e seu nome foi dito nas ruas, clarificando a
palavra de que se alguém ousasse levantar a mão contra Freya, se levantaria
contra os King e seus aliados. Assim como era com todas as famílias
envolvidas.
Liémen nunca tinha pedido proteção para ninguém, nem para si mesmo,
mas para Freya ele exigiu. Eu o admirei tanto naquele momento e fiquei
aliviada. Amava Freya como amava Kaladia e Blair, então saber que seu pai
estava tão verdadeiramente dedicado a dar uma nova vida a ela me fez feliz.
Isso foi até perceber que Liémen estava muito além de protetor. Estava
paranoico.
— Eu sei que ela é sua filha...
— Então não termine a frase. Pelo o bem da nossa amizade, Kirina.
— Você vai me deixar falar — decretei. — Eu nunca vou me calar para
defender as pessoas com quem me importo, principalmente se é uma mulher
indefesa como Freya.
— O que acha que eu vou fazer? Ela é minha filha!
— Eu sei. Mas ela saiu da prisão com Kazel para quê? Ser colocada
direto na sua? Com a desculpa de que quer protegê-la do mal. Que mal Onira
vai causar a ela? E Blair? E sobre Siriu...
— Siriu não está em questão. Ele não verá ou falará com a minha filha
novamente.
— Isso não deveria ser para ela decidir? Freya é maior. É adulta.
— Ela é incapaz de fazer as melhores escolhas para si mesma.
Eu queria dar um soco em seu rosto sério e mandá-lo parar de falar
merdas. Freya gostava de mim e de Siriu justamente porque a deixávamos ser
quem era. E parecíamos os únicos realmente preocupados com ela começar a
viver. Liémen estava perdendo a mente se achava que eu ia assistir Freya ser
oprimida novamente, mesmo que por amor.
Eu forcei um sorriso.
— Como você quiser.
— Que bom que entendeu. Você é esperta, Kirina. Verá a razão em
meus atos.
— Certo, certo, papai — zombei, soprando um beijo no ar. — Tenho
permissão para pelo menos levá-la a um passeio? Ela me disse que queria
conhecer o cinema. Por favor, Liémen. Vou levar meus seguranças comigo.
Ele me analisou, pensando sobre a proposta, até que assentiu.
— Ok. Mas leve um dos meus homens com você. Ou dois.
— Nada disso. Um meu e um seu é o suficiente. Freya estará
perfeitamente segura e acredite em mim... ela sabe ficar seriamente irritada
quando percebe que estão a tratando feito um bebê. Não vamos pressionar a
garota, ok?
— Eu não sei — murmurou.
— Você é novo nessa coisa de pai, mas vai por mim, eu sei como me
sentia e dava o inferno ao meu pai quando ele ficava todo mandão.
Ele não teve muito tempo para pensar, pois as portas voltaram a se abrir
e Demeron entrou. Logo Stark e Ward chegariam também
— Sim, porra, vá e faça isso. — Ele suspirou. — Vou ligar para Malcon.
— Nem pensar eu vou passar o dia com aquele brutamontes! Eu prefiro
Bill. Ligue para ele e diga que vamos encontrá-lo em sua casa.
Bill seria fácil de driblar para seguir o plano que eu tinha em mente,
visto que costumávamos passar um tempo íntimo juntos. Liémen não
desconfiou.
— Eu vou te dar um cartão. Ela pode querer fazer compras.
— Eu vou colocar na sua conta. Sabe que eu amo quando fica me
devendo.
Pisquei para ele e dei risada, virando-me para cumprimentar os meninos.
Então eu saí.
— Vai me dizer onde estamos indo? — Eu perguntei a Kirina. Ela
parecia estranhamente contente.
— Estou fazendo uma boa ação. Isso me deixa excitada.
Seu segurança que vivia por perto dela olhou pelo espelhinho.
— Isso vai dar cem por cento de merda, Kirina.
— Que bom que estou te levando comigo então. Só dirija, Zippo.
O homem balançou a cabeça, mas seguiu sua ordem. Eu vivi seguindo
ordens de homens altos, baixos, grandes e pequenos, nunca ousaria ou sequer
sabia que poderia levantar-me contra eles, portanto, ver Kirina ordenando
coisas a homens do tamanho de Zippo sempre me deixaria boba. Ela era uma
mulher como nenhuma outra.
— Eu amo você, Kirina — falei de repente, sentindo-me emotiva ao seu
lado.
Seus olhos amoleceram em mim.
— Não mais do que eu amo você, krasivyy. E é bom que esteja sensível,
assim vai quebrar aquela porta com mais facilidade.
— Quebrar? Mas, por quê? Não temos a chave?
Ela gargalhou e até mesmo Zippo deu um sorrisinho. Eu não me chateei
porque sabia que não estavam rindo de mim.
— Você tem.
— Eu tenho?
Ela revirou os olhos, segurando minha mão.
— Nós estamos indo até Siriu. Está pronta para isso?
Arregalei os olhos.
— Mas o meu pai...
— Seu pai não sabe que estamos aqui.
— Ele ficará muito zangado, Kirina. — Eu sussurrei, mas realmente não
me importava. Siriu? Eu estava indo ver Siriu?
— Krasivyy, a sua função como filha é dar trabalho ao seu pai. Acredite,
ele ficará feliz em viver todas as experiências que você der a ele.
— Como tem tanta certeza disso?
— Porque conheci o seu pai antes de você e o vejo agora. Liémen acha
que tem que te enfiar numa caixinha e protegê-la do mundo, mas ele não
percebeu que só terá a filha quando ela for livre para descobrir quem é. Será
com Siriu? Eu não sei, só sei que precisa seguir seu caminho e seu pai verá
isso, eventualmente.
Eu lhe puxei num abraço forte, quase esmagando Kirina. Eu entendi o
que quis dizer e estava tão feliz que podia me entender, mas não era
novidade. Ela sempre conseguiu fazer isso.
— Obrigada, krasivyy.
Ela jogou a cabeça para trás, os olhos brilhando ao me ouvir falar sua
língua.
— E eles dizendo que eu sou má influência, olha só você toda bilíngue.
— O que é bilíngue? — Inclinei a cabeça e ela sorriu.
— Ah, Freya... ainda tenho muito para te ensinar.
Eu só não fiquei no famoso “estado de choque” quando Kirina me levou
para a Suprema Corte porque já sabia que estávamos indo até Siriu. Eu não
sabia se estava mais cheia de raiva ou curiosa. Com raiva por ele estar
trabalhando e seguindo sua vida como se eu não existisse e curiosa para saber
se não sentiu nem um pouco a minha falta, visto que eu quase quebrei minha
promessa a ele sentindo sua ausência.
Perguntas sem respostas bombardeavam minha mente e eu sabia que ele
não as responderia nem se eu implorasse.
— Eu vou distrair Sofire enquanto você entra, depois que estiver lá
dentro ela não vai te mandar sair. — Ela bufou com bom humor e acenou
para um grupo de homens parados no corredor. — Quem eu quero enganar,
certo? No momento em que Siriu te ver não vai deixá-la fora de sua vista.
— Você vai me esperar aqui, não é?
— Não, querida, eu tenho algo a fazer enquanto você reconquista seu
grande amor e essa coisa toda. O trabalho de um cúpido é mais difícil do que
se espera, é só um bônus eu ser tão gostosa.
Antes que eu respondesse ela se lançou na mulher que trabalhava para
Siriu e embora Sofire me olhasse com insegurança como se soubesse que eu
ia invadir a sala de seu chefe não conseguia se livrar de Kirina. Eu olhei para
a porta que escondia o homem que segurava minha felicidade nas enormes
mãos e a empurrei, entrando e batendo a madeira pesada para nos isolar do
mundo lá fora. Naquele momento éramos apenas ele eu.
Como na primeira vez que entrei ali implorando que me deixasse entrar
em sua vida.
Sua cabeça ergueu e os olhos travaram nos meus. Ficamos ali sem saber
o que dizer ou fazer por uma eternidade ou apenas um minuto, não fazia
diferença. Depois de semanas sem vê-lo, o alívio e a saudade eram tão
grandes que eu poderia ajoelhar e chorar.
Agradeceria até a seu Odin.
Os cabelos dele haviam crescido, assim como a barba e embora seu
rosto já tivesse as marcas complementando sua beleza máscula, estavam
ainda mais profundas. Meus olhos arderam com o calor que vi nos seus. As
irises azuis onde eu adorava me encontrar acenderam por um segundo e ele
apagou. Se fechou.
Eu só queria abraçá-lo e pedir que me levasse para a casa.
— Olá, mestre — falei lentamente, desejando poder esconder o meu
defeito dele. Não tinha pensado naquele detalhe. Não considerei ao lado de
Kirina que poderia ser mais um motivo para me rejeitar.
Siriu inclinou a cabeça.
— Você fala diferente. — Ele disse, não mantendo os olhos em mim
nem um minuto e os desviou. Sua voz era mais grave e eu senti indiferença
em cada palavra.
— É. Acho que ele finalmente conseguiu me marcar.
Siriu ficou acenando, enrolou a caneta entre os dedos e a soltou.
— O que faz aqui, Freya?
— Eu precisava te ver.
— Já passamos por isso.
— Passamos — confirmei. — No melhor dia da minha vida.
— Freya. Se não fui atrás de você, é porque eu não a queria de volta.
Tenho certeza de que seu pai não lhe trouxe aqui.
— Não. — Engoli em seco, tentando fingir que não ouvi suas palavras
para não arrancarem minha determinação de falar. — Mas eu me importei
mais com o último dia que passamos juntos e o que sentimos do que... do
que...
Ele cerrou a mandíbula.
— De você ser brutalizada por minha culpa.
— Minha dor foi sua culpa? — perguntei. — Não. Foi tudo Kazel e eu
estou acostumada com ela. Ele não fez nada de novo para mim.
— Acha que não sei disso?!
— Não — sussurrei. — Não acho que saiba. Pois me afastou como se eu
não valesse nada, como se o tempo gasto comigo fosse um desperdício!
Suas narinas alargaram e mais do que nunca eu quis me aproximar e
tocá-lo, trazer Siriu de volta para mim. Ele parecia tão distante.
— O que sentimos? Eu não senti nada além de tesão. Vontade de foder.
Nada além disso. Eu vou chamar um segurança para levá-la de volta ao seu
pai.
Eu corri em sua direção e puxei o telefone de sua mão pelo fio,
desconectando-o.
— Por que está me machucando?
— Estou dizendo a verdade. Devia ter feito isso quando veio até mim
em primeiro lugar. Essa coisa entre nós nunca teria ido mais longe. Você é
jovem demais, não sabe nada desse mundo. Como eu poderia mantê-la
comigo se não sabe se comportar em público, não entende o básico de uma
conversa ou a maioria das coisas que eu digo?
Me abracei, encolhendo com a dor de seu ataque.
— Eu estou melhorando.
— Não me importo, Freya. Acabou. Nem sequer começou, aliás.
— Mas me disse aquelas coisas bonitas... sobre esperanças e eu te
mostrar luz, e...
— Aquilo era uma oração. — Me cortou. — Seu nome
convenientemente é o mesmo de uma das poderosas deusas em que acredito,
aquilo não significou nada.
— Mas e a noite na sacada? Quando... quando eu te dei...
— Sua boceta? — Ele ergueu a sobrancelha, os olhos irritados me
encarando como se quisesse que eu fosse embora.
— Eu ia dizer confiança.
— Você da sua confiança, seu corpo e suas palavras doces fáceis
demais, Freya. Eu sou homem e me aproveitei de tudo isso. Você deve voltar
para o seu pai e obedecê-lo. Ele sim se importa com você.
— Mas eu não quero!
Ele bateu a mão na mesa.
— Mas deve! Eu não sou o homem para você. Não deveria estar
pensando em mim ou criando esperanças em algo que eu nunca lhe disse que
ia acontecer.
— Mas eu o amo. Mestre... eu te amo!
— Não me chame assim!
— Eu vou chamá-lo como devo. — Me aproximei um pouco mais, meus
punhos fecharam-se e tive vontade de bater contra a mesa também. Por que
ele estava me negando? Por que estava fazendo aquilo e falando todas
aquelas coisas terríveis? — Você é o meu mestre e só deixará de ser no dia
em que eu morrer!
— Não diga besteiras, Freya — rosnou, apontando-me. — Não se atreva
a dizer isso!
— Digo e repito. Eu sei que nada do que vivemos foi mentira. O senhor
me protegeu, me guiou e cuidou de mim. O senhor me viu quando ninguém
mais pode. Eu o quero de volta.
— Freya... você não sabe o que diz, não sabe o que quer. Só que com
certeza não quer passar a vida amarrada a alguém como eu.
— Por quê? — Ergui o queixo. — Não te mereço?
Ele franziu o cenho.
— Você merece qualquer coisa.
— Mesmo o senhor? Incluindo você?
— Eu sou nada. Você é jovem e linda. Será brilhante em breve, eu posso
ver isso.
— Eu nunca tive nada e se vou ter algo, não quero que seja brilho! Nem
mesmo um quarto ou uma cama, a única coisa que sempre me pertenceu foi a
escuridão e nela eu te encontrei. Você me pertence!
Ele fixou os olhos nos meus, dando dois passos perigosos em minha
direção.
— Eu vou ligar para o seu pai e dizer que está aqui. Liémen virá colocar
juízo em sua cabeça. — Voltei para atrás da mesa, procurando meu telefone
na gaveta.
— E eu voltarei. Continuarei voltando atrás do que é meu!
— Freya, ouça-me atentamente. — Meus olhos estreitaram, eu esperava
que minha expressão fosse vazia e furiosa o suficiente para fazê-la ir antes
que eu parasse de lutar contra. — Eu nunca fui e jamais serei seu. Você foi
minha pelo tempo que me agradou, mas eu cansei de você. Não. A. Quero.
Mais. Você é nada para mim. Sua voz, seu corpo, suas roupas e sua cabeça
perturbada. Nada. Sua boceta e sua bunda... querida, nem mesmo sua boca
me fará pegá-la de volta. Fui claro o suficiente para entender que deve ir
embora, porra?
Seus olhos.
Odin... seus olhos apagaram o único resquício de luz que ainda havia ali.
Se eu esperava machucá-la, consegui. Eu queria ir até Liémen e matá-lo por
me convencer a fazer aquilo, mesmo sabendo que era o certo. Que alguém
alguma vez precisava fazer a coisa justa por Freya.
Ela precisava crescer, descobrir a vida e o mundo e ter certeza do que
quer.
Levante-se e a pegue, nós devemos levá-la de volta para a casa aonde
pertence!
Os gritos ensurdecedores das sombras em minha mente estavam ficando
mais constantes e piores, como se a ausência de Freya e minha decisão de
deixá-la aos poucos me condenasse a morte.
Mas eu merecia.
E ela merecia muito mais do que um homem como eu.
— Sim — sussurrou, afastando-se de mim. — O senhor foi claro.
Ela é nossa.
Covarde!
Não a deixe ir!
Ela piscou e uma lágrima deslizou pela bochecha esquerda lentamente,
mas Freya sorriu. Ela me deu um sorriso tão triste que me senti entorpecido.
Minhas palavras machucavam a mim mil vezes mais do que ela, mas
passaria. Ela se ocuparia e esqueceria seu tempo comigo em breve. Eu só
precisava grudar naquela cadeira e deixá-la ir.
Então nunca mais iria procurá-la.
— Mas a essa altura você deveria saber que eu prefiro ser nada a ser
nada para você.
Todo o ar foi sugado da sala e eu me peguei observando
em câmera lenta, sem conseguir me mover, quando ela correu em direção da
lareira e pulou, alcançando a espada que decorava o suporte grego.
— Freya!
Meu grito foi o último aviso.
Valeu de nada quando ela segurou com firmeza e eu me levantei, mas
estava longe e era tarde. Eu assisti Freya empurrar a lâmina afiada em sua
barriga, arregalando os olhos antes de desviar o olhar do meu para baixo,
onde sangue manchava sua roupa branca.
Houve uma tensão no ar, como se de repente, eu fosse colocado a prova
de algo maior.
Maior do que me deixar amar a mulher por quem me apaixonei.
Maior do que vê-la ser submetida a Kazel contra a sua vontade.
Maior do que a sensação de perdê-la.
Não.
Daquela vez foi real.
No momento, em que as palavras foram proferidas, eu dei um
passo à frente, pronto para retirar tudo o que disse e mandar a merda o
resquício de moral que resgatei. Não. Eu não precisava disso, eu precisava
dela.
Mas era tarde.
Tik.
Tok.
Tik.
Tok.
Os sinos do inferno soaram em minha mente, alertando-me que aquilo
estava acontecendo e eu não poderia pará-la.
Não mais.
Eu fiz aquilo.
Eu a destruí a ponto de acabar consigo mesma.
Um suspiro chocado lhe escapou, ao mesmo tempo que as mãos
afrouxaram no aperto e suas pernas dobraram, derrubando-a. Eu corri com
passos pesados e difíceis, meus pés pareciam ter duas bolas de concreto
embaixo me impedindo de chegar a ela. Quando a alcancei, segurei Freya em
meus braços e senti o cheiro imediatamente.
Sangue.
A porra de um monte de sangue manchando a roupa branca.
A camisa rendada que eu a havia dado apenas uns dias atrás debochou
de mim.
— Não, não, não — sussurrei, agarrando seu rosto para me olhar. —
Menina estúpida! Porque fez isso, por quê?
— Eu vou ser sua para sempre...
Havia um tom de despedida naquelas palavras que me fez parar de
respirar.
Estava consciente da porta ter sido aberta e a voz de Sofire ao fundo
falando no telefone e chamando uma ambulância. Então Kirina junto a ela.
— Não feche os olhos, não se atreva a fechar a porra dos olhos.
Logo Liémen estará aqui, assim como Liémen, Onira e Demeron.
— Blair virá?
— É claro, mein liebe. É claro que sim.
— Não, eu não quero. Ela deve conhecer beleza, nenhuma tristeza.
Prometa-me, prometa-me que ela só conhecerá coisas boas nessa vida.
— Freya. — O caroço em minha garganta aumentou e não me impedi de
falar mesmo que fosse começar a chorar como a porra de um fraco. — Não
vou prometer nada. Você ficará comigo e vai mostrar a ela. Do meu lado,
lembra?
— Eu não posso viver em um mundo em que você não me ame. Você é
tudo o que eu tenho, Siriu Konstantinova. Era para ser assim. — Seus olhos,
o corpo mole desistia em meus braços me dando todos os vestígios de algo
que eu conhecia bem: morte.
— Reinheit... não faça isso. Freya, abra os olhos! PORRA! — gritei com
desespero. — SOFIRE!
— Eu estou li-ligando, senhor! Eles estão a caminho.
— Sua... p-para sempre.
Eu fitei seus olhos amarelos se abrirem uma última vez para proferir as
palavras e comecei a balançar a cabeça, negando-me a acreditar em tal coisa.
Ela fechou os olhos.
A mão escorregou da minha.
Eu gritei. Gritei tão alto que pelo olhar de desespero de Sofire ela
entendeu o mesmo que eu.
Minha vida acabou agora. Não havia nada.
Junto com a única mulher que já amei, porque se meu sol se apagou, a
escuridão em mim duraria para sempre.
"Em pouco tempo eu vejo
Que amo a maneira que você chegou
Eu amo o jeito que você chegou até mim"
FAY WOLF, THE THREAD FF THE THING
Foi tudo um borrão quando chegamos ao hospital. Eu não queria ter ido,
mas Kirina de alguma forma conseguiu me arrastar para lá. Não queria ter
que esperar para ouvir o que eu já sabia: minha Freya se foi.
Seu sangue ainda estava em minhas mãos e roupas. Minha camisa
branca manchada com seu sangue seco e abaixo da minha unha excessos de
vermelho vivo que eu não podia sequer pensar em tirar.
Liémen chegou, assim como Stark, Demeron e Onira. Até mesmo
Kaladia tinha aparecido. Eu sabia só porque Kirina não saiu do meu lado e
me falava cada coisa que acontecia.
Eu não tinha nada a dizer e estava preparado para ir embora e acabar
com minha própria miséria em casa, mas Kirina não me deixou levantar da
cadeira. E quando eu passei por ela, suas palavras me fizeram ficar.
— Ela chegou aqui viva, Siriu. Tenha um pouco de paciência. E se a
paciência não for possível... tenha fé.
Eu rezaria de joelhos para Odin ajoelhado no meio de uma rosa feita por
meus inimigos se fosse adiantar. Os deuses não queriam me dar graça,
queriam me punir. Mais uma vez eu coloquei a vida dela fora da linha.
Liémen não se intimidou quando chegou e me viu, partindo para cima de
mim e dando um soco tão forte em meu rosto que independente do meu
tamanho, cambaleei e sangue escorreu do meu nariz quebrado. Não deixei as
enfermeiras olharem, no entanto. A dor era boa, um lembrete de que homens
como eu não podiam ter pecado a vida toda e ainda esperar por algo bom.
Lembrei-me do que Demeron disse, se os deuses lhe deram Onira, o que
teriam reservado para mim. Ali estava a sua resposta. Tinha doses
homeopáticas de dor e sofrimento para que eu não ousasse querer demais.
Duas horas se passaram e nenhuma notícia chegou a nós. Mesmo depois
de Liémen ter mandado Kirina ir oferecer qualquer quantia que o hospital
quisesse ou eu ter agredido um médico que não estava sequer tratando Freya.
Minhas esperanças queriam morrer, mas eu continuava orando em
minha mente. Pedindo que Odin me ouvisse e concedesse vida a Freya.
— O que aconteceu lá dentro? — Kirina perguntou quando chegamos a
marca de três horas de espera. Eu podia ver que ela esteve se segurando para
não pressionar. — Ela entrou em sua sala decidida a te fazer aceitá-la de
volta.
— Eu não fiz isso com ela se é o que está perguntando — respondi num
tom seco, minha voz morta para qualquer conversa.
— Não seja ridículo, sei que não fez. Você nunca a machucaria.
— Como tinha tanta certeza antes de me perguntar, Kirina? — Sorri
friamente. — Já fiz pior com você.
— Você não mataria uma mulher inocente. Pode tentar afastar Freya e
sua família, mas a mim você não engana. Eu te conheci no pior momento de
ambas as nossas vidas.
— Da minha vida. — A corrigi. — Sua vida tomou o rumo que seguiu
depois que eu entrei nela.
— Isso não é verdade. Sabe muito bem que eu já não estava em um bom
lugar quando nos encontramos.
— Se é isso o que você precisa dizer a si mesma para continuar perto de
mim, fique à vontade.
— E o que isso quer dizer?
— Eu te trouxe morte, dor e sofrimento. Você vive vazia e tão miserável
quanto eu, não pela sua relação com o seu pai, mas pelo o que eu te fiz. Só
que ainda assim você continua aqui. Veio viver na mesma cidade que eu, me
deixa te foder, está sempre ao meu lado. O que você quer, Kirina?
— Eu não sou vazia. Só quero que volte a ser feliz, assim como eu
consegui ser.
— Você não é feliz, Kirina. Você vende sexo e finge que gosta de sua
vida, usando homens sem rosto para se consolar.
— Filho da puta! Por que está sendo tão cruel quando eu sou a única que
sempre ficou ao seu lado?
— Para que você acorde e veja que está na hora de abrir os olhos. Que
este sou eu e não importa quantas vezes você diga a si mesma que me
perdoou, eu ainda sou o homem que te tirou tudo.
Ela ofegou, os olhos marejados fixos em mim enquanto engolia cada
uma das minhas palavras.
— Não é Kazel quem te assombra — sussurrou. — Sou eu.
— Não — rosnei.
— É o que perdemos dezenove anos atrás. O que eu perdi por sua culpa.
Eu engoli, querendo tirar meus olhos dela para não ver seu sofrimento,
mas não o fiz. Eu merecia aquilo também.
— Eu não sou tão vazia quanto você pensa, Siriu. Se eu fosse, teria te
obedecido todos aqueles anos atrás. — Eu franzi o cenho, Kirina ergueu o
queixo. — Se sua culpa é o que te impede de seguir em frente, eu vou te
libertar disso. Não por você, mas por mim e por Freya. Sei que ela não vai
ficar bem sem você, e não quero vê-la sofrendo ou pior... morta.
— Não há modo de me libertar do passado. Ele já foi.
— Não, não foi. — Ela respirou profundamente. — Eu não mataria o
meu bebê só porque você me forçou a isso. Não seguiria as ordens ridículas
de um homem como o meu pai ou acabaria com uma vida inocente. Nosso
filho nasceu. Ele está vivo e bem. Apenas protegido de você, Demeron se
assegurou disso. — Abaixando a cabeça, os cachos ruivos cobriram parte de
seu rosto. — Meu sacrifício foi precisar ficar longe dele também, mas valeu a
pena. Ele se tornou um homem forte e bonito. A única razão pela qual estou
te contando é porque acabei de ver o quanto se arrepende daquilo. Não irei te
dizer quem ele é ou onde está, porque você não o merece. Mas também já o
castiguei com essa culpa o suficiente. — Ela fez uma pausa, talvez esperando
que eu dissesse algo, mas o quê? Eu não tinha a porra de ideia do que
responder. Minha mente apagou completamente. — Não vou pedir perdão
por isso, Siriu — falou baixo, quase como se não quisesse que eu ouvisse.
— Kirina — sussurrei depois de demorar a elaborar uma resposta.
Estava sem saber o que dizer pela primeira vez em minha vida, mas fui
impedido.
— Parentes de Freya?
Todos se levantaram ao chamado do médico, mas eu não podia. Esperei
por horas para ter notícias dela e Kirina havia jogado em mim algo que
mudava tudo. Suas palavras repetiam e repetiam em minha mente e nada
fazia sentido.
Eu ouvi suspiros de alívio e soube que ela estava bem. Freya sobreviveu.
Eu não sabia como, mas conseguiu.
Ainda assim eu não conseguia fazer minhas pernas funcionarem, ou os
meus olhos desviarem do mesmo lugar onde Kirina estava sentada antes.
Aquela rachadura em meu coração coberto de concreto sólido se abriu mais e
eu pus a mão no peito como se sentisse a dor.
Emoção.
Emoção crua que não sentia há anos e sentimentos explodindo em minha
mente como se depois de anos preso, alguém tivesse soltado as correntes.
Nem mesmo as sombras me faziam sentir tão atordoado quanto aquela
descoberta.
Freya sobreviveu.
Meu... filho estava vivo.
Eu levantei enquanto todos comemoravam e segui corredor adentro,
livrando-me da mão de Liémen quando ele tentou agarrar meu braço e o
empurrei contra a parede com as mãos em seu pescoço.
— Ouse me falar para ficar longe dela novamente e eu vou te matar.
— Você não mataria o pai dela.
— Me tente. Você sabe que eu faria. E quando você estivesse enterrado
eu a consolaria, e a forçaria a me perdoar por tomar sua vida. Freya é minha.
Minha para proteger, cuidar e pertencer.
Seus olhos poderiam me atear fogo, mas eu apenas sorri sombriamente e
o soltei.
— Não atravesse o meu caminho novamente, Liémen.
Ele entendeu o que eu quis dizer e eu sabia que era exatamente o que eu
diria a qualquer um que tentasse se meter entre mim e Freya.
Me senti escurecer, minhas emoções controladas indo embora, deixando
apenas o lado primitivo de mim. E foi esse lado que entrou no quarto
encontrando a linda mulher de olhos amarelos.
— Você me queria. Você me terá. Chega de tentar ser justo. Não
importa se Odin a mandou para mim ou não — sussurrei, deslizando os dedos
frios em sua bochecha quente. — Eu vou pegá-la de qualquer modo.
Assim como o meu filho.
"...Algo sempre me traz de volta a você
Não importa o que eu diga ou faça
Ainda sinto você aqui
Você me segura sem me tocar
Você me mantém sem correntes
Eu nunca quis tanto algo
Quanto afundar no seu amor..."
SARA BAREILLES, GRAVITY
Ao abrir os olhos, uma dor forte se alastrou por todo o meu corpo e
imediatamente toquei minha barriga, onde mais doía. A luz forte fez pontadas
atingirem minha cabeça e os fechei, esperando um pouco antes de tentar de
novo. Eu estava deitada em uma cama macia e colchão confortável, refleti
enquanto esperava me acostumar com o ambiente. Eu sobrevivi?
Uma das coisas que aprendi foi que o paraíso é reservado para inocentes
e pessoas que morriam sem querer, Ele era bonito e calmo. E o inferno servia
a pessoas como eu, que tiravam a própria vida. Por que o inferno parecia tão
sereno para mim?
Por trás das pálpebras vi a luz diminuir ao mesmo tempo que um
barulho soou baixo, então os abri os olhos e vi Siriu fechando as cortinas de
um enorme quarto escuro. Ele virou-se como se sentisse que eu o observava e
inclinou a cabeça.
— Enfim, ela acordou.
Calor, alívio e amor violento.
— Mestre. — Tentei me sentar, mas a dor bateu em cada ponto do corpo
que forcei.
— Fique deitada.
— Essa não é a casa do meu pai.
— Não — confirmou. — Seu pai está bem longe daqui.
As imagens de seu rosto antes que eu desmaiasse invadiram minha
mente e eu desviei o olhar, envergonhada. Seus olhos continham tanta
emoção que perdi o fôlego, mas eu sabia que nada doeria mais do que suas
palavras. Nada tiraria a dor de viver uma nova vida onde Siriu não me queria
junto dele.
— Eu quebrei minha promessa.
— Ah, não se preocupe, reinheit, estou bem ciente disso.
— Esse é um hospital?
— Não, este é o meu quarto. Você está na casa da minha família.
Dormiu por quatro dias e eu precisava de alguém de confiança para manter
um olho em você enquanto eu saia e resolvia... coisas.
— Em seu quarto?
— Sim, Freya.
As palavras travaram na garganta, junto com um nó e uma ansiedade
que fez meu estômago embrulhar, fazendo-me suspirar com a dorzinha que
atacou. Siriu me alcançou em passos rápidos, sentando-se ao meu lado e
pousando a mão em minha barriga, queimando o tecido da roupa.
— Por quê? Por que estou aqui?
Será que Liémen havia desistido de mim? Ele não seria o primeiro. A
dor de ter sido rejeitada por Siriu ainda persistia, mesmo que ele estivesse em
minha frente, tocando-me e me dando aquela velha sensação de segurança.
Minha casa.
— Porque eu estou te reivindicando. Pegando o que é meu.
— Eu sou sua?
— Eu já lhe disse antes. Você é minha.
— Mas... mas o senhor me deixou — sussurrei, implorando com os
olhos fixos nos seus para que não fosse uma brincadeira, ou um sonho. Ou
pior... que aquele fosse o meu inferno. Ficar revivendo de diferentes maneiras
como Siriu me deixaria uma e outra vez.
— Eu deixei.
— Por quê?
— O que importa não é que está aqui agora?
— Está comigo por pena. Sabe que eu vou continuar tentando me matar
se me deixar.
— Quando você diz coisas assim me faz acreditar que realmente é louca,
Freya. E eu não quero pensar que aquele filho da puta fodeu sua cabeça
assim.
— Mas ele fez. — Coloquei minha mão por cima da sua. — Eu não
entendo muito das coisas, mas sei que fiquei louca pelo o jeito que todos me
olham, que falam comigo, que me tratam.
Ele inclinou a cabeça ao me ouvir atentamente.
— Eu estou fodido também e sei disso porque mesmo sabendo que
deveria deixá-la ir, vou manter você. Não por pena, por obrigação ou
qualquer coisa do tipo. Ninguém me obriga a nada.
— Então... por quê?
— Eu já disse. — Seu lábio inclinou levemente. — Você é minha.
— E o senhor vai me manter?
— Mesmo quando você não quiser mais me pertencer. É um caminho
sem volta, liebe. Terá que lidar com as consequências do que desejou.
Sorrindo, eu não me importei com a dor quando me atirei em seu
pescoço, agarrando-o como se ele fosse se levantar e me deixar a qualquer
momento.
— Nunca vou me arrepender.
Ele riu sombriamente.
— Nunca é um tempo muito longo nesse mundo, Freya. É uma fodida
eternidade comigo.
— Ótimo —sussurrei e o fitei dentro dos olhos, nossos lábios estavam
tão próximos que fiquei com água na boca. — Tenho permissão para te
beijar, mestre?
Ao invés de responder, ele mesmo agarrou minha nuca, batendo a boca
sob a minha. Segurei seus cabelos com uma mão e outra rodeei o pescoço e
alcancei a barba. Estava grande e raspava em minha pele fina. A picada de
dor parecia uma promessa bem-vinda. Todo o meu corpo se acendeu, ainda
que doesse. Ser tocada por ele depois de semanas parecia um milagre. O meu
milagre.
Eu derreti em seus braços como sempre fazia, gemendo por mais e
esperando que ele não se importasse que eu havia acabado de acordar, apenas
nos desse o que ambos queríamos. Minha saudade dele era selvagem e meu
aperto desesperado. Eu bebi de sua boca enquanto ele praticamente comia a
minha. Seu toque, o gosto, o cheiro... como eu podia ser culpada de não
querer viver sem tudo aquilo?
Eu tentei me empoleirar em seu colo, mas um gemido de angústia o fez
se afastar, os olhos reprovadores quando balançou a cabeça e me segurou
pela cintura na cama.
— Você precisa de mais alguns dias para se recuperar. — Sua voz
estava acelerada, o peito forte e largo subindo e descendo com a respiração
pesada. Eu via que me queria, então por que tentava tanto ficar longe?
— Eu preciso do senhor!
Ele estreitou os olhos, suas mãos pressionaram um pouco mais.
— Freya — disse lentamente, como se cada letra do meu nome fosse um
sacrifício a ser dito. — Cometi erros com você desde o começo, sabe quais
foram? — Balancei a cabeça, hipnotizada por seus dedos acariciando a pele
exposta onde minha blusa subiu. — Deixei você pensar que podia tomar suas
próprias decisões. Por alguma razão você achou que estava tudo bem me
desafiar e principalmente... quebrar sua promessa, mas não se preocupe. Não
tenho a intenção de cometê-los novamente.
Ele se inclinou e me beijou com apenas um toque.
— Você vai se recuperar completamente e quando estiver sem nenhuma
dor eu começarei a lhe mostrar o quão chateado fiquei quando se machucou
na porra da minha frente. Ok?
— Ok — sussurrei, sem ter certeza do que acabara de concordar, mas
também não ligando.
— Vou trazer o seu café da manhã, depois você tomará um banho e
voltará para a cama.
— O senhor virá comigo?
Ele deu um daqueles meio sorrisos e me soltou completamente, mas os
olhos ainda estavam em mim.
— Não me chame de senhor. Sou mestre ou você.
Inclinei a cabeça, confusa.
— Não quero ser desrespeitosa, mestre. Chamá-lo de você...
— Me fará sentir menos velho. Você ainda não entende isso, mas a
maioria das pessoas me consideraria repulsivo apenas por te trazer para
minha cama.
— Por que o senhor... você tem o dobro da minha idade?
Ele torceu o nariz.
— Quando você fala assim parece ainda pior, mas sim, por isso também.
Como sabe disso?
— Kirina me disse que poderia ser um dos motivos para o meu pai nem
sequer falar de você.
Siriu riu, mas não foi por achar graça. Seu rosto era bem sério.
— Acredite em mim, reinheit a minha idade não é o maior problema do
seu pai comigo.
— Então, o que é?
Ele suspirou, pegou minha mão e a beijou.
— Passando o tempo comigo você entenderá, mas lembre-se, será muito
tarde para concordar com ele.
Balancei a cabeça, negando com movimentos o que meu coração
gritava.
— Eu não iria.
Não mesmo e planejava fazer com que Siriu entendesse isso. Fosse com
o tempo ou com minha obediência, mas ele ia ver que não existia outro lugar
para mim que não ao seu lado.
Encontrei Demeron no subterrâneo da Konstantine Business, onde
ficava a sede de treinamento da Liga. Ele estava no ringue principal, lutando
com um homem e uma fila esperando sua vez. Não pude me conter por mais
tempo. A recuperação de Freya estava longe de completa e eu precisava de
distração. Tentei não pensar nas coisas que Kirina disse e jurei não ir atrás
dela, eu temia pela primeira vez na vida intencionalmente machucar uma
mulher se a visse em minha frente, mas ao mesmo tempo não podia culpá-la.
Ela salvou seu filho do próprio pai e depois de conviver os anos
seguintes comigo, viu o quão fodida a minha cabeça estava. A parte
ligeiramente consciente de mim entendia seu raciocínio: eu poderia machucar
o garoto se soubesse que estava vivo.
Só que eu não iria. Não depois de anos de culpa e arrependimento.
Nunca seria o pai do ano, mas eu queria olhar em seus olhos e ver o que
aconteceria.
Demeron me viu assim que entrei, mas me fez esperar enquanto
terminava o treino e colocava outro superior em seu lugar para não atrapalhar
os treinos seguintes.
— Vamos até a cozinha — disse ao passar por mim sem parar. —
Preciso de água.
— Não vou demorar muito.
Ele me deu um olhar significativo.
— Kirina me disse que te contou. Confesso que pensei que não viria até
mim.
— Provavelmente não devia ter vindo, mas estou curioso.
— Então só veio por isso, curiosidade?
— Não comece a ver a minha redenção no fim do túnel e auréolas em
minha cabeça, Demeron. Sabe que essa descoberta não muda quem eu sou.
— Talvez ainda não. — Ele encheu um copo gelado e abasteceu sua
própria garrafa, tomando vários goles. — Sei que será um trabalho duro, não
sou idiota, mas vejo que Freya já começou a te trazer de volta.
— Não comece a balançar seus pompons, se soubesse os meus planos
para Freya estaria se juntando a Liémen para tirá-la de mim.
— Siriu, você não vai traficá-la, agredi-la ou eventualmente matá-la.
Sua vida sexual não me interessa, nem como você gosta de fazer suas coisas.
Enquanto mantiver Freya segura eu fico do meu lado do campo.
— Você está tão cheio de merda que cheira a ela — resmunguei. — Vai
me dar o que eu quero ou vou precisar tomar a força?
— Não será necessário. Eu quero te falar sobre isso. Sobre ele.
Ele.
Ainda parecia surreal demais. Mesmo depois de quatro dias inteiros
amadurecendo a ideia em minha cabeça. Talvez mesmo ficando frente a
frente com ele a sensação não passasse.
— Tenho uma condição.
— Mesmo? — Ergui uma sobrancelha ironicamente. — Não estou
dizendo que vou acatar, mas fiquei curioso. Qual é?
— Se você vai saber sobre ele, ele vai saber sobre você também.
— Essa decisão não é sua.
— É claro que é. Eu prometi a ele que um dia lhe falaria sobre suas
raízes e ele espera por isso. Não vou deixar a única resposta que o garoto
quer na vida em suas mãos, Siriu. Até porque sei que pode muito bem nunca
ir atrás dele.
Era como fazer um pacto, a diferença era que eu não tinha escolha. Se eu
quisesse, seria sim ou sim. Ameaçar Demeron já ficara velho e ele nunca
cedeu nem sob tortura, por que o faria agora?
— Vamos agora.
Ele me fitou com surpresa, mas não demorou a concordar, dizendo que
precisava apenas passar em sua sala na Konstantine. Quando entramos no
carro quinze minutos depois, ele parecia satisfeito até demais consigo mesmo
e eu podia ver aquele ar de esperança que estava acostumado a ver em
Harlen, não em Demeron.
— O que ele sabe? — perguntei. — Onde vive?
— Depois de eu ter negado durante anos que investigasse seu passado,
ele se tocou que eu sabia de algo. Seu aniversário de dezenove foi meio que o
ponto final. Ele começou a ameaçar ir embora e encontrar a verdade por si
mesmo e eu não podia deixar.
— Como você fez?
— O que, para criá-lo?
— Sim. — De repente me senti estranhamente incomodado com uma
suspeita. — Ele te vê como pai?
Demeron demorou a responder.
— Eu não diria que vê como pai, mas ele só teve a mim e alguns caras
da Liga durante a infância. Foi criado por babás em sua maioria. Ele viveu
comigo, mas eu tinha viagens, você sabe.
— Espere... então ele sempre esteve por perto.
Demeron bufou, balançando a cabeça.
— Você é cego ou se fazia. Vai se achar um idiota quando vê-lo e eu
estou ansioso pra caralho por isso.
— Por que está me contando tão facilmente? Não deveria querer me
punir de todas as formas de vingança possíveis?
— Fossem quais fossem suas razões e a falta delas para o que fez
comigo... eu não posso privar ele de ter o direito que lhe pertence. O garoto já
é maior de idade, mas lhe falta algo e vou deixar que decida se quer ou não.
Eu não o daria uma escolha.
— Mais nada para conversar, então. — Eu acelerei e estranhei quando
me mandou seguir para a boate de Kirina.
Não falava com ela há quatro dias e não pretendia mudar isso. Parte de
mim ainda estava furioso por sua omissão e mentira, mas Demeron
esclareceu que não iríamos para vê-la. Quando estacionei, me peguei
hesitando em sair do carro.
Era uma decisão sem volta. Saber quem era o meu filho e deixar que ele
soubesse sobre mim. O que ele pensaria? De mim, das coisas que fiz e tudo o
que ainda planejava fazer. Provavelmente não tinha o que temer, o garoto
decidiria por si mesmo que não valia a pena gastar tempo comigo e eu não
sabia exatamente como me sentir com aquele pensamento.
Nós saímos e atravessamos a rua, encontrando Zippo entrando e
deixando aquele jovem, Heinrich na porta, ele ia seguir o homem, mas parou
ao nos ver.
— Ei, caras. — Heinrich acenou e Demeron parou, fazendo-me dar uma
pausa em meus passos também. Eu esperei que fossemos entrar, mas então
meu primo me fitou e deu um aceno tão sutil que eu poderia até mesmo ter
imaginado.
Eu olhei para o garoto, depois para Demeron, franzindo o cenho.
Meu primo me fitou de volta e ele não precisou de palavras para o que
queria dizer. Eu olhei o garoto novamente e ele deu um sorriso. Não um
sorriso feliz ou animado, apenas sorriu, como se fazer isso fosse um costume.
Andar, estalar os dedos, piscar, engolir.
Heinrich esperou que disséssemos algo, mas Demeron ficou em silêncio
e eu... minha língua apenas virou gelatina dentro da boca. Como eu não vi?
Cogitei que Heinrich fosse filho até de Stark, mas meu? Jesus... estava na
minha cara. O cabelo loiro, os olhos azuis com um toque do verde de Kirina,
alto, magro, mas já construindo uma massa de músculos. Seu nariz
ligeiramente curvado como o meu.
Como. Diabos. Eu. Não. Vi?
Criado por babás. Longe da mãe. De repente me senti um lixo. Muito
pior do que já tinha me sentido antes, e meus olhos arderam. Meus olhos do
caralho arderam com a tristeza, culpa e arrependimento que me varreu.
— Demeron? — Sua voz era confusa agora, estreitando os olhos azuis
iguais aos meus e de sua mãe.
Sua mãe.
Eu apertei meus próprios olhos fechados.
Kirina.

— Você acha que eu quero a porra de uma criança, Kirina? Eu estou


fodido, você está fodida. Nossa família é a porra da confusão mais louca
desse país!
— O que nossa família tem a ver com isso? Nós podemos construir a
nossa própria.
Eu ri sem nenhum humor.
— Livre-se dele.
— Eu já disse que não vou fazer isso!
— É melhor que o faça, Kirina, ou eu farei e garanto que não vou
deixar boas lembranças.
— É só um bebê.
— Será o fruto do mal que eu e você somos juntos. Tem noção das
merdas que eu assinei? Tem e sabe. Você sabe tudo o que eu já fiz!
— Nada nos impede de viver uma outra vida. — Ela soluçou, agarrando
meu braço com olhos que imploravam. — Eu te amo! Nós podemos fazer isso
e...
— E o quê? Você é uma prostituta, seu pai é um mafioso e sua irmã é
uma espiã morta por dentro. O meu tio é uma fraude, corrupto e meus
primos são aberrações perturbadas. Eu sou a porra de um criminoso, Kirina.
O que será dessa criança?
— Ele não tem que seguir nossos passos. Temos dinheiro para ir a outro
país, até outro continente!
— Kirina. — Segurei seu rosto e a obriguei a me olhar no fundo dos
olhos. — A próxima vez que eu te ver, não quero ouvir falar sobre isso. A
morte será o melhor fim para essa criança. Se você me desobedecer sobre
isso vou fazer com que se arrependa.
— É o seu filho — sussurrou.
— Não é nada para mim.

Abri os olhos e dessa vez Heinrich me encarava. Não havia mais


Demeron, sua confusão com o nosso silêncio ou o barulho dos carros
passando. Éramos apenas ele e eu.
“— É o seu filho.”
Eu podia ver. Eu finalmente podia ver.
Ele caminhou dois passos hesitantes a frente e eu tive dois segundos
para pensar antes de me arrastar em sua direção. A dor em meu peito bateu
forte. Eu não reconheci o baque. Nunca tinha me sentido tão impotente
quanto naquele momento, com aquele garoto me olhando como se eu fosse o
médico e o monstro ao mesmo tempo.
Ele balançou a cabeça e eu senti um desespero latente me agarrar
quando voltou um passo atrás. Medo rastejou em minha pele quando pensei
que correria para longe. Que correria de mim. Eu não podia deixar, não
novamente. Não depois de tirá-lo de Kirina, de impedir que ela tivesse algo
depois de ter levado uma vida tão fodida. Não depois de deixar aquele garoto
ser criado por babás de merda enquanto seus pais estavam vivos.
Que porra de homem eu era?
Eu não podia.
Assim como não merecia Freya, reconheci que não merecia nem mesmo
a respiração de Heinrich em minha direção, mas não o deixaria correr para
longe de mim.
Eu avancei sem hesitar e o puxei em meus braços, meu peito abrigando-
o como deveria ter feito quando nasceu, enquanto crescia e quando começou
a se tornar um homem. Como o meu pai não fez comigo.
O vento forte bateu em meu rosto e congelou um rastro abaixo dos meus
olhos, eu reconheci o que era e apertei Heinrich mais forte. Eu estava
chorando.
— Senhor X? — ele me chamou, sua voz indecisa e insegura, como se
não fizesse ideia do que acontecia, mas ao mesmo tempo, tivesse certeza.
— Pai — falei com a voz rouca. — Eu sou o seu pai.
"Seu amor está me fazendo parecer tão louca agora
Seu toque está me fazendo parecer tão louca agora
Seu beijo me fez esperar que você me salve agora
Parecendo tão louca, seu amor está me fazendo parecer tão louca"
BEYONCE, CRAZY IN LOVE (FIFTY SHADES)
Eu estava tão ansiosa com o retorno do mestre que não conseguia
dormir. Foram duas semanas em sua companhia, e mesmo que ele saísse
durante o dia, sempre voltava de noite. Ele me torturou noites a fio
unicamente, impedindo-me de tocá-lo e sem me tocar também.
Ele me banhava e me mandava esperar junto a ele enquanto tomava seu
próprio banho. Se eu ousasse esfregar minhas pernas juntas em busca de
qualquer atrito para a excitação que corria como fogo em minhas veias ao
observá-lo alisar o próprio corpo e tocar o meu, ele me mandava sair e
passava a noite em outro quarto.
Eu aguentei seus dedos em minha pele, pressionando e empurrando-me
ao limite sem poder esperar alívio, pois via em seus olhos que não me daria.
Ele me tornava desesperada por mais, apenas para se afastar em uma postura
inabalável enquanto eu me desmanchava em sua frente.
Eu nunca sabia quando ele viria para mim da forma que eu queria. Ele
não falou muito e algumas vezes eu o peguei me observando com o mesmo
olhar daquele dia em que me segurou em seu escritório. Ele revivia aquela
cena quando ficávamos em silêncio juntos e seus olhos piscavam com raiva
do que eu tinha feito, então ele ia embora, voltando no dia seguinte com o
meu café da manhã e uma despedida distante antes de sair.
Eu queria voltar para nossa casa, mas mestre não parecia ter pressa.
Irritação me corroía o dia inteiro, salvo quando Blair aparecia para me visitar.
Na maioria das vezes parecíamos estar sozinhas em casa, mas eu sabia que
Angelina estava em algum lugar lá dentro. Aprendi que Blair era uma criança
sozinha, que olhava ansiosamente para a porta de pouco em pouco tempo e
que em mim ela procurava carinho, o que eu podia dar, já que tinha uma vida
inteira para compensar sem.
Kaladia não se importava com a minha presença, parecendo até que
algumas vezes esquecia que eu estava lá, enquanto Angelina não conseguia
olhar para mim sem ser com reprovação. Eu não entendi o porquê, é claro,
mas Onira me deixou saber que a mulher a tratava da mesma forma. Talvez
ela tivesse aquela coisa chamada ciúme? Se fosse, eu podia entender. Pensar
em qualquer mulher com Siriu me deixava com uma sensação estranha no
peito. Eu realmente cheguei a atirar coisas quando o pensamento se
aprofundava com imagens em minha cabeça.
Não sabia o momento exato em que peguei no sono, perdida depois de
um dia todo de brincadeiras pela casa com Blair até que sua mãe chegasse.
Seria aquele o dia em que Siriu me tocaria de verdade? Eu não entendia,
porque toda aquela distância, quando eu via seu corpo excitado por mim. Ele
me desejava. Então... por quê?
Eu adormeci no sofá de uma sala pequena, com a TV ligada em um
programa onde as pessoas cozinhavam em busca de um prêmio em dinheiro.
Não estava tão interessante e o sono acabou me vencendo. Comecei a
despertar quando senti carinhos por meus cabelos e pisquei lentamente,
piscando no escuro para focar a sombra em minha frente. Assim que
reconheci Siriu, abri um enorme sorriso, contente com sua volta para a casa e
o carinho que demonstrava.
— Mestre — sussurrei. — Você voltou. — Esfregando minha bochecha
contra a palma grande dele quando ela se encaixou perfeitamente na curva do
meu rosto, um suspiro satisfeito e aliviado me escapou.
Em momentos como aquele eu sentia a profundidade de minha
dependência. A forma como eu precisava dele era incontestável.
— Você descansou? — Ele me perguntou num tom rouco, seus olhos
azuis nunca se desviando das minhas expressões.
— Sim mestre, eu descansei — respondi prontamente e satisfação
brilhou em seus olhos.
Após mais alguns carinhos por meu rosto, enquanto me analisava. —
Meu mestre disse o que eu tanto queria ouvir, a firmeza em sua voz causando
arrepios por todo o meu corpo.
— Você se deu a mim, sabe disso, não sabe?
Eu assenti, inclinando a cabeça para tentar entender de onde vinha a
pergunta.
— E jamais me arrependerei.
— Não, não vai. Eu não vou deixar. — Ele se levantou. — Suba e me
espere no quarto.
Eu não precisei de mais nenhuma palavra dele para cumprir sua ordem,
murmurando um “sim mestre” antes de me levantar rapidamente do sofá para
ir mais rápido ainda para o quarto.
— Freya.
Eu parei como se ele tivesse apertado o botão que ligava e desligava
meu corpo.
— Sim, mestre?
— Você sabe como deve me esperar. — Meu coração bateu tão depressa
que zumbiu em meus ouvidos, me senti levemente zonza.
Eu não tinha certeza se entendi da forma certa e pela primeira vez hesitei
diante de uma ordem dele.
— Eu sei?
— Sim, reinheit, você sabe.
Eu respirei longa e profundamente. Meu sangue bombeava com força e
saliva seca desceu pela garganta quando voltei a andar, seguindo em direção
ao quarto que dividíamos. Eu sabia como esperá-lo porque fiz aquilo a vida
toda, foi o que ele quis dizer. Meu mestre, me tomaria como Kazel fez?
Me puniria como aqueles homens fizeram?
Eu quis chorar ao perceber que o que me fazia tremer não era medo, mas
ansiedade. Pensar nas Kambarys me levava de volta a sangue, dor e
sofrimento, mas quando vinha de Siriu, não era terrível. Ele me fazia sentir
prazer em meio a dor e alívio na borda do sofrimento. Ele não derramava
meu sangue, ele o fazia pulsar quente e aquecer todo o meu corpo.
Eu queria aquilo com o mestre. A mistura de quem eu era, com quem eu
queria ser para ele.
Respirei fundo quando entrei no quarto e tirava minha camisola e
calcinha, as deixando dobradas em cima em um canto do closet enorme onde
as roupas de Siriu ficavam de um lado, e as minhas poucas saias, vestidos e
camisetas do outro, mas não coloquei as minhas do meu lado, pus ao lado das
dele.
Então encarei a enorme cama e subi, ajoelhando-me de frente para a
porta.
Apenas a luz da lua atravessando as janelas altas me iluminando,
testemunhavam como eu contava os segundos para ter a total atenção do meu
mestre. Finalmente.
Aproveitei a espera para normalizar a minha respiração e acalmar minha
mente, desejando as mãos fortes do meu dono tocando cada pedaço da minha
pele. Meus punhos se mantiveram unidos atrás de minhas costas e eu me
acomodei da melhor forma possível sentada em meus tornozelos, coluna ereta
e cabeça baixa em total respeito ao meu mestre.
Não sabia quanto tempo demorou para Siriu chegar ao quarto, mas
contive o meu impulso de erguer a cabeça para tentar olhá-lo quando escutei
seus passos e a porta se fechando, mordendo meu lábio inferior por conta da
ansiedade e simplesmente me mantendo quieta no lugar.
— Silêncio absoluto a não ser que eu peça a sua voz, Freya. Isso não é
um jogo, é a nossa vida juntos. A vida que você pediu para ter. Não há
palavra de alerta ou palavra segura. Eu vou parar quando quiser parar.
Ele andou sem pressa ao meu redor, eu não o via, mas sentia sua atenção
em mim, me analisando, avaliando e admirando, talvez. Qualquer que tenha
sido sua conclusão, foi positiva porque logo senti sua mão afagando o topo da
minha cabeça e precisei morder a parte interna da minha bochecha para não
emitir nenhum som, afinal, ele não havia me autorizado a nada além de ficar
quieta no momento.
— Seus ferimentos se foram e agora eu vou pegar de volta o que sempre
foi meu. Você será punida agora, sabe por quê? — Meu mestre finalmente
perguntou, escorregando seus dedos por minha mandíbula para erguer meu
rosto, possibilitando nosso contato visual. — Está autorizada a falar.
Eu queria agradá-lo, queria que — apesar de precisar ser punida — ele
sentisse orgulho de mim e eu daria o meu melhor a ele porque era isso que
ele merecia.
A forma intensa que ele encarava meus olhos era responsável por tirar o
meu ar e eu precisei me forçar a respirar algumas vezes antes de conseguir
responder sua pergunta, piscando sem pressa meus olhos amarelos que ele
tanto falava.
— Porque eu tentei me matar, mestre — respondi num fio de voz, mas
clara o bastante para ele conseguir entender minhas palavras.
Relembrar o meu ato fez uma careta revoltada surgir no rosto bonito do
meu mestre, demonstrando como a minha ação o abalava verdadeiramente.
Ele logo se recompôs, mas a seriedade permaneceu em seus olhos quando ele
segurou com mais vigor meu queixo, inclinando-se em minha direção
enquanto praticamente rosnava suas palavras seguintes.
— Você não tem permissão para morrer, nem sequer para pensar nisso.
Você é minha, Freya. Está proibida de tirar isso de mim. Está ouvindo?
Seu tom autoritário me fez estremecer e eu logo tratei de concordar com
a cabeça, apressando-me a usar as palavras também para reforçar minha
resposta.
— Sim mestre, nunca mais farei isso.
— Precisará de mais do que palavras para que eu acredite, já que falei a
mesma coisa antes e você ignorou. Enfiou a porra de uma espada em si
mesma. Se eu te perdesse teria morrido, göttin. E eu não vou aceitar isso.
Meus olhos amoleceram nos seus, o azul sombreado com dureza. Ele
queria que eu entendesse, que eu garantisse que não o faria outra vez.
— Eu te amo, mestre — sussurrei. — E eu sei que também sente algo
por mim, por isso não faria aquilo novamente.
Ele inalou com força, segurando meu queixo por mais alguns segundos e
era impossível decifrar o que se passava em sua mente.
— Não vou levar suas palavras como garantia. Farei com que entenda,
porque não vai querer me deixar.
Um suspiro escapou de minha boca quando o polegar dele pressionou
meu lábio inferior, o esfregando um tanto duro antes de forçá-lo para dentro
dela e eu não hesitei em permitir a invasão, sugando-o com devoção sem
deixar de encará-lo, gostando da forma gostosa que se roçava em minha
língua.
Algo em meu ato despertou o desejo dele cru. Talvez as semanas me
torturando o tivessem deixado tão louco como me deixou, porque Siriu não
demorou a tomar uma atitude, tirando seu polegar de minha boca para ir até o
seu closet. Será que pararia? Eu estava pronta para implorar com mais vigor
do que fiz anteriormente.
Mas ele voltou e quando deixou uma caixa preta na beirada da cama
meu coração acelerou em expectativa. Eu sabia que seria punida e que —
teoricamente — não deveria estar tão ansiosa, mas meu mestre não me
puniria se não se importasse de verdade comigo. Seus atos eram para que eu
aprendesse a confiar minha vida completamente nele, o que Siriu não sabia é
que eu já confiava. Ele queria que eu aprendesse com o meu erro e a
constatação me fez sentir sortuda por receber o que queria me dar.
Não vi o que ele pegou da caixa por ter abaixado novamente meu olhar
em obediência, mas estremeci quando ele se agachou atrás de meu corpo e
acariciou meus punhos, engolindo em seco quando algemas os prenderam
juntos, atrás de minhas costas. Em seguida, ele alisou meus cabelos longos
antes de colocá-los de lado sobre meu ombro esquerdo, prendendo por fim,
com delicadeza, uma coleira com uma guia em meu pescoço.
Eu me obrigava a respirar devagar, perdida com a suavidade. Nenhuma
punição havia sido boa para mim, fora as dele. Suas mãos fortes se tornavam
controladas e o toque que podia me cortar a respiração para sempre, fazia-me
beber ar puro.
Como alguém tão suja, manchada por incontáveis outros homens
poderia ser digna de Siriu? Como eu faria para merecer, o meu senhor?
Ele ficou novamente em pé diante de mim, seu silêncio mostrando que
checava cada parte minha com total interesse, gostando do que via. Voltou a
colocar meus cabelos para trás e ergueu meu rosto. Suas mãos certeiras
passaram pelo cinto, removendo-o antes de desabotoar a calça, não desviando
em nenhum momento seus olhos de mim enquanto colocava seu membro
pesado para fora, massageando a carne quente numa provocação direta aos
meus desejos.
Eu me lembrava do peso, da quentura, das veias sobressaltadas se
exibindo. Ele era divino.
E meu.
Provavelmente minha vontade estava escancarada em meu rosto, ainda
mais depois que eu lambi meus lábios nada discreta ao vê-lo esfregar a
cabeça úmida pela excitação, desejando senti-la em minha língua.
— Olhe em meus olhos, venha se ajoelhar a minha frente. — Ele
mandou, sem deixar de se masturbar bem diante de mim e eu fui muito forte
para obedecer ao seu comando, sentindo algo entre minhas pernas pulsar pelo
desejo. — Eu vou foder sua boca como parte da sua punição e você não pode
se engasgar.
A ordem foi recebida por mim com satisfação e eu não demorei para
abrir minha boca, esperando para o que viria a seguir, ansiosa para tê-lo
arruinando minha voz e me deixando sem ar.
Ainda pude apreciá-lo tirar a camisa que escondia seus braços fortes e
peitoral e abdômen definido para, enfim, ter a glande dele contornando minha
boca, salivando quando Siriu a pousou em minha língua e comecei a lamber
avidamente.
— Não. — Ele ditou se afastando, embora desejo cobrisse seus olhos,
ele controlava-se como o que era: um mestre. Segurou seu membro a
centímetros de meu rosto. — Eu vou usar sua boca, você não vai fazer nada
além de ficar quieta.
— Sim, mestre — murmurei aflita para tê-lo novamente, seu gosto
agridoce fazendo falta para o meu paladar.
Siriu então voltou a colocar a cabeça pulsante e avermelhada contra a
minha língua e eu apenas relaxei o máximo que pude minha mandíbula,
gemendo baixinho quando ele deslizou, fazendo com que eu apertasse minhas
unhas contra as palmas de minhas mãos para conter o desejo de chupá-lo
forte.
Seus olhos estavam fixos em meu rosto enquanto seu quadril ditava um
ritmo lento de estocadas, como se apenas testasse se eu realmente cumpriria
sua ordem de não tentar sugá-lo e quando percebeu que eu deixaria que ele
fizesse o que quisesse com a minha boca, meu mestre não perdeu tempo em
colocar pressão nos movimentos, segurando uma boa porção dos meus
cabelos com uma de suas mãos para foder sem remorso minha garganta,
tirando gemidos abafados de mim.
Eu me concentrava em respirar pelo nariz, esforçando-me para não me
engasgar, mas era difícil ficar calma quando o membro dele me sufocava,
forçando-se o mais fundo que conseguia dentro da minha boca, determinado
a me arruinar completamente.
Meu corpo reagia com necessidade as ações dele, sensível e ardente para
que continuasse sem parar, me contraindo tanto pela excitação que sabia que
se continuasse assim poderia ter alguma cãibra, mas eu não tinha culpa,
precisava tentar descontar um pouco do desejo que queimava em minha
boceta... queimava a minha boceta, louca por algum contato.
Ardia a forma como meus lábios estavam esticados, mas eu gostava,
queria tanto sentir o pau dele castigando minha garganta permanentemente já
ferida que sabia que não me importaria se eles rasgassem tamanha a
intensidade com que se espaçavam para comportar toda a ereção do meu
mestre. Não demorou para que meus olhos enchessem de lágrimas, tanto pelo
desejo quanto pela pressão que ele impunha nos movimentos. Saliva escorria
pelos cantos da minha boca, descendo pelo meu pescoço toda vez que ele ia e
vinha, dando aos meus ouvidos o som delicioso de seus gemidos baixos,
nunca tirando os olhos de mim.
— Porra, olha como eu fodo a sua garganta. — Tomado pelo tesão,
levou seu pé calçado com um coturno preto entre minhas pernas, esfregando
a parte de cima do couro preto e cadarços por minha boceta molhada, tirando
de mim um gemido manhoso, descarregado diretamente na glande dele por
finalmente ter um pouco de alívio em minha excitação. — Você gosta tanto
disso, não é?
Minha resposta foi começar a rebolar como conseguia contra o calçado,
tentando buscar intensidade para saciar meu desejo quente e profundo,
desesperada para gozar daquela forma enquanto ele maltratava minha boca.
— É claro que gosta, está se esfregando como uma cadela em mim. —
Meu mestre debochou, tirando seu pé de entre as minhas pernas para pisar na
parte interna da minha coxa, travando meus movimentos. — Eu não te
autorizei a se mexer.
Após seu tom reprovador ele afundou deliberadamente seu pau em
minha garganta, forçando tudo para me sufocar, nunca diminuindo o peso de
sua pisada. A dor começou a se alastrar por meu corpo junto com a agonia
por ter minha garganta tão castigada, duas situações cruciais para levar minha
excitação em um nível quase insustentável para a minha sanidade. Meu nariz
foi forçado contra a pélvis dele e minhas lágrimas não se demoraram a
escorrer por minha bochecha.
Aflita, o fitei implorando por mais. Um toque, um sopro, qualquer coisa
serviria se apenas viesse dele. Precisava que ele me destruísse de uma vez por
todas.
Me senti estranhamente vazia quando se retirou devagar, o fio de saliva
sendo a única coisa que conectava nossos corpos, além do carinho pesado que
ele deixou por um breve segundo em meu couro cabeludo. A pressão em
minha coxa sumiu, uma lembrança da dor que havia marcado o local com o
ato duro de meu mestre.
Siriu esfregou sua glande por minha bochecha e lábios antes de sem
aviso, escorregar seus dedos para a minha nuca e se inclinar, tomando minha
boca num beijo inesperado, fazendo com que eu me derretesse com a
explosão que era ter sua língua reivindicando dominância sobre a minha.
Tão rápido como o beijo começou, ele acabou e eu ofeguei quando meu
mestre me levantou com extrema facilidade do chão, ajudando-me a ir para a
cama espaçosa perfeitamente arrumada, não sendo delicado ao me jogar
contra ela de bruços, pronto para fazer o que bem quisesse comigo.
— Empina a bunda pra mim. — Seu tom era firme e eu me esforcei para
realizar o pedido com os punhos ainda algemados nas costas.
O lado esquerdo de meu rosto ficou pressionado contra o colchão junto
de meu tronco enquanto joguei para o ar do jeito que pude a minha bunda,
separando minhas pernas para equilibrar. Estava exposta e tão vulnerável
para o meu mestre, os fios na metade visível de meu rosto estavam
obstruindo um pouco da visão, mas vi sua sombra chegando perto. Senti e
cheirei.
A lua cheia dominava o céu e era a luz dela que iluminava a minha
punição, sendo a única testemunha do que o meu mestre era capaz de fazer
comigo.
Tremi quando senti o toque dele na lateral de meu quadril, mas o que me
chamou atenção foram os metais adornados em seus dedos, contrastando com
a minha pele quente, me deixando em alerta porque Siriu nunca usava anéis.
— Não irei te machucar. Ou não muito. — Ele começou a dizer,
alisando minha bunda com suavidade, mexendo com a minha cabeça e
ansiedade, eu não sabia o que esperar. — Eu te darei dez tapas com os anéis,
apenas para marcá-los em você e eu quero que você agradeça por cada um
deles, em voz alta.
Concordei, toda trêmula, arrepiando-me sem saber se era por conta das
palavras que ele havia dito ou pelo carinho suave deixado em minha pele,
mas, de qualquer forma, era grata por ambos. Ter suas marcas em mim
sempre me deixava excitada, fora de mim.
— Sim, mestre — implorei num sussurro abafado, movendo lentamente
minha bunda contra a palma grande que a alisava. — Por favor…
Meu pedido pareceu ter causado algo em Siriu, porque não demorou
para que o primeiro tapa fosse deixado em minha bunda. Não foi muito forte,
mas foi dado na medida certa para me fazer gritar em surpresa e brevemente
me encolher, amando quando o ardor começou a se alastrar pela região que
sofrera o impacto.
— Obrigada, mestre — agradeci com a voz tomada pela emoção, não
demorando a repetir as palavras quando um segundo foi deixado, desta vez
no lado ainda não atingido.
Os tapas tinham a mesma intensidade e eram sempre no mesmo lugar, o
que contribuía para a sensibilidade e ardência aumentarem a cada novo
impacto na pele sensível.
Poderia ser mais forte, eu almejava por mais forte, a dor mexia com o
meu sistema, me deixava ansiosa pela aflição momentânea que ela trazia para
mim, mas eu sabia que ele não se arriscaria em bater mais forte que aquilo
porque, apesar de estar disposto a me punir, meu mestre nunca me feriria
realmente. Não como eles.
A expectativa para cada novo tapa tomava todo o meu ser, eu me
contraia tão forte para tentar aplacar um pouco da excitação que chegava a
tremer e, antes de chegar no décimo eu já não estava mais gritando e sim
gemendo necessitada por mais.
— Obrigada, me-mestre! — Eu o agradeci pela última vez quando enfim
veio, queimando-me por dentro e por fora.
Meu rosto se esfregava contra a cama enquanto eu gemia baixinho, tudo
ardia tanto, mas era tão bom, eu não sabia o que fazer comigo mesma.
Siriu deu a volta na cama para se aproximar de minha cabeça e se
agachou ali para tirar os fios de cabelo do meu rosto, revelando as lágrimas
que eu nem tinha me dado conta que estavam escapando. Quando teve meu
rosto livre, ele foi categórico em levar seu dedo mindinho até minha boca,
nem mesmo piscando quando dava sua ordem.
— Tire meus anéis, sua punição não acabou ainda.
Entreabri obedientemente minha boca e usei meus dentes para tirar o
anel, repetindo o ato em cada um dos dedos, mantendo nossos olhos
conectados. Eu buscava cumprir cada ordem proferida com devoção, assim,
sempre veria aquele indício de um sorriso em seu rosto perfeito. Quando tirei
o último de seu polegar, o cuspi devagar, assim como havia feito com os
quatro anteriores.
— Boa garota, boa garota. — Ele sussurrou para mim, afagando meu
rosto antes de voltar a se erguer, indo novamente para trás de meu corpo e
sumindo do meu campo de visão.
A mão voltou a minha bunda, acariciando a carne quente e me fazendo
choramingar pela sensibilidade, o pouco que ele ficou sem me bater fez com
que minha pele ficasse mais frágil do que antes.
— Eu vou te dar mais vinte tapas e agora quero que você os conte. Cada
vez que você errar ou esquecer, eu vou voltar desde o começo.
Minha reação ao ouvir tais palavras foi gemer e me afastar do carinho
que recebia, ação automática pelo medo do próximo tapa.
Ele não esperou que eu acenasse ou concordasse, mas segurou meu
quadril com firmeza impossibilitando qualquer ideia de fuga. Mesmo que
embora fraca, eu não fosse fazê-lo.
Surpresa me fez gritar quando o tapa chegou e minha contagem saiu
tremida, lamuriosa e chorosa. Minha bunda foi castigada com mais força e
meus punhos presos se torciam em agonia. Aquilo era punição.
Estava difícil acompanhar a contagem por conta da intensidade de tudo
o que eu estava sentindo e tudo piorou quando no intervalo de um tapa para o
outro meu mestre esfregou dois dedos por meu clítoris sensível e inchado
pela excitação, causando espasmos por todo o meu corpo.
— Olha como você está vazando, tão necessitada… — Ele provocou
num tom arrastado, masturbando-me de um jeito tão gostoso que me fez
empinar ainda mais, jogando todo o peso do corpo no rosto e pescoço,
tentando rebolar em seus dedos. Era impossível ficar quieta. — Freya, se
você se mexer de novo eu vou te amarrar nessa cama!
O aviso era sério e eu me obriguei a ficar parada, chorando pelo prazer
que era ter os dedos dele brincando comigo de um jeito tão gostoso. Siriu
usou minha lubrificação para brincar com a borda da entrada apertada da
minha bunda e eu me contraí em resposta, sentindo os dedos dele
contornarem meu orifício com a clara intenção de prepará-lo para algo mais.
Medo me invadiu quando imagens de outros homens sem rostos dominou
meu pensamento. Sangue... tanto sangue. Dor excruciante. Aquele sexo
nunca foi prazeroso, sempre foi para punição, diversão a Kazel e seus
amigos. Nunca para mim, mas ao mesmo tempo, vergonha me fez soluçar
quando mel escorreu da minha boceta.
Eu incendiei de prazer e errei a conta do tapa seguinte que recebi,
voltando do dezesseis para o primeiro.
— Freya — falou com reprovação. — Basta ter algo brincando com sua
bunda e você esquece de tudo, não é?
— Mestre — murmurei, soluçando no meio da palavra.
Ele voltou a acariciar ali quando se inclinou por cima de mim,
encostando a boca em meu ouvido.
— O que foi, reinheit? Está arrependida? — Não havia compreensão em
seu tom, apenas curiosidade fria.
— Isso dói. — Me encolhi. — Sempre dói.
Ele ficou em silêncio quando saiu de cima de mim e sua presença se foi,
apenas para sentir sua língua tocar naquele exato lugar e me fazer pular em
surpresa, arrepiando-me por inteira. Fogo me consumiu ao sentir a umidade
invadir apenas um pouquinho lá atrás.
— Isso parece doer para você? Eu não sou seu passado, reinheit.
Lembre-se disso. — Ele se ergueu novamente e voltou a carícia inicial, com
apenas um pouco mais de pressão. — Seu medo é uma vergonha, Freya.
Ainda que fosse doer você queria isso, minha cadelinha. Queria apenas por
ser o meu pau.
Ele estava certo. Estava tão certo.
Minha resposta a provocação dele foi gritar o número certo quando
voltou a estapear minha bunda e apesar de ter sido muito difícil, usei toda a
minha vontade de ser boa para ele para não me perder com a masturbação que
vinha entre os tapas, quase não tendo forças para contar o número vinte
quando ele finalmente chegou.
Eu havia me tornado uma total bagunça, minha bunda parecia pegar
fogo pelo tanto que ardia, tirando um grito exasperado de minha garganta
quando apertou minha carne macia com as duas mãos em pura provocação. Já
não tinha ideia do que estava por vir, meu corpo clamava por mais toques, a
dor potencializando meu prazer em níveis impensáveis e eu apenas me
contive para não implorar por ele porque eu estava sendo punida, tinha
apenas que aceitar tudo o que ele quisesse me dar.
— Mestre… — O chamado por ele escapou de minha boca quando o
senti enfiar um de seus dedos dentro do meu ânus, o deslizando facilmente já
que havia usado minha própria lubrificação para melar.
— Você gosta disso? — perguntou enquanto me abria com seu dedo,
não demorando para levar um segundo junto do primeiro apenas para me
enlouquecer mais ainda. — Porra você é tão macia aqui dentro, não é, göttin?
Eu mal absorvia as palavras, gemendo e apertando-o dentro de mim de
forma faminta, amando tudo. Um terceiro dedo começou a se forçar para
dentro de mim ao mesmo tempo em que a guia esquecida da coleira foi
puxada, fazendo com que eu erguesse minha cabeça e me engasgasse com
meu gemido pela falta de ar repentina.
A posição era desgastante, mas o prazer tornava tudo mais suportável e
eu me vi no céu com a combinação da falta de ar com os dedos dele fodendo
meu interior, desejando o pau dele ali, me tomando por inteira. Eu me sentia
tão bem com a forma que ele estava me abrindo com seus dedos que quando
meu mestre os retirou de mim, me senti animada para o que estava por vir,
conseguindo imaginar com perfeição o comprimento quente tomando cada
pequeno espaço do meu buraco sedento.
Mas, confundindo meus sentidos e me deixando sem saber o que pensar,
foi a minha boceta que recebeu sem aviso ou preparo o membro quente.
Meus olhos reviraram, eu não sabia como não gozei só por senti-lo
totalmente dentro de mim, tomando tudo para si.
As estocadas não eram lentas, ele estava simplesmente me levando ao
paraíso na velocidade de um foguete e a dificuldade para respirar apenas fazia
com que eu me sentisse a cada segundo mais perto de gozar, descontando
meu prazer com apertos famintos em seu comprimento, me contraindo com a
vontade clara de não tê-lo fora de mim por um segundo sequer.
Era dolorosamente deliciosa a forma como ele batia e apertava minha
bunda com a mão livre, a ardência acentuando meu prazer de um jeito
majestoso, acabando com as minhas já fragilizadas estruturas e me fazendo
gemer sofregamente por cada metida, tapa e aperto, ecoando pelo quarto.
Eu ia gozar, sabia disso e apesar de saber também que precisava esperar
sua permissão não tinha como avisar do prazer intenso que começava a se
espalhar por meu baixo ventre prontinho para explodir, mas assim que senti
que chegava lá, ele dolorosamente puxou-se para fora de mim, me deixando a
mercê da agonia que apenas um delicioso orgasmo interrompido poderia
trazer.
— Me-mestre… — chamei por ele sem me conter, mas mal consegui
raciocinar porque Siriu se aproximou novamente da minha cabeça e me
pegou pelos cabelos, trazendo meu rosto sem cuidado algum em direção ao
seu pau, esfregando seu comprimento molhado pela minha lubrificação.
— Chupa. — Ele ditou e eu prontamente obedeci, gemendo com o gosto
dele tão bem misturado ao meu, meus cabelos grudados ao rosto invadiam
minha boca junto de seu comprimento, meu pescoço parecendo a ponto de
torcer pelo ângulo.
Ele continuava a segurar com firmeza meus cabelos enquanto eu engolia
e chupava com total entrega, demonstrando minha fome por ele apenas com o
olhar e pela forma como esfregava minha língua por todos os lados que
conseguia do órgão pulsante, sem nunca tirá-lo da minha boca.
Se dependesse de mim, o chuparia por horas, apenas sugando e me
deliciando no pré-gozo que vazava como se não precisasse de mais nada em
minha vida. E, na verdade, eu não precisava mesmo, Siriu tinha tudo o que eu
queria e precisava, eu faria o que fosse possível e impossível pelo o mestre.
Gemi com dor quando ele puxou com força minha cabeça para trás e
recebi em meu rosto o jato de gozo dele, que veio sem aviso, e enquanto eu
abria mais minha boca numa tentativa faminta de ter o líquido dele em minha
língua, deixei meus olhos presos nos dele, tendo absoluta certeza que não
existia no mundo um homem mais bonito que ele.
Os lábios sutilmente abertos evidenciavam o gemido mudo que ele
soltou e eu me arrepiei inteira, quase derretendo com o poder do olhar
desejoso que recebia.
Siriu usou seus dedos para limpar o gozo de meu rosto e foi paciente ao
levá-los até meus lábios para que eu os chupasse, usando a mão que havia
puxado meus fios para acariciar meu couro cabeludo, aliviando a ardência
que havia tomado o local.
— Está com fome, não é? — Ele perguntou rouco enquanto fodia de
forma lenta minha boca com seus dedos, me olhando com total malícia. —
Tome o seu leite, liebe, acostume-se com o sabor, vai ser para o resto da sua
vida.
As palavras dele aumentavam meu desejo, mas não só isso, também o
meu amor. Todo o amor que nunca pude dar, que nunca recebi, agora era
dele.
Todo. Dele.
Chupei seus dedos como uma esfomeada, repetindo o ato até todo o
vestígio de seu gozo estivesse acolhido em minha garganta. Siriu,
visivelmente satisfeito, me virou na cama com facilidade e eu senti as
algemas incomodarem minhas costas, os braços doerem quase
insuportavelmente. Algemas não deveriam machucar, eu sabia, mas ele fez de
propósito, e nem mesmo aquilo podia diminuir o prazer que tomava meu
corpo em suas mãos.
Acompanhei com o olhar ele dar a volta na cama para ficar entre as
minhas pernas, eu as abri de imediato num convite, e tirei aquele curvar de
lábios do rosto sério. Meu mestre gostava de me ver desesperada como eu
estava.
Ele se ajoelhou ali e me encarou antes de descer seu olhar para a minha
boceta, lambendo os lábios e finalmente... finalmente baixou seu rosto para a
parte interna da minha coxa direita, esfregando a barba ali com lentidão, vez
ou outra cheirando minha pele arrepiada e sensível.
— Tão gostosa… — Escutei meu mestre sussurrar, sentindo meu
coração acelerar pela sensação de ouvir tais palavras dele.
Saber que eu era boa para ele, que o agradava, me deixava num estado
total de contemplação, porque eu queria ser tudo o que ele queria, tudo o que
ele precisava assim como ele era tudo para mim. A barba cheia roçou minha
boceta molhada e eu arqueei o quadril, revirando os olhos assim que a língua
quente começou a me provar, me deixando mais molhada do que antes.
Meu mestre sabia perfeitamente o que fazer com cada parte de seu
corpo, massageando meu clítoris em movimentos circulares e, vez ou outra,
penetrando-a dentro de mim, lambendo e provando tudo o que tinha direito.
Tudo o que era dele. O orgasmo que havia sido interrompido pareceu vir com
força total e eu me via pronta para me desfazer em sua língua, o coração tão
disparado que eu tinha certeza que poderia ser ouvido a distância, mas, o que
na verdade saiu de mim, foram lágrimas quando deixei de sentir a boca
maravilhosa dele me satisfazendo, perdendo dessa vez toda a minha
compostura.
— Me-mestre, p-por favor! — Eu implorei enquanto me contorcia,
vendo ele manter meus joelhos separados enquanto visivelmente se divertia
com o meu desespero.
Eu precisava de alívio, precisava colocar todo aquele prazer para fora,
meu corpo parecia pronto para entrar em combustão tamanho o desejo que
me tomava.
— Não acho que você esteja desesperada o bastante. — Siriu respondeu
com naturalidade, afastando-se para começar a enfim tirar o restante das
roupas que ainda cobriam seu corpo.
Vi com meus olhos aguados ele se desfazer dos coturnos, meias, calça e
boxer numa lentidão matadora, me perdendo na figura majestosa que era o
meu dono. Cada parte do corpo dele parecia ter sido esculpida por uma
divindade. Por Odin. E eu sentia a minha necessidade por ele doer
fisicamente, querendo-o sobre mim, me cobrindo, me satisfazendo, fazendo
comigo tudo que lhe despertasse vontade.
Siriu voltou a se ajoelhar entre as minhas pernas, mas dessa vez ergueu
meu corpo, me deixando esfregar um lado do rosto por seu peitoral forte
enquanto retirava de mim as algemas, afastando-se para trazer meus pulsos
entre nossos corpos e beijá-los antes de soltá-los, me empurrando novamente
na cama.
— Você realmente me quer? — Ele perguntou num tom provocador,
voltando a me deitar na cama e puxou minhas coxas em cima das dele,
deixando nossos quadris colados para poder esfregar seu pau por minha
boceta sensível numa masturbação deliciosa e mútua.
Ele já estava ficando duro novamente e vê-lo crescer entre meus lábios
me fez choramingar enquanto eu concordava carente com a cabeça, movendo
minha pélvis contra ele para obter mais atrito. O fitei temerosa, esperando
que não me mandasse ficar quieta.
— Sim, mestre, por favor. Por favor! Eu não aguento mais... — implorei
aflita, apertando os lençóis para não correr o risco de me tocar sem sua
autorização, deixando claro em minhas expressões o quanto o desejava.
Siriu levou suas duas mãos para meus seios e os apertou com firmeza
antes de começar a estimular meus mamilos, fazendo com que eu rebolasse
mais contra a ereção formada, louca para que ele me fodesse de uma vez. Ele
esticou uma delas para tocar meu rosto, o acariciando e secando minhas
lágrimas. Simulando estocadas deliciosas contra minha boceta, me fazendo
tremer e desejar mais daquilo, eu só precisava gozar de uma vez. Só.
— Por favor… — Voltei a implorar, subindo minhas mãos pelos braços
fortes enquanto continuava e me esfregar em seu pau tão quente que não
sabia como não havia derretido ainda.
Meu desespero foi visível e ele parecia se satisfazer assistindo, mas a
satisfação também o excitava e foi por isso que ele não aguentou mais aquela
tortura que havia nos colocado, demonstrando determinação quando levou a
glande inchada para a entrada da minha boceta, afastando apenas para pegar
mais da minha lubrificação para espalhar por todo o seu comprimento
enquanto a esfregava ali.
Antes que eu pudesse entender a razão de suas ações rápidas o ar
pareceu sumir de meus pulmões quando ele começou a se enterrar em meu
ânus sem nenhum aviso prévio, me obrigando a apertar com força seus braços
enquanto sentia cada pedaço meu ser alargado por sua ereção grossa,
perdendo todo e qualquer resquício de pensamentos claros.
Mesmo tendo sido preparada antes, eu senti dor, a forma como ele foi
me abrindo à medida que me penetrava, mas o prazer de tê-lo sobre mim e
dentro de mim depois de tanta vontade pareceu superar, porque eu já estava
rebolando antes mesmo dele estar por completo lá dentro e eu nem tinha me
dado conta disso.
— Porra, reinheit, é seu. Foda o seu pau. Pegue o que é seu. — Siriu
xingou pela forma necessitada que eu rebolava nele, pulsando dentro de mim
e sendo deliciosamente apertado pelas minhas paredes macias. — É tão bom
comer o seu rabo, Freya, bom pra caralho...
As estocadas vieram após a declaração sincera dele e eu chorei de
gratidão ao ouvir suas palavras seguintes, esticando meu pescoço quando ele
começou a beijar e lamber a minha pele.
— Você pode gozar, liebe. Fale comigo, foda o seu pau e tome tudo de
mim.
Apertei minhas pernas em torno da cintura quando ele nos ergueu da
cama sem sair de mim, caminhando diretamente para a imensa janela de
vidro e arranhei sua nuca quando senti o vidro gelado se chocar em minhas
costas. Fui beijada com desejo e entrega, sendo devorada pelo pau e pela
língua ao mesmo tempo.
O beijo se tornou desleixado porque nem ele e nem eu, conseguíamos
nos concentrar, o impacto delicioso que nossos corpos causavam um no outro
falava mais alto do que qualquer outra coisa, nos deixando numa bolha
impenetrável de prazer. Eu gemia em seu ouvido, arranhava sua pele, o
apertava contra mim, falava baixinho o quanto o amava e precisava dele, e
gritava cada vez que ele metia mais forte.
O pau dele estava profundamente enterrado em mim, as estocadas eram
fortes, e eu me contraia e rebolava, apenas para ter cada vez mais da sua
brutalidade, amando como ele fodia sem dó alguma a minha bunda. Meus
gemidos foram caindo quando meu orgasmo voltou a dar as caras e era muito
mais prazeroso saber que dessa vez eu poderia vir sem medo, não sabendo o
que seria de mim quando ele enfim rompesse por meu corpo. Minha voz
falhou por completo, apenas suspiros e soluços escapando.
— Me-mestre... e-eu vou gozar! — avisei num gemido manhoso, me
perdendo nos olhos azuis quando ele me fitou com ferocidade, usando uma
das mãos para novamente puxar a guia da minha coleira, fazendo da falta de
ar o estímulo extra que eu precisava para me desfazer de uma vez em seu
colo, gozando tão forte que Siriu precisou me apertar num abraço poderoso
para controlar meus espasmos.
Ele ainda prolongou o meu prazer quando continuou me fodendo até se
desfazer dentro de mim, mas eu mal conseguia refletir sobre, porque todo o
meu corpo parecia ter sido levado para outra dimensão, mole e vencido pelo
prazer.
Siriu beijou minha boca enquanto voltava a nos levar para a cama e eu
apenas deixei que ele fizesse o que quisesse. Conseguindo retribuir o beijo
apenas quando senti o colchão sob minhas costas, deslizando de um jeito
preguiçoso minhas mãos pelas costas fortes do meu dono, me sentindo
absolutamente completa.
Em casa.
Saciada, presa num novo tipo de consciência sobre o que era
verdadeiramente o prazer, o que era ter um mestre que me amava ainda que
as palavras não tivessem sido ditas e feliz.
Agora eu podia sorrir, porque seria verdadeiro. Era o sorriso de quem
sabia que existia mais.
"E quando nossos corações se encontram
Eu sei que você vê
Eu não quero estar com medo
Eu não quero morrer por dentro para respirar
Eu estou cansado de me sentir tão entorpecido
O alívio existe, eu o encontro quando
Eu sou sua"
PLUMB, CUT
— Mas, mestre — continuei debatendo com ele enquanto descíamos as
escadas. — Eu não posso saber que tipo de surpresa é essa?
Ele me deu um olhar rápido, conhecedor e firme em não me contar.
— Eu disse a você que está lá embaixo, por que a pressa?
— Estou animada! Eu recebi presentes de meu pai e de Onira, mas sua
surpresa será muito mais especial. — Não podia conter meu sorriso e nem
queria, quanto mais o mestre visse o efeito de sua a presença em minha vida,
mais rápido acreditaria de uma vez que eu nunca iria embora.
Ele parecia temer aquilo. Assim como eu temia que me deixasse
também.
Siriu fez uma pausa na porta antes de me deixar sair, segurando o meu
rosto em direção ao seu.
— Você receberá mais presentes do que poderá usar de agora em diante.
Vai viver como a rainha que é, será tratada como a princesa que sempre foi,
liebe.
— Eu só quero o seu amor, mestre. — Virei o rosto e beijei sua palma,
deixando-o sem palavras antes de rir e abrir a porta eu mesma, tentando
puxá-lo para fora. — Vamos, mestre, eu quero ver minha surpresa!
Contornamos a casa com ele caminhando e seus olhos presos em mim,
enquanto eu meio andava e meio saltava de ansiedade. Sorria como louca e
apertava sua mão sem querer deixá-lo ir.
— Ele ainda não tem um nome, mas vai precisar. — Ele falou assim que
passamos pela enorme fonte de água e saímos em direção a o que eles
chamavam de milhas de quilômetros de grama e céu azul. Eu comecei a olhar
a procura da caixa, já que os presentes de Onira e de meu pai sempre vieram
embalados nelas, mas então eu o vi.
Um pouco mais a frente com a cabeça abaixada e o vento soprando os
cabelos brancos, estava o cavalo que encontrei na casa de Onira e Demeron.
— Mas... como?
— Seu dono se sentiu... confortável em aceitar minhas ofertas de
compra.
— Suas ofertas? — Franzi o cenho. — Ele é seu?
— Não, Freya. Ele é seu.
Eu fitei a criatura bonita novamente, e então virei para Siriu.
— Mas, mestre... eu não posso tê-lo.
— Você pode e vai ter qualquer coisa que quiser. Gostou dele, não
gostou? Quando o encontrou a primeira vez.
— Sim — sussurrei, lançando um olhar ao grande animal.
Ele me cativava.
— Então o aceite e mais tarde me mostrará sua gratidão.
Eu sorri para ele.
— Posso mostrar um pouco dela agora?
Siriu inclinou a cabeça.
— Freya, não tire a roupa em público, já falamos sobre isso.
Eu ri de sua conclusão, balançando a cabeça em negativa.
— Eu não vou. Já sei que não devo fazer isso e nem falar das nossas
partes genitais publicamente também.
Humor cobriu seu rosto, mas ele não riu. Ainda assim eu me senti
vitoriosa. A cada dia ficava mais e mais perto de ter aquela parte do mestre e
não pararia de tentar até conquistá-la.
— Você definitivamente vai me matar um dia. — Ele fechou a distância
entre nós e segurou meu pescoço, levando meus lábios aos seus. — Mas vou
aceitar a morte bem-vinda.
Eu queria dizer que morreria antes de matá-lo, mas percebi que não
falava para valer. Era uma expressão, como eles diziam.
Seu celular tocou, interrompendo o nosso beijo e eu me afastei a
contragosto.
— Obrigada, mestre. Isso é... eu nem sei uma palavra! Perfeito!
— Você é perfeita, Freya. — Ele piscou e pegou o telefone. — Vá
conhecer o seu novo... amigo.
Assentindo, lancei um último olhar, querendo que fosse comigo, mas
entendi que tinha seus afazeres. Agarrei o tecido do vestido e o ergui para
correr até o cavalo. Quando cheguei bem perto, ele me olhou com olhos
castanhos profundos, parecendo ver minha alma. Ergui a mão com calma,
assim como fiz a primeira vez que o vi e acariciei a cabeça. Ele parecia ainda
maior, mais impressionante.
Era tão lindo. Perfeito, de fato.
Um animal como aquele era de outro mundo. Como uma criatura tão
bonita podia viver no mesmo mundo que alguém tão feio como Kazel?
Eram coisas que eu ainda não podia entender.
O cavalo fez um barulho e pareceu soprar, mas pelo nariz, fazendo-me
rir. Ele chegou bem pertinho de mim e eu o acariciei com mais confiança.
Meu novo amigo.
Fitei o mestre por cima do ombro, pegando seus olhos sérios nos meus e
sorri com tudo o que sentia: amor, gratidão e uma esperança tão contagiante
que até o cavalo podia sentir.
Eu parecia estar vivendo um sonho e só queria segurar a mão de Siriu,
subir naquele cavalo e fugir para o mais longe possível, assim ninguém
poderia me acordar.
Observando seu rosto alegre, pensando que valeu a pena todo o trabalho
que tive para convencer o vizinho filho da puta de Demeron a me vender o
cavalo e já pensando no próximo presente que a faria sorrir daquele jeito. A
coisa era que com Freya não precisava de muito, ela sorria com a mesma
facilidade em que eu me sentia ferver de ódio. Ainda que ela se achava tão
suja como eu, não havia nem mesmo comparação, estávamos em lados
opostos.
Eu aproveitaria enquanto ela ainda não havia percebido que podia ter
algo além de mim para mantê-la perto. E quando finalmente quisesse me
deixar... Bem, eu precisaria encontrar algemas mais grossas.
Ela não iria à lugar nenhum. Jamais.
Ainda com a atenção cravada nela, me afastei um pouco para atender a
chamada.
— Siriu.
— Por que você não atendia a porra do telefone?
— Eu estava ocupado. — Fodendo todos os sentidos na cabeça de
Freya.
— Eu espero que tenha valido a pena. Alguém deixou uma encomenda
no Adlon para você.
— Encomenda?
— Você precisa vir para cá agora — disse Demeron, sua voz agitada,
barulhos e conversas ao fundo imediatamente me inquietaram.
— Se a encomenda é minha, por que você está aí?
— O gerente do hotel ligou para Sofire quando não te encontraram e ela
tampouco conseguiu sua resposta, então me ligou. Stark está chegando, mas
Dutch já está aqui.
— Você já viu o que é?
— Não é o que, é quem. Mudié estava desacordado e completamente
amarrado a cama. Ele estava fodido, cara. Chamei um médico pra garantir
que viveria e paguei o silêncio do hotel, mas temos que tirá-lo daqui.
— Armadilha?
— Cara... inferno, não. Não parece uma armadilha. — Ele suspirou. —
Parece mais que Kazel decidiu se livrar dele.
— O entregando para mim?
Freya sorriu e acenou, me chamando. Eu fitei os olhos amarelos
brilhantes e devolvi o sorriso da melhor forma que pude.
— Quem é que sabe o que se passa na cabeça do filho da puta doente?
— Demeron rosnou. Uma porta bateu e ouvi Dutch falando em russo.
— Quem mais está aí?
— Ele está chamando Roman. Há um recado para a Bratva aqui
também.
— Que tipo de recado?
— Siriu, venha para cá. Se não quiser deixar Freya sozinha a leve até
minha casa. Onira está lá com Naya.
— Não, tudo bem. Ela estará mais segura aqui. Te vejo daqui a pouco.
Desliguei e respirei profundamente. Se Odin estava me mandando um
presente eu o aproveitaria. De noite fodia minha bela deusa e de dia
arrancaria cada gota de dor que conseguisse de Mudié.
A vida não era perfeita, mas de repente estava ficando fodidamente boa.
"Eu vou te perseguir
Te esfolar vivo
Mais uma palavra e você não sobreviverá
E eu não estou com medo
Do seu poder roubado
Eu vejo através de você qualquer hora"
BLUE FOUNDATION, EYES ON FIRE
3 MESES DEPOIS

— Você tem visto Ward? — perguntei a Siriu antes que ele saísse do
apartamento.
— Não, reinheit. Ninguém o vê faz um tempo.
— Vou perguntar a Slom. Se é que ela vai me atender.
— A essa altura Slom Ward já superou o que aconteceu, Freya. Mas
seria melhor perguntar a Onira. Se Slom sabe de algo, contou a ela.
— Tem razão — confirmei com um sorriso, fechando os olhos quando
me beijou rapidamente.
— Trarei o jantar.
— Obrigada, mestre.
Quando a porta fechou eu voltei minha atenção ao noticiário da TV.
Imagens de Naya dançando, cantando e dando entrevistas passavam e ao
fundo, eles diziam que o misterioso desaparecimento de uma das maiores
estrelas da indústria musical durava um mês. Embora todos procurassem uma
resposta, apenas nós sabíamos o que havia acontecido e é claro que ninguém
falou.
Stark, Demeron e até Siriu estavam abalados com a perda dela, embora
deixassem claro que não iam desistir de pegar Naya de volta.
Depois daquele telefonema no dia em que Siriu me deu meu cavalo, eu
pensei que tudo ficaria bem, mas foi apenas um aviso do que estava por vir.
Pouco depois que ele saiu, recebemos a notícia de que Naya havia sumido, e
mais tarde, Siriu apareceu. Ele não confirmou nada, ninguém o fez. Nenhum
deles dizia as palavras que todos sabiam.
Na TV seus fãs acampavam no portão da casa dela e protestavam em
frente a delegacias, exigindo respostas. Ela não era amada apenas pela família
e amigos, mas também por uma legião de espectadores que não deixariam
ninguém esquecer seu sumiço. Eu entendia agora. Entendia o que aquelas
pessoas sentiram e o que sentiam.
E senti raiva. Senti tanta raiva de Kazel que meu rosto se avermelhou de
ódio. Meu reflexo no espelho ao lado da televisão mostrava meus olhos
brilhantes com lágrimas não derramadas e profunda tristeza. Naya estava em
minha pele. Sentiria tudo o que eu senti, mas sofreria 100 vezes mais, pois
não conhecia aquela vida. Ela só conhecia amor, esperança e felicidade.
Eu não podia imaginar como sairia daquilo quando nós conseguíssemos
libertá-la de Kazel.
Meu celular tocou no sofá e o peguei para atender, sorrindo ao ver o
nome de Liémen.
— Olá?
— Filha! Como você está?
— Bem. — Minha voz falhou e eu suspirei. — Estou vendo as notícias
sobre Naya na TV.
— Todos estamos abalados, ela é uma boa garota.
— As pessoas estão sofrendo tanto, pai — sussurrei. — Será que Kazel
não consegue ver isso?
— Eu aposto que consegue, querida. Acho que é exatamente o que ele
queria.
— Eu acho que sim — exalei e limpei as lágrimas, levantando-me. — E
você, está bem?
— Sim, sim, tudo certo. Eu liguei na verdade querendo convidá-la para
o almoço.
— Eu adoraria. Não estou fazendo nada e Siriu acabou de sair.
— Ótimo. Vou buscá-la em meia hora, então.
— Claro, hum... eu vou apenas ligar para ele antes.
Meu pai ficou em silêncio e eu sabia como era difícil para ele engolir
que eu estava com Siriu. Vivendo com ele, sendo feliz por causa dele e
dependendo dele. Literalmente dependendo dele. Meu pai e todos a nossa
volta viram meses atrás o que aconteceria se tentassem me afastar do meu lar
e eu não escondi que faria novamente. Ainda que meu mestre odiasse saber
que eu pensava naquilo.
— Em meia hora, Freya. Até breve. — Ele desligou e eu suspirei,
procurando o número de Siriu na agenda, mas então parei e pensei... Mestre
gostava de me castigar quando eu não seguia suas ordens e já fazia algum
tempo desde que fui desobediente.
Talvez eu devesse esquecer de pedir sua permissão. No fundo ele
adoraria isso.
Assim como eu.
Estacionei em frente à minha casa escondida no lugar mais pobre da
cidade e vi um dos agentes da Liga fumando do lado de fora. O dia estava
chuvoso e meu humor não podia ser pior. Eu ainda tinha muita merda para
consertar depois de ter sido roubado por Kazel e estar ali era nada além de
um desperdício de tempo que eu preferiria não ter que lidar, mas Mudié pediu
por isso. E ele teria.
— Acha que hoje conseguiremos arrancar alguma coisa dele? — A
frustração na voz de Heinrich me fez querer mais uma vez dizer a ele que ali
não era o seu lugar, que ele era jovem demais para estar seguindo o mesmo
caminho que eu e meus primos e se afundando na merda que não tinha volta.
Mas ele era determinado e destemido e não se calou nenhuma vez diante
das minhas reprimendas. É claro que eu não esperava ser obedecido e
adorado, mas o garoto tinha mais coragem que muitos homens com o dobro
de sua idade. Muitas vezes ele me olhava como se quisesse me encher de
porrada e só evitasse porque era só um caminho difícil demais a tomar.
Naqueles momentos eu queria ser como Freya, ela encontrava assuntos com
ele e os dois preenchiam os raros jantares que tivemos nos últimos meses
como se fosse algo que tivéssemos feito pelos últimos 10 anos.
Suas idades eram mais próximas, e mesmo que os pensamentos não
fossem os mesmos, ainda se davam bem. Eu era um fodido que conseguiu
sentir ciúme dela com o próprio filho e até mesmo o mandei embora uma
certa vez antes que ela conseguisse servir a sobremesa.
— Será difícil — falei. — Preciso descobrir um jeito de quebrá-lo, mas
ele não tem nada a perder. Mudié sabe que não sairá daqui vivo, então seu
último consolo é nós fazer esperar que tenha algo a dizer dia após dia.
— Assim ele atrasa a própria morte.
— Sim — confirmei e peguei a bolsa no banco de trás.
— E vamos esperar?
— Vamos, mas não por causa de seus jogos e sim porque eu quero.
Demeron ainda precisava ter seu tempo com ele, assim como Ward.
Ao entrar na casa, um odor podre nos atingiu e eu sorri com o quão
decadente o cenário parecia. Mudié estava exatamente no mesmo lugar com
os braços erguidos acima da cabeça e uma corrente nada confortável segurava
os punhos. Os pés bem separados estavam presos em duas gaiolas no chão,
deixando as pernas impossivelmente abertas.
— Olá, Mudié — cumprimentei com entusiasmo fingido na voz. —
Como vai hoje? — perguntei ironicamente, então ouve o barulho do chuveiro
e sorri sabendo que o homem que contratei já tinha vindo para sua punição do
dia. Eu dei a volta no corpo maltratado do homem que fez milhares de
meninas e meninos sofrerem durante anos e um sentimento vitorioso aqueceu
meu peito quando vi o sangue escorrendo de suas pernas. — Uau... isso
parece o doloroso.
— Vá... — sussurrou, seguido por uma crise de tosse. — Vá. Se. Foder.
— Não, você já fez isso por nós dois. E apenas um de nós é o suficiente
para o grandão ali no chuveiro. — Ele tentou me enviar um olhar ameaçador,
mas tudo que conseguiu foi uma carranca e lágrimas em contidas escorrendo
pelo rosto.
Eu não tinha vergonha de ter sujado minha mão com ele nos primeiros
dias batendo, torturando e até mesmo ligando para Luigi DeRossi oferecendo
como uma trégua por minha ofensa a sua esposa a oportunidade de assistir e
me ajudar a torturar o homem em questão. Mas nada o fez falar. Seu silêncio
— salvo os gritos agonizantes de dor — foram suficientes para me fazer
acreditar que ele não sabia de nada.
Os dois homens que se revezavam para cuidar dele tinham ordens
expressas de estuprá-lo da forma mais dolorosa e brutal que conseguissem,
minha única exigência era que o deixassem consciente enquanto acontecia e
que nunca o ferissem a beira da morte. Sua recuperação levaria dias e eu não
queria ficar tanto tempo sem meu brinquedo particular.
Meus planos tanto para Mudié quanto Kazel não envolviam uma tortura
de um mês e então a liberdade da morte. Não. Eu queria muito mais. Deixar
os dois presos como animais insignificantes apenas para me divertir e deixar
que qualquer um se divertisse livremente com ele seria um bom castigo para
os próximos 15 ou 20 anos.
Embora eu soubesse que nem aquilo compensaria toda a dor que
causaram principalmente a Freya. Mudié estava sentindo apenas o começo do
que lhe aconteceria e ele não era idiota de duvidar de mim.
— Alguma novidade, meu caro? — perguntei ao erguer o cabo de
vassoura com resquícios de sangue na ponta e quebrá-lo no meio, apontando
o lado quebrado e cheio de fiapos em seu rosto. — Se me disser que não tem
nada a dizer serei obrigado a agir. Você sabe que seus gritos são minha
música favorita agora.
— Eu já disse tudo o que sabia!
— Aí é que está a questão... você não me disse nada.
— O que mais você quer saber? Eu não sei onde ele está vivendo, onde
estão os filhos dela ou mesmo onde Naya está! A única coisa que ele disse
antes de me cravar uma faca nas costas foi que viria atrás da substituta de
Freya e a tiraria de você, já que você retirou sua feiticeira dele.
— Já ouvimos essa parte da história. — Meu filho apontou e me fez
sorrir com a malícia em seus olhos.
— Tem que ter algo mais, Mudié. Vamos, quem sabe se você não for
um bom rapaz eu lhe permita uns dias de descanso por provar sua nova
lealdade.
— Faria isso? V-você pode?
— É claro que posso. — Dei de ombros. — Eu posso tudo e qualquer
coisa.
Ele pareceu refletir enquanto observava minhas expressões, mas eu as
deixei em branco. Não tinha nada para ele ali.
— A única coisa que eu não contei foi que ele não pegou quem
planejava. Treinar uma garota jovem é sempre mais fácil, pois elas não sabem
que podem revidar ou agir com teimosia.
— Desde que eu não conheço nenhum bebê você vê por que fica difícil
acreditar em suas palavras?
Ele se contorceu nas correntes quando dei um passo ameaçador a frente.
— Tem certeza de que não conhece nenhuma jovem garotinha que
serviria as exigências dele?
— Dele? — perguntei, então ergui e esfreguei o cabo de sua testa até o
queixo arrancando alguns pinguinhos de sangue dos vergões, e seus
choramingos ridículos encheram meus ouvidos. — Você está incluso nisso.
Sabe que também é um abusador, estuprador e pedófilo de merda, não sabe?
E é por isso que eu cortei o seu pau. Por isso deixo que homens se aproveitem
de sua bunda suja todos os dias.
Afastei o cabo, deixando-o sentir o novo ferimento.
— Tenho pensado em um leilão — provoquei, mas era a mais pura
verdade. — Colocar você em frente à uma linha e lançá-lo ao maior preço.
Mas deixaria que todos te experimentassem antes de pagar, assim como
vocês faziam com Freya. Imagine isso, Mudié. Não é tão excitante quanto
tocar garotas e queimá-las a ferro quente, é? Imaginar diferentes homens
metendo em você como uma bonequinha de pano. Imagina o quanto todos
adorariam encher o seu rabo de porra. Como eles amariam te ver sangrar.
Um. De. Cada. Vez.
Ele estremeceu e vomitou, jogando seus fluídos há pouquíssimos
centímetros do meu pé.
— Blair! — Ele gritou entre os espasmos. — Ele veio por ela, então não
sei o porquê levou Naya, eu juro que não sei. Ela está provavelmente
escondida junto com os filhos de Kazel e de Freya. — Ele chorou mais alto.
— Se você encontrar uma, encontrará os três. Por favor, eu estou
implorando...
Suas lágrimas não me comoviam, não me despertavam, não me faziam
reconsiderar. Na verdade, eu só ficava ainda mais puto por não conseguir
fazê-lo sofrer ainda mais sem matá-lo.
— Viu só como fizemos progresso? Como recompensa da próxima vez
que eles vierem para você, vou pedir que não te fodam a seco.
Ele chorou de alívio, imaginando que estaria livre da dor. Eu não pude
evitar. Comecei a rir vendo tanto graça em seu olhar desesperado que
arranquei um sorriso igualmente distorcido do meu filho.
— Ao invés disso, vou mandar que lubrifiquem seu cu com pimenta. —
Me aproximei e dei uma série de tapas em seu rosto para deixá-lo bem atento
as minhas palavras antes de segurá-lo, fitando-o no fundo dos olhos. — Seu
sofrimento não terá fim, putinha. Seu corpo é minha propriedade, você come
merda se eu cagar no chão e fode quem eu quiser que sirva. E você me dará
suas lágrimas, seu sangue e seus ridículos gritos por misericórdia apenas para
a minha diversão. Eu vou filmar para que Freya veja antes que eu faça amor
com ela.
O poder das minhas palavras aumentava o medo que crescia dentro dele.
Isso era bom. Eu queria que visse o rosto de cada mulher, cada criança.
Queria que se lembrasse dos países de onde as roubou e de seus nomes.
— Você passará o resto da vida miserável comigo, e conhecendo Kazel
você acha que conhece o mau. Mas não tem ideia do que eu sou capaz.
— Eu tenho algumas ideias para adicionar à lista da penitência dele. —
Meu filho disse e eu vi o brilho de vingança em seus olhos, a fome pelo
sangue pecador. Decidi ali parar de lutar contra o inevitável. Kirina achava
que se tivéssemos um filho poderíamos dar a ele outra vida, mas ele se fez
por si mesmo. Ver Heinrich querer justiça me fez mais orgulhoso do que
qualquer merda de conquista que eu mesmo tive.
Eu soltei Mudié e dei um passo atrás.
— Vamos falar sobre isso enquanto almoçamos. Vamos pedir para
buscar e comeremos aqui, assistindo enquanto o eunuco chora o começo do
seu inferno particular.
— Nós comeremos olhando para ele?
— É claro. — Eu me juntei as sombras para sorrir um sorriso
verdadeiro. — Isso vai apenas aumentar o meu apetite.
Então eu voltaria para casa e foderia Freya, depois a seguraria nos
braços, sabendo que um dos monstros que a assombrou não estava e nunca
mais estaria solto novamente.
"...Oh, amor, me deixe ver dentro do seu coração
Todas as rachaduras e rupturas
Há sombras na luz
Não há nenhuma necessidade em se esconder
Porque estou em chamas
Como mil sóis
Eu não poderia queimá-lo para fora
Mesmo se eu quisesse..."
ROSS COPPERMAN, HUNGER
— Freya! Freya! — Os gritos de Blair foram ouvidos assim que a porta
se abriu, revelando a menina correndo em nossa direção e abraçando as
pernas de Freya. Minha mulher se segurou em meu braço para não cambalear
e acariciou a cabeça da menina.
— Olá, Blair!
— Eu cuidei de Vidar para você! Ele comeu maças e muitas folhas, quer
vê-lo agora? Eu pedi a mamãe que comprasse lacinhos para ele, mas ela disse
que eu deveria te perguntar primeiro. Você não se importa, não é?
— Não, Blair. — Ela me soltou para ajoelhar em frente a menina. —
Vidar é seu protegido, lembra? Eu não posso estar com ele agora e confiei em
você para cuidar dele. — Ela falava baixo, como se não quisesse que
qualquer outra pessoa além de mim e Blair ouvisse. — Se ele estiver bem,
você pode colocar até calças nele.
— Sério?!
— Não vamos tão longe — murmurei, puxando Freya de volta para
mim. — Deixe o cavalo quieto, Blair. Vista suas bonecas.
Ela fez um bico que funcionava com Freya, mas comigo só me fazia ver
que seria tão manipuladora quanto sua mãe e terrível como a tia.
— Não seja rude. — Freya tocou meu peito, aliviando todo meu corpo
como sempre fazia.
— Está tudo bem, Freya. — Blair apoiou as mãos na cintura, lançando
um sorrisinho inocente a ela. — O Siriu está brincando.
Eu não estava e Blair sabia, mas eu precisava admitir que gostava do
fato da garota sempre tentar tranquilizar Freya e deixá-la confortável.
— Finalmente. — Kaladia surgiu virando o corredor, fitando-nos
rapidamente antes de virar as costas. — O jantar será servido agora.
Blair agarrou a mão de Freya e tentou puxá-la, mas eu a segurei e lancei
um olhar a garota.
— Vá com sua mãe, Blair.
Ela estreitou os olhos para mim.
— Eu gosto mais de Freya do que de você agora, Siriu.
— Bom — murmurei, pendurando o meu casaco antes de segurar a mão
que Freya me esticava e seguir em frente até onde todos nos esperavam.
— Você é impossível. — Minha Freya sussurrou, mas ela sorria como
se toda a situação fosse divertida. Eu não achava. Não queria estar ali e
quanto mais rápido pudéssemos sair melhor.
Stark estava na cabeceira da mesa, ao seu lado, Angelina e a frente dela,
Kaladia. Regnar, Demeron e Onira ocupavam cadeiras lado a lado, deixando
para mim e Freya nos sentarmos ao lado de Kaladia. Blair foi rápida em ficar
ao meu lado. A garota não desistia.
Cumprimentos foram descartados enquanto olhávamos um para o outro
num questionamento silencioso: quem levantaria e encerraria aquela cena
primeiro? O cheiro de comida era da melhor qualidade, mostrando que Stark
se adiantou a contratar o melhor chef da cidade para a noite.
— Finalmente conseguimos nos reunir, minha estimada família. — As
palavras de dele vieram acompanhadas de um silêncio gritante.
— Claramente estamos todos entusiasmados, pai. — Regnar provocou
quando ninguém disse nada, servindo-se de meia taça de vinho e depois
encheu a de Kaladia até a borda, lhe dando um sorriso. — Seu jantar, esposa.
— Mamãe não vai comer comida? — Blair perguntou, a única que
parecia realmente ansiosa para a farsa — que em sua cabeça era real —
começar.
— A mamãe prefere se afogar de álcool até esquecer que estamos todos
aqui, bruxinha.
Blair olhou de um para o outro, coçando o olho antes de dar de ombros.
— Posso comer a parte dela da sobremesa, então?
— É claro que pode, filha. — Kaladia lhe forçou um sorriso. — A
mamãe mesmo dará a você.
— Então, Siriu. — Angelina limpou a garganta. — Quando trará o seu
bastardinho para um jantar?
Sua pergunta me irritou de modo fenomenal.
— Assim que enterrarmos a senhora, talvez o clima melhore e ele se
sinta à vontade para comer.
Suspiros e engasgos cortaram o ar, Angelina não achou graça da minha
piada, o que era bom, já que eu falava sério.
— Tenha mais respeito, Siriu — disse Stark.
— Quando ela tiver por mim, volto a ter por ela.
Peguei um sorriso disfarçado de Onira e sabia que ela adoraria poder rir
do que eu disse. A velha não a suportava e não escondia isso. Eu mantive
minha boca calada a vida toda diante da amargura de minha avó por ela ser a
matriarca da família, mas aquilo durou apenas até o momento em que tive
Freya ao meu lado, quando ela não se incomodou em sequer olhar
diretamente a minha reinheit.
E tanto quanto eu gostava que as pessoas não se distraíssem com minha
Freya, eu odiava que a desprezassem. O mesmo desprezo era direcionado a
Heinrich. Pensar no garoto me fez pegar o celular para conferir se tinha
enviado alguma mensagem, ele vinha se acostumando com a nossa nova
descoberta. Já conhecia meus primos e Stark há muito tempo, e se dava bem
com todos. Com Harlen particularmente.
Sendo pai, minha menor preocupação era ele estar na companhia dos
meus primos e mesmo com pouco tempo que passamos juntos o garoto vinha
mostrando que aprendeu a se virar. Era muito inteligente, calado e nem uma
única vez me perguntou o que houve para que eu aparecesse depois de anos
sem explicações. Ele teve sua própria conversa com Kirina e eu não perguntei
o que foi dito, não era da minha conta. Soube apenas, porque a vi saindo da
casa que ele vivia, puxando-o para um abraço antes de entrar em seu carro
com Zippo e desaparecer na noite.
Em breve eu o deixaria decidir sobre outro lugar para morar. Ele seria
bem-vindo em um apartamento onde quisesse, ou até mesmo no que estava
vazio ao lado do meu. A escolha seria dele, eu só queria esperar que
resolvêssemos toda a confusão de Naya batendo na nossa porta.
— E você, Onira?
A esposa do meu primo encarou Stark com sua feição simpática, mas a
dureza disfarçada nos olhos mostrava que entrava naquela casa sempre
preparada para o pior.
— Qual sua próxima grande exposição?
— Ah, bem, eu tinha algo planejado para daqui duas semanas, mas não
posso fazer isto com Naya desaparecida. Eu não conseguiria.
A palavra “desaparecida” soava amarga para todos nós. Era ridículo que
estivéssemos ali jantando quando sabíamos que na melhor das hipóteses ela
tivesse tido uma morte rápida, porque a opção pior, era estar exatamente onde
Freya esteve a vida inteira.
— Bobagem. — Kaladia opinou, o que surpreendeu a todos, já que a
mulher preferia fingir que Onira não existia. — Você não pode parar seu
trabalho por algo que não temos nem ideia de quando se resolverá.
— Mas também não posso seguir em frente como se ela nunca tivesse
existido.
O silêncio desconfortável era palpável. Se eu levantasse o garfo poderia
espetar o clima pesado pairando sobre a mesa, mas é claro que ninguém
reconheceria em voz alta e acabaria com aquele show de uma vez. Era mais
fácil fingir que adorávamos estar ali quando na verdade Kaladia preferia estar
se afogando em álcool lá em cima, Blair preferia estar com o cavalo do lado
de fora e Regnar adoraria ir atrás de uma de suas amantes convenientes.
Demeron e Onira em um piscar de olhos fugiriam para se esconder em sua
privacidade o mais rápido possível.
Como se eu não estivesse louco para levar Freya para casa.
— Como vai à escola, Blair? — perguntou Onira.
A conversa seguiu por todo jantar enquanto cada um se obrigava a
arrastá-la até que pudéssemos finalmente levantar da mesa. Nós comemos a
entrada acompanhada do vinho escolhido por Stark, menos eu, que
acompanhei Freya na água. E rapidamente finalizamos uma sobremesa que
parecia estar em alta naquela época do ano.
— Vocês se importam se Siriu me acompanhar até lá fora? — Minha
família parou de comer e todos a encararam, como se vê-la falar uma frase
inteira sem dizer algo constrangedor fosse impossível.
Ela abaixou a cabeça, constrangida com a atenção e com o que ela
chamava de “defeito” em sua voz. Maquiagem cobria as cicatrizes leves que
ficaram em seu queixo, mas no geral, Liémen pagou cirurgias plásticas o
suficiente para consertar quase tudo o que Kazel tinha causado – uma quantia
considerável que eu fiz questão de transferir para a sua conta e deixar claro
que não aceitaria de volta. Freya era minha, assim como qualquer custo que
ela tivesse.
Eu não sabia se me sentia abençoado ou amaldiçoado por ela não
encarar os traumas do que viveu como “traumas”. Era tudo apenas um grande
incômodo em sua cabeça, algo que ela viveu e passou. Como crianças que
precisam fazer o dever de casa para passar pela escola.
— Vá em frente — disse Demeron, acenando com simpatia. Onira sorriu
ao lado dele, mas ela também se manteve tão quieta quanto Freya.
Blair começou a se levantar, mas sua mãe a parou.
— Onde pensa que vai?
— Com o Siriu e a Freya. — Deu de ombros.
— Eles não te chamaram, Blair. Sente-se e finalize seu prato.
A menina fez uma careta e se sentou sem gostar da ideia. Antes que eu
pudesse parar Freya, ela se aproximou e agachou ao seu lado.
— Eu preciso muito conversar com Siriu, mas podemos ver se sua mãe
permite que durma em nossa casa hoje. O que acha?
— Freya — rosnei, não aprovando a ideia.
— Eba! — Blair gritou antes de lhe dar um rápido abraço e voltar a
comer lançando olhares gentis a Kaladia.
Desde que ela tinha voltado a morar comigo, a presença da garota se
tornou irritantemente comum em meu apartamento. Para ficar ainda mais
estranho Freya levou o que eu lhe disse sobre “se sentir em casa” muito
confortavelmente e passou a convidar Heinrich para visitá-la. Eu ainda não
sabia lidar com a presença do rapaz e ainda mais com o conhecimento de que
era meu filho.
Estava aliviado por estar vivo, era uma culpa que agora vivia apenas
50% em mim. Nunca esqueceria como mandei Kirina dar fim a sua gravidez
e tampouco os anos me condenando por aquilo. Ele estar vivo não eliminava
o fardo, só o tornava ligeiramente menos pesado.
Ele, entretanto, não parecia ter dificuldade em lidar com tudo. A
primeira vez que percebi que ele gostaria de criar uma relação comigo foi
quando me mandou uma mensagem de texto simples, perguntando se eu
poderia ensiná-lo a atirar, visto que Demeron estava ocupado. Acontece que
meu primo estava bem a minha frente quando recebi o recado, e falava sobre
como adoraria ter algo a fazer ao invés de ajudar Onira com a decoração da
casa nova.
Eu segui Freya até a porta, mas ao invés de sair, segurei sua mão e
subimos dois lances de escadas, minha intenção era guiá-la até o terraço onde
anos atrás eu costumava passar a maior parte do tempo. Era enorme, cobrindo
toda a estrutura da casa. A céu aberto e vazio. Lembrava-me dos dias que eu
levava apenas um edredom e travesseiro e dormia a céu aberto, acordando
com o sol queimando minha pele. Uma época distante onde eu apreciava
estar exposto e deixava as emoções governarem minha vida.
Eu tinha escolhas. Acreditava em um futuro comum e honroso.
Acreditava na bondade humana depois de servir para protegê-la por anos.
Foi preciso uma única pessoa para mudar aquele jovem
insuportavelmente inocente. Kazel.
E ele foi o mesmo que levou Freya a mim. A única alma viva capaz de
me fazer lembrar profundamente de quem eu costumava ser.
— Não quero ter filhos, Siriu. Nunca. — Suas palavras nos detiveram
quando eu toquei a maçaneta da porta para nos levar perto do céu. Ela fez
uma pausa como se a realidade daquela afirmação a pegasse. — Não quero
ter outros filhos — corrigiu.
Eu virei completamente para ela, isolados onde ninguém nos
encontraria. Me perguntei o porquê ela decidiu falar aquilo agora. E como eu
não tinha percebido que algo a incomodava.
— Tudo bem, não teremos. Não precisamos de nada que você não
queira.
— Tem certeza? Tem certeza de que não se importa?
— O que quer dizer?
— Que está mentindo para mim. Você continua procurando as duas
crianças. Não entende a gravidade disso?
Eu escondi minha surpresa. Comecei a procurar as crianças no momento
em que Liémen me expulsou do hospital. Era difícil, e devido as novas
conexões forçadas de Kazel, quase impossível, mas eu não podia desistir.
Não me chateei que Freya soubesse sobre aquilo e não perguntei como soube,
porque ou Onira lhe disse, ou Kirina. Ou ela mesma podia ter descoberto, já
que a cada dia ela se abria mais. Pesquisava, perguntava, se interessava por
tudo ao seu redor. E a única felicidade em minha existência era fazê-la
entender tudo o que quisesse.
Eu lhe disse que não tinha muito para dar, mas o que tinha seria dela e
não estava mentindo.
— Eles são seus, portanto, são meus também. Só os quero seguros.
— Não — sussurrou, balançando a cabeça e se encolhendo, abraçando a
si mesma.
— Reinheit, ficaremos bem. Você ficará bem.
— Se... estiverem vivos, minha menina — ela se engasgou, engolindo a
saliva seca. — Ela terá quatro e meu menino terá 6.
— Eu sei, liebe.
— Ele não será mais virgem e terá tantas cicatrizes profundas. Ela já terá
tido mais homens do que uma mulher de trinta em toda a vida.
Suas palavras cravaram o punho invisível ainda mais fundo em meu
estômago, porque eu sabia de tudo aquilo. Nenhuma criança passaria
por Kazel e seria intocada. Seus filhos com Freya? Dada a sua obsessão de
anos por ela, eu diria que as crianças sofreram ainda mais que outras. Mas eu
não disse a Freya. Eu não podia inserir ainda mais imagens em sua mente
torturada.
— Vamos apagar essas memórias, vamos dar a eles dias bons e
lembranças boas. Eles serão acompanhados por profissionais e receberão
todo o conforto que for preciso.
— Eles vão me odiar. — Fechou os olhos, deixando escapar um soluço.
— Não diga isso.
— É a verdade! Eu os trouxe para esse mundo! Se soubesse... se ao
menos soubesse que há algo melhor do lado de fora, que tudo aquilo era
errado... teria os livrado ainda em meu ventre. Eu sinto muito. — Seu choro
me dividiu entre querer consolá-la e querer apressar os homens que estavam
procurando pelas crianças. — Mas teria feito meus filhos partirem antes de
nascer. Só que eles nasceram e eu nunca sequer os vi!
— Você foi outra vítima, göttin, apenas isso. Quando crianças passam
por traumas muito profundos ainda jovens, há possibilidade de esquecerem.
— E se lembrarem de tudo?
Eu cerrei os lábios juntos.
— Consertaremos isso. Eu vou trazê-los para você e eles terão uma
família em quem se apoiar para esquecer o inferno das Kambarys. Está bem?
— Não. — Ela apoiou a cabeça em meu ombro, as lágrimas iam
atravessando o tecido da camisa e molhando minha pele. Eu acariciei seus
cabelos. — Não está nada bem.
— Confie em mim, reinheit. Ainda não está, mas vai ficar. Ficará tudo
bem em breve.
Eu ainda teria que aprender a ser uma mãe. Aprender a até mesmo olhar
para eles e entender que eram meus e em meu coração eu torcia
desesperadamente para que Siriu não demorasse a encontrá-los. A cada dia eu
reconhecia mais o que sofri nas mãos de Kazel e quando pensava sobre as
duas crianças passando pelo mesmo ou pior... meu coração parecia derreter
no peito e ser consertado, apenas para sofrer outra vez. Repetidamente.
Pesadelo eram terríveis e tinham vezes que eu parava olhando para o nada,
mas imagens de dor e sofrimento passavam diante dos meus olhos. As
vítimas eram duas pequenas crianças inocentes que eu entreguei.
Ele chamou minha atenção de volta quando abriu a porta e beijou a
lateral da minha cabeça, sussurrando mais uma vez que tudo ficaria bem. Eu
confiava nele. Se tinha alguém que podia me juntar dos pedaços era Siriu.
Minha esperança se agarrava a certeza de que via em seus olhos cada vez que
ele me prometia um futuro de amor e paz. Eu, ele e as duas crianças que dei à
luz anos atrás.
— Uau... — suspirei, olhando o céu escuro com um amontoado de
estrelas. — A lua está bem acompanhada. — Eu sorri, esticando a mão para
ele. Siriu a segurou e grudou o peito em minhas costas.
— Eu acho que ela prefere ficar sozinha — murmurou em meu ouvido.
— Por quê?
— Para brilhar sozinha. Assim, quando o sol se aproxima e estão quase
se cruzando, ela não teria medo de que ele a confundisse com estrelas.
— Não — sussurrei. — Ela sabe que não importa quanta luz houver ao
redor dela o sol sempre a reconhecerá.
— E como tem tanta certeza disso?
Dei de ombros, sorrindo para o céu sem fazer ideia se o que eu diria
fazia algum sentido.
— Porque você me encontrou mesmo mergulhado em sua escuridão.
— Você me encontrou, Freya.
Eu me virei em seus braços, encarando os olhos azuis opacos.
— Você estava perdido, Siriu, mas eu... eu nunca tinha sido encontrada.
Você — enfatizei. — Você me encontrou.
Ele inalou uma respiração profunda, segurando meu rosto com os lábios
levemente encostados nos meus.
— Quando eu encontrar as crianças você vai se casar comigo.
Eu sorri.
— Sem pedidos?
— Eu não preciso de um. Você vai.
Eu senti um pingo em meu ombro e olhei para cima, rindo quando
pingou na ponta de seu nariz. Eu passei meu dedo pela gota e o olhei no
fundo dos olhos.
— Como eu poderia te contrariar se Odin está abençoando? — Eu disse
a ele, sabendo que as palavras significariam o mundo para Siriu.
Um raio soou após as minhas palavras e eu me senti sendo examinada
pelos olhos de seus deuses, como se estivessem realmente me dando
permissão para ter seu guerreiro. A chuva começou a cair feito um sinal.
Ele balançou a cabeça e mesmo que nunca tivesse sorrido para mim, eu
sabia que não tinha diferença. Ele não sabia como ser feliz, eu tampouco, mas
ensinaríamos um ao outro. Por enquanto eu estava bem de ter suas mãos
suaves em mim. Tocando-me como se eu fosse pura e inocente. Como se me
proteger estivesse enraizado nele. Também tinha aquele olhar que o deixava
parecer menos perigoso. Aquele olhar aberto e cheio de emoções era mais do
que ele já deu a qualquer outra pessoa.
— Sou este. — Ele respondeu.
— O quê?
Ele empurrou meu cabelo molhado do rosto, acariciando meu queixo e
aproximando mais seu nariz do meu.
— Este é quem eu sou quando ninguém está olhando.
Eu sorri, lembrando-me do dia em que lhe fiz aquela pergunta.
— Depois de todo esse tempo você se lembrou de responder?
— Eu nunca esqueci, reinheit. Só percebi que estava pronto para
responder agora.
Eu queria saber alguma oração para ele naquele momento, tinha que ter
algo que pudesse dizer para agradecer por Siriu Konstantinova.
Ele me abraçou forte e ao esconder meu rosto em seu peito, pensei sobre
Kazel. Como ele me tirou da vida da qual me pertencia e me transformou em
sua vítima, como arrancou pedaço por pedaço do que queria de mim e ainda
assim eu sobrevivi. Talvez no fundo eu já soubesse que Siriu me encontraria?
Talvez já estivesse escrito que não importava por quanto eu passasse,
havia uma lua cheia de estrelas esperando por mim. Aquele era o sentimento
de plenitude? Aquilo era felicidade?
Eu apertei os braços ao redor do meu mestre implorando
silenciosamente que jamais me deixasse ir.
— Siriu? — sussurrei. Nenhum de nós parecia com pressa de se
esconder da chuva.
— Freya — sussurrou de volta.
— E se ele voltar?
— Ele não vai. — Ele agarrou meu rosto novamente, franzindo os olhos
molhados. — Eu vou matá-lo antes que sequer pense em machucá-la outra
vez. Eu prometi isso antes e falhei, mas não vou falhar novamente.
— Eu sei que não vai.
— Nada vai levá-la de mim, Freya. Nada e ninguém. Você é minha para
sempre.
— E você é meu?
— Eu sou seu. Embora eu seja o único que se deu bem de nós dois, você
não tem uma escolha.
Eu dei risada, me erguendo na ponta dos pés para beijá-lo.
— Não preciso de uma. Depois de uma vida sendo possuída finalmente
tenho algo meu. O homem mais forte, poderoso. — Toquei seu peito como já
fiz tantas outras vezes e pressionei a mão lá. — A escuridão do seu coração
foi forçada em você, mestre. Assim como no meu. Nós nascemos para nos
encontrar.
— Você pensou sobre mudar o seu nome? — perguntou e eu assenti.
— Vou esperar até que possamos acrescentar o seu, mas continuarei
sendo Freya.
— Tem certeza? Foi ele quem escolheu.
— Não — neguei. — Não foi. A mesma força que nos uniu me nomeou
assim. Eu sou sua Freya. E quando as crianças estiverem conosco serão Thor
e Iduna.
— Freya. — Ele exalou, praticamente cantando. Segurando minha nuca
para me beijar com tanta intensidade que fez minhas pernas fraquejaram. Me
agarrei a ele com força, como se fosse a primeira vez.
O beijo confirmava o que ambos sabíamos: aquilo foi escrito.
Fosse por seus deuses, o Deus de outros ou o próprio Príncipe a quem
cresci servindo. Não importava mais. Estávamos juntos.
As sombras eram o meu lar e eu me esconderia nelas para sempre.
"Eu guardo sua fotografia
E eu sei que me faz bem
Eu quero te abraçar forte e roubar sua dor
Porque eu estou quebrado quando estou sozinho
E eu não me sinto bem quando você vai embora
Mas você foi embora"
SEETHER FT. AMY LEE, BROKEN
COLÔNIA, ALEMANHA

O cheiro que invadiu as narinas de Slom Ward quando ela abriu a porta
da enorme casa de seu irmão escondida no interior da pequena cidade da
Colônia, ela respirou fundo do lado de fora e entrou, decidindo respirar pela
boca antes que desmaiasse.
Chamando por seu irmão com preocupação na voz e pânico nos olhos ao
olhar ao redor, Slom recebeu o silêncio e começou a buscar por ele. Kurton
Ward sempre foi o homem mais organizado que ela já conheceu e ver sua
casa naquele estado a fazia pensar se deveria voltar para lá ou arrastá-lo com
ela para sua própria casa.
— Até parece — bufou, o pensamento a fazendo rir. Seu irmão era
teimoso e não ganhou fama à toa. Embora fosse um perfeito galã e muito
educado, Slom sabia que não havia ninguém que pudesse obrigar Kurt a fazer
algo que não queria.
Ela sempre o viu como o homem mais forte e jamais esperava ter que
assisti-lo passar por aquele momento tão difícil. O desaparecimento de Naya
fez seu irmão se perder de um jeito que ela nunca viu antes. O homem
inabalável e fortemente poderoso andava com olhos vagos e a expressão
cansada como se cada noite que passava longe da mulher o deixasse mais
perto de seu próprio fim.
Odiava o pensamento, mas ela tinha visto seus pais caírem um após o
outro. Sua mãe morreu de forma lenta e triste, acometida por um câncer
maligno. E logo em seguida, seu pai se afundou numa depressão que nem
mesmo o amor pelas duas crianças o fazia querer melhorar, eventualmente
acabou com a própria vida, deixando Ward para lidar com os negócios e uma
Slom pequena. O amor de sua vida se foi e não havia nada para ancorá-lo ao
mundo.
Assistir seu irmão seguir o mesmo caminho que o pai a aterrorizava.
Antes do casamento de Onira e Demeron Konstantinova, ela nem sequer
sabia que Ward estava vendo alguém, mas aquele dia ficou muito claro para
todos. Ward era poderoso em Berlim e Slom não se importava com o que
diziam dele ou as teorias da conspiração o envolvendo. Ele era apenas seu
irmão e se Naya o fazia feliz, ela daria todo o apoio.
Ward se preparava para viajar o mundo ao lado de Naya em sua turnê de
shows quando ela desapareceu sem nenhuma pista. Talvez fosse algum fã
maluco, ou até um de seus ex-namorados querendo se vingar. Era triste.
— Achei você — disse Slom para si mesma. Ward dormia em sua cama
em pleno meio do dia, quando antes estaria correndo por Berlim para tratar de
seus muitos negócios.
Ao seu lado, uma camisa rosa que já vira Naya vestida. Dizia “staff” na
frente e ela mesma admitiu ter roubado de um de seus produtores porque
adorou e não tinham feito uma para ela. Slom sorriu com melancolia ao
pensar que não era justo seu irmão ter perdido o amor de sua vida antes
mesmo que pudessem começar sua história.
Havia toques e resquícios da presença da estrela da música mundial em
toda a casa. Um batom na mesa de cabeceira, creme de mãos no lavabo e até
um tapete novo na sala que antes pertencia ao apartamento dela em Berlim.
Havia uma blusa pendurada no porta casacos como se a qualquer
momento ela fosse aparecer para vesti-la.
Slom percebeu que não perdeu apenas sua amiga, mas perdia seu irmão
também. Ela enxugou as lágrimas que começaram a cair e deixou Ward
sozinho, fechando a porta atrás de si. Voltando a cozinha, Slom começou a
limpar.
Foi uma droga que ao ter ligado o rádio para espantar o peso de sua
mente, começou a tocar uma música de Naya.
ALGUM LUGAR NO MUNDO

Quando Naya acordou e abriu os olhos, precisou forçar-se a ignorar a


dor forte na cabeça. O ambiente a sua volta não era um lugar que tivesse visto
antes. Era um enorme quarto com uma cama e o colchão sem um lençol, e
paredes vazia com uma porta tão branca que quase desaparecia nas paredes
da mesma cor.
Ela fechou os olhos e os apertou, esperando que fosse acordar de um
pesadelo. Esperando que o rosto do homem que a levara embora da academia
onde treinava com seus bailarinos fosse uma reação causada pela exaustão
dos treinos infinitos que vinha fazendo, mas não era e ela sabia disso antes
mesmo de os abrir.
— Merda — sussurrou.
Ela se levantou e abriu os olhos novamente, olhando para o lado direito,
depois o esquerdo e imediatamente soltou um grito. Olhos amarelos
profundos e arregalados a fitavam de volta. Um narizinho de ponta vermelha
na pele pálida e uma boca tão ressecada que não tinha cor preenchiam um
rosto magro e pequeno, com longos cabelos castanhos a envolvendo como
um cobertor. Quem gritou foi Naya e ela se arrependeu imediatamente, a
pequena menina parecia aterrorizada.
Todos os instintos de Naya entraram em alerta. Ela se se ajoelhou
depressa ignorando a tontura, a ânsia e as dores e olhou atentamente para
menina.
— Você está bem? — Ela perguntou baixinho e a garotinha não teve
nenhuma reação além de se encolher.
Algo estava errado com ela, Naya sabia disso. Sentia em seu profundo.
Provando que não ia machucá-la, Naya esticou a mão lentamente, mas antes
que pudesse chegar perto passos soaram perto dela e uma mão segurou o seu
pulso. Naya estava preparada para lutar, mas deu de cara com outra figura tão
pequena quanto a que estava ao seu lado. Dessa vez era um garoto e devia ser
apenas um pouco mais velho do que a menininha.
Ele estreitou os olhos, franzindo todo rostinho e apertou o pulso de Naya
com tanta força que ela gemeu quando as unhas ligeiramente grandes do
menino afundaram em sua pele.
O rosto do menino estava machucado com hematomas, arranhões e até
duas cicatrizes, uma no nariz e outra no cantinho da testa, mas os olhos
amarelos idênticos aos da menina deixava muito claro que era seu irmão. Os
dois se pareciam e a forma como ele veio para cima de Naya para protegê-la
só confirmou isso.
Se Naya quisesse machucar a menina conseguiria fazer com uma única
mão livre, mas jamais sequer pensaria nisso. Seu coração só tinha bondade e
amor para crianças inocentes.
— Não a toque. — Sua voz era tão forte que fez Naya realmente sentir
um medo infundado. Os olhos do menino pareciam já ter visto as piores
pessoas.
— Eu não vou machucá-la — respondeu suavemente.
— Farei o que você quiser, mas eu faço isso. Vocês nunca a tocam!
Você não a toca, eu faço isso. Eu faço. Eu faço isso! Eu faço isso! — Ele
começou a gritar e a menininha deu um pulo da cama, chegando perto o
suficiente para colocar as duas mãozinhas em formato de concha sobre os
lábios do menino enquanto balançava a cabeça freneticamente para ele.
Ela queria que ele fizesse silêncio, mas por quê? O que estava
acontecendo? Ele olhou para a porta com pânico correndo em seus olhos
antes que escondesse para que Naya não visse, então pegou a menininha e a
colocou no canto da cama o mais longe possível de Naya e se sentou no chão
ao lado dela, seus olhos não desviaram da mulher que considerava uma
intrusa no quarto.
Perguntou-se que lugar era aquele. Um sequestrador não a deixaria com
duas crianças e era bem improvável que tivesse sido pega por uma rede de
tráfico. Então o quê? Sua mente corria em possibilidades. Ela fitou o menino,
sem conseguir julgá-lo por sua reação violenta e lágrimas vieram aos olhos
ao pensar em como ele tinha conseguido todos aqueles machucados. Os olhos
tristes e amedrontados da garotinha não a fizeram se sentir melhor.
Naya já havia escrito muitas canções em sua vida, mas ela sabia que
nem mesmo um álbum contando tragédias de todos os tipos conseguiria
expressar o sentimento de estar ali com aquelas duas crianças.
Ela estava acostumada a dizer que tudo era apenas uma fase. Seu
sucesso, seus namoros, seus noivados... tudo. Ela pensou em Kurt, a única
coisa que em muito tempo desejou que fosse permanente e não algo
passageiro, mas nem isso conseguiu fazê-la sorrir como era comum. Veio
apenas medo, resignação e dor.
De repente a menina soltou um suspiro audível e encarou a porta
aterrorizada. O garoto não conseguiu esconder dessa vez, fitando a madeira
com a mesma reação e aproximando-se mais dela. Naya estava tão perdida
em pensamentos que não ouviu o barulho da chave, foi apenas quando a
maçaneta clicou que olhou na mesma direção.
A porta se abriu e a menininha começou a chorar baixinho, ao mesmo
tempo que os olhos que viu o corpo magro do menino ficar tenso como
nenhuma criança deveria ficar.
Naya sentiu um terror tão forte que literalmente lhe faltou ar.
Sendo uma estrela mundial ela sabia dos riscos que corria diariamente e
sempre procurou preparar sua mente para caso algo acontecesse, mas ela não
podia ter se preparado para aquilo. Não ao ver a feição do homem que entrou
no quarto.
Ele olhou direto em seus olhos e ela quis se esconder. Não, na verdade,
ela quis pegar as duas crianças e se esconder, mas ele trancou a porta e ela
sabia que não seria possível fugir.
Naya engoliu seu medo e ao ouvir a menininha fungar, jurou que não
importava o que acontecesse, ela se colocaria na frente daquelas crianças e
eles jamais seriam machucados outra vez.
Ela nunca precisou fazer sacrifícios em sua vida de privilégios, mas faria
dessa vez não importando quem eles fossem e de onde eles vieram. Seus
olhinhos imploravam por socorro e se ela era a única que podia dar, então o
sacrifício seria seu.
Naya encarou o olhar do homem e se preparou para cantar a canção final
do show de sua vida.
Eu sei! Eu sei que nesse exato momento você quer fechar o livro, ir lá
no meu Instagram e perguntar a data de lançamento do próximo. Meu Deus!
Ou Odin, o que você preferir. Mas eu não posso falar agora, porque tenho
outra coisa vindo e você já sabe o que é. Só precisa pensar um pouquinho em
tudo o que leu aqui.
Novamente... eu sei! Agora bateu felicidade quando percebeu o que é.
Obrigada a todxs que esperaram ansiosamente por Siriu e Freya, eu
espero que vocês tenham levado pelo menos mais de um dia para ler isso e
não loucas 3 horas (alô, leitoras compulsivas). Esse livro é oficialmente meu
terceiro preferido. E eu nem sequer contei toda a história ainda!
Obrigada pelo apoio e carinho de sempre, eu fico louca para lançar essas
histórias unicamente pelo prazer de acompanhar os surtos! Aproveitem!!
Lidiane, Tali, Camila, Jana e todas as meninas do nosso grupo.
Obrigada pela pressão, ameaças e chantagens, vocês são demais!
Espero que tenha gostado. Foi feito com amor e dor. Literalmente.
Mil beijos, Nana.

Sua avaliação é muito importante, não deixe de escrever.


Me acompanhe nas redes sociais:
@nanasimonss
Nana Simons Autora
Table of Contents
Dedicatória
Nota da autora
Aviso
Mini glossário
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Bônus
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Epílogo
Agradecimentos
Nota da autora
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Epílogo
Agradecimentos

You might also like