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Nana Simons - BOX - O Cavalheiro Das Sombras
Nana Simons - BOX - O Cavalheiro Das Sombras
2º Edição – 2020
SOLDADO DE GELO
Revisão: Lidiane Mastello
Capa: Murilo Guerra
Diagramação: April Kroes
Nota da autora
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Epílogo
Agradecimentos
Para todos que tem uma alma sombria, que meu Demeron quebre seu coração
e que Onira te faça ver através dos pesadelos; Nem os piores sonhos devem
nos impedir de continuar respirando.
Olá, leitora e leitor.
Obrigada por dar uma chance a esse livro, mas antes de começar a ler,
eu recomendo fortemente que você leia os avisos com muita atenção e sem
pular nenhuma palavra. Se decidir seguir em frente, aproveite a leitura e
sinta-se livre para deixar sua avaliação, seja 1 ou 5 estrelas, eu gosto de ler
todas elas.
Se esse livro te causar revolta, indignação, lágrimas e no fim... suspiros
com a redenção, então minha missão estará cumprida.
Grande beijo, Nana Simons
Lucca DeRossi (O Monstro em Mim – Série no Berço da máfia Livro 1)
Luigi DeRossi (O Monstro Rendido – Série no Berço da máfia Livro 2)
Dante DeRossi (O Monstro em Guerra – Série no Berço da máfia Livro 3)
Juan Carlo Herrera (O Governador – Livro único)
Aya Maria Herrera (O Governador)
Este romance é uma ficção. Porém assuntos e temas abordados existem
e foram estudados para a construção do livro.
Romance dark;gótico;sombrio: subgênero literário do romantismo,
associado a temas polêmicos e aborda temas pesados. Está ligado não apenas
ao romance romântico, mas também a fascinação com o irracional, o
demoníaco e o grotesco.
Neste livro, é equivocado procurar mocinhos perfeitos, românticos e de
arrancar suspiros de amor. Neste livro, você encontrará um antagonista. Ele é
um anti-herói.
O livro contém uma linguagem adulta e apropriada para maiores de 18
anos, contém descrições de sexo. Situações de abusos físicos e psicológicos.
Torturas e descrições de rituais. Essas situações não são romantizadas.
A autora não apoia nenhuma das práticas descritas. A opinião da autora
sobre as religiões citadas não está presente no livro.
Leia com a mente aberta.
Kambarys – Rede de tráfico de pessoas, usadas como igrejas onde a
seita realiza rituais de sacrifício e fazem uso das escravas sexuais.
Mestre – Denominação dos homens que compram mulheres, ou ganham
o direito de criar os filhos de suas escravas para treiná-los a servir.
Quarto Reich – Termo utilizado para descrever um futuro teórico da
história alemã - um sucessor do Terceiro Reich. Nas teorias da conspiração, o
quarto Reich seria levantado como sucessor de Adolf Hitler na Alemanha
nazista.
Kings — Chefes do crime de países que se reúnem para tomar decisões
a respeito de atividades que operam juntos. Itália, Alemanha, Rússia e
México.
High wizzard – Na tradução “Sumo-sacerdote” é o título dado aos
homens de alta posição dentro das seitas, eles realizam magia negra para o
grupo.
Frigga – Deusa-Mãe na mitologia nórdica. Esposa de Odin e madrasta
de Thor e mãe adotiva de Loki é a deusa da fertilidade, do amor e da união. É
também a protetora da família, das mães e das donas-de-casa, e símbolo da
doçura.
Freya – Freya é a Deusa do amor na mitologia nórdica, mas também
está associada ao sexo, luxúria, beleza, feitiçaria, fertilidade, ouro, guerra e
morte.
Simbologia da LIGA: Pedras preciosas que determinam a hierarquia
dentro da organização. Sendo Esmeralda, Cristal, Safira, Rubi e a mais alta,
Diamante.
“O momento em que você terá que se erguer
Acima dos melhores e provar a si mesmo
Que seu espírito nunca morre”
IMAGINE DRAGONS, WARRIORS
TRÊS ANOS ANTES
FRANKFURT, ALEMANHA
PRESÍDIO SECRETO DE SEGURANÇA MÁXIMA PARA EX
ESPIÕES
— Tem ideia de como foi difícil explicar a todos os convidados por que
a artista da noite simplesmente desapareceu? — Slom praticamente gritava,
andando de um lado para o outro no meio do ateliê. — E como se não fosse o
bastante, você aparece aqui como se nada tivesse acontecido não tem nem a
decência de explicar o que houve, ou me ligar!
“Você não pode contar a ninguém.”
As palavras de Demeron ecoaram na minha mente.
— Se estava passando mal ou sobrecarregada, eu teria cuidado de tudo,
fiz isso de qualquer jeito. Mas, um aviso teria sido bom, sabe?! Eu dei pelo
menos três desculpas diferentes sobre seu desaparecimento! Já até imagino o
que os jornais e revistas dirão hoje, que fontes se confundem sobre o porquê
de a artista ter sumido! Sabia que pensei que tivesse sido sequestrada e morta,
porra?
“...ficamos perto de você ter um carro capotado na estrada, ou um falso
desaparecimento. Até mesmo alguém invadindo sua casa, a seguindo e
assustando. Eu não sou um homem que pensa, sou um homem que age...”
— Você sequer estava lá para me impedir de ir embora com Siriu! —
Ela disse num sopro, falando tão rápido que precisei de alguns segundos
extras para as palavras fazerem sentido.
— O quê?
— Siriu Konstantinova. Eu posso ter acidentalmente dormido com ele.
— Slom, como você acidentalmente dorme com alguém?
Ela suspirou, esquecendo de seus discursos e se jogando na poltrona,
tampando o rosto com as mãos.
— Eu sei, droga, eu sei! Mas como poderia resistir? Ele é tão gostoso!
— Você não o conhece.
— Você não conhece o militar estranho e fica salivando por ele.
— Eu não fico salivando!
— É claro que fica, só não percebe isso.
— Você dormiu com Siriu. — Repeti em voz alta, para mim
mesma. — Deus.
— Eu sei, droga. — Ela suspirou novamente, fechando os olhos. — Foi
tão incrível.
— Slom! — Havia uma nota de alerta em minha voz. Eu queria
repreendê-la, mas como poderia, se desejava o que ela teve com o outro
Konstantinova?
Queria alertá-la, dizer o que Demeron me falou, que Siriu era perigoso,
aquela família não era o que parecia, mas como, sem revelar o que ele me
pediu para deixar guardado entre nós dois?
— Ele me amarrou.
Arregalei os olhos, saltando da minha cadeira e ajoelhando em frente a
ela, agarrando suas mãos nas minhas.
— O quê? — sussurrei, já em pânico com a possibilidade da minha
amiga sendo machucada de qualquer forma.
— Me amarrou, me bateu. — Ela revirou os olhos e se abanou. — Ele
faz coisas com aqueles dedos que fazem todos os paus que já passaram pela
minha vida parecerem tediosos.
Eu expirei em alívio, inevitavelmente rindo de suas descrições.
Ela tomou um gole de água, enquanto eu ainda ria sentada no chão, e
encheu a boca com o líquido, inflando as bochechas, depois engoliu tudo e
deu de ombros.
— Minha boca ficou mais cheia que isso.
Com um grito, pouco depois estávamos as duas rindo, e as broncas
ficaram para depois.
DEMERON
ONIRA
O caminho foi silencioso, devemos ter ficado pouco mais de meia hora
no carro, o trânsito complicando a chegada ainda mais. Ele não tentou puxar
assunto, o que me deixou aliviada. Ainda insegura sobre estar ali, coloquei o
endereço que sabia ser o da casa de Stark no momento em que entramos no
carro, e observei se seguíamos a rota correta.
Siriu não se moveu. Parecia congelado em seu lugar. Ele se mantinha
olhando para fora da janela, as pernas cruzadas e as mãos unidas em cima do
joelho.
Olhei para mim mesma, a saia comprida, meio esvoaçante, e uma camisa
bem apertada, simples. Esse era meu vestuário para um dia no ateliê. Sorte a
minha ter, pelo menos, um salto guardado por lá, que não usava há muito
tempo e chegava até a machucar. Mas até o desconforto era melhor do que
aparecer com um chinelo.
— Um minuto e estaremos lá. Você conhecerá minha avó, Angelina. Ela
será desagradável, mas não é pessoal, o tempo a amargurou.
— Obrigada pelo aviso.
— Vai conhecer Blair também.
— A filha de Regnar e Kaladia?
Pela primeira vez ele me fitou, e vi um sorriso irônico que muito se
parecia o de Regnar.
— Sim, a filha de Kaladia.
O carro de repente parou. Siriu desviou a atenção de mim e saiu,
segundos depois, veio ao meu lado, abrindo minha porta.
— Obrigada.
Ele assentiu e me guiou até a entrada da enorme mansão. Por fora era
branca, janelas marrons e três andares ostensivos, sendo o segundo,
completamente de vidro. Não era uma casa antiga, parecia bem moderna e
seguia linhas de designers com os quais eu estava familiarizada.
Mesmo sendo uma família tradicional, percebi que Stark não era do tipo
que mantinha uma casa de sessenta anos por memórias de infância e
sentimentalismo. Ele só se mudava para uma melhor. Me perguntei se ele era
assim com tudo.
Estávamos no último degrau da pequena escada da varanda quando a
porta escura foi aberta e uma linda mulher apareceu. Com certeza não era a
avó, e nem podia ser Blair.
— Vocês chegaram! — Ela bateu palminhas e sorriu para mim, se
aproximando e me cumprimentando com dois beijos na bochecha, mas sem
encostar. — Estamos quase na hora do jantar. Ainda dá tempo de tomar uma
taça conosco, Onira. Você bebe?
Ela falou tantas coisas tão rápido, sorrindo com seu batom rosa e voz
alta, que fiquei desnorteada.
— Vá devagar, Belle. Deixe a senhorita Tieko entrar pelo menos.
— É claro. — Ela enganchou nossos braços e me levou para dentro. Eu
queria perguntar quem era ela e porque estava sendo tão sufocantemente
íntima. — Eu sou Belle. Estava tão ansiosa para te conhecer!
Ouvi a porta ser fechada e Siriu passar por nós, parando a alguns
centímetros de distância, seu olhar fixo em mim.
— No dia da exposição eu estava em um desfile em Paris. Fiquei
decepcionada em perder. Sabe que estive pensando. — Ela me soltou e parou
na minha frente, colocando os cabelos para trás dos ombros, revelando um
enorme colar de diamantes combinando com os brincos. — Eu gostaria de
uma escultura minha, será que conseguiria fazer?
— Belle. — A voz veio das escadas, e poucos depois, vi Stark se
aproximando de nós. — Não monopolize nossa convidada.
O sorriso que se abriu no rosto dela quase apagou o brilho dos diamantes
no pescoço. E me chocando, ela praticamente correu para ele, o abraçando e
dando-lhe um beijo rápido nos lábios.
— Amor... eu só quero que ela saiba como é especial para nós.
Os olhos dele se voltaram para mim.
— Tenho certeza de que ela sabe disso.
Ah, merda.
Tentei manter minha surpresa bem escondida.
Eu a olhei mais de perto, prestando atenção nos cabelos castanhos
claros, quase que um loiro escuro, solto com apenas uma mechinha presa do
lado esquerdo. Os olhos castanhos, redondos e expressivos. Ela tinha um
lindo sorriso. O sorriso de uma menina.
Vendo-a abraçar Stark, eu tinha certeza de quantas coisas as pessoas
diziam sobre ela. Não sobre ele, mas ela. A aproveitadora, mercenária, e
piorando a cada sílaba. Mas, eu só conseguia notar como aqueles mesmos
olhos expressivos o fitavam, com adoração. Ela adorava Stark.
A menina feliz, com o namorado que tinha um pouco mais que o dobro
da idade dela, mas ela o amava. Se ele ao menos a olhasse da mesma forma...
— Onira — disse Stark, após me cumprimentar.
— Obrigada pelo convite, senhor Stark.
— Apenas Stark.
— Vamos lá para cima! A família está reunida.
Nós três seguimos em silêncio, enquanto Belle tagarelava sobre coisas
que mal prestei atenção, só ouvia sua voz mais que entusiasmada falando e
falando.
Vi Regnar assim que entrei, ele estava encostado na parede de vidro que
vi do lado de fora, e por dentro, eu tinha uma vista extraordinária da
paisagem que ia além da propriedade. Ele observava com um copo na mão e
a outra no bolso, Kaladia, que estava sentada no sofá ao lado de uma senhora.
As duas tinham as mãos dadas e Kaladia assentia enquanto a mulher falava.
— Olhem quem veio jantar conosco essa noite! — Belle anunciou com
seu entusiasmo inabalável, me levando para perto das duas mulheres. —
Kaladia já a conhece, mas Angelina, essa é Onira Tieko. Ela não é linda?
Angelina não parecia tão disposta a me dar uma recepção calorosa. Na
verdade, ela não fez mais do que virar o rosto em minha direção.
— É um prazer conhecê-la, Angelina.
Eu arrisquei, a chamando pelo primeiro nome, já que não tinha certeza
se respondia por Konstantinova também.
Kaladia levantou e segurou a mão dela, a ajudando a se firmar de pé.
— Seja bem-vinda, Onira. — Os olhos azuis frios me fizeram lembrar
de seu tratamento aquela noite na galeria.
O que me fez querer dar o fora dali.
E Angelina só continuou me olhando.
— Siriu sai de mãos vazias e volta com a rede cheia, como sempre —
disse Regnar, lembrando-me do quão inconveniente podia ser. — Aceita uma
bebida, senhorita Tieko?
— Tenho certeza de que ela veio para jantar — retrucou Kaladia, sua
voz tranquila, mas os olhos mandavam um recado claro para ele. — Não para
beber com você.
— Eu vou buscar Demeron — disse Belle, mas dessa vez ela olhava
para os rostos na sala, com incerteza, sua alegria meio vacilante. — Por que
não leva todos para a sala de jantar, amor? Heidi avisou que em poucos
minutos estaria pronta para servir.
Ela beijou sua bochecha e saiu, deixando nós seis num silêncio
desconfortável, no qual havia um único alvo para olhar: eu.
De repente, me arrependi de não ter aceitado a bebida. Com certeza
passar por aquela noite sóbria seria um inferno. Mas, pelo menos, teria
Demeron ali para tornar mais fácil.
Nós seguimos Stark para uma enorme sala ao lado, com um lustre de
cristais que devia custar a minha casa. A noite lá fora começava a chegar,
quase perto das sete e meia. Sentamos e taças de vinho à gosto foram
servidas. Eu não queria negar algo uma terceira vez, então beberiquei apenas
para disfarçar e deixei a taça, tomando um longo gole de água depois.
Estar numa casa onde até eu sabia, pelo menos uma parte de quem
estava dentro queria me prejudicar, não permitia álcool. Nem uma gota.
Pensei em puxar algum assunto, distrai-los até que Belle voltasse, mas a
tensão era grande demais. Parecia sufocante.
Peguei Siriu olhando seu relógio de pulso, Kaladia quieta, olhando pela
parede de vidro, Angelina com os olhos fixos em algum ponto na mesa, e
Regnar e Stark trocaram umas palavras meio vazias.
Nenhum deles queria estar ali.
Era a porra de uma família fodida e Siriu me dizendo que tinham o
costume de se juntar para jantar juntos deveria ser uma baboseira maior
ainda.
Respirei aliviada quando ouvi passos se aproximando, saltos e pés um
pouco mais pesados, então segundos depois Belle apareceu, atrás dela, o
homem que vinha sendo o meu anseio.
Droga, ele estava malditamente bonito. Calça escura e a camisa também,
fazendo seus olhos azuis e os cabelos claros ficarem em evidência. Os
músculos pareciam ainda maiores. Ou talvez fosse impressão minha depois
de tê-los sentido em volta de mim.
Mas, então como se fosse um sonho virando pesadelo, ela apareceu atrás
dele. Com uma bota que alcançava seu joelho, saltos altíssimos e um vestido
minúsculo, Kirina, a ruiva dona do bordel, estava lá.
— Ótimo, estou morta de fome.
Passou por trás de Kaladia e Angelina, apertando o ombro da mulher
antes de puxar uma cadeira ao lado da esposa de Regnar e se sentar. Eu quis
alertá-la que deveria procurar um lugar longe da loira para se acomodar, mas
só conseguia pensar no porquê de ela estar ali. E se Belle foi buscar Demeron
e voltou com ela, o que diabos os dois estavam fazendo juntos por aquela
enorme mansão?
Belle se sentou ao lado de Stark, e Demeron pegou a cadeira vazia ao
meu lado.
Eu o fitei, buscando um traço de como deveria agir, tentando entender o
que estava acontecendo, mas ele não me olhou. Ele só sentou em silêncio
e virou a taça do vinho, que foi reposta por um rapaz parado no canto da sala
que segurava a garrafa.
Então ele virou a taça novamente.
— Agora que estamos todos aqui, pode servir, Heidi — disse Belle,
sorrindo para uma mulher mais velha perto da porta.
— Sim, senhora.
— Não lhe perguntei se era alérgica a algo e se comia de tudo, Onira —
falou Siriu, com uma expressão neutra e a voz suave.
— Não sou, mas obrigada. Tenho certeza de que tudo estará ótimo.
— Se soubesse que viria, teria chamado um chefe e amigo especialista
em comida japonesa — disse Regnar, claramente tentando me tirar do sério,
ou simplesmente me fazer lembrar de nosso encontro no restaurante.
— Antes de comermos, acho que falta uma reapresentação — afirmou
Kaladia, sorrindo sem sinceridade para mim. — Onira, essa é minha irmã
Kirina.
Quase cuspi a água, mas me segurei e encarei as duas, engoli em seco e
acenei.
— Prazer em conhecê-la, Kirina.
Ela sorriu perversamente, mas era diferente de Kaladia. Na verdade, se
não fosse pelo fato que a envolvia em algo com Demeron, eu a teria achado
engraçada.
Era quase como se ela fosse uma personagem safada o tempo todo.
— É todo meu, querida.
A entrada foi servida e me senti comendo num restaurante cinco
estrelas. Elogiei a comida, sorri nos momentos certos e respondia ou
comentava algo quando era pedido, seguindo o protocolo daquele tipo de
situação.
O tempo todo, sentia a presença e o vazio de Demeron, sua indiferença
em relação a mim tanto machucava, quanto era compreensível. Talvez, se ele
não estivesse com Kirina antes de se sentar ao meu lado, eu entenderia sua
falta de contato comigo.
Me lembraria que ele estava me protegendo em silêncio e esperaria
pacientemente o momento de ficarmos a sós.
Mas, os vendo juntos, eu só conseguia pensar que ele me ignorava por
causa dela. E esse ciúme incômodo e venenoso era uma cadela no cio.
Um talher bateu no prato, e virei para ver Regnar, que estava na cadeira
ao meu lado.
— Minha esposa e eu temos pensado em nos divorciar. Mas, quero sair
dessa situação com as duas bolas grudadas ao corpo, então, por enquanto,
manteremos as alianças.
Kaladia bateu o copo na mesa com força, e eu franzi a testa ao ver o
líquido escuro lá dentro. Ela jantava bebendo whisky?
— Não se preocupe, querido. Posso grampeá-las em seus ouvidos. Uma
de cada lado.
— Faz sentido — concordou Siriu, um toque de humor na voz. — Ainda
estaria no corpo.
— Não brinquem com o meu coração — disse Kirina. — Vocês sabem
que esse seria o meu maior sonho se realizando. Minha irmãzinha finalmente
indo cuidar dos negócios da família comigo.
— Nem em mil anos minha esposa administraria o seu puteiro —
rebateu Regnar.
— Pois é, querido. Mas o divórcio faz dela a sua ex-esposa. Então você
não teria realmente nenhum direito à palavra.
— Que lindo colar — elogiou Angelina, parando qualquer assunto sobre
divórcio, chamando a atenção de Siriu e Stark, que conversavam baixo.
De repente, todos pararam e suas atenções eram exclusivamente para a
peça pendurada no meu pescoço. Franzi a testa. Será que era tão chamativa
assim?
Com o canto dos olhos, fitei Demeron, mas ele continuava mudo, da
mesma forma de como entrou na sala e se sentou.
— Obrigada. — Agradeci, tocando levemente a pedra delicada.
— Foi um presente? — A senhora insistiu.
— Foi sim.
— Eu dei a ela. — Ele finalmente disse, depois de alguns segundos se
fez silêncio. Eu estava mais do que surpresa. Ele deixou sua taça na mesa e
me olhou de volta. — É bonito e único. Como Onira. Tinha que ser dela.
— Eu imagino as coisas únicas que andam acontecendo para ela ganhar
a sua fatia.
Demeron tirou os olhos de mim e girou a cabeça lentamente para seu
irmão, cerrando a mandíbula, lhe lançando um olhar nada agradável. Siriu
franzia a testa para mim e Regnar tinha um olhar cheio de curiosidade
passando entre mim e seu irmão. Senhor Stark continuava neutro, como se
estivesse alheio aos meus devaneios que só ele não percebeu.
— O jantar estava ótimo, mas deu a minha hora — disse Kirina, então
ficou de pé.
Aquele sorriso não saía de seu rosto. O que ela achava tão engraçado,
afinal?
Eu não sabia se ela só queria sair do meio daquele desastre ou tinha
mesmo que ir, mas agradeci mentalmente a distração.
Porém, isso foi apenas até quando a cadeira ao meu lado arrastou para
trás. Eu baixei os olhos para o meu prato, fechando-os, quase implorando que
fosse Regnar indo acompanhar a irmã de sua mulher, mas é claro que não.
— Eu vou acompanhá-la.
Raiva.
Tudo dentro de mim virou raiva.
A forma como ela sorriu para ele e acenou para todos na mesa,
depois saiu quase saltitando com ele atrás, me enervou.
Kaladia virou seu whisky de uma vez e disse algo, mas não prestei
atenção.
Belle tentou puxar assunto com Angelina, mas a mulher a ignorou
completamente, simplesmente se levantou e saiu. Stark e Siriu continuavam
falando.
Regnar foi o próximo, mas antes de sair, ele agachou ao meu lado e
colocou a mão na minha perna. Meus olhos voaram para Kaladia, mas ela
apenas segurava a taça de vinho que era de sua irmã e a balançava, girando o
líquido.
Suas sobrancelhas ergueram.
Fitei Regnar.
— Eu mudei de ideia sobre você, Onira — murmurou. — Não foda com
o meu irmão. Ele é um animal.
A cadeira a minha frente arrastou para trás e Kaladia apoiou as duas
mãos na mesa, então se inclinou o máximo que pôde para mim.
— Já está tudo perdido para mim, mas você deveria correr enquanto
ainda pode.
Não foi apenas por seu alerta que me levantei sem dizer mais nada a
qualquer um deles e saí daquele purgatório, ignorando os chamados de Siriu e
correndo o mais rápido que pude para fora, foi também por Demeron.
Na verdade, foi completamente por causa dele.
Maldita Kirina.
Já não era complicado o suficiente sem que ela estivesse ali?
Saí da casa e desci os degraus da varanda, minhas pernas tremendo,
assim como as mãos, eu tremia por inteiro de raiva.
Mas não fui muito longe. Num minuto eu tinha meus olhos fixados no
grande portão a metros à frente da propriedade, e no próximo, estava grudada
à parede da casa com uma parede de músculos me segurando ali.
Eu ofeguei com o impacto de sua brutalidade e tentei empurrá-lo, o que
era perda de tempo. Eu não sairia dali a menos que ele me deixasse.
— Deixe-me ir, H̄mū k̄hxng khuṇ!
— Vai precisar me xingar em outra língua, Liebe, eu falo tailandês.
— Qual idioma você prefere? A língua das prostitutas?
Ele franziu o cenho, a careta aprofundando a cada coisa que eu dizia.
— Acha que te trato como uma prostituta? — Seus olhos eram severos,
assim como a voz.
— Sim, eu acho. Mas não é de se estranhar. Talvez eu não seja o tipo de
mulher para você, olhando pra mim e para Kirina, posso ver isso.
Suas sobrancelhas ergueram.
— Kirina?
— Não se coloca quem você dorme e quem você planeja dormir para
comer na mesma mesa.
— Você não sabe de porra nenhuma — sussurrou. Sua voz era gélida, os
olhos distantes.
Me irritou mais ainda. Fora da equação.
— Foda-se, Demeron! Foda-se! Vão se foder você e sua família louca!
Eu não dou a mínima se um carro me atropelar na próxima esquina, se vou
levar um tiro quando passar por aquele portão ou o que quer que seja!
Simplesmente não me importo. Só fique longe de mim!
Ele agarrou meu braço e me puxou de volta, colando-me em seu peito.
— Mas eu me importo. E você não tem a porra da permissão para
morrer.
Então ele me beijou.
Novamente.
Aquela porra de beijo que fazia minhas pernas ficarem bambas. Mas, era
pior dessa vez, porque eu estava sendo corroída pela raiva e esmagada pelo
meu orgulho ferido.
As imagens dele e Kirina ficavam repassando na minha mente como um
replay acionado direto do inferno. E era o próprio diabo que me beijava e
fazia isso.
Que me deixava doente de pensar em coisas sobre ele. Sobre nós.
Eu o empurrei, e sem parar para pensar em minhas ações, deixei minha
mão livre para acertá-lo em cheio. Ele não se moveu e eu não me arrependi,
mesmo tendo consciência de seu tamanho ser o dobro do meu. O rosto virou
levemente, mas quando os olhos furiosos bateram em mim outra vez, ergui o
queixo, desafiando-o a devolver.
Mas, ele sorriu, um sorriso lento e perverso, que enviou calafrios dos pés
até a cabeça e no profundo da minha alma.
Minha pele queimava.
— É bom saber que não preciso ser delicado, kleine Unze.
Ele abaixou atrás de mim e quando levantou, senti suas mãos arrastando
em minhas pernas, levando o tecido da saia junto, então me virou, grudando
minhas costas em seu peito.
Demeron respirava pesadamente, eu não sabia se era raiva, excitação ou
adrenalina, talvez os três juntos. Pelo menos aquela mistura era o que eu
sentia.
Eu sabia o que ia acontecer ali, pois ficou mais claro ainda quando
ele me puxou, ainda grudado em mim, beijando, mordendo, cheirando o meu
pescoço, e nos guiou até a parte de trás da casa. À minha frente surgiu um
labirinto, onde ele rapidamente entrou e depois de dar algumas voltas,
chegamos a uma fonte, parecia ser o centro, e bancos de mármore rodeavam a
minha escultura fixada no meio de onde a água se derramava.
Era a maior que eu tinha feito para eles.
— Demeron... — Praticamente gemi entre sussurros e ofegos.
Ele não respondeu. Estava concentrado demais me transformando em
uma gelatina humana.
Então estávamos sentados. Ele rapidamente me puxou para seu
colo, posicionando-me diretamente em cima de sua ereção. As mãos
agarrando meus cabelos não relaxaram. Ora descendo por minhas costas, ora
segurando minha cintura, mas ele não parou de me beijar.
Era como se não pudesse se controlar tanto quanto eu não podia
também.
Esqueci onde estávamos.
Esqueci que aquele fogo foi despertado por gritos e tapas.
Esqueci completamente que havia pessoas naquele lugar que poderiam ir
até nós imediatamente.
Eu só podia lembrar dele.
De Demeron e nossos corpos em perfeita sincronia.
Enquanto segurava seu rosto e o beijava com os olhos apertados, me
senti ser levemente erguida, depois suas mãos alcançando a parte mais íntima
do meu corpo.
Era demais.
Tantas sensações. Tanta vontade. Tanto desejo.
— Tire — pedi, ofegante, tentando levantar sua camisa, mas sua mão
segurou as minhas.
— Não.
— Demeron, rápido... eu... eu quero.
— E você terá.
As mãos ásperas seguraram minha cintura com força, levantando meu
quadril sem delicadeza e no segundo seguinte, ele bateu dentro de mim.
Fui impulsionada para frente.
— Quieta, Liebe. — Ele sussurrou no meu ouvido. — Nós não
queremos que Stark ouça, não é?
Eu choraminguei, perdida nas sensações de seu corpo segurando o meu,
envolvendo-me em seu peito.
Eu deveria estar gritando e correndo de pavor, mas estava fascinada.
Não houve delicadeza. Nenhum cuidado. Mas, ainda assim, eu estava
molhada pra caralho e pronta para recebê-lo. O silêncio de repente foi tomado
pelos sons de nossos corpos se batendo, os meus gemidos sôfregos e nossas
respirações.
As mãos não me soltavam, ele me apertava como se eu fosse fugir. Mas,
não havia como, nem se eu quisesse. Ele estava tão profundo, que eu sabia
que levaria dias para esquecer fisicamente que esteve ali.
E isso me fez pensar quanto tempo seria até que me esquecesse dele em
minha mente?
Ele segurava meus quadris, e me puxava para baixo com força, e a cada
batida, eu tinha a sensação de que ia mais fundo. Comecei a pressionar de
volta, segurando seus ombros e olhando nos olhos assombrosos,
encontrando seus movimentos.
Joguei a cabeça para trás quando se tornou demais suportar e ele se
tornou mais rápido. Por reflexo, meu corpo se ergueu, tentando me livrar da
pressão que começava a se construir, mas ele me puxou de volta e fechou a
mão sobre minha boca, sufocando o grito que deixei ao ar.
O orgasmo me bateu com força, afogando-me como nunca aconteceu.
Eu respirava pesado, meus ouvidos zumbindo, peito arfando, coração
acelerado.
Tentei recuperar o fôlego quando ele já tinha parado seus movimentos e
apenas me segurava, seu pau ainda cravado como uma rocha no meu interior.
Mesmo no escuro, os olhos azuis escuros e opacos eram fáceis de ler
para mim. Sempre com o rosto severo, nunca sorrindo.
Nem mesmo quando dei tão fácil o que nós dois queríamos.
Levei meus dedos no meio das sobrancelhas, cutucando o franzido que
ele sempre fazia ali.
— Por que está me olhando assim? Você sempre me olha estranho.
Ele levou alguns segundos para responder.
— Eu vou me casar com você.
Eu dei risada, revirando os olhos.
— Isso não é bem o que se espera ouvir antes mesmo do primeiro
encontro.
Ele franziu a testa de novo. Era bem daquele jeito que fazia quando
estava pensando.
— Essa é a quinta vez que nos encontramos.
Segurando um sorriso, fiz uma conta mental rápida, notando que ele não
contou a primeira vez, quando presenciei seu surto na Konstantine Business.
Será que sequer lembrava daquilo?
— Poderia ser a décima, mas ainda seria cedo para dizer que quer se
casar com alguém.
— Pessoas se casam todos os dias em Las Vegas horas depois de terem
se conhecido.
Dessa vez eu ri.
— Pessoas bêbadas.
— Álcool nessa casa é o que não falta, se é disso que você precisa.
— Demeron... é preciso mais do que álcool para se casar com alguém.
— Eu não vou me casar com alguém. Vou me casar com você. O que
você sendo alguém precisa para casar comigo?
Se isso era uma brincadeira, ele não estava dando sinais. Sua expressão
séria e os olhos totalmente focados em mim. Um grito e um “sim” estavam
entalados em minha garganta, então, reconheci que estava, sim, perdendo a
sanidade. Considerando me casar com alguém por pura atração, por batidas
mais rápidas do coração, por uma sensação de segurança.
Droga! Pela intensidade que sentia sempre que estávamos perto.
Mas, ainda assim, era louco.
— Não vou me casar com você. Nunca mais me diga isso.
— Então deve parar de me olhar assim.
Franzi a testa, ainda acariciando sua barba clara.
— Assim como? Como eu te olho?
— Como se quisesse me foder outra vez.
Inalei bruscamente, sentindo os efeitos de suas palavras irem direto para
o ponto do meu corpo em questão. A excitação que tinha apenas dissipado
um pouco, voltou com força. Tentei tirar o joelho de onde estava, mas ele foi
mais rápido, segurando minha coxa com as duas mãos e a puxando para mais
perto, me tirando um pequeno grito quando seu membro pulsou.
— Acha que eu quero te foder outra vez? Eu já fiz isso, posso
simplesmente ir embora.
— Desde a primeira vez que me viu, sim, você queria dar pra mim. Fale
o quanto quiser, você não vai embora.
Com a boca quase escancarada por sua estupidez, agarrei seus ombros e
me movi, descendo e subindo lentamente com nossos corpos ainda
grudados, sentindo seus dedos massageando a pele por baixo da saia.
— Então está dizendo que vai se casar comigo para me comer? Só vai
fazer isso de novo se houver um casamento?
— Se eu te foder como quero, você vai virar as costas quando acabar e
nunca voltará para mim. Se for minha esposa, posso te prender comigo, então
não corro o risco.
— Você fez exatamente isso.
— Te prendi?
Com a garganta apertada, passei os dedos entre os cabelos ralos.
— Me fodeu como um animal. — Minha voz era quase um sussurro.
Os olhos incrivelmente profundos me encaravam sem piscar.
As mãos fortes ainda me seguravam como se não fosse me soltar nunca.
Mas ele havia feito exatamente o que eu disse.
Me fodeu como um animal.
Eu fodidamente gostei disso.
E ali no meio do purgatório, completamente vestidos debaixo da minha
escultura, eu deixei que ele fizesse outra vez.
“Nos seus olhos há um triste azul intenso
Eu quero me sentir como nos sentimos naquela noite
Bêbados de um sentimento, sozinhos com as estrelas no céu”
SELENA GOMEZ, WOLVES
Aquele quarto não era dele. Parecia ser de ninguém. Frio, vazio, paredes
brancas e móveis claros. Tudo opaco e sem vida. Nenhuma decoração
pessoal, nada que me desse uma pista sobre o lugar onde Demeron tinha me
levado depois de fazer-me praticamente desmaiar de prazer em seus braços.
Fiquei sentada naquela cama por vários minutos, talvez uma hora depois
que acordei. Pensando, lembrando, refletindo. Me controlando e
condenando.
Tomei banho, buscando me sentir um pouco mais humana depois da
noite anterior, mas colocar a mesma roupa e enfiar os pés nos mesmos
sapatos, só fazia parecer que aquela noite não tinha acabado. Que eu estava lá
embaixo novamente gritando com o mais belo homem que já vi, e no minuto
seguinte, deixei que ele se afirmasse em mim sem reservas. E enquanto
penteava meu cabelo, esmaguei-me mentalmente com o martelo que me
condenava, porque pior que ter nos deixado ir longe demais, é que não me
arrependi.
Saí do quarto, confirmando que estava na casa principal, e como uma
admiradora de artes, fiquei boquiaberta com a maravilha que era. A grande
escada era como um enorme caracol, levando do terceiro andar até o
primeiro. Desci passando a mão pelo corrimão, sem conseguir acreditar nas
riquezas de detalhes. As paredes eram repletas de obra de arte, e no teto, em
cima da escada, havia apenas vidro, que fazia com que entrasse uma
quantidade infinita de luz, iluminando aquela parte da casa como nem mil
lâmpadas podiam ter feito.
Estava quase no fim, quando ouvi um choro baixo, quase um lamento.
Fiquei tensa imediatamente, procurando a fonte, e encontrando ao descer
completamente. Um pequeno corpo dobrado, que tremia segurando um urso
de pelúcia. Meu coração amoleceu por ela, eu nem precisava ser apresentada
para saber que era Blair Konstantinova, a única neta e sobrinha da casa. Olhei
ao redor, conferindo se não havia ninguém para chegar até ela, sabia que sua
mãe não gostava de mim e queria fazer o máximo para evitá-la, mas como
deixar aquela pobre criança ali sozinha?
Tentei me aproximar sem fazer barulho para não a assustar, mas em meu
próximo passo ela já estava com o rosto vermelho e derramado em lágrimas,
me fitando com uma seriedade que não deveria estar naquele jovem rosto.
Aliás, jovem era eufemismo. Blair era apenas um bebê. Eu chutaria cinco ou
seis anos. Os cabelos incrivelmente longos e loiros, não negando a
semelhança com sua mãe, e os olhos eram de um azul profundo, que podia ter
vindo tanto de Kaladia, quanto da família de seu marido.
Parei onde estava e agachei, ficando no nível dos olhos dela, mesmo
tendo uma boa distância entre nós. Ela não foi o tipo criança rica e mal-
educada de cara, mas também não foi daquelas que imediatamente me
chamou para brincar.
— Olá, eu sou Onira. Você deve ser a Blair.
Falei calmamente, abafando um sorriso ao ver seu cenho franzido para
mim. Ela não estava propositalmente fazendo careta, parecia mais
concentrada, me observando. Uma menina carrancuda, de fato, não negava
ser filha de Kaladia e sobrinha de Demeron. Mas era a coisa mais linda
também.
Os pequenos olhos inocentes me avaliaram por longos minutos antes de
relaxar um pouco a postura e abraçar seu urso.
— Olá, senhora Onira.
— Vamos cortar esse senhora, o que acha? Eu ainda sou bem jovem.
Não tanto quanto você, mas sou — brinquei.
— Sinto muito. Mamãe gosta quando uso minha educação e que seja
gentil.
A ideia de que Kaladia obrigava uma pequena garotinha a se portar
como uma adulta me fez sentir um incômodo que eu sabia não ter direito de
sentir, mas eu fiz.
Lhe dei um grande sorriso.
— Bem, está dando certo. Você é a mais adorável moça e esse urso que
tem aí, eu nunca vi nada parecido! Ele tem um nome?
O sorriso que ela me deu iluminou a sala.
— Ele se chama Harlen.
— Uau! É um nome muito bonito. E raro, também, eu nunca ouvi. E
com certeza é um urso chique.
Blair sorriu passando a manga do vestido pelas lágrimas, levantando do
degrau que estava sentada.
— É o nome do tio Harlen. Ele morreu cumprindo dever, morreu pela
nossa nação. Tio Harlen é o nosso orgulho.
Não deixei transparecer a surpresa da descoberta. Slom não
sabia, porque se soubesse teria me dito logo que apresentou praticamente a
árvore genealógica dos Konstantinova quando fechamos o contrato. E mais
um irmão com certeza não fazia parte dos relatos que eu vi, menos ainda
Demeron o citou em nossas conversas. Mas eu sabia que não era uma
mentira. Blair podia ser pequena, mas a inocência e sinceridade em seus
olhos dizia tudo.
Enquanto eu pensava, ela chegou ainda mais perto e me estendeu a
mão.
— Vamos, Onira, vou te mostrar meu quarto de brinquedos.
Meu primeiro instinto foi ir com ela e fazer de tudo para que as lágrimas
não voltassem àquele lindo rostinho, mas sabia que não era próprio
que começasse a andar pela casa que sequer fui convidada pelo dono a passar
a noite, a ficar perambulando sem a autorização da mãe de Blair.
Segurei sua mão ainda abaixada, e mantive a voz tranquila.
— Primeiro me diga por que estava chorando? Se você quiser, me
deixou preocupada.
O sorriso murchou e seus olhos ficaram baixos.
— Harlen está furado. — Como se para comprovar o fato, ela virou o
urso e levantou a roupinha, mostrando um buraco onde saía um pouco de
espuma.
— Ah, mas isso não é problema! Podemos costurá-lo.
Um pouco de esperança se mostrou em sua face, mas desvaneceu e ela
balançou a cabeça.
— Mamãe não quer. Ela diz que coisas quebradas devem ser
substituídas. Coisas consertadas ficam velhas, fedorentas e sem valor.
Franzi a testa, incomodada que Kaladia tivesse dito algo assim para uma
criança —mesmo que fosse sua filha.
— Eu fugi, porque mamãe e papai estavam brigando muito no quarto,
então vim aqui embaixo esperar que terminassem.
— Oh, pequenina — lamentei, acariciando suas mãos. — O que acha de
irmos ver se está tudo bem agora? Eu aposto que não estavam brigando, era
só uma conversa mais séria.
— Não, Onira. — Ela falou quando começamos a subir a
escada. — Eles lutam. Mamãe sabe lutar tão bem quanto meu pai. Ela deixou
o rosto dele sangrando e ele machucou seu braço.
Abismada, tentei não demonstrar meu choque, mas foi impossível. Ela
dizia aquilo com uma naturalidade que não era normal. Há que tipos de
coisas essa criança estava sendo exposta?
Eu não tinha o que dizer, então a acompanhei até o segundo andar, e
viramos no lado esquerdo, onde ela disse que ficava o quarto de seus pais.
Passamos por várias portas, e mesmo com Blair falando sem parar, eu estava
prestando atenção nela e respondendo, mas atenta a qualquer barulho. Se
ouvisse um grito sequer, chamaria a polícia e a levaria para o mais distante
dentro do jardim que poderíamos ir para que ela não presenciasse nada.
— Mamãe? — Blair chamou, abrindo a porta e entrando. Eu fiquei do
lado de fora, mas com a porta completamente aberta. Pude ver o enorme
quarto e de longe, na cama espaçosa, um corpo jogado em cima.
— Você foi ver o vovô? — A voz era rouca, baixa, mas reconheci como
de Kaladia. Ela não se moveu.
— Procurei por ele, mas não o encontrei.
O silêncio tomou conta do cômodo e olhei em volta, a primeira coisa
que vi foi uma garrafa de whisky ao lado da cama, em cima do criado-mudo.
A janela aberta fazia as cortinas esvoaçarem para dentro, fazendo a luz do sol
ficar dançando com a sombra lá dentro.
Blair ficou na beirada da cama segurando o urso de cabeça baixa. Pobre
menina. Eu quis entrar e sacudir Kaladia, dizer a ela para cuidar de sua filha,
para ser sua mãe.
— Vou te dar um banho, espere só um pouquinho.
— Eu já tomei, mamãe.
— Certo. — Veio um sussurro baixo. — Então fique pronta para o
ballet.
— Tudo bem. Posso ficar com Onira enquanto espero?
Como se meu nome fosse um sino do inferno, Kaladia se ergueu, o
cenho franzido para Blair. Ela colocou as mãos nas costas para ficar em pé e
soltou um pequeno barulho, como se estivesse com dor. Usava um roupão, os
cabelos molhados. Mas, mesmo de longe, eu vi dois pingos de sangue no
tecido branco.
Jesus. Que tipo de merda acontecia ali?
Cada hora dentro daquela casa me deixava mais motivada a ir embora e
nunca voltar.
Seus olhos então ergueram e ela me viu na porta. A postura mudou
completamente. Ela ficou reta, nenhuma evidência de fragilidade em sua
expressão. Caminhou até estar na minha frente com firmeza.
— O que estava fazendo com a minha filha?
— A consolando. Garantindo que ela não ficaria sozinha dentro dessa
casa enorme e fria.
— Ela não precisa do seu consolo, e pode ter certeza de que sabe dar um
passeio pela casa inteira.
Eu bufei, quase rindo em lamento.
— Aposto que sim. Uma criança precisa aprender lugares para se
esconder enquanto a mãe e o pai se matam.
O rosto dela se contorceu em fúria.
— Quem você pensa que é para dar um pio sobre a forma como eu cuido
de Blair?
— Ninguém. Me odeie, se quiser — sussurrei, apenas para ela
ouvir. — Mas não faça sua filha chorar por causa de um urso!
Antes que pudesse responder, Demeron apareceu atrás de mim, o rosto
sério e silencioso. Sem dizer nada, segurou meu cotovelo firme o suficiente
para me guiar e levou-me para longe de Kaladia.
— Que diabos você pensa que estava fazendo? — perguntou, ainda
levando-me para baixo.
— Nada demais.
Ele bufou.
— Você não para de causar confusões. Que ideia foi essa de ir encrencar
com aquela mulher dentro da casa dela?
Uma veia pulsou de raiva, e me soltei de seu aperto, fitando-o
seriamente.
— Temos coisas mais importantes para lidar do que eu e sua cunhada,
como por exemplo, eu tomo remédio. — falei, esperando por sua reação.
Ele ergueu as sobrancelhas levemente, depois assentiu.
— Bom. Sem camisinhas então.
— Bom?! Nós nem pensamos em nos proteger ontem. Eu acho melhor
fazermos um exame de sangue. Sei que estou bem, mas quero saber de você e
assim, prefiro te mostrar o meu também.
— Eu não pretendo fazer um exame. Você aceita a minha palavra e eu
aceito a sua. Não vou ter ninguém me furando e tirando meu sangue.
— Você sequer se preocupou que ontem poderia ter consequências?
— Ontem vai ter consequências.
— Demeron! — gritei, tentando quebrar de alguma forma a parede
imposta entre nós. — Pode me dar uma pista aqui? Eu estou perdida!
Ele apenas me encarou por um momento, então seus ombros caíram
levemente e segurou meu rosto, beijando-me como uma pena de tão leve.
— Bom dia. Venha tomar café.
Ele não esperou minha confirmação. Segurando minha mão, levou-me
para fora. Circulamos a varanda e no jardim de trás, havia três gazebos.
Quase perdi o ar ao ver tamanha beleza. Eram grandes o suficiente para um
sofá e uma mesa, com duas cadeiras à frente, flores penduradas pelas quatro
colunas e as cortinas presas para deixar a luz do dia entrar.
— Demeron — suspirei. — É lindo!
— Obrigado. Cortei o cabelo essa semana.
Parei no caminho e virei para ele com olhos arregalados.
— Acabou de fazer uma piada?
Com a sombra de um sorriso no canto do lábio, ele puxou uma cadeira
para mim.
— Coma.
Erguendo as sobrancelhas em seu comando, cruzei o os braços.
— Não me dê ordens.
Demeron se aproximou, colocando os dois braços em volta de mim,
prendendo-me entre a mesa e a cadeira.
— Quero que esteja alimentada antes de levá-la para casa.
Amoleci um pouco, reconhecendo o cuidado, mas, ao mesmo tempo, a
ideia de ir para casa sem ele me deixou estranhamente desanimada.
— Venha comer comigo.
— Estou bem. Coma um pouco de tudo, se não gostar de algo, apenas
deixe aí. Tente terminar a vitamina.
Ignorando o toque de comando em sua voz, fitei a mesa servida com
várias coisas e decidi que só por aquela vez, ia realmente fazer como ele disse
e experimentar um pouco de cada. Mas apenas porque tudo parecia
delicioso.
— Por que Kaladia me odeia?
Seu corpo tencionou, a boca apertada numa linha fina.
— Ela não odeia.
— Bem, com certeza não gosta de mim.
— Ela não gosta de ninguém.
— É claro que gosta, todo mundo gosta de alguém, mesmo que poucas
pessoas.
— Pare de querer humanizar todas as pessoas que conhece. Algumas
simplesmente não possuem tais sentimentos como amor, simpatia e merdas
do tipo.
— É claro que possuem, só perdem com o tempo.
— Concordamos em discordar.
Cortei mais um pedaço do pão crocante, bebendo um pouco mais da
vitamina de frutas frescas. Mas, sentia seu olhar sobre mim o tempo todo,
quase me travando.
— Você pode pelo menos se sentar? Ou vai ficar só me olhando até que
eu termine?
— Realmente prefiro ficar e olhar.
Frustrada, desviei o olhar.
— Não era necessário tanta comida — murmurei.
— Preciso aprender o que você gosta.
— Para me chantagear?
Ele ficou em silêncio por um momento, então se sentou, puxando a
cadeira para tão perto quanto podia. Pegou minha mão.
— Para quando se casar comigo.
Engoli em seco, tentando fugir do calor de seus olhos fixos.
— Achei que tínhamos combinado em parar com esse assunto ontem.
— Eu não combinei nada. De fato, apenas encontramos algo melhor
para fazer ao invés de falar.
— Foi apenas uma noite, Demeron — sussurrei, tentando convencer a
mim mesma que ele não estava falando sério.
Não podia estar.
Um meio sorriso atingiu seus lábios, os olhos inexpressivos nem
piscavam.
— Não seja ingênua, kleine Unze. O que você me deu, é impossível
pegar de volta.
DEMERON
DEMERON
SIRIU
ONIRA
Quando cheguei, o lugar estava mais agitado do que a última vez que
estive ali. Sem contar que o tratamento dado a mim nada a tinha a ver com
aqueles dias. Agora eu era a futura senhora Konstantinova... ou pelo menos
eu pensava que era. Tudo ia depender de Demeron estar tão possesso com
aquela entrevista quanto eu estava.
Queria ligar meu celular, chamar Kurton e dizer algumas coisas que
fariam um marinheiro sentir vergonha, mas não faria isso, minha prioridade
naquele momento era meu noivo.
Esperei até que as meninas da recepção terminassem de atender os
visitantes, e elas me encaravam inquietas, eu sabia que podia ir até lá e pedir
para me informar sobre ele, mas eu odiava quem chegava se impondo no meu
trabalho, então estendi a mesma cortesia de educação a elas.
— Senhorita Tieko?
Eu virei o rosto, vendo o mesmo garoto que estava com Demeron na
boate de Kirina e acenei.
— Olá.
— Senhora, meu nome é Heinrich. — Ele apertou minha mão
rapidamente e deu um passo atrás, colocando os braços atrás das costas. —
Veio ver o senhor Stark?
— Na verdade não, vim ver Demeron.
— Entendo, ele está esperando pela senhora?
Enquanto ele falava, mais uma vez percebia como era parecido com os
Konstantinova, e decidi perguntar a Demeron se tinham parentesco.
— Eu não o avisei, mas aconteceu algo realmente chato e eu preciso
falar com ele urgente.
— Senhorita Tieko, não acho que será possível.
Eu ia perguntar o porquê, mas no mesmo momento, vi um homem
saindo do elevador e indo para a saída, dois outros caras o ladeavam. Tão
rápido quanto ele apareceu, sumiu.
— Padre Terry? — murmurei comigo mesma, confusa sobre o porquê
de o padre do meu bairro aparecer ali, ainda mais sem sua batina.
— Vou levá-la para vê-lo. — Heinrich falou, chamando minha atenção
de volta para ele.
Mas, eu ainda encarava o lugar onde o padre saiu, me perguntando se
era realmente ele.
— Acho que vi um conhecido.
Heinrich acenou minimamente para um dos seguranças na porta antes de
virar para mim.
— Deve ter se enganado. A senhorita quer ver Demeron?
— Ok, claro.
Nós entramos no elevador juntos e ele me levou silenciosamente até o
vigésimo quarto andar. Mais quatro acima ficava o de Stark, onde eu tinha
visto Demeron pela primeira vez. Quando aqueles olhos azuis gelo me
encantaram.
— Vou deixá-la na sala de visitas e avisar a Demeron que está aqui.
— Não precisa se incomodar, Heinrich, posso ir até ele.
O menino desviou o olhar, já saindo.
— Na verdade, preciso procurá-lo pelo prédio, mas não é incomodo
nenhum, ele estará aqui em alguns minutos.
Eu entrei, vendo a sala aberta e me sentei num pequeno sofá. Tinha um
quadro enorme que ia quase de parede a parede, com uma vista de Berlim.
Reparei que em cada andar tinha um daqueles com uma cidade do país. Eles
eram realmente patriotas.
Ouvi uma voz familiar se aproximando, e levantei, indo na direção
deles, mas parei quando estava quase saindo e do lado de fora vi Siriu se
inclinar, dando um beijo em Naya.
Eu suspirei pensando em Slom. Minha amiga era durona, mas estava tão
encantada por Siriu que eu não sabia como ela ia lidar com isso. Ele
claramente não estava sério sobre ela, e eu já estava escondendo coisas
demais dela. Não podia deixá-la se iludir, ia contar o que vi, mas a decisão
seria dela.
Eu bem sabia o que era querer alguém o suficiente para fazer loucuras.
Como me casar.
Naya olhou para cima e me viu, seus olhos arregalaram e ela corou,
sorrindo sem graça.
— Droga, eu não te vi aí.
Eu sorri, aceitando seu abraço.
— Não se preocupe, eu nem vi nada.
Ela riu, revirando os olhos.
— Viu sim, mas tudo bem, eu não sou tímida.
— Então... você e Siriu?
Ela me fitou com o canto dos olhos, mordendo a pontinha do polegar.
— Nós apenas... jantamos.
— Parecia bem íntimo.
— Parecia, não é? Ele é tão intenso.
Ela levantou os braços, prendendo o cabelo para trás e eu vi uma
marquinha fofa no pulso.
— É uma tatuagem?
Ela virou o braço, apontando para onde eu vi e sorriu.
— Sim, fiz a alguns dias.
Admirei o pequeno trio de corações em volta de um círculo em seu
pulso. Pouco acima, tinha outra, assim como nos dedos da mão. Eram
tatuagens delicadas, nada que poluísse a beleza dela.
— São lindas.
— Obrigada. São dos meus casamentos.
Eu dei risada da piada, mas quando ela me deu um sorriso constrangido,
percebi que falava sério.
— Me desculpe — pedi — Mas... casamentos?
Naya riu, dando de ombros.
— Sempre me apaixono rápido demais, namoro ou caso. Faço as
tatuagens quando a relação acaba.
— Não seria mais fácil escrever músicas sobre eles?
— Eu quero me lembrar sempre do motivo acabou e o que cada um
deles me ensinou. Além disso, adoro tatuagens.
— Posso perguntar sobre os três corações?
— Claro! — Ela me levou até o sofá, nos sentamos e virou o braço,
mostrando-me os traços finos da tinta — Esse foi Aron Cavins, o ator
daquela série de vampiros. Terminei quando ele me traiu com duas figurantes
da série. Dois corações são delas e um é o meu. Inclusive, ele era meu noivo
na sua exposição.
Quem em sã consciência traia alguém como Naya? Ela era perfeita.
— Ele me parece um idiota.
— Ele com certeza era. — Ela riu. — Mas, já superei, assim como todos
os outros, então talvez eu seja o problema.
— É claro que não! Acho que você só não encontrou o seu alguém
ainda.
Ela bufou, sorrindo sem se empolgar.
— E já sei que Siriu não é esse alguém.
— Por quê? O jantar foi ruim?
— Foi nosso primeiro encontro e eu encontrei duas mulheres com quem
ele saía.
— O que? Como isso é possível?
— Você não vai acreditar nisso nem em mil anos. Eu fui ao banheiro
quando estávamos prestes a ir embora, ele pagou a conta e foi tão incrível a
noite toda. Mas, quando fui retocar o batom, as duas estavam lá, sorrindo
para mim como se eu fosse a própria lua no céu e me deram um cartão,
dizendo que eu era bem-vinda ao clube quando ele terminasse comigo.
— Está falando sério?
— Sim! — Ela sussurrou com veemência, olhando a porta para garantir
que ele não estava vindo. — Ele praticamente tem um clube de ex-
namoradas! — suspirando, ela balançou a cabeça. — Eu o conheço há tantos
anos e só agora ele me chamou para sair. Meu padrinho ficaria nas nuvens
com isso.
Dei um aperto em sua mão.
— Não tive tantas experiências no setor homens, e já passei por uma que
foi e está sendo um problema. Mas Demeron aconteceu e por isso eu sei que
você vai encontrar alguém.
— Você acha?
— É claro. Depois dos idiotas sempre vem alguém para limpar a
bagunça.
Nós demos risada.
— Onira, você tem transformado o Demeron, eu nunca o vi proteger
alguém tão ferozmente. Nunca o vi desse jeito, nem mesmo em seu primeiro
casamento.
— Casamento? — Franzi a testa — Que casamento?
Ela arregalou os olhos, gaguejando nas palavras.
— E-eu pensei que... Você não sabe?
— Não, eu não sei.
O clima leve e descontraído foi imediatamente substituído por tensão.
— Pelos deuses, sinto muito, Onira. Pensei que ele tivesse contado.
— Me contou o que?
Ela olhava de um lado para o outro, engoliu em seco e levantou.
— Sinto muito mesmo.
Eu fui atrás dela, segurando a porta.
— Naya, diga-me!
Os olhos cheios de lágrimas me encaravam com firmeza.
— Eu queria, mas essa história não é minha para que eu conte.
Então ela saiu, deixando-me ali parada por vários minutos. Meu
coração acelerado, as pernas trêmulas e a garganta seca.
Eu queria ir até ele e sacudi-lo, exigir que me dissesse que droga de
história era aquela. Por que até então eu não sabia de nada?
Mesmo que ele deveria, mas nunca contou, um casamento não era algo
que ficava escondido.
Siriu voltou para a sala e olhou ao redor.
— Onde está Naya?
Eu não respondi. Ele me olhou mais de perto e algo em meu rosto deve
tê-lo alertado.
— Onira... está tudo bem?
— Demeron já foi casado?
A expressão de Siriu não se alterou, ele só me encarou por vários
minutos antes de responder.
— Sim.
Ele não parecia preocupado, nem tampouco magoado que Naya não
havia ficado. Talvez aquela falta de emoções estivesse no sangue deles.
Demeron por me enganar, e Siriu por enganar duas mulheres e sabe lá
quantas mais, ao mesmo tempo.
Eu respirei profundamente, o fitando com seriedade. Olhei para o
corredor que levava aos elevadores um segundo, onde Naya o devia
estar esperando-o.
— Nós não nos conhecemos muito bem, eu sei disso. Mas, Slom está na
minha vida a anos, eu sei que essa coisa de dormir casualmente não funciona
com ela, então, se você não estiver sério com ela... não machuque a minha
amiga.
Ele assentiu e olhou para o corredor também, talvez tivesse entendido
meus pensamentos sem eu precisar dizer.
— Tem razão, Onira. Nós não nos conhecemos.
Então ele tirou minha mão da porta e saiu, a fechando. Eu me afastei, e
cambaleei até o sofá, enfiando o rosto entre as mãos.
Onde foi que me meti?
Pouco depois, foi assim que Demeron me encontrou.
Ele entrou na sala com tranquilidade, passos calmos.
— Onira, o que houve? — Com a testa franzida, chegou perto de mim,
esticando a mão para me tocar.
Eu fiquei de pé, me afastando.
— Você foi casado?
Ele respirou profundamente.
— Quem te disse?
— Você não vai negar?
— Quer que eu minta?
Sua voz cínica e calma me tirou do sério. Eu estava fervendo.
— Como foi que escondeu isso de mim? Planejava nunca me contar?
— Vamos conversar.
— Proibiu a todos que falassem sobre isso? Porque agora eu estou aqui
me perguntando o que mais você tem escondido de mim!
— Onira.
— Mas o que eu esperava? Me casando com alguém que não conheço!
— Você me conhece.
— Mesmo? Eu não vejo como. Isso faz parte de um relacionamento
normal, você me conta coisas sobre si mesmo e eu devolvo te contando sobre
mim. Qual sua cor preferida, melhor viagem que já fez, que já esteve na porra
de um casamento!
No final eu estava gritando, e ele continuava ali apenas me encarando
com as mãos nos bolsos e aqueles olhos que nem piscavam.
— Como você me contou sobre Kurton Ward?
— Eu não me casei com Kurt.
— Então a gravidade dos segredos na nossa relação será julgada por
comparações? Eu escondo que fui preso por seis anos e você esconde que foi
presa por dois, mas eu estou mais errado porque fiquei mais tempo na
cadeia?
— Não é isso...
— Meu ex casamento não foi exposto para o mundo, com a pessoa se
declarando para mim.
— Ele não estava se declarando!
— Você assistiu até o fim? — Ele deu um passo mais perto, inclinando a
cabeça para ficar com o rosto incrivelmente perto do meu, precisei esticar o
pescoço para olhar em seus olhos. — Porque eu assisti. Eu vi como ele falou
de algo, meu como se lhe pertencesse.
Sua mão veio até meu rosto, acariciando levemente.
— Se ele falar sobre você novamente, serão as últimas palavras dele.
Eu ofeguei.
— Demeron! Você não pode controlar as coisas que alguém diz.
— Eu posso e eu vou. E se você falar com ele novamente...
— Não me ameace!
— Não estou ameaçando você, eu estou fazendo uma promessa a ele.
Uma que Kurton já está ciente.
— Você está sendo irracional. Eu vou me casar com você, não com ele.
Quem se importa com o que ele diz na TV?
— Eu me importo, porque ele fala como se você fosse um dos carros de
luxo em sua garagem que eu peguei emprestado para um passeio.
— Você me mostra uma personalidade a cada dia. Foi por isso que seu
primeiro casamento terminou?
Ele me deu um sorriso de dar arrepios.
— Não. Meu casamento terminou porque minha esposa era uma vadia.
— Eu espero que você não tenha falado isso dela quando eram casados.
— Uma vez.
Peguei minha bolsa, dando as costas a ele.
— Eu não posso lidar com você agora.
— Mas vai. — Ele passou por mim, fechando a porta e ficando na frente
dela, impedindo-me de sair.
— É a Kirina?
— Isso não importa, acabou.
— Deixe-me ir.
— Você não quer ir, quer que eu implore seu perdão por ter escondido
algo que acha que é sério.
— Eu não... E você não acha sério? Já dividiu sua vida com alguém,
Demeron, isso não é pequeno.
— Ouvir seu ex namorado falando que estreou a ilha dele com você
também não.
Meus olhos arregalaram.
— Ele disse isso?
DEMERON
— Sim.
Ele não tinha dito, mas a pesquisa que Drux fez sobre o cara veio a
calhar. Ela ia me deixar, eu sabia disso, levariam talvez dias para a
convencer a voltar para mim, então eu precisava pegar um atalho.
— Eu não vi essa parte — respondeu, e eu vi seus olhos amolecerem
enquanto ela engolia em seco.
— Onira, eu te quero comigo. Quero me casar com você, então se uma
fofoca do que aconteceu anos atrás é o suficiente para nos separar, como
vamos dar certo?
— Não é uma simples fofoca!
— Se está fazendo isso porque a declaração de Ward te fez mudar de
ideia, se quer voltar para ele...
— Não! — Ela gritou, deixando a bolsa e segurando meu rosto. — Não
é nada disso, eu quero me casar com você mais do que tudo! Mas tenho medo
de que esteja escondendo mais coisas e...
— Eu não me casei na igreja, nem dei a ela uma joia antiga da minha
família. — Segurei o colar em seu pescoço, dando o efeito na fala. — E não a
apresentei para o mundo. Foi algo de anos atrás, que acabou porque não
deveria nem ter começado. Diferente de nós.
Ela desviou os olhos de mim, amolecendo a cada palavra minha. Eu
segurei seu queixo, trazendo seus olhos para os meus.
Ela era bonita. Muito bonita.
Era minha, não de Kurton Ward.
— Acredite em mim, liebe. Nós vamos construir uma vida juntos.
Ela fungou, ainda insegura.
— Você tem algum contato com ela?
— Ela não é alguém importante na minha vida. — Beijei sua
testa — Ela não é você.
Eu selei nossos lábios, beijando sua boca enquanto ela me abraçava com
força, choramingando baixinho no meu peito.
— Nós ainda vamos falar sobre isso.
— Como você quiser.
— Mas, por agora, eu estou cansada. Então só... só vamos para
casa. — Ela disse por fim.
E eu concordei, no caminho, enviando uma mensagem a Heinrich para
dar o sinal na ordem que eu havia encomendado mais cedo.
“Fique no escuro
Os segredos que você mantém estão prontos
Você está pronto?
Sou o que sobrou, sou o que está certo
Eu sou o inimigo
Sou a mão que vai levá-lo para baixo
Fazê-lo ficar de joelhos”
FOO FIGHTERS, THE PRETENDER
“Meu irmão sofreu um acidente, preciso
ficar no hospital com ele hoje”
Fui arrastada de volta para fora um tempo depois, de volta para aquele
salão. Usava uma roupa nova, limpa e sem rasgos, mas não tinha tomado
banho e nem comido nada. Era mais de um dia sem comida e tinha ganhado
apenas um pouco de água.
Em dois dias já existia em mim uma vontade de desistir sem tamanho,
de implorar pela morte apenas por saber o que me aguardava, mas a velha
Onira, aquela que lutou para sair da pobreza com o irmão e chegar ao topo
não deixava. Ainda existia um pouquinho da voz dela gritando dentro de mim
“Não desista”.
Mas, eu queria, queria parar de lutar.
Meus pulsos já estavam inchados da corda que os mantinha unidos, era
um aperto forte e seguro, que não importou quantas vezes tentei afrouxar, foi
em vão.
Me perguntava o que aconteceria agora que a médica já esteve ali, uma
mulher. Ela me olhava nos olhos e conversava com os homens como se os
conhecesse bem, sabia tudo o que acontecia lá dentro e simplesmente não se
importava. Ela entrou, me fez urinar ali mesmo, na frente de Freya, Mudié e
outro homem, depois esperou, e quando saiu o resultado, me deu um sorriso
que não pude interpretar.
E o pior era que eu não sabia se estava ou não. É claro que existia a
chance, mas nunca pensei em uma criança tão cedo, na verdade, nem sabia se
queria uma. Na perspectiva de que poderia tê-la e ela ser tirada de mim por
um culto religioso falso, que servia apenas como fundo para um traficante de
pessoas... isso me aterrorizava além do que eu já estava.
O que Demeron pensaria?
O pensamento sonhador no meio daquela selva foi inesperado, mas a
imagem dele com uma pequena criança, mesmo que fosse a realidade mais
distante, me acalentou.
Quando isso vai terminar?
— Assista, Onira, assista o que vai lhe acontecer. — Tremi ao ouvir a
voz de Kazel, e Mudié segurou meu rosto na direção que o homem segurava
a garota. Ele batia nela por trás incessantemente, seus cabelos longos e
cacheados balançavam com os movimentos, suas mãos escorregavam e ela ia
para cair, mas se segurava no último minuto. Estava mole, com os olhos
turvos, assim como todas as outras. Todas drogadas.
Freya era a única que estava constantemente sóbria, nada lhe era
aplicado, e ela não apanhava sem estar no salão. Mesmo quando não
obedecia em nossa cela ou demorava a cumprir uma ordem. Mas, fora ela, e
por enquanto, eu, e todas as meninas, vivíamos sob o efeito de algo.
Mudié colou seus lábios no meu ouvido, enquanto me fazia assistir a
garota sendo machucada pelo homem gordo e velho.
— Por mais que nós adoraríamos que tivesse um bebê para fazer muito
dinheiro com ele, felizmente você não está grávida — sussurrou. — O que
significa que sua boceta é nossa, até que alguém coloque uma criança aí
dentro. Isso te deixa feliz? — Acariciou meu pescoço. — Nunca saber quem
é o pai do seu bastardinho perdido pelo mundo? Mas não se preocupe. Se for
uma menina, vou me esforçar para que Kazel me deixe ficar com ela.
Ao passo de que a revolta me possuía pelo significado de suas palavras,
não tive tempo de reagir, pois uma faca brilhou na mão do velho e sem que
ninguém fizesse nada para pará-lo, ele passou a faca pelo pescoço da menina.
Um grito horripilante me escapou, rasgando a garganta e minhas entranhas, o
medo absoluto me corroía. Eu assisti horrorizada quando ele sorriu na minha
direção e começou a vir diretamente para mim. Era isso? Meu destino estava
selado?
— Não — implorei a Mudié, mais uma vez. — Por favor, não...
Me forcei para trás, mas ele me segurava firme, sem chances de escapar.
Quando o homem esticou a mão para meu rosto, fechei os olhos, desejando
morrer. Não tinha para onde ir... Mas ele nunca chegou a me tocar.
Senti um impacto em minha perna e olhei para baixo, vendo-o caído,
gritando, segurando a perna. Desnorteada com o que havia acontecido e pela
comoção que se causou, olhei em volta, buscando o que viria a seguir, mas
então, meu mundo inteiro parou.
Minha respiração travou.
Quase não sentia meu corpo.
Com o cabelo preto e as mãos nos bolsos da calça de
um terno, Demeron vinha em minha direção.
Eu não sabia se era uma miragem, se já havia morrido e era minha alma
tendo uma ilusão de esperança, se simplesmente estava vendo coisas.
Minha miragem parou a poucos passos de mim e virou para o palco.
Com uma reverência, portando-se como eu nunca o vi fazer antes, ele
levantou a mão.
— Heil! — Meus olhos encheram de lágrimas ao vê-lo fazendo aquilo.
Não.
Não podia ser...
— Sinto muito, irmãos, mas eu a quero para mim. — Franzi o cenho, ele
tinha um sotaque estranho, arrastado e um pouco travado. Mas era ele, era
ele!
— Ivanik Valuev. — Kazel aplaudiu lentamente, então desceu do
púlpito. — Depois de tanto tempo... é realmente você?
Encolhendo os ombros, ele... Demeron... tirou um maço de cigarros do
bolso e chamou uma menina que estava perto, ela imediatamente o acendeu
para ele.
— Estava um pouco ocupado.
— Para nós? Ocupado para seus irmãos?
— Ocupado para qualquer um que não estivesse na cadeia
comigo. — Ele riu. Realmente riu, e olhou ao redor como se contasse uma
piada, atraindo outros risos pela sala.
— Não me diga que estava preso...
— Depois de Oslo tudo desandou.
— Eu entendo, meu irmão — disse Kazel, jogou um braço pelos ombros
de Demeron e apontou para mim. — Mas você não pode chegar aqui depois
de dois anos e exigir minha melhor mercadoria.
— Pelo contrário, acho que mereço esse presente! — Demeron riu e
abriu os braços, como se pedisse o apoio dos homens. Ele parou e
abraçou Kazel de volta. — Ouça... deixe-me passar algum tempo com a
menina lá dentro, depois vamos colocar o assunto em dia.
Kazel sorriu de volta e bateu nas costas dele, dando-lhe um tapa fraco no
rosto.
— Não. Você sempre teve essa história de ir para um lugar privado, mas
isso acabou. Quero vê-la, então faça na minha frente. Quando terminar, eu
vou foder o rabo dela lubrificado com a sua porra.
Meu sangue gelou. O coração desnorteado, não sabia se parava ou
acelerava a ponto de um ataque cardíaco.
Demeron o observou em silêncio, fumou o cigarro calmamente para só
então responder.
— Não poderei acatar seu pedido.
Tudo aconteceu muito rápido. Freya estava ajoelhada ao lado de Kazel,
de cabeça baixa e de repente um tiro soou e ela estava gritando, tentando
estancar o sangue que saía da perna ferida. Kazel apontou a arma para mais
uma menina e atirou no peito, depois em outra e atirou na garganta.
— Você sabe que gosto do número quatro — falou para Demeron e
apontou a arma diretamente para mim. — A próxima bala será na cabeça
dela.
Comecei a tremer sem controle, sabia que Kazel não estava blefando. Se
aprendi algo o observando, foi que sua crueldade não tinha limites. As duas
meninas mortas na minha frente, e Freya agonizando de dor eram outras
provas disso.
Contrário ao meu desespero, Demeron riu.
Ele realmente estava rindo?
— Não posso ter minhas preferências?
— Seu sexo privado com essas garotas todas às vezes sempre se
escondendo nos quartos, me faz pensar que, ou você não tem um pau, ou não
está fazendo nada. Então eu me pergunto, Ivanik, você está me enganando?
Ou será que é a porra de um viado?
Sem se perturbar, Demeron prendeu o cigarro entre os lábios e olhando
para Kazel, começou a desfazer seu cinto. Abismada, boquiaberta, o fitei
enquanto ele abaixava o zíper e depois a calça, apenas o suficiente para
colocar seu membro de fora.
Minhas lágrimas voltaram com força.
Minha respiração vacilou ao ver que não existia uma centelha de
emoções em seus olhos, só um sorriso irônico, como se estivesse entediado
com tudo.
— Acha que eu sou uma bichinha?
Kazel deu de ombros, a arma ainda em minha direção.
— É sempre bom deixar claro o que o Reich acha de homens que
marcham para trás. — Ele me fitou e acenou com a arma. — Pegue no pau
dele.
— Kazel... — Demeron falou, parecendo um pouco tenso agora.
— Você não a queria? Vai ter.
A repulsa me veio com força no pedido. De Kazel, de sua perversão, de
saber que se eu não fizesse isso ele continuaria atirando nas meninas e depois
em mim... Repulsa por Demeron estar ali.
De terno, com um sotaque, um nome russo, fumando um cigarro e rindo
com aqueles homens, de fazer parte daquilo. De saber que foi para quartos
com aquelas meninas!
Oh, meu Deus...
Não era apenas padre Terry, Mic e Style... Demeron também havia
acabado comigo. Todos eles juntos contribuíram para que minha luta, minha
vontade de voltar para casa fosse embora. Me sentia fraca por não aguentar
dois dias o que aquelas meninas aguentaram a vida inteira, mas ter o homem
que eu amava estuprando mulheres e matando crianças... isso me matou.
— Anda, pegue. — Kazel pausadamente mandou.
Alguém cortou a corda que segurava meus pulsos, e as lágrimas da dor
lacerante começaram a descer, já nem sentia mais meus dedos, estavam
congelados do aperto sem fim.
— Pegue. Agora!
Soltei um soluço, incapaz de fazer o que ele pedia. Demeron estava ao
meu lado, apenas a um levantar da minha mão de distância, mas meus
músculos não entendiam isso. Não obedeciam!
— Não posso — sussurrei para mim mesma, mordendo o lábio inferior
em agonia. — Não consigo.
Ouvi passos pesados se aproximando, e meu cabelo sendo puxado,
depois, um tapa forte me atingiu. Os olhos demoníacos de Kazel estavam
estreitos, a arma passando pela minha mandíbula.
— Quando eu mandá-la fazer algo, você fará, puta! Transe com essa
vadia agora ou eu farei isso, e apenas pelo seu desrespeito, vou matá-la
depois. Então vou caçar a sua família, matar os homens e vender as mulheres,
entendeu, Ivanik?
Eu não queria que ele me tocasse, não ali, não com todas aquelas
pessoas vendo, não sabendo o que ele fazia. Mas, não adiantava desejar algo
naquele lugar, as esperanças eram as primeiras coisas que morriam ali
dentro.
Pela primeira vez, quando olhei nos olhos de Demeron, ele devolveu o
olhar. E não havia nada. Como uma tola, ainda me obriguei a sentir que me
ajudaria, a esperar que de algum modo impossível me tiraria dali. Fui atingida
novamente, o gosto metálico do sangue invadindo minha boca. Isso foi o
suficiente para ele afastar Kazel, empurrando-o.
No momento que fez isso, os barulhos de armas sendo destravadas
foram quase ensurdecedores. Todas apontavam na direção dele. Percebi
naquele minuto que por ter tocado o líder, todos iam matá-lo.
Mas ele riu novamente.
— Eu já te disse que gosto eu mesmo de machucá-las, mas você a
deixou sangrando.
Só que Kazel não estava mais achando engraçado, ele apontou para
outra menina e atirou sem hesitar. O homem que a segurava se afastou com
um pulo, quase correndo da sala.
Sabendo que ele não pararia, que ia matá-las até chegar a mim, forcei
meus músculos a reagirem e fiquei na frente de Demeron, ergui a mão direita
e olhando-o nos olhos, fechei meus dedos em seu pênis.
Sua expressão não alterou, ele desviou preguiçosamente os olhos para
cima da minha cabeça, onde Kazel estava, e tragou o cigarro, soltando a
fumaça naquela direção. As armas ainda apontadas para nós.
— Solte. — Não me olhou, mas eu sabia que falava comigo. Obedeci
imediatamente. — Traga-me uma venda.
Tive dúvidas se estava falando comigo, e ele viu isso em meus olhos.
— Ela não precisa fechar os olhos, deve se acostumar com o que verá e
fará aqui.
— Isso não é sobre ela, irmão, é sobre mim. — Senti de repente seu
toque discreto em minha cintura e me condenei por sentir uma rajada de
calor, conforto. — Você querer interferir nos meus desejos, isso não me
agrada.
Demorou um pouco, mas o ouvi responder.
— Pode trazer a venda. E sentem-se, pois o espetáculo vai começar.
O espetáculo...
Seria um show de horrores que durante o tempo que eu vivesse, ia me
lembrar. Ter minha intimidade exposta, explorada, desejada por pessoas tão
repulsivas... Isso jamais iria embora. A vergonha, o medo, a forma como eu
sempre me sentiria humilhada estariam gravados na minha mente.
— Olhe para mim. — A voz firme ordenou, relutante, obedeci. Os olhos
azuis gélidos que eu amava, aquele rosto perfeito que antes, havia dito tantas
vezes que ia me proteger, e estava prestes a me destruir. — Não tire a venda.
Lentamente, ele deslizou a faixa cobrindo meus olhos. O pânico
começou a crescer, mas segurei-me para não reagir. Kazel estava perto. Ele,
sua arma e sua violência que já me fizera sangrar e faria novamente.
Então, o que eu não esperava aconteceu.
— Posso? — O sotaque havia sumido, era apenas ele dessa vez.
Um alívio pesaroso me invadiu quando assenti. O que eu podia dizer?
“Não”? E morrermos ali, no meio daquela bagunça nojenta? Morrer ao lado
do homem que eu infelizmente amava?
Me consolei com o fato de que seria a última vez. Me imaginei num
mundo onde estávamos só nós dois, e que quando ele me inclinou sob a
cama, ficando atrás de mim, os barulhos eram da rua, ou que estávamos em
uma festa e loucos de paixão, resolvemos nos esconder num dos quartos
vazios e fazer amor. Que quando suas mãos subiram por minhas pernas,
levando o tecido transparente para cima até me desnudar da cintura para
baixo, os arrepios que correram pelo meu corpo foram de excitação.
Seu corpo caiu sob o meu, os lados o terno caindo aberto dos lados do
meu corpo, cobriram-me como uma cortina, senti seu hálito em meu pescoço,
sua mão acariciando-me, e mordi o lábio com força, rompendo a pele, ao
perceber que sim, pouco importava onde estávamos e quem ele era. Ivanik ou
Demeron, eu estava molhada com o simples toque de seus dedos.
Ele afastou meu cabelo para o lado, raspando a ponta dos dedos pela
queimadura e eu gritei. Ele travou. Kazel soltou uma risada estrondosa.
— Isso! — gritou.
Tinha pensado que Demeron havia me machucado de alguma forma.
— Lembre-se da montanha do diabo. — Sua voz, sem sotaque, apenas
ele, sussurrou no meu ouvido. — Não me odeie, por favor, liebe, não me
odeie mais.
Então eu o senti.
Senti seu membro escorregar para dentro de mim, suas mãos em minha
cintura e meu corpo afundado no colchão. Abri os olhos ao ouvir um gemido
feminino por perto, mas a venda só me permitia ver sombras. Os fechei
novamente, não querendo ver nada.
Lembrar da montanha do diabo? O que isso queria dizer? Em minha
mente perturbada, que tentava navegar pela situação que passava no
momento e buscar minhas lembranças, brevemente uma me veio. Comecei a
buscar mais fundo, tentando lembrar do que conversamos naquela noite.
Meus pensamentos foram imediatamente para aquele dia, quando nos
sentamos no lugar mais alto de Berlim e ele lamentou sobre não ser capaz de
desfazer as manchas de um passado.
“Nós estamos sentados sob a guerra. Os escombros de anos e anos da
reconstrução de Berlim depois da queda. Wehrtechnische Fakultät foi
construída aqui debaixo para treinar jovens nazistas. Soldados criados pelo
ódio e intolerância. Esse é o lugar mais alto de Berlim, vemos toda a cidade
daqui, mas, ainda assim, isso foi chamado de montanha do diabo. Acho que
foi merecido.”
Ele me segurava numa posição na qual eu mal podia me mover.
“Se você tivesse a chance de salvar alguém que sofre nas mãos de quem
ainda comete atos em nome dessa ideologia, você faria isso?”
Kazel e Mudié. Freya.
“Se estivesse a apenas alguns passos de salvar uma centena, mas
tivesse que quebrar regras para isso, ainda assim faria?”
Aos poucos, cada palavra fez sentido. Pelo menos, o que eu imaginava
ser certo. Mas, podia ser realmente aquilo, ou era ele mentindo de novo, me
manipulando outra vez? Sempre fez isso, aliás, sempre mentiu. Até ali eu
estava bloqueando o mundo lá fora, tranquei nós dois numa bolha onde a
sensação dele entrando e saindo de mim era a única coisa que podia sentir.
Mas, ao perceber isso, me senti doente.
Ergui minha mão, quase alcançando a venda para tirá-la quando ele
pegou meus dedos e segurou, impedindo-me de ver. Por quê? Não queria que
eu visse do que ele fazia parte?
Minha respiração entrecortada em meio às lágrimas não era porque ele
me machucava fisicamente. Não. O que ele estava fazendo era pior. Porque
eu sabia que estava ali como consequência de algo que ele fez. Ele e Style.
Era culpa deles. Todo o sofrimento e a dor era na minha alma.
Eu podia ver como se fosse uma imagem a minha frente, meu coração já
rachado, quebrando em pedacinhos que viravam pó.
Não havia explicação para aquilo.
Para o homem que eu acreditava amar e desejava passar o resto da
minha vida, alguém que considerei planejar meus votos de eternidade, estar
vestido como se estivesse pronto para participar de um ritual. Que
cumprimentava os outros presentes com uma saudação de morte, que olhava
através de mim, fingia não me ver. Era como se não me visse. Como se não
me conhecesse.
Nunca foi verdade. Tudo o que nós éramos se resumia a aquele lugar.
E isso era tudo o que era.
Uma noite que destruiu outras mil. Outras cheias de momentos puros
que estavam gravados em minha memória, encrustados em meu coração.
Onde o homem que eu amava com toda a minha alma se desfez diante
de mim.
O homem que eu adorava era nada além de um soldado.
Um soldado frio e calculista.
Um homem de pedra.
Um soldado de gelo.
E eu nunca fui nada para ele.
“Não tenho mais lágrimas para derramar
Então eu estou me levantando”
ARIANA GRANDE, NO TEARS LEFT TO CRY
— Onde acha que estamos? — perguntei a minha agora familiar
companheira de cárcere, mesmo já imaginando sua resposta, era bom
simplesmente falar.
Estava olhando aquela parede há horas e ela não ia cair com a força dos
meus pensamentos, tampouco me transportaria para longe.
— Na Kambarys, com o mestre e nossos senhores. — Freya respondeu
como se fosse óbvio.
Sim, claro que sim.
— Tem algum lugar que você queria ver? Queria visitar?
Seus olhos confusos piscavam sem saber como me entender, ela não era
burra, apenas provavelmente nunca tinha sido exposta a uma conversa com
alguém que conheceu o mundo. Continuei falando, quem sabe quando
chegasse a minha vez, ela pudesse começar a imaginar algo, qualquer coisa
com o que deixei em sua mente. Eu sabia que não ia aguentar muito, era só
questão de tempo.
Se não podia tolerar o sêmen seco de Demeron grudado em minhas
coxas e as marcas de suas mãos na minha pele, como suportaria qualquer
outro homem?
Se me oferecessem comida ou banho, escolheria o banho e ficaria mais
três dias sem comer. A vergonha era insuportável.
Depois de ele ter se retirado de mim, me fez ajoelhar e ficar aos seus pés
enquanto falava sobre o tempo perdido com outros homens. Não sabia quanto
tempo tinha ficado sobre meus joelhos, humilhada aos pés de Demeron.
Embora ele não tenha se importado. Quando terminou seus assuntos,
chamou Kazel para falar em particular e foram para um canto,
então Mudié foi ordenado a me levar de volta para o “quarto”. Eu me
perguntava se ele não pensava em mim, se nenhum dos momentos que
passamos juntos foi capaz de instigar algum sentimento nele.
Pelo menos culpa!
Ele não me olhava nos olhos, e depois de me usar no salão, deu-me as
costas como se fosse só um buraco qualquer onde se aliviou.
— Eu queria ter visitado Veneza, na Itália. Dizem que as estações do
ano por lá são diferentes. Que até mesmo o cheiro muda. — Ri sozinha,
pensando. — Daria tudo para me sentar numa praça de Veneza e comer
um arancino ou um cannoli.
— Onira — Freya sussurrou, e de repente, senti seu toque em minha
testa. — Você está bem? Está dizendo coisas estranhas... o que é estação? E
esse tal de Itália?
Se tivesse mais alguma lágrima, eu as teria soltado. Pobre coitada, pobre
menina coitada. Brutalizada por toda a sua vida, sequer disseram a ela o que
são os países, ou as mudanças de clima, coisas que até pessoas de lugares
menos desenvolvidos têm.
— Há quanto tempo está viva, Freya? — Tentei perguntar de uma forma
que entendesse.
— Tenho dezenove anos de idade. Sei disso pois é a data que recebo
presentes, o Mestre me disse que eu deveria contar cada ano. Me ensinou a
contar até vinte e cinco.
Franzi o cenho.
— Por que até vinte e cinco?
— Porque não precisarei contar mais anos depois disso, acho que minha
contagem termina aí.
O desgraçado abusava dela desde o nascimento, e a sentenciou à morte
simplesmente porque quis. Provavelmente sua fábrica só podia ter mulheres
jovens. Meu coração doeu por Freya e por pensar no que aconteceria a ela.
Mas, de repente comecei a rir, refletindo comigo mesma nos meus vinte e
seis anos de idade.
Talvez devesse dizer a Kazel que era hora dele finalizar minha contagem
também. Assim pelo menos, estaria longe daquele inferno.
Fechei os olhos, sugando uma respiração e soltando-a lentamente.
Você está realmente desejando morrer?
O “sim” estava na ponta da língua, mas então o barulho do ranger da
porta soou e Freya nem se moveu, acostumada a estar preparada, mas eu, de
cabeça baixa, no momento em que vi as pernas cobertas por uma calça social,
pulei no desgraçado. Fosse Mudié ou fosse Kazel, eu não me importava.
Podia morrer lutando, mas não ficaria parada. O pensamento de implorar pela
morte estalou algo em minha mente que até então, eu tinha deixado para lá.
Eu tinha uma vida, um trabalho, pessoas que se preocupavam comigo!
Mesmo que fossem apenas Slom e meus fornecedores, ou os clientes mais
próximos. Mas, mesmo que fosse sozinha não podia me conformar, eles eram
monstros, e iam saber disso.
Mas, não era nenhum dos dois, e depois de um surto socando onde eu
pudesse atingir, finalmente foquei nos olhos, já que os cabelos não eram mais
loiros, não pude diferenciar, mas aqueles olhos azuis jamais seriam iguais a
qualquer outro. Ele segurou meu braço, empurrou a porta e encostou-me na
parede.
— Pare com isso.
— Não me toque, seu desgraçado, tire as mãos de mim! — Eu gritava.
O odiava. Detestava seu rosto, sua voz e sua presença. Repudiava tudo o
que ele era. Doía tanto olhar para ele e lembrar de um amor que queria virar
ódio, que quase não me aguentei de pé.
— Pare de lutar comigo, liebe.
— Não vou voltar para lá, não farei parte do seu show infernal! Não
posso acreditar que faz parte disso, não posso! Quem é você? Hein?!
— Cale a porra da boca, você vai chamar a atenção e eu não tenho
tempo!
— Chamar a atenção? Você já fez isso quando me fodeu na frente de
todas aquelas pessoas, daqueles homens doentes!
Ele respirava com força pelo nariz, a boca travada.
— Está feliz, Demeron, não era o que você queria? Style está morto, eu
estou finalmente pagando o preço que sua família queria que pagasse e você
me quebrou. Está feliz? Eu me entreguei a você e agora vou pagar por isso.
Cada homem desse lugar vai me tocar e eu vou morrer um pouco cada vez
que acontecer.
— Ninguém tocará em você — rosnou, seus olhos faiscando.
— Mesmo? Como vai impedir isso, atirando em qualquer um pelado que
venha com uma faca para cima de mim no salão? Porque esse é realmente o
sonho de relacionamento que eu sempre quis. — Um sarcasmo amargo
embalava cada palavra.
— Vou tirá-la daqui agora.
Eu bufei.
— Você já me machucou o suficiente, não ouse mentir para mim agora.
— Liebe, escondi inúmeras coisas de você, mas nunca menti e não vou
começar agora.
A dúvida penetrou minha mente. Parecia falar sério, mas falava? Eu
aceitei me casar com esse homem, mas tudo o que houve depois... todas as
mentiras...
— Onira! — Ele chamou, me trazendo de volta.
— E as outras meninas? Não posso sair sem elas!
— Tenho um plano em andamento, elas não ficarão aqui por muito mais
tempo.
Engoli em seco, duvidosa, morrendo de medo de ter esperança.
— Vai realmente nos tirar daqui? — sussurrei.
Seu olhar de ferro se desfez ligeiramente, e algo que nunca vi lá,
apareceu. Não sabia o que era, pois nunca havia visto antes, mas foi como se
por alguns segundos ele tivesse tirado uma máscara e me deixado ver o que
tinha por baixo. Segurou meu rosto firmemente.
— Sim, liebe. Vou levá-la para casa.
Não sei o motivo, mas decidi uma última vez acreditar nele. Também,
que escolha tinha além dessa? Ficar sentada ali esperando até
que Mudié voltasse e Kazel colocasse seus planos em prática comigo?
— Certo. — Tentei falar com firmeza, então virei para Freya e estendi a
mão. — Vamos.
Ela arregalou os olhos e ficou de pé.
— Pensei que só voltaríamos ao salão ao amanhecer.
— Não voltaremos aquele inferno. Nós vamos embora.
— Ir... embora? Eu... eu não entendo.
— Existem outros lugares, Freya, uma nova vida, tudo bem? Nós
estamos indo para lá.
Não havia nenhuma possibilidade de nova vida depois de passar
pela Kambarys, mas convencendo alguém que ficou ali por anos, por sorte,
também convenceria a mim mesma. Seria bom acreditar em mentiras que
dessem esperança àquela altura.
Freya parecia perdida, e estava. Não sabia de nada além daquilo, esteve
dentro das Kambarys sua vida inteira.
— Não posso ir. — Balançou a cabeça negativamente, lambendo os
lábios e indo para trás.
— O que quer dizer com não pode ir?
— Não posso deixar o Mestre.
— Ele não é seu mestre, Freya... ele é um abusador. Um psicopata!
Todo o rosto se franziu.
— Um o quê? Ele... ele é meu criador.
— Não temos tempo — disse Demeron, e aproximou-se dela. — O
Mestre me pediu para levar vocês duas a outra Kambarys. Você não quer
desobedecê-lo, não é?
— Ele mandou? — Engoliu em seco. — Mas ele nunca me deixa ir para
outro lugar sem ele.
— Deixou porque hoje você foi uma ótima menina, muito boa. Então ele
vai recompensá-la quando chegarmos lá.
Eu vi seus olhos brilharem numa esperança tão honesta, que se meu
coração já não estivesse quebrado, teria sido ali mesmo. Ela estava
desesperada para agradar aquele homem horrível. Levantou prontamente e
assentiu.
— Então vamos!
Busquei os olhos de Demeron, mas já não havia mais aquela centelha de
sentimento. Novamente era como se eu não estivesse ali, como se fôssemos
nada um para o outro. Ele juntou minha mão na de Freya e nos mandou ficar
atrás de seu corpo. Então ajeitando uma arma em cada mão, abriu a porta.
“As rachaduras não vão se consertar e as cicatrizes não irão desaparecer
E me sinto como se estivesse afogando
Você está em meus pensamentos
Sempre”
GAVIN JAMES, ALWAYS
Nós vamos todos morrer.
Esse foi meu pensamento fixo enquanto passávamos pelo corredor.
Meus pés descalços eram maltratados pelas pedras e poucos cacos de vidro
que tinham no chão, podia ouvir alguns gemidos e barulhos que vinham das
meninas presas nos outros quartos.
Insisti a Demeron, implorando a ele se não havia como tirá-las dali, se
não podíamos resgatá-las e levar todas para fora. Aquele lugar era um
inferno que não podia ser descrito. Talvez nem inferno descrevesse tão bem,
e eu sabia que se realmente conseguisse escapar, nunca poderia esquecer cada
rosto que vi sofrendo naquele salão.
Chegando ao fim do corredor, Demeron pegou um tipo de rádio
pendurado em sua calça e falou algo que não entendi, mas não ouvi a
resposta e nem sabia se teve uma.
— Vamos, rápido! É por aqui. — Abriu uma porta e esperou que
entrássemos, então nos encarou. — Não soltem as mãos. Quando eu disser
para correr estejam preparadas, e vão direto para o carro do outro lado da rua.
Entenderam?
Eu assenti, mas Freya hesitava, não entendia o que acontecia, mas
claramente percebeu que tinha algo errado. Me preocupei com sua perna, mas
ela sussurrou que estava tudo bem, dizendo que não ousaria desobedecer ao
Mestre.
Eu já estava mais do que preparada.
Empurrando uma outra porta, ele segurava as armas e tinha os olhos
atentos à frente. Travei ao ver o salão a nossa frente, mas estava
completamente vazio, havia apenas um homem andando lentamente no meio,
todo de preto e logo foi para baixo quando Demeron disparou a arma
silenciosa. Atravessamos atrás dele, e virava e olhava para todos os lados sem
parar e abriu outra porta, mas dessa vez, estávamos fora da igreja, parecia um
armazém e lá, tinha apenas o padre Terry. Por um momento meus pés ficaram
travados, não pude me mover e Freya que parecia já me conhecer pelo menos
um pouco ou ao menos, reconhecer quando eu estava com medo, segurou
minha mão mais forte e me puxou, dando apenas um impulso para que eu
voltasse a andar. Padre Terry não me olhou nos olhos, via seus lábios se
movendo enquanto falava com Demeron e ao mesmo tempo andava ao lado
dele, mas não conseguia ouvir nenhuma das palavras que diziam.
— O carro está lá fora. — Demeron informou, dando uma das armas a
Terry.
— O plano é simples e silencioso. Kazel e Mudié estão indo para outro
local, vão comprar e vender suas garotas que acabaram de chegar de Madrid,
depois ficarão na Kambarys do Caribe e esperarão que algumas das meninas
que estão aqui sejam enviadas. — O Padre desviou o olhar para Freya. — Ele
vai enlouquecer quando ela não aparecer, vai caçá-la até o fim do mundo, sua
privacidade, intimidade, e o sossego acabou, sabe disso, não é?
— Já a deixei para trás uma vez e não farei de novo. Com a Liga nos
escondendo, ele não nos encontrará tão cedo.
— Quando você armou o circo do casamento, sua imagem foi exposta,
mas Kazel não te reconheceu, o que é uma vantagem para nós. Mas terá
que ficar escondido até terminarmos tudo e... — Padre Terry ia dizer mais
alguma coisa, mas sua frase foi cortada na metade quando tiros soaram ao
redor. Freya e eu fomos empurrados para o chão e de repente senti um peso
em cima de mim, fechei os olhos com força, sufocando com o impacto e
passei um braço em torno de Freya, que estava ao meu lado em posição fetal.
Uma guerra se iniciou a nossa volta.
Os olhos amarelos estavam grudados aos meus, arregalados. Era como
se ela tivesse se segurando em mim. Um tiro foi disparado e pegou bem
acima da minha cabeça, no segundo seguinte, fui posta em meus próprios
pés, ainda com uma chuva de tiros voando sobre nós.
Demeron gritava algo e me segurava firme pelo braço, levando-me em
direção a uma enorme porta e apontando a arma, atirando sem cessar.
Estávamos quase lá quando ele amaldiçoou e jogou a arma longe.
— Estou sem munição, porra! Sem munição!
Busquei seus olhos, aterrorizada, e continuamos correndo, apenas padre
Terry segurando os homens que tentavam nos atingir.
— Demeron...
Ele engoliu em seco e me fitou nos olhos.
— Onira...
Uma luz literalmente surgiu do nada e olhei para a frente, vendo que a
porta do armazém tinha sido aberta, e de lá, vi um homem com grandes
cabelos e óculos escuros que não reconheci entrar com uma arma atirando
para todos os lados e gritando, e ao lado dele... meu irmão. Não parei ao
ver Style, não podia. Demeron estava gritando em meu ouvido
e Freya dependia de mim. Mas o desespero que senti ao vê-lo entrar ali
enquanto eu saia foi grande. Mais dois homens entraram logo atrás, dois
japoneses. Style não me olhou, mirava e atirava sem nenhuma expressão em
seu rosto vazio, assim como cada um deles.
Passamos pela porta e chegando do lado de fora, os tiros continuavam lá
fora ficando cada vez mais altos. Fomos recebidos pela luz do sol e percebi
que realmente dentro daquele lugar não havia como ter noção do tempo, pois
eu pensava que era noite e lá fora continuava claro. Era feito para nos
enlouquecer.
Clareava e escurecia, e as pessoas viviam suas vidas sem ter ideia de
que ali dentro existiam dezenas de mulheres sofrendo pela ambição e doença
que a loucura de um único homem podia causar.
Olhei para trás enquanto corríamos e um carro foi aberto, assim
como Demeron disse. Antes de ser empurrada para dentro vi que estávamos
no meio do nada, aquele galpão enorme tinha apenas terras em volta, não
nenhuma casa, nem pessoas passando, sequer uma rua. Por isso ninguém
ouvia os gritos ensurdecedores, os tiros, os cantos... não importava quantos
barulhos nós fizéssemos ali dentro, as pessoas do lado de fora
continuariam alheias a tudo porque jamais poderiam saber.
Ninguém chegaria para socorrer.
— Abaixem a cabeça! — Meu ex noivo mandou. — Abaixem a cabeça.
Fiquem com a cabeça abaixada!
O ouvi gritar mais e mais e outro carro parou em frente ao prédio. Os
homens que entraram com Style pularam dentro e meu irmão entrou na
direção ao mesmo tempo que Demeron tomou o volante do nosso. Logo,
estava dirigindo numa velocidade que eu nunca tinha visto antes.
O aperto de Freya em minhas mãos machucava, era tão doloroso que eu
sabia que sentiria por alguns dias. Mas não me importei. Precisava sentir
algo. Seus olhos ainda não haviam desgrudado dos meus, mesmo quando eu
não a encarava. Eu não sabia o que ela procurava, mas não pedi que ela
soltasse o aperto e nunca pediria. Enquanto aquele galpão ficava mais
distante e os tiros não podiam mais ser ouvidos, eu não tinha nenhuma ilusão
de que o inferno tinha acabado e que nossas vidas voltarem ao normal.
Nunca mais existiria normal.
Apertei sua mão mais forte.
A última coisa que eu queria ver depois de sair daquele lugar, era aquela
mansão.
A mansão onde todo engano começou, onde eu me entreguei ao pior dos
homens. Mas não protestei quando nos levaram para dentro. Era a única vez
que estaria vendo todas aquelas pessoas, e mesmo tendo nos enfiado naquela
confusão, acabaram me salvando. Eu não sabia os motivos, mas pretendia
descobrir antes de ir embora. Mantive minha mão grudada a de Freya por
todo o caminho, mesmo quando íamos entrando. Ela era a única pessoa que
podia entender o que estava passando em minha cabeça e que sentia junto
comigo toda dor.
Andamos com calma para dentro, machucadas, doloridas, confusas e
com medo do mais leve suspiro soprado em nossa direção.
Lá dentro, na enorme sala, reconheci Kaladia, Regnar, Siriu e Liémen,
a quem Demeron tinha me apresentado em nosso noivado. As expressões não
revelaram nada, eu podia apenas reconhecer a fúria que emanava de Siriu.
Quando estávamos todos lá dentro as armas de meu irmão, o cara de
cabelos grandes e de Demeron foram jogadas ao chão. Franzi o cenho, sem
entender, então Siriu andou em linha reta direto para Demeron, desferindo
um soco tão forte em seu rosto que o fez tropeçar, mas ele não devolveu.
— O que você fez não tem volta! — esbravejou, segurando-o pela gola
da camisa social toda surrada.
— Eu não dou uma merda.
Eles começaram a lutar num piscar de olhos.
O de cabelos grandes se envolveu, logo armas estavam empunhadas
novamente e os gritos começaram. Vozes exaltadas que se tornaram gritos e
barulhos de móveis arrastando, quebrando. A mão de Freya suava e começou
a tremer contra a minha. Logo, seu toque se foi e vi de relance quando se
ajoelhou no chão, abaixou a cabeça e começou a cantar aqueles cânticos
que Kazel perpetuou em meus ouvidos. O pânico começou a reverberar da
minha mente para o corpo, e em questão de segundos era tudo o que eu
sentia.
As paredes me sufocavam.
Fechei os olhos apertando-os fortemente juntos pela impressão de que a
qualquer hora Mudié iria me buscar.
Meu irmão declarado morto.
Meu noivo mentiroso.
Sua ex-mulher e, também minha cunhada.
Meus cunhados que tentavam se matar.
Um criminoso amigo da família.
A mulher que havia passado por uma vida de tortura e que me buscava
como conforto, pois tudo em volta dela era desconhecido.
As vozes começaram a fazer minha cabeça zumbir,
pontos espalharam em frente aos meus olhos, uma tontura tão forte me bateu
enquanto meu coração disparava e minhas mãos suavam que não tive tempo
sequer de encostar ou me sentar. Em um momento estava ali e no próximo
tudo ficou escuro.
Quando acordei dessa vez, puxei meus braços para passar a mão pelo
rosto, mas ela, a dor ao me movimentar, me fez perceber que algo estava
preso. Abri os olhos lentamente, vendo uma intravenosa no braço direito.
Não queria fechar os olhos, não queria que o medo cegante e sufocante de
que seria levada outra vez me pegasse. Queria ficar acordada e entender tudo
o que estava acontecendo, mas ao mesmo tempo queria sumir e nunca mais
ver nenhuma daquelas pessoas.
Reconhecia o quarto enorme onde estava e o conforto da cama. Os
quadros nas paredes estrategicamente pintadas e desenhadas. Era a mansão
de Stark, estava recebendo os cuidados de sua família, os mesmos que me
fizeram ser machucada uma e outra vez.
Sabia que a qualquer momento alguém entraria para me questionar.
Me fariam contar coisas que vi e o que passei e quem estava lá. Eles
não tinham ideia de como isso te faz reviver cena após cena em detalhes do
seu pior pesadelo. Meu pescoço ainda queimava com a marca que foi
queimada em brasa na minha pele, as costas ainda ardiam de tanto
apanhar, meu coração estava quebrado, minha mente perturbada e minha
alma... eu queria que ela apenas saísse no corpo e tudo isso acabasse.
Fiquei deitada aproveitando meus últimos momentos sozinha, pensando
no que faria a seguir. Não existia muitas opções.
Eu estava rodeada de mentirosos e pessoas perigosas. Pessoas que me
usariam para machucar quem eu conhecia sem se importar que eu não era
culpada. Me perguntava se Style ainda estaria lá embaixo, se subiria para me
ver ou se já teve seu destino selado.
E se Demeron entraria ali, continuaria mentindo como se eu fosse a
mesma tola que enganou durante meses ou finalmente me diria algumas
verdades. Seria tão injusto se não pudesse fazer pelo menos isso por mim, me
dissesse pelo que eu sofri. Qual foi o motivo?
E Padre Terry eu nem sabia o que pensar, apenas que era tão perigoso e
culpado quando todos os outros.
Como se cada um dos meus pensamentos fossem projetados na
realidade, a porta abriu e Demeron entrou. Eu não sabia o que dizer
inicialmente, e por incrível que pareça ele também se mostrava sem palavras.
Fechou a porta e ficou parado ali por alguns minutos, apenas me
olhou. Olhou meus ferimentos, meu rosto machucado e meus cabelos sujos e
desgrenhados. Me fitou por inteira, mas sem dizer nada.
Eu queria desesperadamente ouvir algo que explicasse, mas ele não
parecia ter uma explicação.
— Onde está a Freya? — Quebrei o silêncio.
Por algum motivo sabia que ele não faria isso.
Demeron fazia tudo calculado, todas as suas palavras e ações eram
previamente definidas por ele. Mas ali, ele não sabia como agir, a situação
estava fora de seu controle. Perguntei sobre Freya por preocupação genuína.
— Está sendo medicada. Tivemos que dar um calmante para ela quando
percebeu que não estava indo encontrar Kazel.
Eu não disse nada por vários minutos, pensei que ele consideraria isso
como a deixa para sair e me deixar em paz, mas continuou no mesmo
lugar. Se eu tivesse forças teria gritado e jogado algo nele, mas a dor em todo
meu corpo não permitia.
— O que mais você escondeu de mim? — perguntei. Será que, pelo
menos naquele momento ele seria um pouco honesto, quando me olhava de
um jeito que eu nunca tinha visto antes e nem compreendia.
Aliás, vi aquele olhar uma vez, e foi quando disse que me levaria para
casa.
— Muitas coisas. — Foi sua resposta.
— O que eu vi naquele lugar... tudo que você faz... tudo o que você
é... me enoja. Me revolta e me faz ter ódio de você. Me faz ter nojo de mim
mesma por ter estado tão próxima de você. Todas aquelas mulheres sofrendo
lá dentro e você era cúmplice disso.
— Você não entende.
— Não. Eu não entendo, afinal, ninguém nunca me explicou. O meu
irmão estava vivo, você sabia disso e se aproximou de mim para
me usar. Fingiu que não conhecia Style e me encheu de perguntas quando eu
te contei sobre ele, quando te falei coisas que eu pensava que sabia sobre ele
e você já sabia de tudo. Serviu com ele no exército e me fez de idiota... a
maior idiota!
— Tudo isso era maior do que eu e maior do que você. Eu tinha um
trabalho.
— Sim, um trabalho que envolvia me quebrar, me levar para um lugar
onde eu seria constantemente abusada, vendida e humilhada. Você planejou
tudo desde o início, aquela história de que sua família queria me machucar e
por isso ia me proteger, que queria se casar comigo porque queria ficar perto
de mim... eu pensei que você me amasse! Demeron. — Segurei o
choro. — Me fez confiar em cada palavra que saía da sua boca, e nunca
sequer gostou de mim! Você pelo menos me suportava quando me pediu em
casamento?
Ele abriu a boca, fechou e abriu novamente.
Aos poucos, palavra por palavra, seus olhos iam se tornando aquele
mesmo opaco que eu conheci. O homem das palavras certeiras que dizia as
coisas que eu tinha que ouvir, não as que eu queria. Assisti enquanto ele se
fechava, como se um botão tivesse sido acionado nele, como se seu
subconsciente o alertasse que eu estava pedindo uma coisa: que fosse
honesto.
— Existem coisas que eu não posso te dizer.
— O homem que você era lá dentro...
— É quem eu sou. Você me viu pela primeira vez.
— Não...
— Todo esse tempo você queria me conhecer, Onira... agora conheceu.
Esse sou eu.
Suas palavras me tocaram no mais íntimo. Era como se tivesse
pegado com suas próprias mãos minhas entranhas e as esmagasse apenas para
garantir que eu sairia daquilo mais machucada.
Eu sentia tudo, a decepção, a tristeza, a dor... era quase um luto.
Tão machucada quanto podia ficar, as lágrimas que eu pensei
terem secado voltaram a cair e com uma força que não sei de onde veio, me
sentei. Ele não se moveu. Tirei meu cabelo das costas e joguei por cima do
ombro, evitando passar os dedos pelo pescoço e tentei esconder o embargo da
minha voz.
— Eu fui queimada a ferro quente. Eles me bateram, me deixaram
passar fome e me humilharam. Não bastam as lembranças, minha pele está
marcada e isso nunca vai sair. — Seu peito subiu com força, a mandíbula
cerrada e os olhos cristalinos fixos em mim. — Freya não soube me dizer o
que era, então ao menos me dê isso. Me diga o que é essa marca.
Levou um minuto, ou talvez dez, mas ele se aproximou, engoliu em seco
e parou a centímetros de distância.
— Vire-se. — A voz rouca me causou um arrepio de dor e saudade.
Culpa também.
Fiz o que pediu e senti seus dedos em meu ombro, meu
corpo tensionou.
— Não me toque.
Sua respiração saiu mais forte, quase bufando, mas ele seguiu o que
mandei.
— Deus... — sussurrou e pela primeira vez, ouvi sua voz fraca, não
como aquele trovão de quando falava comigo.
— Diga-me.
— É chamado de sol negro. Um dos símbolos do nazismo. É um
símbolo ocultista e do misticismo, eles acreditam nessas forças sobrenaturais
que os guardam e dão a eles poderes sobre-humanos. E em volta, tem um
símbolo de Vênus, que significa o sexo feminino. Porém, aqui ele está ligado
à o que eles acreditam que uma mulher significa: sacrifício, fertilidade e
desejo sexual. É a marca que as escravas da Kambarys carregam.
Ouvir cada palavra sem sentido, me despertou da raiva ao ódio, levando-
me ao nojo. Eu não era mais a mesma, nunca poderia ser. Não fui marcada só
por fora. Eu sabia disso e cada pessoa naquela casa também.
Me esforcei para levantar novamente, e me afastei dele.
— O que você fez comigo não tem perdão. Eu nunca vou esquecer o que
passei lá dentro, o que você contribuiu para fazer. Então se existe...
— Onira...
— Se existe — enfatizei, não deixando que me interrompesse.
— Qualquer resquício de humanidade em você, fique longe de mim. Garanta
que sua família ficará longe de mim. Me deixa em paz para
tentar consertar algo aqui dentro. Descobrir se posso seguir em frente mesmo
que eu saiba que as cicatrizes nunca vão embora. Mas, você é a pior
delas, então se pelo menos você sumir, um dia posso ter esperança outra vez.
Ele ergueu o queixo, recuando alguns passos.
— É o que você quer?
— Seu trabalho foi concluído, Demeron?
Uma batida, duas, três.
Levou um século até ele responder.
— Sim.
— Então fique longe de mim.
Dei-lhe as costas esperando que saísse, mas ao mesmo tempo lá no
fundo, onde eu sabia que ainda existia aquela imensidão
de sentimentos, desejei que ele explicasse tudo, que tivesse alguma
forma de ser inocente. Pela primeira vez me segurasse com honestidade e que
fosse recheado de verdadeiro afeto, que me consolasse, porque aquilo era
tudo o que eu precisava agora.
Mas, comprovando sua culpa, a porta abriu e fechou.
Me vi sozinha ali dentro outra vez e deixei que mais algumas lágrimas
caíssem antes de secá-las. Prometi a mim mesma que nunca mais soltaria
uma única lágrima por Demeron Konstantinova.
O homem que me curou e ao mesmo que me destruiu.
“Compartilhe da minha vida
Me aceite pelo que eu sou
Não posso fugir de mim mesma, não tem onde me esconder
Não se atreva a ir para longe de mim
Não tenho nada
Se eu não tiver você”
WHITNEY HOUSTON, I HAVE NOTHING
Quando a realidade de tudo o que tinha acontecido finalmente começou
a se infiltrar em minha mente pude pensar melhor, mesmo que duas semanas
mais tarde eu ainda acordasse ouvindo barulhos, suando e imaginasse coisas.
Estava vivendo um nível de paranoia preocupante e nem mesmo Slom sabia o
que fazer comigo.
Tentei passar os três primeiros dias em casa, jurando a mim mesma que
as cenas daqueles homens entrando e me levando embora era passado, que eu
estava começando outra vez, mas percebi com cada noite que pirava, com os
pesadelos e o medo incessante, que não iam embora.
Na quarta à noite eu liguei para Slom no início da madrugada e ela veio
como um anjo salvador. Não lhe contei tudo e nem achava que estaria pronta
para contar algum dia, na realidade nem queria. Fiquei afastada do ateliê e me
escondi em sua casa, deixei que ela resolvesse tudo.
Quando ela me perguntou onde diabos eu me meti por três dias,
confirmei a história de Demeron: que estava com ele.
Pelo menos, a história que ela disse que ele contou.
Que eu tinha ido visitar familiares na Tailândia, pessoas que tinham me
encontrado através da TV e entraram em contato comigo e fiquei tão
extasiada de rever alguém da infância que fui para lá com o celular desligado
e nem pensei em dar alguma notícia.
Ela gritou por horas seguidas, sem fazer ideia do que seus gritos faziam
comigo, da minha mão tremendo, da minha cabeça quase explodindo, e no
final disse que qualquer outro parente distante que surgisse, ela deveria ser
avisada na hora, porque eu a deixei sem nenhuma notícia com uma única
garantia de Demeron dizendo que eu estava bem.
Aquilo tinha sido outra coisa que me surpreendeu. Ele estava longe, mas
garantiu a quem me conhecia que eu estava bem, o que me fazia pensar com
toda certeza agora que sabia onde eu estava o tempo todo. E eu me
perguntava... Será que tinha planos de me resgatar desde o início ou
simplesmente me deixaria lá e manteria aquela história?
Se eu demorasse, Slom com certeza faria Kurton envolver dinheiro na
busca por mim, ela era a única pessoa que podia se preocupar e me procurar,
e eu sabia com todas as forças da minha alma: ela nunca se daria por vencida
se eu tivesse sumido de vez.
Agora enquanto eu encarava minha casa do lado de fora, estava
refletindo se podia voltar para lá. Ainda que não fosse hoje ou amanhã. Tinha
dinheiro para comprar outra casa, para mudar de país e continuar minha
profissão longe de Berlim, fora da Alemanha, mas a pontada no peito que
sentia cada vez que pensava sobre estar longe não me deixava comprar uma
passagem.
Demeron sempre invadia meus pensamentos, influenciando cada uma
das minhas decisões. Eu era tão tola por ainda considerá-lo, mas eu sabia que
isso era simplesmente porque ainda havia dúvidas, porque eu não tinha
escutado de sua boca porque ele fez tudo o que fez. Porque nunca tive uma
explicação.
Freya me disse para ficar com a dor, aprender a lidar com ela e ficar
quieta até que passasse. Mas existia um jeito de passar? Eu suspeitava que
essa espera levaria o resto da minha vida.
Eu não via mais sorrisos em mim, não tinha mais sonhos e nem vontade
de sonhar, minha antiga missão por querer aumentar minha lista de clientes e
deixar meu nome e minha marca no mundo da arte já não era mais viva. Eu
sentia como uma obrigação. Algo que fazia porque precisava.
Eu costumava dançar em meu ateliê, cantar enquanto criava minhas
esculturas, mas o medo de estar sendo observada era tão grande que meu
silêncio se tornou meu refúgio.
Slom perguntava e eu respondia com poucas palavras, ela aprendeu a
conversar com alguém que não devolvia suas discussões e praticamente
falava sozinha. Eu imaginava como era difícil para ela ter sua melhor amiga e
sócia, sua parceira de sonhos tirada e ser devolvida uma casca, onde tudo que
havia dentro, tinha sido esmagado até não sobrar nada além de
dor, lembranças ruins e uma loucura que crescia a cada dia. Mas é claro que
ela não sabia disso.
Já havia passado três meses e Style nunca apareceu. Nunca ligou e nem
mesmo mandou um de seus estúpidos diamantes para me dizer se ao menos
estava vivo e eu nem sabia se me importava. A traição de Demeron era
dolorosa, mas a de Style era imperdoável.
Eu não podia nem mesmo me dizer se me importava que ainda estivesse
vivo ou sofrendo numa cela fria e sozinha, tamanha era minha mágoa.
Nenhum deles me procurou. Não ouvi falar nem mesmo em Naya. E aos
poucos era como se nunca tivessem sido parte da minha
vida. Demeron seguiu à risca o que eu disse a ele: para sumir assim como
todos de sua família e me deixasse seguir em frente.
Não doía ser abandonada, doía que ele não se importou em precisar
fazer isso.
Foi por isso que na segunda semana do quarto mês, quando a campainha
do ateliê tocou, fui atender com uma faca na mão. A única pessoa que ia ali
era Slom, e os clientes só apareciam quando ela estava, já que eu não os
atendia mais pessoalmente, e ela tinha sua chave. Mas, quando abri a porta
e encarei a última pessoa que poderia imaginar ali, fiquei travada por vários
minutos.
— Angelina?
Ela olhou para meu rosto, desceu por minhas roupas que estavam um
pouco amassadas, minhas mãos manchadas de tinta e quando chegou
na faca presa em meus dedos, ergueu as sobrancelhas. Então, pela primeira
vez, falou comigo.
— É uma defesa e tanto essa que você tem aí. Mas seria mais eficaz se a
escondesse da próxima vez.
A faca estava escondida, mas o choque de vê-la foi tão grande que até
esqueci.
— O que você quer?
— Será que eu posso entrar?
— Eu disse a Demeron, que não queria mais nada com sua família.
— Você disse a Demeron, não disse para mim, então a menos que
também me diga, não sairei daqui até me deixar entrar.
Ela me surpreendeu, mas foi bom que de cara não começou a defender o
neto. Deus sabe que eu poderia usar aquela faca na primeira pessoa que
tentasse colocá-lo como um herói para mim e se nem ele teve coragem de se
defender é porque não estava certo.
— Eu tenho apenas alguns minutos.
— Só preciso de cinco.
Passei para o lado, dando-lhe espaço para entrar, e ela o fez. Era do meu
tamanho, mas os saltos a deixou ligeiramente mais alta, a bolsa elegante
estava pendurada na ponta dos dedos e o casaco de pele bem colocado fazia
jus a ela; uma mulher elegante fina e perigosa.
— É um belo lugar — elogiou. — Se eu trabalhasse, gostaria que fosse
em algum lugar tranquilo assim. — Observava o ateliê e as obras bem
selecionadas que decoravam espaço.
— Obrigada, mas sei que não veio até aqui para conhecer o meu
trabalho, não depois de nunca ter me dirigido uma palavra.
— Não, realmente. Tampouco vim aqui para sanar suas dúvidas. Eu não
sei que tipo de trabalho eles fazem na Liga hoje em dia, mas então isso
é algo que apenas Demeron pode contar a você.
Eu queria ser educada, não queria destratá-la e nem parecer ser grossa,
mas sua presença me deixava desconfortável, me fazer sentir como eu me
sentia dentro da Kambarys; como se fosse menos. Inferior.
— Angelina, se não está aqui para me contar a única coisa que quero
saber, então não vejo motivos para sua visita.
— Você já ouviu falar de yin e yang?
— Sim, já ouvi.
Não tinha como não ter ouvido. Pela minha aparência, as pessoas tinham
aquela imediata impressão de que eu era japonesa, então sempre me
envolviam em lendas e histórias e achavam que eu saberia contar cada uma
delas, pensando que China Japão, Coréias e Tailândia e todos os países
orientais eram um único pacote. Como se México, Colômbia e Brasil também
fosse tudo a mesma coisa.
— Eu sempre fui fascinada nessas lendas — continuou. —
Inclusive, passei minhas crenças para meus netos. É claro que você ainda não
sabe sobre essas coisas, afinal, a forma como Demoron se infiltrou na sua
vida não permitia que ele tivesse falado nada sobre sua intimidade. — Ela fez
uma pausa e suspirou, me encarando com uma estranha gentileza. — E isso
não está certo. Cumprir uma missão não está atrelado a estragar a vida de
outra pessoa, mas de alguma forma meus netos sempre foram assim. Sempre
colocando seu patriotismo e a vontade de cumprir seus objetivos acima de
todas as pessoas e todas as situações.
Liga. Missões. Objetivos.
Eram palavras que ela dizia e viajava na minha mente, sem entender.
— Nesse mundo há muitos segredos. — Ela continuou. — Mas, eu sei
reconhecer coisas que vejo a minha frente, e quando eu te vi na mansão
naquele jantar, preferi não falar com você.
— Eu percebi.
— Preferi não fazer parte da lista de pessoas que te envolveriam em uma
mentira. Por isso, mesmo que agora as coisas ainda sejam confusas e nem
tudo foi posto à mesa e explicado, eu apareci porque você sabe que no fundo
tudo era mentira.
Bufei, cruzando os braços.
— Então você veio aqui apenas para reforçar a crueldade que
fizeram comigo?
— Não. Eu vim para dizer que meu neto namorou duas mulheres, casou-
se com outra e noivou com mais uma, tudo para cumprir uma missão. Foram
quatro mulheres usadas a um ponto mais sério, onde ele fez promessas, criou
um personagem e essa é a função dele. E entre essas quatro, existe uma
grande diferença. Ele calculava cada palavra e cada ação diante delas, mas
com você algo foi diferente.
— Não! — discordei, balançando a cabeça com veemência,
não admitindo que começasse a mentir para mim, que tentasse enfiar algo em
minha mente. — Não quero ouvir nada disso.
— Yin, você encontrou seu Yang. Se há amor, cuide do amor, se há
respeito, lute para mantê-lo sempre e honre suas raízes.
Ela se aproximou, parando a dois passos de mim, e passou os dedos pela
fina corrente em meu pescoço, segurando pingente. Meu coração perdeu uma
batida ao reconhecer dolorosamente que eu não tinha me deixado tirar e jogar
aquilo fora, nem mesmo aceitei a ideia de enfiar no fundo da gaveta onde eu
nunca mais poderia ver.
— Ele fez muitas coisas ruins que jamais serão explicadas. E não apenas
com você, mas esse colar é a maior prova de que em toda mentira algo foi
verdade. Este colar comprova tudo o que estou dizendo. Falta algo. — Ela
soltou o pingente e recuou alguns passos. — Espero que você entenda as
verdadeiras razões dele. Não serão justificadas e nem poderão ser perdoados
com um pedido de desculpas, mas que merecem a chance de ser ouvidas.
— Como um colar prova algo? É apenas um colar! Você não pode vir
aqui me dizer que só veio falar comigo agora porque não queria mentir
quando ao mesmo tempo estava sentada ao lado de Kaladia, que foi alguém
que ele também usou, mas ao contrário do que fez comigo, você a tomou
debaixo dos braços.
Sua expressão não se alterou diante do meu desabafo.
— Sim... Kaladia. Tenho meus motivos e eles não têm nada a ver
com Demeron. Disse que meu neto fez muitas besteiras e ter feito o que fez
com você foi uma delas, mas mais uma vez, se o ódio que sente é o suficiente
para nem sequer buscar uma explicação, isso me mostra que é covarde, que
prefere aceitar que tudo foi culpa dele ao invés de reconhecer que algo muito
maior e pior rondava você.
— Eu busquei uma explicação, fui atrás dele, eu...
— Você o culpou. Fez acusações e depois perguntou. Ele é um homem
extremamente perturbado, Onira, é meu neto e eu mesma tenho medo dele.
Tudo o que ela dizia fazia sentido, mesmo que eu nunca fosse admitir.
Não tinha o que responder, mas nem precisei. Quando terminou o que tinha
de falar, olhou seu relógio, constatando que precisava ir.
— Antes que eu me esqueça, isso estava na sua porta.
Angelina me entregou um envelope um pouco sujo e molhado, que não
estava selado. Inevitavelmente a fitei, pensando se teria sido capaz de
abrir. Como se pudesse adivinhar meus pensamentos, foi até a porta.
— Ah, querida, eu não sou uma das mulheres mais bem informadas de
Berlim à toa.
E com última aceno, sem outras palavras, me deixou sozinha. Quando
ela entrou, meu primeiro pensamento foi que quando saísse eu respiraria
aliviada, mas ao contrário disso, o peso era maior ainda sob meus ombros.
O envelope com algumas partes transparentes da água, mostravam uma
letra que eu conhecia muito bem. Eu queria rasgá-lo e nunca descobrir o que
estava escrito ali, mas, ao mesmo tempo, sabia que me arrependeria para
sempre, que no momento em que fosse impossível de ler, eu me desesperaria
de curiosidade.
Será que finalmente teria minhas respostas?
Eu duvidava, afinal, se fosse isso, por que não tratou comigo
pessoalmente?
Inevitavelmente, meus olhos se fecharam ao pensar na última vez que
meu irmão tinha chegado até mim.
Seria uma despedida?
Tanto me aliviei, quanto me apavorei com o pensamento. Aquela
possibilidade deixava um amargo em minha boca que me fazia quebrar um
pouco a postura de tentar não sentir mais nada por Style, lembrando-me que
afinal, era meu irmão.
Havia me machucado, mas já me protegeu tantas outras vezes! Como se
perdoa isso?
Com dedos trêmulos, abri o envelope e tirei o papel amassado de dentro.
Me perguntei se ele havia repensado a ideia de me entregar aquilo e jogou
fora, mas depois pensou melhor e decidiu enviar de qualquer jeito.
Ao constatar que sim, com toda a certeza era uma carta escrita à mão em
nossa língua materna por meu irmão, uma lágrima rolou.
Oni,
Não ousarei pedir desculpas agora, pois sei que estaria pedindo o
impossível, portanto, vou te dar o que você sempre mereceu e que nunca
deveria ter sido tirado de você: a verdade.
Eu servi ao exército desde que completei a maioridade, e aos vinte e
dois anos fui recrutado para um trabalho especial, um novo departamento.
Quando aceitei, sabia que receberia melhor, que poderia nos dar tudo o que
sempre quisemos: uma vida melhor. Pensei em você, que teria que esconder
aquilo, afinal, você sempre teve um medo absoluto de tudo o que remetia à
violência. Por isso escondi o exército, e criei uma vida perfeita da qual
você poderia se orgulhar.
Minha maior felicidade foi quando te levei na faculdade e você estava
brilhando com a realização de que estava começando a trilhar seu caminho.
Era engraçado pensar que minha irmãzinha seria uma artista, que ganharia
a vida pintando e sentindo, porque você sempre sentiu tudo e muito mais
intensamente, e que eu passaria o resto dos meus dias fazendo o que me era
destinado: lutando batalhas.
Vi mais violência em meus anos do que gostaria que você soubesse,
cumpri missões que me foram dadas sem nunca perguntar o porquê estava
fazendo aquilo, e quando chegava em casa, via você, o sopro de ar puro que
eu recebia.
Por isso, quando entrei para a Liga, Stark me garantiu que cuidaria de
você se algo me acontecesse. Ele sabia que você era tudo o que me
importava. Eu estava levando a vida, mas sabia, sentia que faltava algo,
então comecei a investigar.
Minhas buscas me levaram de volta a Tailândia, lá naquela pequena
vila onde nós pensamos que nascemos. Eu queria estar aí para contar tudo
isso frente a frente, mas não posso e nem sei se um dia poderei. Dói pensar
que ficará sozinha com essas descobertas, e que não terá alguém para te
confortar.
Tudo o que fiz durante anos era somente meu, nunca deveriam ter
tocado em você, mas ver a marca em seu pescoço, saber o quanto a
machucaram e a dor que você sente, me fez ver que tudo o que aconteceu foi
culpa minha.
Eu traí Demeron, traí nosso país, e o mais importante, traí você, minha
pequena irmãzinha. Isso não tem perdão.
Eu vou atrás deles, não apenas por terem machucado você, mas por
tudo o que já fizeram a outras mulheres também, e terminarei isso. Durante
essa jornada vou pedir aos deuses que possa ter alguma chance de poder vê-
la outra vez.
Não é seguro que eu volte, por isso, permaneço morto.
Quando estiver pronta, vá até algum dos Konstantinova, eles vão
explicar tudo o que você ainda não entende, foi o meu último pedido.
Você é perfeita, Oni. Sei que minha apreciação não faz diferença, mas
você é meu maior orgulho.
A única mulher, e a única pessoa que tem meu coração. Eu te amo.
Então, a partir daqui irmãzinha, eu preciso que você seja forte e
corajosa. Preciso que respire profundamente. Consegui minhas respostas,
mas elas são suas também, e você precisa saber mesmo que seja difícil.
ONIRA
Eu nem tinha mais fé, mas estava rezando por aquela menina.
Ela estava sentada há quarenta minutos em cima de uma caixa,
segurando o urso de pelúcia num aperto firme e olhando ao redor com os
grandes olhos azuis, e Demeron estava de pé, imóvel, olhando-a.
Quando menos de cinco minutos depois de me
esconder, Demeron apareceu de novo, fiquei aliviada. Mas, então, saí e vi
Blair no meio da sala e soube que algo estava muito errado. O alívio
imediatamente foi embora.
— Você vai assustá-la.
Ele franziu o cenho.
— Essa história está mal contada.
— Ela é uma criança, Demeron, praticamente um bebê, jogada nessa
confusão.
Minha raiva por Regnar alcançou novos picos e a vontade de bater
repetidas vezes no rosto de Kaladia para fazê-la acordar também.
— Eu sei. Não entendo o porquê aquele estúpido ia jogar a menina na
nossa porta e sair.
Eu também não entendia, mas um pensamento vinha me assombrando e
eu não podia guardar por mais tempo.
— Existe alguma possibilidade de ela ser sua?
Ele virou para mim com olhos saltados.
— O quê?!
— Sua filha.
— Inferno, não! É claro que não! — respondeu, mas voltou a olhar para
ela de uma forma diferente dessa vez.
— Demeron...
— Não pode ser. — Me olhou novamente. — Você acha que... acha que
pode?
Eu quis rir escandalosamente, mas de desespero.
— Como é que eu vou saber? Você deveria ter certeza disso.
— Eu tenho.
— Não parece.
Ela olhou entre nós dois em silêncio. Coitadinha. Parecia tão assustada
que me fez lembrar de mim mesma naquela idade.
— Ela não é minha. Sei disso.
— Certo — retruquei.
Havia a mulher ciumenta e louca dentro de mim que queria surtar com
sua incerteza, mas tinha também a mulher com a consciência de que naquele
momento, alguém mais importante estava no meio da história. Blair era só
uma criança negligenciada, que não tinha ideia do que estava acontecendo
ou da família maluca em que nasceu.
Ele suspirou, passando as mãos pelo cabelo.
— Vou tentar falar com Regnar, pode ficar com ela por alguns
minutos?
— É claro — respondi cegamente, muito concentrada no rostinho
perdido diante de mim.
Quando Demeron se afastou, lentamente cheguei perto e abaixei a dois
passos dela.
— Ei, menina. Você se lembra de mim?
— Sim. — Sua voz era firme e fiquei surpresa. Uma pitada de orgulho
por ver que mesmo em uma situação completamente descabida, ela não
estava se comportando como uma criança birrenta, malcriada e
chorona. E teria todo o direito e motivo se estivesse.
— Sou uma amiga do seu tio Demeron, então se quiser pode confiar em
mim.
— Eu sei, papai falou que você cuidaria de mim.
Franzi a testa.
— Seu pai disse isso?
— Sim, ele disse que você me entenderia e que não me deixaria passar
pelo que você passou.
Em silêncio e rejeitando todas as possibilidades de pensamentos e
teorias sendo criadas em minha mente, fiquei olhando para ela. Engoli em
seco e lhe ofereci um sorriso reconfortante, afastei-me, indo para o outro lado
da sala. Ela balançava os pés, batendo o calcanhar na caixa e eu quis mandá-
la parar para que não se machucasse, mas suas palavras ainda ecoavam em
meus pensamentos.
Seria possível que...
Não, não podia ser. Ele não tinha como saber daquilo.
— Não consigo falar com Regnar. — Demeron disse quando
voltou. — Ninguém sabe dele, nem de Kaladia. Falei com o Stark, mas ele
não pode vir buscar a menina e Kirina não atende o telefone. Ela terá
de passar a noite aqui, mas pela manhã vou cuidar dessa situação.
Assenti em silêncio e olhei para Blair.
— Você está com fome?
— Não, obrigada, Onira — respondeu gentilmente.
— Tem outro colchão em um dos quartos — disse
ele. — Venha, Blair, é melhor você tentar dormir um pouco.
Ela assentiu e foi na frente, seguida por ele alguns passos atrás.
Eu voltei ao cômodo do estúdio e abri as cortinas escuras das portas de
vidro, sentei-me no colchão e esperei por sua volta. Enquanto isso, olhava
para fora e observava a escuridão da noite.
Se aquilo era uma mensagem eu não sabia, mas percebi que tinha
chegado a hora de falar o que tanto havia evitado, o que no fundo, no meu
subconsciente não me permiti entender e nem reconhecer que era verdade.
— Ela dormiu quase imediatamente. — A voz de Demern veio por trás e
pouco depois o colchão afundou atrás de mim, seus braços me envolveram e
senti os lábios tocando minhas costas, a nuca e pescoço.
Eu me perguntava qual seria a sua reação, o que ele diria
quando soubesse de tudo. Quando percebesse que não era o único culpado
pelos rumos que minha vida tomou, que o destino teria sido cruel de qualquer
forma para mim. Não havia nenhuma garantia, mas eu o amava e acreditava
que ele me amava de volta o suficiente para entender e continuar me amando
quando soubesse o grande problema que seria estar comigo.
— Eu tinha oito anos quando minha mãe morreu — falei de
repente, surpreendendo a mim mesma com a revelação repentina. Parecia
que eu estava fora do corpo, sentada de frente para nós dois observando a
cena se desenrolar diante de mim.
Demeron demorou para responder.
— Eu deveria dizer que sinto muito, mas é estranho, porque não sinto.
— Eu gosto que você não diga coisas ensaiadas, como “meus pêsames”,
“sinto muito”, “adorei o presente”. Não faça isso, seja apenas você.
— Mas era a sua mãe.
— Não de verdade — sussurrei.
— O que quer dizer? — Hesitou.
Respirei profundamente, sabendo que era o momento de deixar o último
segredo entre nós para trás. Ele podia não querer arriscar sua vida quando eu
contasse, mas não podia continuar mantendo-o no escuro.
— Eu cresci em uma pequena vila na Tailândia. A história que foi
contada a mim e a Style era que tínhamos nascido lá, meus pais
eram órfãos e não existia mais nenhuma família além de nós quatro.
— A história que foi contada?
— Sim, você vai entender. Não me lembro de muito da minha
infância, mas tenho esses pesadelos praticamente todos os dias onde Style me
leva embora. Estou sempre com sangue nas mãos e nos pés e ele tira uma
arma na minha mão, isso nunca havia feito sentido, mas o contei uma vez e
ele me disse que não podia ser uma lembrança, que era um só
pesadelo provocado pelo trauma da morte de nossos pais.
— Como eles morreram?
— Até pouco tempo atrás eu pensava que havia sido em um
incêndio, pois quando fomos embora a casa estava pegando fogo, mas agora
eu sei que não foi assim. A coisa é que quando eu te disse que estava
destinada a conhecer a Kambarys não estava mentindo. — Tomei um novo
fôlego. — Style me escreveu uma carta e eu recebi semanas depois de você
me resgatar. Nela ele descreveu uma viagem que havia feito depois de anos
de desconfiança, sobre estar inquieto e desesperado para descobrir mais sobre
nós. Eu não sabia, mas ele também tinha os pesadelos, como era mais velho
tudo era mais claro, ele sabia o que tinha acontecido, só precisava ter
certeza e entender tudo antes de me contar.
— Te contar exatamente o que, Onira?
Fechei os olhos.
— As pessoas que pensávamos ser nossos pais eram guardiões de
crianças das Kambarys. Eu e Style fomos criados para sermos escravos da
organização.
Ao receber o silêncio de Demeron por vários minutos, olhei para
trás buscando seus olhos e o peguei de olhos fechados, respirando fundo
silenciosamente, o peito subindo e descendo com força e as mãos em
punhos.
— Demeron?
— Isso não é... não pode ser possível.
— Na noite em que nós fugimos, eles iam levar Style. Um dos três
homens que sempre ia nos visitar em casa para falar com o homem e a
mulher que nos criavam, estava tocando Style. Meu irmão não gostava,
tentava sair, eu o vi se debater e nossa mãe fazendo coisas com ele. Coisas
que uma mãe não deveria fazer com um filho. Agora sei que aquilo era
rotineiro, nunca me tocaram porque era proibido, se eu tivesse sido violada
de qualquer forma perderia o meu valor dentro da Kambarys. Mas isso não
importava na situação de Style. Eles continuariam fazendo-o sofrer e quando
eu vi que o levariam para longe de mim, longe... é um borrão. Não sei o que
aconteceu, mas na carta ele disse que os cinco estavam tão concentrados que
não me viram chegando, a primeira em quem eu atirei foi na nossa
mãe, depois nos outros três e por último em nosso pai, mas ele teve tempo de
reagir também e antes que pudéssemos fugir ele atirou no meu irmão.
— Onira, isso é impossível.
— É irônico, eu sei. — Soltei um riso sem graça. — Nos conhecemos
apenas porque o meu irmão estava tão determinado a encontrar a verdade por
trás dos nossos pesadelos e de suas memórias fragmentadas. Talvez a vida
poderia ter tomado outro rumo e você teria me visto junto com Freya na
missão em Oslo. Isso teria acontecido se eu não tivesse ficado acordada
naquela madrugada e entrasse em pânico, matando quem pretendia nos
machucar. Eu teria passado a vida servindo aqueles homens, Style estaria
preso e quem sabe até mesmo morto.
— Não diga isso. — Ele segurou meu queixo, olhando nos meus
olhos. — Nem sequer pense nessa possibilidade.
— Mas é verdade! E eu estaria conformada, veja por Freya. Ela sofre
por não estar naquele lugar.
— Como ele descobriu tudo isso?
— Eu não sei. Ele disse que queria me poupar dos detalhes, mas não são
os pequenos detalhes que importam e sim que eu sempre estive condenada.
Condenei você por meses quando na verdade você me salvou do que teria
sido a minha vida inteira.
Quando os braços me envolveram de novo, toda a força que agarrei
para contar a história pareceu ir embora, e eu estava flutuando em um abismo
tão alto quanto o penhasco atrás de nossa casa, e um choro assíduo começou.
Demeron me acalmava em silêncio, ele não sabia o que dizer, mas
apenas o conforto dos seus braços já era mais do que qualquer palavra.
— Você vai me deixar? — perguntei, expondo o que era meu maior
medo.
— Por que diz isso?
— Porque eu pertenço a eles e você está comigo. Um risco que você não
é obrigado a assumir.
Seus braços apertaram mais a minha volta.
— Não — rosnou em meu ouvido. — Você não pertence a eles,
você pertence a mim e eu nunca vou abrir mão de você.
— Eu não te julgaria se abrisse.
— Já disse que não vou te deixar. Acalme-se.
— Você não está horrorizado — constatei.
— Já vi demais nessa vida, o destino é uma merda, então é claro que os
deuses iriam me testar, me mandando uma mulher tão fodida quando eu
para... amar.
Toquei seu rosto com os dedos trêmulos.
— Então... você me ama.
Ele me deu um sorriso fechado, segurando meus dedos em sua mão. Me
puxou para cima do colchão e deitou-me em seu peito, acariciando minhas
costas e cabelo.
— Durma, pequena onça.
— Não posso — respondi e de repente bocejei. — Tenho mais algumas
perguntas.
— E você pode fazer cada uma delas amanhã.
Sem força emocional para debater ou insistir em ficar acordada, fechei
os olhos inchados, sentindo-o me apertar em seu corpo e dormi em segundos.
Pela primeira vez tive um sonho diferente, e nele, o cheiro de Demeron
penetrava meus sentidos dando a tranquilidade que nunca tive antes.
Se você gostou do livro (ou não), não deixe de avaliar, sua opinião é
importante para que outras pessoas leiam!
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Grupo no facebook: Romances da Nana Simons
Página e Perfil do facebook: Autora Nana Simons
Olá, leitor(a).
Este livro é o segundo de uma série (A Liga dos diamantes), sendo o
primeiro “Soldado de Gelo”, a história de Demeron e Onira. Os livros estão
cheios de referências um do outro, personagens e situações em comum. Para
facilitar caso você esqueça algo ou se confunda, decidi colocar os dois livros
nesse box. Caso precise refrescar sua memória, basta pesquisar na lupa do
Kindle dentro do próprio livro.
Sua avaliação ao finalizar a leitura é muito importante, seja ela qual for.
Por fim e mais importante, leia os avisos abaixo. Recomendo que leve
em consideração antes de iniciar a leitura.
AVISOS
FORTEMENTE AVISADO.
Para o meu ex namorado.
Física e mentalmente.
Porque ele nunca imaginou que toda a dor que me causou me faria tão forte
um dia.
"Dentro do coração de cada homem há muita coisa para se entender
Quando todo o amor for embora e a paixão me encarar
Eu poderia ir embora?
Você me ajudará a ser corajoso?
me salve agora
eu não quero me desviar do solo sagrado
eu driblarei a tentação
eu estou pedindo para você me levar para a segurança agora..."
HURTS, DEVOTION
Mãos na minha cintura.
Um sopro no meu pescoço.
Unhas cravadas na minha pele.
Sangue escorrendo pelas minhas pernas.
— Oh, Mistress.... ela é tão gostosa!
Eu reprimi um gemido de dor quando ele se tornou mais violento, suas
coxas batendo por trás nas minhas tão forte que as palmas das minhas mãos
tornaram-se insuportavelmente doloridas enquanto tentava me impedir de cair
e meus joelhos sequer estavam protegidos pela fina camada da túnica branca
transparente. Meu cabelo escuro caia cegamente na frente dos olhos,
balançando com o ar que soprava da minha boca e os movimentos brutos que
ele me empurrava a fazer.
A fila de homens finalmente estava no fim, todos foram agradados.
Todos tinham sorrisos no rosto e pareciam felizes. Permiti um suspiro de
alívio escapar, os convidados dele estavam satisfeitos, isso era tudo o que
importava.
Meu cheiro já começava a ficar forte, eu havia acordado e ficado na
água perfumada por horas para a preparação da cerimônia, mas ainda assim,
quando a orgia acontecia no salão aos olhos dele, seus líderes e conselheiros,
não havia como impedir o suor, o sangue e o líquido de satisfação dos
homens misturados que ficavam sob o meu corpo que já começava a cheirar.
Apesar de tudo, minha boceta, como eles chamavam, estava escorrendo
pelas pernas, não apenas dos fluídos de cada homem do lugar, mas porque eu
apreciava cada toque, cada mão que passava por mim, cada membro que se
introduzia em meu corpo.
Sim, meu mestre havia me ensinado bem.
— Goze, prostitutka, eu quero que você goze comigo dentro de você.
Vamos — pediu, e instantes depois eu senti o gelado da faca pressionando
meu pescoço. — Agora, escrava!
Ele nunca poderia me machucar realmente, a menos que ele deixasse ou
ordenasse isso.
Ele.
O meu mestre.
Apertei meus músculos em volta dele, forçando seu membro duro a
arrancar o orgasmo de mim. Um grito agoniado me escapou, o que o fez
ainda mais animado. Muitas vezes, quando eu era desobediente, o mestre
achava que as punições precisavam ser em diferentes níveis. Embora mesmo
que eu fizesse tudo perfeitamente, havia sempre meios para me punir,
ele apenas gostava.
Te deixar com medo faz sua boceta ficar apertada como um punho,
Freya. Eu deveria te manter sempre aterrorizada, ele dizia.
Eu me lembrava da última punição o suficiente para não errar nunca
mais.
Nós havíamos passado por um corredor acinzentado, onde barras de
metal formavam caixas uma ao lado da outra, mas estavam vazias. Foi
quando entramos num grande campo aberto e vi tantos homens. Era uma
lembrança constante do último castigo. O mestre havia chamado de presídio,
e quando fomos embora, imaginei que os homens que viviam naquela
comunidade presídio não deveriam receber mulheres para agradá-los com
frequência, mas fiz como meu mestre pediu. Eu agradei cada um.
Com meu corpo.
Minha boca.
Minhas mãos.
Minhas lágrimas.
Principalmente com os gritos que eles gostavam de ouvir. Não falei por
vários dias depois.
Eles foram muito duros com a minha pequena feiticeira. Todos os
homens te desejam, Freya, não é culpa deles, você foi esculpida em
perfeição. A sorte é minha que sou seu dono e a tenho ao meu lado pelo o
resto da vida, meu mestre dizia.
Ele me amava.
Ele cuidou de mim desde que me lembro e eu entendia que tudo o que
fazia sendo bom ou ruim era para o meu próprio bem. O mestre me possuía e
tudo o que eu era foi feito unicamente para o seu prazer.
Eu o amava também.
Quando o último homem me deixou, esperei por ele para me chamar e
depois de alguns minutos, ouvi meu nome. Apenas ele me chamava
de Freya.
Ele dizia que assim como a deusa, eu fui feita para o sexo. Nascida da
luxúria e criada da beleza. Que eu era sua, que havia lançado um feitiço nele,
e continuava amarrando os corações dos homens que passavam por mim. Que
eu valia todo o seu ouro e por mim, ele causaria uma guerra.
Por mim, ele causaria mortes.
Eu não sabia o que tudo aquilo queria dizer, mas obedecia mesmo
assim.
Caminhei até o mestre, tentando não demonstrar a dor entre minhas
pernas quando ele me segurou a sua frente, me enfiando três dedos grossos e
mordendo meu ombro. Quando os retirou e segurou meu rosto, o rastro de
sangue molhado foi sentido em minha bochecha quando o sopro de sua voz
veio.
— Você foi uma menina tão boa essa noite, minha feiticeira. Cada
homem nesse lugar quer ter você, mas eles não podem, não é?
— Não, Mestre.
— E por quê?
— Porque pertenço a ti — sussurrei fracamente, dando tudo de mim
para permanecer de pé.
— Sim, você me encantou e enfeitiçou. E agora, me pertence.
O Mestre levantou de sua cadeira dourada e vermelha, chamando a
atenção dos homens que festejavam abaixo do degrau. Do seu pedestal.
— Senhores, não há dúvidas que a mais bela criatura está presente nesse
lugar. Minha feiticeira, minha bela Freya. Hoje, darei a vocês o prazer de tê-
la e fazer com ela o que quiserem.
Eu olhei para o mestre, mesmo sem sua permissão. Não entendia suas
palavras. Ele havia acabado de permitir que eu estivesse com todos os
homens dali, a fila incontável de homens atrás de mim, me tomando um por
um e o rastro de sangue saindo pelos dois buracos mais íntimos do meu corpo
provavam isso.
— Meu senhor? — sussurrei.
Ele não me ouviu, tentando acalmar a multidão que vibrava após seu
anúncio.
— Bem-vindos a caça à bruxa! Não a machuquem permanentemente, o
castigo para quem fizer isso será fatal.
Virando-se para mim com um sorriso maligno, Mestre segurou meu
rosto, me beijando com uma delicadeza que não condizia com as suas
palavras, antes de me soltar e apontar para a porta que abria o caminho de sua
floresta.
Minha respiração era ofegante, o coração martelando no peito e visões
daquela última cerimônia me inundando de uma só vez.
Não era uma caça às bruxas. Era uma caça A bruxa.
Sua feiticeira.
Freya.
Eu.
— Corra. — A voz firme do mestre ecoou em minha cabeça e
tropeçando para trás, olhei para o corredor de homens que se abria até as
portas para a floresta. Sem hesitar, virei-me e corri, quando bati nas portas,
saindo para o ar fresco, o sol já caía, mostrando-me que logo ficaria tão
escuro quanto a alma do meu Mestre e não haveria nenhuma chance de eu
não ser encontrada com todos os homens procurando por mim.
Flashs da última caça às bruxas passaram pela a minha mente enquanto
eu corria, atravessando as árvores e tentando colocar a maior distância
possível entre mim e a masmorra. Perdi Aphrodite naquele dia, a única
escrava permitida perto de mim. A única outra Mistress além de mim. A
única pessoa com quem eu conversava e me permitia colocar em palavras
dúvidas que surgiam em minha mente, como o que havia além das árvores do
Mestre, de onde vinham os homens que falavam diferente de nós, suas
roupas, porque eram tão diferentes uns dos outros.
Ela queria conhecer mais pássaros, o pequeno ser que pousava em nossa
janela e voava. Aphrodite disse que se chamavam asas. Asas de pássaros.
Mas, ela se foi, e agora não havia mais dúvidas, nenhum riso, ninguém
além das serventes do Mestre para cuidar das minhas feridas.
E agora era a minha vez.
— Venha aqui, feiticeira!
As vozes começaram a vir de todas as direções.
Eu corri.
A diversão do Mestre era me machucar, me fazer sangrar, me ver fugir.
Apenas para me alcançar e mostrar que não havia nada para mim além de
seguir suas ordens. Me coloquei a correr mais rápido, ouvindo sua voz em
minha mente quando me ensinou a oração de agradecimento que eu lhe
deveria enquanto vivesse.
Porque dele, por ele e para ele são todas as coisas.
“Sempre louve a mim, Freya”.
Gritos, passos estalando nas folhas secas e risadas atrás de mim
começaram a ecoar pela floresta, aumentando o fluxo de lágrimas que caia
pelo meu rosto, tropecei quando a dor no meio das minhas pernas ficou quase
insuportável e soltei um grito abafado, olhando ao redor em desespero.
Levantei, com sangue nas mãos e meus pés ardendo dos cortes feitos de
galhos e pedras.
Voltei a correr, corri até que a noite caiu.
Até que o sol desceu ao céu outra vez.
Mas, como todas as vezes, eles me alcançaram.
Com o sol subindo ao céu, flutuei nos braços dos serventes. Meus olhos
ardendo de ficar horas e horas deitada no mesmo lugar. Fitei as nuvens se
movendo, a lua sumir, a noite abandonando-me até que tudo ficou claro outra
vez. Me perguntei se era o fim, se acabaria daquele jeito.
Deitada em algum lugar perto do rio, a túnica rasgada e salpicada de
sangue, minhas pernas abertas e machucados que não deixariam cicatrizes,
porque o Mestre me queria perfeita para seu olhar e prazer. Meus olhos
vidrados enquanto eu jogava a dor, as lembranças e os machucados para uma
caixinha no fundo da memória. Aquela em que eu me forçava a nunca pensar,
me obrigava a fingir que nunca aconteceu.
Logo, as mãos que me arruinavam me tomaram nos braços, acariciando-
me durante o banho e me colocava para dormir. Então me lembrei porque
esquecia a caixinha das lembranças. Para lembrar que cumpri meu dever
e seria recompensada. Eu sobrevivi.
O Mestre estaria pronto e feliz para me receber.
“Porque dele, por ele e para ele são todas as coisas. Gloria a ti, Mestre,
eternamente.”
“Boa menina, Freya. Muito bem.”
"Você está pronto?
Inflamando
Sexo enlouquecido cheio de dinamite
Está crescendo
Está queimando dentro de mim"
THE STRUTS, DIRTY SEXY MONEY
ANTES - 21 ANOS DE IDADE
— Siriu?
Ouvi Blair chamando e virei para ver o que a menina queria. Ela tinha
estado em silêncio atrás de mim por uns bons cinco minutos, e eu sei que
costumava ficar me observando. Tinha uma personalidade que vagava entre a
escuridão de sua mãe e a luz que seu pai tinha um tempo atrás. Tão falante
quanto Regnar, tão crítica quanto Kaladia. Voltei a olhar para fora da janela
do terceiro andar da mansão, apreciando a manhã nublada, nada de sol por
hoje.
— O que foi, Blair?
— A bisa está chamando para tomar café.
A matriarca de nossa família nunca chamava, era sempre uma ordem,
pelo menos ela gostava de pensar que ainda funcionava assim.
— Comecem sem mim.
— Ela disse que só vamos comer quando você aparecer.
Suspirando, assenti para meu reflexo no espelho e enfiei as mãos nos
bolsos, dirigindo-me a escada onde a miniatura me esperava com um sorriso
no rosto. Ela sabia que eu não me importava em ser o tio legal, mas ainda
assim, gostava de ficar por perto. Regnar nunca estava, e de uma forma
distorcida Blair buscava em mim o que seu pai deveria oferecer, mesmo que
eu nunca tivesse dado uma grama do que procurava, a menina insistia.
Quando me aproximei, ela estendeu a mão.
— Vamos.
Sabendo que a filha de Kaladia só sairia da frente quando eu desse o que
ela queria, assim o fiz. Dei a mão para a menina e descemos as escadas o
mais brevemente possível. A coisa boa é que Blair nunca foi daquelas
crianças que falavam sem parar, ela apreciava o silêncio tanto quanto eu.
Angelina insistia em fazer todas as refeições em horários contados na
mesa, eu não via o porquê disso, mas obedecia às regras para não ser o
culpado de uma possível morte por ataque cardíaco ou pressão alta. Ela ainda
sabia atirar e ainda tinha um poder de influência incrível onde eles atuavam.
A idade lhe trouxe problemas físicos e mentais, mas ela ainda era Angelina
Konstantinova, a maior agente que a Liga já teve. A melhor arma que já
trabalhou para o governo.
— Ora, bom dia, meu neto. Pensei que ficaria lá em cima por mais um
tempo comendo ar — ironizou, piscando para Blair.
A menina parou ao lado da cadeira, rindo para a bisavó.
Quando fui me sentar para acabar logo com aquilo e sair para começar
meu dia, Blair limpou a garganta e cruzou os braços. Inclinei-me sabendo do
que se tratava e a peguei, sentando-a na cadeira. Ela me deu um sorriso
esperto.
— Obrigada, Siriu.
Kaladia levantou e serviu o café para Angelina.
— Adoçante?
— Não, querida. Vou querer o suco.
— Eu quero café, mamãe.
— Peça a Siriu colocar para você. — Kaladia me fitou com ironia. Ela
gostava de ver sua filha me testando.
— Siriu...
— Suco? — Meio rosnei, meio resmunguei.
— Café, por favor.
Peguei o bule, mas antes que alcançasse seu copo, a voz estridente
de Kaladia me parou.
— Não seja estúpido, Siriu. Ela não pode beber café.
— Por que diabos não?
— Ela fica agitada o dia todo e crianças não devem ingerir cafeína.
— Então por que você me mandou servir?
— Porque sempre imagino que vai se importar um pouquinho em fazer a
coisa certa.
Fitei Blair.
— Onde está seu pai?
— Eu não sei. — Deu de ombros, tirando um pedaço do bolo e enfiando
na boca. — Ele não dormiu em casa.
— Não dormiu? — Angelina perguntou a Kaladia.
— Não. — Kaladia ofereceu a resposta a contragosto, claramente
querendo evitar o assunto.
— Mamãe disse no telefone que ele está com uma vagabunda.
— Não repita isso, Blair!
— Mas, mamãe, você disse! — A menina rebateu, franzindo o cenho.
— Sim, eu disse, mas você não pode repetir.
— Tá, tá. Tudo bem.
— Onde ele está? — Angelina insistiu.
— Com a vadia.
— Blair! — Kaladia quase gritou, batendo sua xícara na mesa.
— Você disse que não posso falar “vagabunda”, mamãe. Mas, falou que
papai estava com uma vadia também, daí eu não falei vagabunda, falei
vadia!
— Bem, você não pode repetir nenhuma das palavras que eu disser
sobre o seu pai!
A menina pulou da cadeira e parou em minha frente.
— Obrigada pelo café, Siriu. Eu vou ver o vovô no escritório dele.
Ela saiu correndo, batendo os pés propositalmente mais alto no chão.
— Ela vai pegar Stark trepando com Belle, vá atrás — alertei antes que
fosse acusado de não me importar mais uma vez, o que de fato, eu não fazia.
Kaladia balançou a mão em desdém.
— Stark mandou Belle embora ontem, não tem ninguém trepando em
nenhum lugar.
— E eu ainda insisto em um café da manhã. — Angelina murmurou.
— Então acabou os meses de Belle e suas reformas e festas todo final de
semana?
— Parece que sim, até ele encontrar outra.
— Regnar está fora a serviço da Liga, Kaladia. — Mudei de assunto,
sabendo que Stark não gostaria de saber que sua vida sexual estava em
discussão na mesa. Não que eu me importasse com seus desgostos, mas
tampouco me agradava continuar batendo na tecla. E achei melhor acobertar
Regnar, ciente que o mal humor da mulher era o resultado do sumiço do meu
primo.
— Eu quero que ele se foda. Uma recepcionista do Adlon me ligou e
avisou que ele estava lá com uma das meninas de Kirina. Então foda-se você
também por tentar aliviar a barra dele e foda-se minha irmã por continuar
enviando prostitutas ao meu marido traidor.
— Ele está passando por um momento estressante, minha querida. —
Angelina interveio.
Kaladia abriu a boca para responder, mas não disse nada. Abaixou a
cabeça e assentiu após alguns segundos. A avó era a única pessoa a
quem Kaladia respeitava. Se Angelina a mandasse ir embora e decretasse que
Blair ficaria, Kaladia acataria. A submissão total dela me excitaria em
qualquer outro momento, mas não nesse.
Quando via o pé de guerra que era o casamento dos dois, eu me tornava
ainda mais consciente da minha decisão certa em ficar sozinho.
Achava Demeron corajoso por ter resolvido tentar ter alguém
novamente. Ao mesmo tempo um completo desgovernado, brincando com
coisas que não foram feitas para jogar. Como sorte, coração e destino.
Quando a Liga determinou que Dutch era um alvo, Demeron foi enviado
para conseguir provas que deixariam o russo em nossa mão para sempre, e
para isso, usou uma de suas filhas, Kaladia. Mas ela se apaixonou pelo falso
amor dele. Eu presenciei a linha tênue que a mulher viveu quando descobriu.
Beirava a loucura, a paranoia, a depressão que a qualquer momento a
faria cometer um ato sem volta.
Então Regnar se envolveu. Se apaixonou e a seduziu, fazendo-a se
apaixonar também.
Nenhum dos dois fez segredo do caso. E eu, é óbvio, estava junto
quando Demeron chegou depois de meses fora em uma missão e pegou sua
mulher pulando no colo de seu irmão. Regnar sobreviveu a um tiro e
enquanto os dois brigavam, Kaladia assistiu sentada no sofá onde
antes Regnar estava e bebia direto na boca da garrafa quase vazia de run.
Depois, os dois se casaram.
Blair chegou.
Kaladia nunca aceitou fazer o teste. Blair era de Regnar, assim ela dizia.
Pela força do ódio, Demeron nunca quis saber se o fruto da traição era
dele. E Regnar aceitou a palavra dela como se fosse escrito por Odin.
— Soube que você ficou de babá ontem. — Ela mudou de assunto.
— Sim. Não me fale sobre isso.
— Tão ruim assim?
— Ela está fodida da cabeça, como todas as meninas que saem
da Kambarys.
— Quem? — A avó perguntou.
— Freya, a protegida de Demeron — Kaladia explicou, sem esconder o
sarcasmo.
— A menina passou por eventos traumáticos, Siriu. Não seja indelicado.
— Angelina me repreendeu, bebericando algo em sua xícara de cinquenta
anos.
— Demeron vê esperança. — Kaladia disse. Ela dizia o nome
do ex como se nunca tivesse sido nada para ela. E agia como se não fosse
também.
— Ela me ofereceu um boquete.
Kaladia riu. Os cabelos extremamente loiros balançaram sobre os
ombros com o movimento.
— Você parece indignado, Siriu — disse ela. — Estou surpresa.
— Não fique tão surpreendida, a recusa não seria a mesma se a oferta
viesse de você.
Ela revirou os olhos.
— Passo. Dois irmãos é o suficiente para mim.
— Adicionar um primo pode dar sorte, pense sobre isso.
— Já chega! — Angelina bateu a mão na mesa. —
Respeite Regnar, Siriu! E Kaladia, não de corda a esse tipo de assunto, você
já não fez o suficiente no passado? E se Demeron salvou a menina e quer que
ela tenha uma vida normal, deixe-o tentar. Contanto que todos nós fiquemos
longe.
Eu achava engraçado que minha avó tenha criado um tipo de
consciência depois de anos a serviço do governo e depois, da Liga. Tinha
certeza de que era um mecanismo de atuação. Fingir ser a vovó amorosa e
restituída do passado, mas eu sabia bem como funcionava. Ela era
exatamente como Kaladia, se não pior. Eu a respeitava como autoridade
máxima da minha família. Comprava o teatro por fora, mas por dentro, sabia
quem ela era.
Também não diria nada sobre o assunto. Existiam coisas que não
precisavam ser ditas, principalmente quando estavam sendo vistas.
— É claro — disse por fim, recebendo um olhar duro dela como se
soubesse cada linha de pensamento em minha mente.
— Mas Demeron deveria ter sido mais esperto, não deveria deixá-la
com você...
Eu sorri com o apontamento e tinha que concordar.
Quando sai da sala vinte minutos mais tarde, Onira levantou-se e veio
até mim. Ela sempre estava pronta para me alentar. Sempre imaginei que ela
achava que eu sairia em prantos, muda ou finalmente mostrasse sinais de que
enlouqueci. Mas não havia isso em mim. Eu vivi com tudo o que aconteceu, a
vida com Kazel não me faria quebrar, a vida aqui fora... talvez sim.
— Ei, terminamos por hoje? — Ela perguntou com um sorriso inseguro.
Eu sorri de volta, um bem verdadeiro.
— Sim. A doutora disse que a próxima consulta com o psiquiatra será
daqui à duas semanas.
— Ok, querida. — Ela acariciou meus braços, e olhou para a doutora
por cima do meu ombro. — Tudo bem?
— Sim, Onira. Freya está fazendo progressos impressionantes. Quero
vê-la na próxima sexta no mesmo horário.
— Certo. Pronta para ir, Freya?
— Sim, vamos, estou morrendo de fome.
Não sei quanto tempo fiquei enfurnada naquela sala, mas por fim, ouvi a
porta sendo aberta e me preparei para pedir desculpas a Ward, mesmo que
não me sentisse arrependida de nada. Meu único erro foi ter sido pega, ainda
assim algo em mim não parecia certo. Tinha esse insistente sentimento, o
mesmo que me afligia quando eu desagradava o mestre.
Lembrava-me da forma como falei com ele, como expulsei Ward de seu
próprio escritório e ele sequer debateu comigo. Apenas saiu.
Mas não foi com ele que dei de cara. Não. Ele foi direto para o que mais
me atingia. Onira.
Ela veio com pressa, sem hesitar um segundo antes de me puxar para
seus braços e me envolver num abraço tão carinhoso que não pude devolver.
Ward se mantinha atrás dela, perto da porta, olhando para ela quase
como Demeron fazia. Perguntei-me se ela sabia desses sentimentos.
— Vamos tirá-la daqui, ok? Vamos levá-la para casa.
Eu assenti silenciosamente, sem conseguir desviar meus olhos de Ward.
— Oni, se precisar de qualquer coisa...
— Eu sei, Kurt. — Ela parou ao lado dele, segurando minha mão
firmemente de um lado e a mão livre tocou seu braço. — Obrigada por ter me
chamado.
Acenando, ele finalmente tirou os olhos dela para me fitar. Parei perto
dele, encarando-o com minha... vergonha e medo. No fundo, entendia que
não tinha porque temer esse homem, mas foi mais forte do que eu e me
peguei ajoelhando aos seus pés.
— Perdoe-me, meu senhor — sussurrei. — Por favor, tente me perdoar.
Não sei o que houve comigo.
Onira estava congelada um pouco atrás dele, observando-me como se
nunca tivesse me visto. Na verdade, me fez lembrar da primeira vez que nos
vimos, quando eu achava que ela era parte daquilo. Que era como eu.
— Pelo amor de Deus, Freya. — Ele rapidamente se inclinou e me
ergueu, segurando meu rosto com delicadeza. — Nunca mais se ajoelhe
diante de mim. Diante de homem nenhum.
— Não puna Jimy pelo o que fiz, ele não sabia...
— Isso está fora de discussão.
— Eu juro que o obriguei. — Sentia-me no dever de defender o
homem. Eu não precisava do trabalho, ele provavelmente sim. — Não o
desampare, por favor! Eu imploro e ajoelho novamente se for necessário.
— Não. Já lhe disse, Freya... existem regras na empresa, esses atos não
são tolerados. Qualquer tipo de relação sexual aqui dentro é cabível de
punição.
— Ele não teria feito se eu não o tivesse tentado.
— É muita ingenuidade sua pensar assim — disse Onira, dando-me um
daqueles olhares.
— Há quanto tempo ele trabalha aqui? — perguntei.
— Freya. — Ward me avisou, balançando a cabeça.
— Por favor, apenas me diga.
— Pouco mais de quatro anos.
— E alguma vez já foi pego fazendo algo que vai contra essas regras?
— Isso não importa.
— Importa. Importa para mim. Apenas pense nisso?
— Não prometo nada.
— Eu sei — falei baixinho, sentindo-me incrivelmente mal quando o
rosto de Jimy me vinha a cabeça.
— Vá para a casa e descanse, Freya.
Assenti, dando-lhe um último olhar.
— Eu entendo se minha vaga for suspensa. Você deveria contratar outra
pessoa em meu lugar.
Eu podia ver em seu olhar, que ele concordava. Por ser amigo de Onira,
Ward continuava tentando me encaixar ali, em seu mundo. Mas eu não podia
mais fazer isso.
— De o emprego a alguém que merece. Sejamos honestos aqui. —
Fitei Onira. — Não estou aprendendo nada, tampouco feliz.
Ela abaixou a cabeça como se imaginasse, mas estivesse esperançosa
demais em me salvar para admitir.
Aquele era o problema. Como poderia salvar alguém que não queria ser
salvo?
— Ward esperará dois dias antes de contratar uma nova pessoa,
enquanto isso você pode pensar. Se decidir que quer continuar...
— Não vou.
Ela olhou para fora pela janela do carro.
— Considere isso.
— Posso ir para a casa caminhando?
— Não. — Sua cabeça virou com força, um olhar confuso direcionado a
mim. — Não pode.
— Eu perguntei apenas por consideração a você.
— E por consideração a você eu disse que não.
— Onira. — Minha voz tinha um tom estranho, diferente de todas às
vezes. Não só eu percebi isso, mas ela também. — Eu vou sair e voltar para
casa sozinha. Há dinheiro em minha bolsa e o endereço está anotado em um
papel.
— Freya. — Sua própria voz foi um aviso. — Você. Não. Vai.
— Eu tenho dezenove anos.
— Mas tem a cabeça de cinco! Não vou arriscar você! — No momento
em que falou, pareceu ter se arrependido, mas já era tarde.
Eu entendia poucas coisas, mas uma ofensa já era clara em minha
cabeça. Virando-me para o motorista que trabalhava para ela e Demeron,
toquei a maçaneta.
— Pare o carro, por favor, meu senhor. Ou vou abrir a porta com ele em
movimento.
— Freya, sinto muito... eu...
Rasguei meu olhar em seu rosto.
— Vou caminhar por algumas horas e procurarei um táxi para voltar
para casa. Eu prometo. Se você não me deixar viver jamais terei a cabeça da
minha idade.
— Eu não falei por mal — sussurrou com a voz fraca.
— Eu sei. — Dei um aperto em sua mão, esperando que entendesse e
depois de um minuto ela soltou do meu aperto.
— Encoste o carro, Fritz. Freya não voltará conosco.
Ele me olhou pelo retrovisor cuidadosamente, mas obedeceu. Não
hesitei quando paramos. Pulei para fora do automóvel e apertei meu casaco
em volta do corpo, caminhando pela avenida na direção que o carro ia. Eles
se afastaram devagar, e mesmo que pelos vidros escuros eu não pudesse ver
Onira, sabia que ela estaria me olhando até que não pudesse mais.
Eu não queria caminhar, tampouco ir para a casa. Havia apenas uma
pessoa que queria ver agora.
Quando eu outros momentos eu procuraria Kirina, percebi que ela não
era mais meu refúgio. Mesmo sem ter me dado um único motivo para vê-lo
assim, Siriu era. Eu queria estar com ele mais do que com qualquer outra
pessoa.
Observei a avenida de quatro ruas... vias ao meu redor, olhei as pessoas
atentamente. Observei como chamavam os carros amarelos que passavam.
Táxis. Era de um desse que eu precisava.
Imitei uma moça ao meu lado e funcionou. Entrei em um dos carros e o
motorista me fitou pelo retrovisor.
— Para onde, madame?
Eu pensei por um momento.
— Você sabe onde Siriu Konstantinova mora?
Ele franziu a testa, balançando a cabeça.
— Só sigo endereços, madame. Precisa me dar algum.
— Sim, certo. — Alisei a longa saia do vestido, pensando que se
cheirasse de perto, estaria com odor de sexo. — Vá para o tribunal.
— Qual?
Qual?
Bem, eu não tinha ideia.
— Não pode apenas me levar, meu senhor?
Ele fez um barulho estranho na garganta.
— Madame, isso é alguma piada? Já perdi dois clientes ali na frente. Se
for para algum lugar tem que me dizer ou precisará descer.
— A... hm... — Rodeei minha mente, tentando lembrar-me de algo,
qualquer coisa. Eu não sabia onde a mansão de Stark ficava, nem suas
empresas, também não tinha ideia de onde era o tribunal, mas então... —
Sim! Eu sei onde vamos!
— Eu espero que sim — respondeu com impaciência — Para onde?
— A Suprema Corte.
O homem balançou a cabeça, resmungando algo em sua língua que não
entendi e seguimos viagem.
Para onde, eu não tinha ideia.
"E você me segura em seus olhos
Essa beleza no meu travesseiro
Me hospedariam na noite
E eu vou encontrar a força para abrir a boca
Quando eu costumava ter medo das palavras
Mas com você eu aprendi apenas deixar ir
E agora meu coração está pronto para explodir"
ELLA HANDERSON, YOURS
A ebulição de pessoas que surgiram em cima de mim quando entrei na
Suprema Corte não era nova, mas cada vez que acontecia tirava-me um
pouco mais da miséria vontade que eu tinha de estar ali. Se não fosse aquela
profissão dando-me privilégios, contatos e a autoridade Suprema sobre
inúmeras questões e pessoas eu já teria largado tudo. Estaria esperado até que
minha hora chegasse escondido em meu ridículo barraco.
Um meio para um fim, assim como tudo em minha vida.
Um monte de dinheiro vindo de forma legal e ilegal entrando na minha
conta como juiz não fazia diferença. Os valores exorbitantes não tinham
utilidade para mim e voltariam para o governo tão logo eu morresse.
Ao subir as escadas sem fim deparei-me com o mesmo caos de sempre.
Advogados apressados, clientes sentados com desespero estampado no rosto
ou em outros casos, esperança ou vitória. Os casos que chegavam aqui não
eram brincadeira, portanto, quem entrava estava preparado para sair montado
ou carregado.
Eu não aguentava mais aquela merda, mas precisava continuar.
Encarar os chamados figurões, novatos arrogantes demais e aqueles que
não passavam um dia sem puxar o meu saco nunca foi para mim. Se não
houvesse um objetivo no fim da linha, sairia e nunca mais colocaria meus pés
ali. A não ser é claro, que fosse o único a ser julgado.
Odin sabia que eu tinha pecados mais do que suficiente.
Na ala de preparação dos juízes onde eu tinha minha sala privada assim
como os outros juízes, minha secretária tinha sua mesa na porta. Era um
espaço privado, mas ela ficava perto o suficiente para estar ao meu alcance da
voz.
— Bom dia, Sofire.
— Bom dia, senhor. — Ela rapidamente deu a volta na mesa, me
alcançando e caminhando ao meu lado para dentro — O júri de Balthere foi
suspenso esta manhã, eles acharam possíveis evidências de que um ou dois
membros podem ter sido manipulados.
— Chantageados, você quer dizer?
— Sim. Parece que Amelie Sadraazë tem um caso e Ralfen Schmith tem
sonegado impostos altíssimos.
— Como é que não sabíamos disso?
Ela me deu um olhar que dizia “qual é?”.
— Provavelmente sabíamos, mas ninguém ia fazer nada. Senhor.
— Sofire fez uma pausa, fitando-me com aquela insegurança de sempre.
— Diga de uma vez.
— Certo. Ninguém quer condenar Balthere. Sua empresa tem financiado
o governo há anos. Não importa quem está no poder, ele sempre dá um jeito
de ficar próximo e fechar negócio. Todo mundo sabe disso.
Ela estava certa. Sofire era inteligente demais para seu próprio bem e
por isso trabalhava comigo há anos, mas seu senso de justiça não me servia
de nada. Ele nunca seria aplicado ali e ela precisava entender isso. Seus ideais
de mundo perfeito eram irreais, ilusórios e impossíveis.
Ignorando seu raciocínio certeiro para não negar e nem confirmar suas
suspeitas, mudei de assunto.
— O que mais?
— Uma mulher veio vê-lo hoje.
— Uma mulher? — Só podia ser Kirina e eu não imaginava o que
diabos ela teria vindo fazer quando eu já lhe disse que meu trabalho
“legítimo” era algo fora dos limites para suas brincadeiras ou nossas questões
explanadas do submundo.
— Bem, uma menina na verdade. Muito jovem, pequena e um pouco
confusa. Ela me pareceu meio desorientada.
Parei o que estava fazendo e fitei Sofire quando sua descrição me
levantou uma suspeita absurda.
— Reparou na cor dos olhos dela?
Ela ergueu as sobrancelhas e balançou a cabeça.
— Não, mal a olhei. Essa manhã estava uma loucura aqui, mas ela
deixou seu nome. Freya.
Sua expressão ao dizer o nome deixava claro que Sofire não pensava
boa coisa. Provavelmente deduziu por si mesma que se tratava de um nome
de guerra. Mantive minha feição neutra quando por dentro fervi.
— Ela deixou recado?
— Na verdade, ela entrou na sala dos juízes e não importa o quanto
tentei tirá-la ela não quis sair. Eventualmente precisei voltar à minha mesa.
Não quis chamar os seguranças porque ela começou a falar dos seus
familiares, e como parecia íntima temi que fosse alguém que o senhor...
— Ela ainda está aqui? — A interrompi, mas não esperei resposta. Me
direcionei a saída, explodindo corredor a fora. Não importa o quão alto eu
fosse, minhas pernas não eram largas o suficiente para me levar a última sala
rápido o bastante.
— Senhor...
— Volte à sua mesa.
Seus saltos pararam, então não precisei olhar para trás para perceber que
havia travado no lugar.
— Sua mesa, Sofire.
Não parei nem quando fiquei frente a porta, pelo contrário, a invadi sem
a educação costumeira pela qual era conhecido na Corte. Bati com as duas
mãos, fazendo a porta dupla abrir com um baque e todas as cabeças lá dentro
virarem para mim num sobressalto.
Freya estava sentada de pernas cruzadas em cima de uma bancada e
cinco dos meus colegas juízes, juntamente com dois advogados muito bem
vistos por ali a secavam. Quase dissecavam. Ela tinha aquele maldito sorriso
frio nos lábios, mas não era intencional, era moldado a ela. Não existiu
felicidade em sua vida, então por que saberia como sorrir verdadeiramente?
O rosto perfeito tinha um tom avermelhado nas bochechas e ela
mordiscava o lábio inferior. Foi ao som de sua risada que as vozes pararam
no momento que entrei.
Foi ver aqueles abutres em cima dela que me tirou do sério de uma
maneira que nunca aconteceu antes.
— Me acompanhe, Freya. — Foi a única coisa que eu disse e não
precisou de mais. Os homens dispersaram, alguns saindo de cabeça baixa
enquanto outros fingiam se ocupar com algo.
A forma como eu me portava na Corte não impediu os boatos de
chegarem ali.
Que eu me reunia com a máfia italiana, tinha contato íntimo com um
envolvido na máfia russa, que meus primos caminhavam com foras da lei e
que meu tio controlava a maior agência criminosa do governo por debaixo
dos panos. Nenhum deles era leigo sobre mim, nem mesmo Sofire.
Freya não hesitou, ela desceu da bancada com graça, embora suas pernas
fossem ligeiramente curtas. O vestido cobria seus pés envoltos a uma
sandália simples e os cabelos roçando a curva suave do quadril tocaram meu
braço quando ela parou ao meu lado.
— Eu esperava poder vê-lo, meu senhor.
Maldição.
A mesma quantidade de tempo que levou para instalar aquelas
nomenclaturas em sua mente, seria preciso para retirá-las. E Odin sabia que
mesmo detestando o pensamento de como ela aprendeu a chamar um homem
de “meu senhor”, meu subconsciente automaticamente a levava as cordas na
minha cama enquanto usava o termo uma e outra vez para falar comigo
quando fosse permitida.
— Siga-me.
Freya demorou seu olhar sob mim por um momento, alisando o cabelo
para trás da orelha com a mão delicada antes de inclinar a cabeça e assentir.
Quando dei por mim estava com a mão em sua coluna e a empurrava
delicadamente em direção à minha sala. De longe podia ver Sofire de pé no
telefone, franzindo o cenho mais e mais conforme nos aproximávamos.
Meus dedos formigavam ao tocar o corpo suave de Freya. Não
importava que apenas seus braços estivessem amostra ou que eu nunca
tivesse realmente tocado sua pele, mas eu sabia que seria como seda.
Era como seda.
— Meu senhor... — Ela começou a dizer, mas minhas mãos
pressionaram sua coluna, fazendo seu peito inchar com uma respiração
profunda.
— Agora não.
Não havia um homem que não virasse a cabeça para olhar o que
acontecia. Em um casaco preto, calças pretas e terno preto, eu desfilava com
uma pequena mulher de branco. Uma mulher exuberante em todos os
sentidos.
Menina.
Me corrigi novamente, lembrando da diferença de vinte e cinco anos
entre nós dois.
Mas, enquanto esses mesmos olhos se viravam para ela, minha vontade
instintiva e até mesmo insana foi de agarrá-la e correr para escondê-la dos
olhos de qualquer um. Minha. A palavra veio como uma labareda de fogo que
tocou até a ponta dos dedos da mão que a segurava e como se sentisse
aquilo, Freya arquejou, lançando-me um rápido olhar.
— Senhor? — Sofire buscou instruções enquanto observava minha
proximidade com a pequena mulher, incerta do que fazer.
— Não quero ser interrompido. Cuide de tudo até que eu avise o
contrário.
— Sim, senhor.
Eu adentrei a minha sala e empurrei Freya antes de fechar a porta,
girando a chave e enfiando-a no bolso. Ela observou cada movimento meu
com olhos atentos, aqueles olhos estranhos, fascinantemente amarelos.
Ela parecia a porra de uma divindade e eu precisei me controlar para não
pecar contra ela.
— O que posso fazer por você, Freya?
— Eu vim vê-lo.
— Eu percebi, mas por qual motivo?
Ela hesitou, olhando para seus pés por um longo momento. Os braços
cruzaram como um escudo de proteção em sua frente.
— Pedi para sair do trabalho hoje. Disse a Kurton Ward que não voltaria
ao meu emprego.
Eu não entendia o que aquilo me diria respeito, mas fiquei
estranhamente tenso, aproximando-me dois passos.
— Ele fez algo contra você?
Ward usava seus talentos como empresário para negociar entre o
submundo. Se havia duas gangues em desacordo, ele marcava uma reunião
pelo preço certo e dava aos líderes de ambos os lados um lugar para
conversar e se acertarem. Ele tinha os melhores contatos de contrabandistas,
traficantes de armas em diversos países e dinheiro para emprestar a quem
quisesse. E quando não o pagavam ele recorria aos trabalhos do Moto-
clube que Harlen estava atualmente situado para que cobrassem e dessem os
devidos avisos.
Eu tinha inclusive que me lembrar de perguntar a Ward se ele sabia algo
sobre meu primo estar escondido lá todo esse tempo ao invés de morto, como
eu e minha família acreditávamos.
Porém, mesmo com suas inclinações para o crime, eu nunca o vi ser
nada além de diabolicamente cortês e sedutor com as mulheres que
atravessaram seu caminho. Mas... e se por saber de onde Freya veio ele
resolveu jogar mais pesado?
O pensamento de alguém tocando aquela menina que embora passara
por tanto, ainda carregava uma inocência inacreditável me enfezou além do
normal.
Se Kurt tivesse sequer tocado nela, eu cortaria o bastardo em tiras para
fritar e alimentaria os cães da periferia de Berlim. Teria o inferno para pagar
em consequências, mas ele sofreria.
O rumo sanguinário de meus pensamentos me fez dar um passo atrás,
percebendo que a presença daquela menina despertava em mim o homem que
eu não era mais e não tinha o mínimo interesse em voltar a ser.
— Não. — Seus olhos arregalaram. — Kurton Ward sempre foi um
cavalheiro.
— Então qual foi o problema?
— Eu... eu não me sinto à vontade para falar, não com o senhor.
— Se veio até mim teve um motivo e se não me disser não poderei
ajudá-la.
Ela pensou por mais um momento. O silêncio me levando a observá-la
como uma mulher novamente. Não havia uma mácula em sua pele exposta.
Nada. Ela era perfeitamente construída e havia uma naturalidade poderosa
sobre aquela mulher.
Kazel era um desgraçado fodido em níveis que nem eu podia
compreender e ao usá-la para o que usou só confirmou isso. Eu olhava
para Freya e a vontade de me afundar em seu corpo por horas sem fim era
grande, mas um sentimento ainda maior aflorava. O de proteção.
Eu sabia o que ela tinha passado porque já presenciei outras em seu
lugar, mas algo me puxava em sua direção. Essa vontade louca de levá-la
para o topo de um prédio e trancá-la para que nada a prejudicasse outra vez.
E era por isso que eu precisava pôr um fim antes mesmo de ela pensar
que haveria um começo.
Se cheguei tão perto do meu objetivo foi por não deixar que nada me
afetasse.
E precisava continuar assim.
— Você precisa parar de vir atrás de mim. — Tentei falar o mais calmo
que pude. — Já disse que não tenho nada a ver com sua vida. Se você tiver
problemas tem que dizer a Demeron.
— Você disse, mas eu preciso, meu senhor. Sinto que é o único que
pode me ajudar com isso.
Balancei a cabeça incrédulo. Como ela podia colocar aquele tipo de
confiança em minhas mãos? Aquela crença absurdamente cega?
— Apenas o fato de você estar aqui comigo sozinha prova
que Demeron está certo em tratá-la como faz. Deixar você sozinha é como
soltar uma criança no mundo e dizer para se cuidar.
— O que quer dizer? — A testa lisa franziu, os olhos fixos em mim
concentrados. Era nítido o esforço que ela fazia para entender o que eu estava
dizendo.
— Eu não sou um herói, Freya.
— Não, não é. Demeron é. Mas, eu não preciso de um herói, preciso de
alguém que me dê uma direção.
Soltei uma risada incrédula.
— A única direção que eu a colocaria seria a de passos
coordenadamente calculados a sua destruição, menina. Você voltará para a
sua casa agora e vai fazer o que Onira e Demeron te mandarem. Vá ao
psicólogo, trabalhe, estude, faça amigos. Não me importa, apenas esqueça
qualquer ideia absurda que tem sobre mim.
— Mas você é o único que me faz sentir assim! Eu estou cega na maior
parte do tempo, mas só de pensar em você... tudo fica claro. Sinto-me tão
aquecida que parece que nunca deixei meu verdadeiro lar.
— Eu trouxe o inferno a terra, é a única explicação — murmurei,
fechando os olhos por breves segundos.
— Eu não sabia que um simples homem tinha tais poderes. — Ela
constatou depois de alguns segundos, olhando-me com verdadeira
veneração.
— Que poder? — perguntei, franzindo o cenho.
— Evocar o inferno na terra. — Ela tinha um sorriso tímido nos lábios
que quase me deixou de joelhos, mas então o significado do que entendeu fez
sentido.
— É uma metáfora.
— Oh... e o que é isso?
Eu dei risada. Uma risada lamentável porque aquilo era tão
absurdamente fodido de louco.
— Vou te levar de volta para Demeron. — Me dirigi em direção a porta,
já enfiando a mão no bolso para pegar a chave.
— Não. — Ela se aproximou num instante e colocou a mão em meu
peito, como se tentando me impedir de passar. O que era uma piada. Eu era
dois em largura dela e pelo menos três pés mais alto. Sua cabeça nem
chegava ao meu queixo, ficava tão inclinada para me olhar, que os cabelos já
absurdamente compridos ficavam ainda maiores por trás.
— Por favor — sussurrou. — Ensine-me a ser normal.
Normal? Ela queria ser normal comigo como seu professor?
Aquela menina não via que eu a esmagaria?
— Por que eu? — Ainda assim eu perguntei.
— Porque o senhor foi o único que não se conteve perto de mim. Não
me tratou como se uma rajada de vento fosse me despedaçar. Não deixou de
dizer as coisas que pensava por medo de me magoar de alguma forma. Eu
acredito que é o bravo guerreiro que me salvará.
Fodidos deuses nos portões de Valhala.
— Odin — murmurei, olhando para o alto. — Pai de todos, o que foi
que eu fiz para merecer sua fúria?
— Isso quer dizer que me ajudará?
Não. Aquilo queria dizer que eu praticamente podia ver o meu Deus me
encarando nos portões de ouro com os braços cruzados e uma risada maligna
ecoando de sua garganta por todo o paraíso. Seria ela a minha penitência? O
meu teste?
— Diga-me o que aconteceu em seu trabalho. Com Kurton Ward.
Relutante, ela desviou o olhar de mim.
— Eu coagi um homem a praticar um ato sexual comigo. — Ela franziu
a testa. — Na verdade, eu fiz algo sexual para ele.
Minhas mãos apertaram em punhos, minha mandíbula travou e em
minha cabeça fiz variadas rotas de qual caminho me levaria mais rápido a
empresa de Ward para estraçalhar o desgraçado que a tocou.
Ou foi tocado por ela.
Não demonstrei.
— Explique.
Eu não sabia o que havia em minha voz, mas cautela tomou forma em
sua expressão e Freya recuou alguns passos, olhando-me numa mistura de
emoções que me fez praguejar baixo ao reconhecer cada uma delas.
— Freya, não me olhe assim.
— Assim como?
— Como se eu fosse tudo no meio do nada.
— Para mim você é. — Descruzando os braços, ela fechou o espaço
entre nós e ergueu a palma trêmula, pousando a mão em meu peito
novamente. O toque quente aqueceu o lugar onde ela encostou, mas apenas
ali. Todo o resto de mim permanecia frio como deveria ser e perceber que
ainda tinha esse controle me fez acalmar um pouco. — Você é.
— O que, Freya? — Inclinei a cabeça em sua direção, olhando nos olhos
mesmo quando ela tentava fugir. — Sou o homem que Demeron, Onira e
até Kirina te avisaram para ficar longe? Sou o cara que não oferece nada de
bom a ninguém? Aquele que não interessa como alguém chegou até mim, irá
embora pior?
— Não — respondeu com uma coragem surpreendente. — Você é igual
e ele.
Franzi o cenho. Se ela continuasse comparando-me com Demeron eu
teria que ter uma conversa séria com o meu primo sobre o que diabos estava
acontecendo em sua casa.
— Ele quem?
— Kazel. — No momento em que seu sussurro frágil alcançou meus
ouvidos me tornei pedra.
Me tornei trevas.
Será que foi algo que eu disse?
Enquanto Siriu dirigia pela cidade me levando embora, eu quis bater em
mim mesma, quis encarar meu reflexo no espelho e xingar sobre o quão
idiota eu era. Estávamos indo tão bem. Ele estava falando comigo, nem
mesmo reclamou sobre eu tocá-lo ou me impediu, mas então algo mudou.
Ele afastou-se com a mesma facilidade com que eu tinha me
aproximado.
Não foi só fisicamente. Mesmo sem entender muito das coisas, eu podia
vê-lo longe em sua cabeça. Mesmo no conforto de sua presença me senti
tensa na possibilidade de essa viagem ser a última juntos.
— Me senti mais em casa três vezes que estive em um carro com você
do que em meses na casa de Onira — falei de repente, sem pensar em segurar
ou filtrar meus pensamentos antes de colocar para fora.
— Não deveria. Essa é a última vez que algo assim acontece.
— Algo assim? — O encarei. Os dedos estavam brancos em volta do
volante, seu rosto tenso, todo franzido. Desci mais meus olhos, direcionando
a atenção na única coisa dele que eu não conseguia imaginar.
— Estar sozinha comigo.
— Isso não é verdade.
— Veremos.
Balançando a cabeça com um estranho sentimento irritadiço, voltei a
fitar a estrada.
— Sim, veremos.
— Você está saindo da concha, Freya. Isso é bom. Mas preste atenção
em como fala com algumas pessoas.
— Ou o quê?
Nós paramos em um sinal vermelho quando ele me olhou, aqueles
profundos olhos azuis cravados nos meus de uma maneira que me fez ver que
não era a única com sentimentos aflorados.
— Haverá consequências.
— Eu quero isso. Quero que me puna, que faça o que quiser comigo.
Meu senhor, eu preciso de um mestre para viver e se não estiver disposto a
me dar isso de boa vontade eu vou pegar a força.
De repente ele riu. Não era um som alegre e parou rápido demais.
— Não sou um simples funcionário com tesão, menina. Você não me
pega a força, você não me coage a nada.
— Eu sei. Por isso vim atrás de você.
Siriu me olhou como se eu fosse louca, mas não me importei, afinal, não
foi a primeira vez que alguém me olhara do mesmo jeito.
— Passou meses com o meu primo e ainda não aprendeu nada. Eles não
lhe ensinaram nada.
— Está errado — respondi suavemente. — Ensinaram-me como ficar
segura, como correr, como fugir e como evitar problemas.
— O que foi claramente inútil, visto que veio bater em minha porta. Que
ideia foi essa de vir até mim?
— Eu precisava vê-lo.
Silêncio instalou-se no interior do automóvel novamente.
Olhei-o de soslaio. Eu queria tentar decifrar o que ele estava pensando,
se realmente não havia uma forma de me deixar ficar perto, mas ele fechava-
se mais profundamente do que Demeron fazia. Se tivesse ao menos uma pista
do que o incomodava tanto em minha presença, pelo menos podia corrigir,
mas ele não ia me dizer e aquela necessidade dentro de mim não me deixaria
desistir.
O silêncio foi cortado quando seu telefone tocou. Ele pegou apertou algo
na tela sem tirar os olhos da rua.
— Não estou sozinho.
— Não me diga. — Uma risada profunda soou e me peguei olhando
para a tela, imaginando o rosto da voz.
— Qual o motivo da chamada, Liémen?
— Supondo que a companhia é feminina vou manter minha boca
fechada. No entanto, garanto que você vai querer me ver o mais rápido
possível.
— O que você tem para mim? — Ele me deu um rápido olhar antes de
soltar uma respiração. — É seguro dizer.
— Porque não me disse que estava com Kirina? Como vai querida?
— Não se trata de Kirina, vá direto ao ponto, Liémen.
Silêncio novamente.
— Nunca pensei que veria o dia em que o senhor X confiaria em uma
outra mulher.
— Vou desligar em cinco segundos se não começar a falar!
— Certo, certo. — Rindo novamente, ouvi a porta de um carro bater e
então um motor ligando — Por que não nos encontramos em vinte minutos?
— Mande-me uma mensagem com o local.
Ele desligou e não dissemos nada, embora minha cabeça estivesse
girando em mil voltas depois do que ouvi.
— Você a ama? — perguntei antes que perdesse a coragem.
— Quem?
— Kirina.
Ele não respondeu por um tempo e quando entramos na rua de terra
estreita que levava a casa de Onira e Demeron no topo do penhasco, comecei
a me desesperar que não fosse responder.
— Me diga.
Ele parou o carro em frente à casa e esticou a mão para apertar a buzina,
mas a peguei e puxei-a para mim. Seus olhos rasgaram para os meus.
— Freya. — Era um aviso, mas novamente, não me importei.
— Responda-me, pois essa é a única maneira. Quer que eu pare de
persegui-lo? Talvez eu pare se você me disser que a ama. Farei isso para não
machucar Kirina.
Mesmo que fosse me rasgar no lugar.
Os olhos azuis claríssimos não desviaram dos meus enquanto meu
coração batia forte e comecei a contar as batidas esperando. Esperei por um
longo tempo, mesmo que fossem só segundos.
— Não.
Foi uma simples palavra, mas pareceu que devolveu meu ar.
A sala em que Onira tentava desesperadamente me enfiar estava lotada
de lâmpadas acesas, prendendo-me naquele teatro de luz e bondade. Com a
resposta dele uma luz foi apagada.
Siriu podia ter mentido.
Eu disse que o deixaria para trás se ele amasse minha amiga, mas ele
olhou em meus olhos e negou.
Você voltará para a sua casa agora e vai fazer o
que Onira e Demeron te mandarem. Vá ao psicólogo, trabalhe, estude, faça
amigos.
Foram suas palavras e eu estava pronta para fazer isso.
Não me importa, apenas esqueça qualquer ideia absurda que tem sobre
mim.
Ele puxou as cordas.
Ele me impediu de entrar.
Ele não me deu permissão para esquecê-lo.
— Então você será meu.
A única direção que eu a colocaria seria a de passos coordenadamente
calculados a sua destruição, menina.
Eu mal podia esperar.
"Você não sabe que não sou boa pra você?
Eu aprendi a perder você, não posso me dar o luxo de
Rasgar minha blusa para estancar seu sangramento
Mas nada te impede de ir embora"
BILLIE EILISH, WHEN THE PARTY IS OVER
Então você será meu.
As palavras que mais pareciam uma promessa torturaram minha mente
do momento que ela saiu do carro, até vinte minutos depois, quando precisei
empurrá-las para um canto escuro afim de tratar de negócios. Estacionando,
acenei para o segurança na porta da boate de Kirina, entreguei a chave da
BMW alugada e parei brevemente.
— Onde está aquele garoto?
— Heinrich?
— Sim — respondi. — A pequena sombra de Demeron.
— Kirina o enviou para tratar de algumas coisas mais cedo em
Hamburgo.
Suspirei em irritação. Por que parecia que todos estavam malditamente
me testando?
— Suponho que não voltará até amanhã ao anoitecer?
— Demeron o quer de volta pela manhã.
— Diga ao garoto para me encontrar na Konstantine Business. —
Entregando um cartão salvo em meu bolso, entreguei ao homem. — Quando
ele entregar isso na recepção alguém o colocará a minha espera.
Acenando simplesmente, o segurança guardou o cartão e voltou a olhar
para a frente como se nossa conversa não tivesse acontecido.
Como Dutch conseguia manter seus homens aqui tão civilizadamente
era um dilema que eu não apostaria contra ou a favor. Para ter certeza de
que Kirina estava segura em sua linha de trabalho, as conexões de seu pai
com a máfia russa garantiam que cada homem cercando aquele lugar fosse
um soldado Bratva. Eu conhecia aquelas gangues, já treinei soldados que
desertaram a Liga e o governo para ingressar a vida de liberdade que
a Bratva, ou Irmandade oferecia. Eram animais sem capacidade de raciocínio
lógico ou civilidade.
Não conseguiriam fingir um dia de educação nem se valesse um milhão
em seus bolsos. Pelo menos os de baixa patente, é claro. Eu já havia me
reunido com líderes da Irmandade, capitães e chefes de Estado, mas os
guerreiros, como os soldados eram chamados, podiam ser confundidos com
bestas serventes de uma única utilidade: força bruta.
Embora nenhum dos frequentadores assíduos da boate fosse machucar a
rainha da noite de Berlim. Eles amavam Kirina e a respeitavam.
A pequena ruiva estava mais segura do que o presidente dos Estados
Unidos.
— Siriu! Estávamos nos perguntando se você não viria mais.
— Kirina se aproximou assim que adentrei ao salão, oferecendo-me uma taça
de champanhe como se fossemos comemorar algo e compartilhava um
sorriso convencido com Liémen.
Eu a peguei, não querendo estender a reunião com uma birra da ruiva,
então encarei Liémen.
— Qual a informação útil para mim?
Ele sorriu, circulando a cintura de Kirina com a mão recheada de anéis
de ouro.
— Onde está a mulher misteriosa?
— Mulher? — Kirina ergueu as sobrancelhas, mas seus olhos
conhecedores avaliaram-me. Havia um toque de raiva lá, misturado com
aquele ressentimento velho a qual eu já me acostumara.
— Liémen, meu tempo é limitado. Comece a falar ou pode procurar
outra pessoa para se ocupar em sua folga.
O homem riu, avançando com um copo de whisky, como uma oferta de
paz. Eu cedi, abrindo mão do champanhe inútil.
— Seria bom começar dizendo que estou aqui como um intermediário.
— Não me diga, eu estranharia se não se tratasse de você sair
beneficiado.
— Você me ofende, Siriu.
— Ele não leva em conta os seus sentimentos. — Kirina falou. — Os de
ninguém. — Ela sussurrou em meu ouvido, dando um beijo logo abaixo. —
Vou ao meu escritório e estarei de volta em dois minutos, rapazes.
Comportem-se.
Eu a observei sair antes de encarar Liémen.
— O que era tão importante? Diga de uma vez.
— Tenho informações sobre Kazel.
Praticamente pude ver uma rachadura estreitar-se em meu coração
empedrado. Ouvir aquele nome ainda tinha o mesmo efeito sob mim e eu
precisava terminar aquela conversa o mais rápido possível para poder ir
embora e me distrair do sentimento.
— Diga o seu preço.
O sorriso de tubarão aumentou, quase rachando o rosto.
— Deixaremos isso para quando eu precisar de algo. A informação veio
da Rússia.
Franzi o cenho em frustração, Liémen me conhecia o suficiente para
saber onde minhas alianças estavam.
— Você deveria ter me avisado, eu não ficarei em dívida com Dutch.
— Ah, não, mas não é Dutch quem oferece essa cortesia.
Se não era Dutch, havia apenas outra alternativa.
— O que Roman quer?
— Ele não achava que você cederia tão fácil, não sabendo do seu acordo
com os DeRossi.
— Lucca se beneficia mais de mim do que eu dele, se Roman sabe algo
sobre Kazel talvez eu precise rever meus termos. Espere um minuto.
Meus acordos com a máfia italiana aconteceram quase na mesma época
em que fui a Cidade do México estreitar laços definitivos com Juan Carlo
Herrera, hoje, o atual presidente do país. Através dele eu descobri que era
necessário ser apresentado por um bom amigo para conseguir sequer uma
reunião com a família de mafiosos.
Desde então temos um tratado bom para todos. Os Kings estão seguros,
dinheiro roda e nosso poder continua intacto.
No momento em que eu encontrasse Kazel me aposentaria, mas se
existia uma dica em algum lugar onde não tenho negócios... era preciso
mudar.
Peguei meu telefone no interior do sobretudo e digitei uma mensagem
rápida a Lucca DeRossi.
NOSSO ACORDO ESTÁ TEMPORARIAMENTE REVOGADO.
CONVERSAREMOS DEPOIS.
Eu não era siciliano, tampouco um membro da Cosa Nostra, mas
respeitava suas regras. Avisar Lucca era o certo ao invés de agir por suas
costas como um traidor.
— Fale.
— O italiano jogará uma bomba em sua casa antes de perdoá-lo por
isso.
— Então é melhor que a informação de Roman valha a pena a minha
morte iminente.
Roman Koslovish Zirkov tomou o controle da Bratva a força quase duas
décadas e meia atrás. O filho da puta meteu uma bala na cabeça do antigo
chefe, Bukin Malkovi. As histórias diziam que o tiro foi dado com uma mão
e ladeado por homens fiéis a ele, e a outra segurava seu filho de meses
apenas, Viktor.
A grande ironia era que Bukin o tinha criado.
A máfia russa não tinha tantas tradições quanto a italiana, o que sempre
me fez confiar mais em Lucca do que qualquer aproximação com Roman.
Mas, eu respeitava que os russos aceitassem seus homens por merecimento,
não sangue.
— Roman recebeu uma visita na noite anterior.
— Tenho certeza de que ele recebe muitas. — Desprezei.
— Sim, mas essa... ele não sabia quem era até que o homem começou a
falar.
— Kazel?
— Mudié. Parece que a relação dos dois anda abalada.
Aquilo não era novidade para mim. Mudié sempre seguiu Kazel na
ilusão ridícula de que um dia seria seu sucessor, ou como eles chamavam, o
quinto Reitch. O pedaço de lixo entregou a própria irmã a Kazel como prova
de sua lealdade. Eu imaginava que depois de anos sem que Kazel lhe desse
um voto de respeito ou ao menos tornasse-o mais do que um
lacaio, Mudié começaria a mostrar as asinhas.
— Casamentos e suas crises — respondi como se não fosse grande
coisa.
Liémen era um aspirador. Embora ele estivesse ali em missão de paz,
cada pequena coisa que eu dissesse ficaria guardada e ele encontraria
ocasiões para lembrá-las.
— Sim, bem, Roman estava prestes a mandá-lo ir se foder
quando Mudié ofereceu-lhe desde meninas recém-nascidas até as
mais maduras. Deixou claro que tinha rapazes também.
— Diga-me que Roman não matou o desgraçado.
— Embora quisesse, não matou. Adivinha por quê?
— Não faço ideia.
— Um certo gigante de olhos puxados estava escondido na sala de
seguranças da casa e avisou a um dos homens para sutilmente avisar Roman
de entrar na conversa dele.
— Style? — Eu fervi. — Liémen. — Empurrando-me para a frente,
agarrei sua garganta. — Seu filho da puta! Como se atreve a me fazer ficar
em dívida com alguém quando aquele traidor está envolvido?
Dever um favor a Style Tieko era algo que eu morreria antes de aceitar.
O homem não fez nenhum movimento para me parar, ele não era de
lutar. Liémen fazia mais o estilo de terceirizar o serviço.
— Deixe-me terminar, esquentadinho.
Depois de encará-lo por um minuto, soltei com relutância, mas sua
provocação surtiu o efeito desejado. Eu não perdia o controle. Nunca.
— Style morrerá e isso não está em discussão.
Liémen apenas me encarou enquanto ajeitava a gravata.
— Eu obviamente não estou dando a ele proteção em minha casa —
declarou, alisando as lapelas antes de voltar os olhos para mim. — Roman
marcou um encontro com Mudié. Se mostrou interessado pelas mercadorias.
— Eu estarei lá.
— Não. Se tentarmos pegá-lo, ele fugirá. Você tem feito isso há anos e
por algum motivo eu sinto que se o perdermos agora, será quase impossível
rastrear o idiota agora.
— Por quê?
— Roman mencionou que Mudié está perdendo a paciência com as
loucuras de Kazel.
— Os dois estão ficando descuidados — refleti. — Nunca chegaram
abertamente a alguém desse jeito, correndo tantos riscos.
— Exatamente. Foi Kazel quem mandou que Mudié fosse até lá. O cara
parece fora de si.
— Ele sempre foi um louco de merda, qual a novidade nisso?
Kirina voltou naquele momento, falando no celular antes de desligar e
sentar-se no colo de Liémen.
— Algo a ver com uma mulher. Ele se referia a ela como bruxa. A
escrava feiticeira de Kazel. Ao que parece o filho da puta está cada dia mais
andando na corda bamba, ficando dias sem dormir e isso tem afetado não só
ele, mas a todos em volta. Enquanto não tiver a tal de Freya de volta será
descuidado e provavelmente não demorará a morrer.
A morte não era suficiente. Não depois de tudo. Não depois de anos e
anos torturando, matando, criando o terror por onde passou. Mantive a calma.
Mantive a porra da face impossivelmente pacífica mesmo que estivesse
queimando a porra da cidade por dentro. Kazel queria Freya.
E não era irônico que ela parecia querê-lo de volta também?
Você se parece com ele.
— Diga a Roman que estou devendo a ele. — Me dirigi a saída sem
esperar sua resposta. Eu precisava avisar Demeron antes que ela sequer
desconfiasse que Kazel estava procurando por ela.
— Senhor X? — Liémen gritou por mim enquanto ainda ria e me virei
sob o ombro para encará-lo.
A risada de Kirina ainda flutuou no ar com algo que ele lhe disse baixo.
— Espero que entenda que pelo bem dos meus interesses, descobrirei
quem é a mulher que estava em sua companhia.
Minhas mãos cerraram em punhos e foi preciso tudo de mim para não os
esmagar em sua boca.
— Boa sorte com isso, cobra.
Saí deixando-os para ter sua diversão e segui meu caminho.
Eu sabia o que Liémen queria dizer.
Ele não seria o homem dos segredos, o cobra se não estivesse sempre
três passos à frente de qualquer pessoa. Ele não lidava com dinheiro, lidava
com favores.
Por um momento cogitei voltar e cravar uma bala em sua cabeça naquele
momento em que estava vulnerável. Ninguém me veria chegando e assim,
garantiria que Freya não seria posta no radar de ninguém, principalmente não
dos meus inimigos.
Demeron estava se esforçando para mantê-la em segredo e se sua
fixação por mim atrapalhasse a culpa seria minha.
Talvez eu pare se você me disser que a ama. Farei isso para não
machucar Kirina.
Suas palavras ecoaram em minha mente, lembrando-me que eu podia
parar aquilo antes mesmo que começasse, mas não o fiz e agora, Liémen não
pararia até descobrir quem ela era.
Eu sabia que se havia alguém que podia fazê-lo era o bastardo.
"Cegue meus olhos
Então eu não posso ver
Caso você não saiba
Um santo é um pecador também"
SLASH, SAINT IS A SINNER TOO
— Perdoe-me, padre. Eu pequei.
Meu lábio inferior estava ardendo e gotículas de sangue se misturavam
ao meu batom enquanto eu esperava por uma resposta. Encarando a cortina
escura a minha frente, reconheci mais uma vez os riscos de vir aqui. Provocar
a ira do homem que vinha me evitando como se eu fosse a peste do século?
Não era uma boa ideia, mas meus amigos mais chegados nunca me acusaram
de ser inteligente.
Quer dizer, para gerir um negócio confiável que fornecia prazer e ponto
de encontro para a elite pervertida e o submundo de Berlim? Aprendi a ser
mestre na arte.
Quando envolvia meus próprios sentimentos? Nem um santo me
salvaria.
— Confesse seus pecados, arrependa-se e Deus a abençoará.
— Eu tenho sido uma devassa, padre — suspirei. — Tenho encontrado
prazer com pensamentos lascivos e me satisfazendo com fantasias
impossíveis...
Ele me interrompeu.
— Peça perdão a Deus e se arrependa dos seus pecados. — Sua voz
apertada não me deu nenhuma indicação do que sentia ao me ouvir. Ele podia
tanto estar muito puto ou excitado, mas a menos que me mostrasse seu rosto
eu jamais saberia.
Fechei os olhos ao pensar naquilo.
Droga.
A ideia de Padre Terry sair de seu espaço escuro e fechado e puxar a
cortina que me escondia da igreja no final do corredor era louca, mas eu daria
tudo para que o fizesse. Em minha mente, Terry ajoelharia em minha frente e
enquanto eu rezava uma ave maria para seu Deus, ele rezaria um pai
nosso entre as minhas pernas.
Mas o padre tinha outros planos.
Ele tinha feito a missão de sua vida me ignorar.
Embora não fosse realmente um padre comum, Terry levava seu
compromisso com a Liga a sério, sentando-se em seu trono de celibato e
rezando com uma ereção constante.
Padre, padre...
Por que ele não me deixava ajudar?
Eu era a rainha da noite de Berlim e todos sabiam disso. Se não fosse o
quão gostoso padre Terry era, eu teria me interessado quando me desprezou
colossalmente. Minha boate e minhas meninas guardava o melhor sexo,
abrigava os melhores traficantes e cuidava da elite alemã. Eu poderia tirá-lo
de sua miséria com uma garganta profunda que o faria gozar um litro e a
única coisa que pediria em troca seria sua linda língua no meio das minhas
pernas.
É muito?
Eu lhe daria sigilo absoluto. Nem mesmo uma alma viva, a pessoa que
mais confiava saberia. Eu nem sequer jogaria em sua cara quando me irritasse
com algo que ele possivelmente iria fazer. Porque no fim, todos os homens da
minha vida me irritavam.
Me traindo, me passando para trás, cansando de lidar com a minha
merda ou pior... querendo se casar comigo. Havia limites que eu não cruzava
e a placa do “Eu aceito” piscava neon para mim a quilômetros de distância.
— O senhor não vai ouvir a minha confissão?
Ele não respondeu por um momento.
— Você vê o caderno que sempre carrego comigo, Kirina?
Ouvi-lo dizer meu nome sempre tinha um efeito devastador em mim,
mas dessa vez foi diferente. Não era o padre falando. Era Terry. O homem e o
soldado.
— Sim.
— Nele há uma lista de pessoas que agendam para se confessar e que
estão verdadeiramente arrependidos de seus pecados. Querem ser ouvidos
para expulsar suas dores e superar. Você está aqui apenas ocupando o lugar
de um deles.
— É o que eu busco. — Minha voz não enganava nem a mim mesma.
De repente, minha fantasia se realizou quando Terry abriu a porta que o
prendia do outro lado com um baque e deu a volta, tirando a cortina marrom
do nosso caminho. Eu estava frente a frente com o homem de batina que
vinha tirando o meu sono.
— Isso aqui não é uma piada, senhorita Shahaf. Eu não sou uma piada.
— Estou ciente disso.
— Não parece. — Sua voz era tão mortal quanto a expressão e enquanto
uma parte de mim se arrependeu de ter vindo, a outra regozijava-se de
conseguir arrancar alguma emoção daquele homem. Ele parecia sempre
tão entediantemente polido e perfeito, mas eu sabia pelas histórias que
soldados de guerra próximos a ele contavam que havia uma besta querendo
sair.
E eu queria libertá-la para mim.
— Você não é nem mesmo um padre de verdade.
— Eu não vou foder você. — Exprimida entre a muralha rígida que era
seu corpo e a parede, só pude observá-lo enquanto a besta dava sutis indícios
do que estava preso. — Eu fiz um voto com Deus e vou respeitá-lo até o fim
da minha vida.
— A Liga vai te dispensar antes disso.
Eu não sabia a história toda, mas tempos depois de Siriu passar anos
tentando convencer a Liga que a kambarys e Kazel deveriam ser parados,
Stark acreditou e se reuniu com o governo, que chegara à conclusão de que
recentes movimentos políticos e crimes hediondos não poderiam ser
coincidência. Então deter Kazel subiu para o topo da lista. Ao mesmo tempo
que Demeron foi mandado a Sibéria, destruindo a minha irmã no processo,
padre Terry foi mandado para cá, esperando que algum dia alguma
informação chegaria a ele por estar dentro da religião.
As Kambarys eram na maioria das vezes, igrejas reestruturadas onde
todo o show de horror acontecia. E deu certo, pois poucos anos depois o
soldado Terry conseguiu se infiltrar na Kambarys, conseguindo um convite
para Demeron e Style, onde deu início a toda a merda com Onira.
— Acha que só estou aqui pela Liga? Garota, eu servi como um padre e
vou continuar mesmo quando Stark não precisar mais de mim!
— Não quero competir com o seu Deus, Terry. — Levantei-me,
erguendo a mão esquerda para tocá-lo. — Só quero te lembrar algo que
parece ter esquecido. Você é homem antes de santo. E eu quero você. —
Terminei com um sussurro, mas antes que pudesse encostar nele, sua mão
arrebatou meu pulso, puxando-me para perto com o tipo de agressividade que
me deixava de joelhos.
— Saia da minha igreja antes que eu peque na casa do meu Deus e não
será agradável para você.
— Eu não quero agradável, padre.
O aperto de Terry tornou-se mais firme e ele correu comigo para fora.
Sorte a nossa que a igreja estava vazia, ou seria um show de mãos cheias para
as beatas.
— Padre...
Ele me jogou para fora da igreja com uma força que se um dos meus
homens não estivesse esperando lá fora e me agarrado de prontidão, eu
estaria no chão.
— Mantenha essa mulher longe daqui. — Terry avisou sem olhar para
mim antes de virar as costas e entrar, batendo a porta a ponto do meu ouvido
arder.
Zippo me encarou com uma sobrancelha arqueada.
— Você vai tornar meu trabalho difícil, não é?
Eu sorri.
— Impossível.
Naquela noite, quando saí do meu escritório para ir acompanhar o
movimento no salão até a hora de fecharmos, Zippo veio direto para mim
agarrando o meu braço e levando-me de volta para dentro.
— Ei!
— Fique aqui.
— Calma aí, Rocky Balboa! Que porra você acha que está fazendo?
— Estamos com uma suspeita ameaça no salão, você ficará aqui onde é
seguro até que consigamos confirmar.
— Que tipo de ameaça?
— Não sabemos ainda. Espere a porra de um minuto.
— Isso é besteira, ninguém me ameaça na minha casa.
— Ninguém de dentro, mas se for quem estamos pensando, ele não sabe
como as coisas funcionam aqui.
Revirando os olhos, dei a volta nele e apontei o dedo em seu rosto.
— Não se atreva a me parar.
— Kirina!
— Eu consegui meu respeito enfrentando esses filhos da puta, então se
você acha que vou ficar aqui escondida se há algum turista querendo me
ferrar, não me conhece muito bem.
Ele praguejou baixo quando abri a porta, mas não me parou. Meus caras
me conheciam o suficiente. Mesmo que na maioria das vezes eu estava os
deixando insano com minha impulsividade, eu ainda era aquela que mantinha
nossa pequena casa poderosa de pé. Eles precisavam estar atrás de mim, não
na minha frente.
Fiz uma varredura pelo salão procurando o tal desconhecido.
Não seria difícil encontrar visto que todos os frequentadores precisavam
ser convidados por algum membro antigo e conheciam a mim antes de ter
qualquer diversão no meu clube.
Então eu o vi.
Sentado em um dos sofás no canto, vestido num terno azul marinho e
sapatos caros. Ainda que não fosse um frequentador, eu poderia ter o visto a
qualquer momento e os alarmes soariam. O homem simplesmente não se
encaixava lá, de jeito nenhum. O terno não escondia a pele e a pele contava
uma história.
Deixei uma risada escapar, jogando um olhar para Zippo por cima do
ombro.
— Avise Demeron que a Bratva está aqui.
Não lhe dei tempo para resposta. Sai em disparada sorrindo todo o
caminho até o loiro. Parei em sua frente, reconhecendo melhor o terreno antes
de passar pelos portões. Ainda que os avisos de “não entre” estivessem lá, eu
ignorei.
Ele virou seus olhos para mim e contei três segundos até que um sorriso
perfeito surgisse no rosto bonito. Sim, bem, era malditamente lindo. Havia
uma única tatuagem abaixo dos olhos, mas pela pouca luz não consegui
inspecionar melhor. O cabelo não era grande. Bem curto dos lados e um
pouco maior em cima, de modo que ele poderia passar a mão para empurrá-
lo atrás.
Ou eu mesma podia fazer isso.
Sorri com o pensamento, ganhando sua atenção. Ele dispensou uma das
minhas garotas sem falar grosso, apenas pediu que voltasse mais tarde e eu
tomei o lugar que ela estava sentada.
— O terno caro não esconde as tatuagens em suas mãos, menino bonito.
— Não esconde, não é? Meu pai disse o mesmo.
— Seu pai estava certo. Mas eu aposto que ele não te disse que você fica
bem em três peças de qualquer forma.
— Não, ele estava mais ocupado me mandando arrumar uma pequena
mala para vir até aqui.
— Então se vestiu assim por mim?
Ele inclinou-se um pouco mais, o rosto tão próximo do meu que senti o
hálito fresco misturado com o whisky mais caro do meu bar.
— Sim e, além disso, acreditaria se eu dissesse que vim da Itália só para
te ver?
As luzes ficaram um pouco mais claras, sinalizando que o show no palco
acabara e em breve começaria outro e nesse minuto, pude reparar melhor
nele, mas a primeira coisa que vi foi a aliança dourada no dedo anelar.
— Você não é italiano.
— E você sabia disso no segundo que me viu. — Nos encaramos por um
momento, parecia que ele me desafiava a perguntar seu nome, mas eu não
precisava. Não depois de tantas dicas.
— Olá, Viktor.
Ele riu, os olhos claros brilhando em divertimento.
— Eu sabia que a Rainha da noite de Berlim não me desapontaria.
— Não comemore tão cedo, eu poderia chamar meus meninos e eles vão
te mostrar meu desagrado sobre entrar no meu clube sem ser convidado.
— Liémen me convidou. Embora eu apreciasse mais se a cortesia
tivesse vindo de você.
Eu o observei. Realmente olhei dentro daqueles olhos, procurando os
sinais que todos os meus convidados exibiam. Procurei um flash de
honestidade naquela leveza e diversão, e só encontrei uma máscara.
E eu sabia tão bem disso porque me tornei especialista em usar a mesma
tática.
— Não vou dormir com você. — Fui direta, curta e grossa. — Acredite
ou não, tive meu coração partido essa tarde.
— E eu aqui pensando que encontraríamos conforto nos braços um do
outro — replicou, acenando para uma das meninas preencher seu copo vazio.
— Ah, querido. Por que não combinamos assim, eu colo um band-aid
em meu coração e você busca conforto nos braços que realmente quer? —
Peguei sua mão, passando os dedos levemente pela aliança e tive minha
confirmação quando puxou sua mão da minha e seu rosto se fechou, o
lampejo de algo passando nos olhos antes que desviasse o olhar.
Viktor levantou seu copo.
— Voltarei para a Rússia indicando seu clube aos meus
irmãos, Kirina Shahaf-Kona.
— Não, por favor. — Bufei. — Não traga aqueles bandidos ao meu
estabelecimento. — Acenei com a mão para o salão. — Não vê que só
aceitamos a alta classe aqui?
Ele me olhou por um segundo antes de se juntar a mim em uma
gargalhada.
Pois ambos sabíamos que quem entrava no meu clube estava longe de
ter qualquer finesse.
Pelo contrário, eu criei uma casa para receber gente como eu.
Bandidos.
— Onde está Liémen? Vamos tratar de negócios ou o quê? — Viktor
olhou seu relógio de pulso, zerando o whisky do copo.
— Com pressa de voltar para a Itália?
Ele me deu um sorriso matador.
O sorriso de um herdeiro da máfia mais cruel em vigência.
— Estou indo para a Rússia. Tem um inferno de uma história esperando
por mim lá.
"Perdido e inseguro, você me achou
Deitado no chão
Por que você teve que demorar? Onde você estava?
Você me achou
Mas no final, todos terminam sozinhos"
THE FRAY, YOU FOUND ME
ANTES - 21 ANOS DE IDADE
A paz acabou no momento que pisei na casa deles. Demeron veio por
trás da varanda com o rosto calmo, pensando que Onira estava sozinha, mas
quando me viu ficou imóvel por um tempo antes de se levantar e balançar a
cabeça. Ele nunca parecia feliz, mas ficou especialmente descontente.
— O que eu te disse sobre isso, Onira?
— Algo que eu resolvi ignorar.
Onira segurou minha mão e me levou para a cozinha, ignorando-o.
— Isso é maior do que seu senso de proteção.
— Ela está com ele há um dia e uma noite e já foi para o hospital. O que
acontecerá se eu deixar que fique mais tempo?
— Isso foi um acidente — falou ao olhar minha mão.
— Realmente acredita nisso?
Ele me deu um olhar verificando meu corpo rapidamente antes de
analisar meu rosto e correr para minha mão enfaixada.
— Por incrível que pareça acredito. Ele tem mais razões para protegê-la
do que você imagina.
— Bem, eu tenho razões melhores. Desculpe-me por não conseguir
parar de pensar que estávamos sendo torturadas e abusadas em algum lugar
do mundo e ele não deu a mínima. Agora quer ser o salvador? Eu não vou
deixar Freya nas mãos daquele homem.
— Não é sua escolha.
— É sim! — Ela começava a se exaltar. — Freya sabe que só quero o
melhor para ela. — Ela me deu um olhar de súplica. — Eu só quero que
esteja bem e segura. Esse lugar é aqui.
— Ele virá buscá-la.
— E não deixaremos que a leve! — Ela gritou, surpreendendo tanto a
mim quanto Demeron.
— Essa é uma luta que você não vai ganhar, liebe. Entenda a situação
por completo. Deixe que eu e meu primo cuidamos disso.
— Eles vão levá-la de volta e se não o fizerem, Siriu acabará com ela de
qualquer jeito.
— Onira...
— Vamos protegê-la aqui em casa.
— Liebe...
— Pegaremos armas e...
— Onira! — Ele gritou dessa vez, arrependendo se no minuto que
ela começou a chorar. Demeron correu para e segurá-la — Querida, ela não é
você. Não está mais na Tailândia e no fim alguém virá levá-la. Freya está em
risco e Siriu é o único que pode cuidar dela por agora.
— Eu não posso deixar que algo aconteça com ela.
Ele me olhou sem saber o que fazer, mas pela primeira vez eu sabia.
Aproximei-me de Onira e segurei seu rosto, trazendo seus olhos desesperados
para os meus.
— Eu queimei a mão tentando fazer um café da manhã para ele. Sabe
por quê?
Ela balançou a cabeça em silêncio e eu continuei.
— Porque ele foi um cavalheiro em todos os momentos. Ele não me
feriu fisicamente ou com palavras e eu queria agradecer por isso. Mas ele
também me explicou os riscos que corro. Sei que agora ficarei segura com
ele.
— Não tenho tanta certeza — sussurrou.
— Você não disse que ele era pior do que Kazel? Quem melhor para me
proteger de um demônio do que o próprio diabo? — Deixei uma risada curta
e baixa escapar.
Embora Kazel sempre se referisse a Siriu como um demônio eu sabia
que era o contrário. Um demônio fazia coisas ruins para provar algo, porque
lhe era ordenado fazer. Mas o diabo... Ele era o próprio dono de si mesmo.
Não havia ser superior a ele no inferno.
Se havia alguém para me proteger de Kazel era Siriu.
Em meio às lágrimas Onira riu da minha comparação, enxugando o
rosto com as costas das mãos e eu a ajudei com a manga da blusa.
— Você está ficando muito espertinha — brincou e eu sorri para seu
sorriso que era verdadeiro dessa vez.
— Tenho tido um bom exemplo.
Eu a abracei ela me apertou de volta com força. Sim, havia
um laço entre nós. Onira odiava Siriu porque via tudo de ruim que havia nele,
mas se parasse para observar um pouco veria as mesmas coisas em mim.
Eu esperava que ela nunca abrisse os olhos a minha frente.
"Uma gota no oceano
Uma mudança no tempo
Eu estava rezando para que você e eu
Pudéssemos ficar juntos
É como desejar a chuva enquanto eu estou no meio do deserto
Mas estou te segurando mais perto do que nunca
Porque você é meu paraíso"
RON POPE, A DROP IN THE OCEAN
Passando silenciosamente pela recepção ignorei os olhares de ambas as
secretárias e enfrentei o longo corredor. Enfermeiras pararam as conversas
quando entrei, curiosas ou assustadas demais para continuar suas fofocas que
nada tinham a ver com os pacientes. Fui direto ao quarto onde Freya foi
deixada naquela manhã. As enfermeiras de Peter não me deviam nada, mas se
o tratamento certo não estivesse sendo dado a ela eu fecharia aquela clínica
até o próximo amanhecer.
Sem me preocupar em bater na porta a abri e encontrei outra paciente na
cama. Saindo, voltei a recepção.
— Onde está a paciente do quarto 16? Pequena, magra, olhos amarelos e
cabelos longos.
A mulher que ficou para me atender engoliu em seco, olhando em volta
antes de consultar o notebook.
— O que está fazendo?
— Olhando nos registros. — Eu amaldiçoei, fazendo-as se encolher
ainda mais. Eu mandei que Peter não fizesse papeis sobre seu atendimento e
o imbecil ignorou algo tão importante. — Freya, sim? — Dei um aceno. —
Ela teve alta a pouco mais de três horas atrás.
— Alta?
— Sim, senhor. — Conferiu novamente. — Onira Tieko assinou a
documenta...
Não a esperei terminar.
Dirigindo-me a sala de Peter, entrei sem ser anunciado ou esperar sua
permissão. Ele arregalou os olhos ao me ver, levantando-se da cadeira e
erguendo as mãos.
— Siriu...
— O que eu te disse sobre Freya ser minha responsabilidade?
— Que ninguém deveria saber e...
— Ninguém deveria saber que ela esteve aqui e você corre para ligar
para a noiva do meu primo no momento que eu saio?
— Eu não tive a intenção, Onira me disse que se preocupava com ela e
quando sumiu eu pensei...
— Você pensou? O que você pensou?
— Olha, eu juro! Ela sabia que se algo acontecesse você me chamaria e
simplesmente pediu que eu avisasse para saber se Freya estava bem.
— E você pensou que me contrariando conseguiria que Demeron te
livrasse da sua dívida comigo?
Ele baixou os olhos, envergonhado da verdade.
— Senhor X...
— Peter. Eu poderia ter sido muito pior com você. Você me deve muito
e tudo o que eu pedi em troca para saldar seu débito foi que atendesse minhas
chamadas quando eu precisasse.
— Eu sei e sou grato.
— Não parece. — Abotoei meu terno, dando uma olhada ao redor. —
Nosso acordo está cancelado. — Terror inundou sua feição. — Não vou mais
lhe cobrar parcelado. Quando a hora de me pagar chegar, será a vista então se
prepare. O que eu lhe pedir, seja o que for não será barato.
Quando entrei em meu carro, não perdi tempo ao ligar para meu primo.
Demeron tinha entrado num acordo comigo e estava funcionando, mas na
primeira batida sua noiva tinha que se meter.
— Não posso falar agora.
— Lide com a sua esposa antes que eu coloque a Liga atrás dela.
Silêncio.
— O que houve?
— Freya teve um acidente esta manhã e sua noiva a sequestrou da
clínica de Peter.
— Eu não acho que Freya consideraria sair com Onira como sequestro,
mas vou ligar para a minha noiva.
— Sim, faça isso. Se eles chegarem até Freya por conta do nariz
intrometido de Onira eu vou lidar com isso do meu jeito.
— Não ameace Onira, Siriu. Você sabe que eu não vou aturar isso. Ligo
para você daqui a pouco.
Ele desligou e eu acelerei, pegando o caminho mais rápido para a casa
deles.
Estacionei meu carro numa parada brusca em frente à casa isolada e sai.
Estava uma ventania de cerrar os olhos. No momento que liguei para
Demeron, ele sabia que eu estava a caminho e àquela altura já sabia que havia
chegado. Atravessei em passos rápidos a grama molhada, respirando a brisa
que o oceano atrás da casa deixava no ar, mas nem tal tranquilidade me
acalmou.
Eu fervia por dentro.
Quando cheguei há poucos metros da porta ela foi aberta e a expressão
congelada de Demeron me passava diversas mensagens, mas a principal
delas: deixar Onira fora disso.
Difícil, considerando que ela foi a única a levar Freya de mim.
De nós.
— Onde ela está?
— Antes de entrar quero falar com você.
— Não me foda, Demeron. — O empurrei, passando por ele e entrando
na casa. — Freya!
— Espere um maldito minuto!
Onira apareceu de repente com os olhos firmes em mim, mas eu podia
ver a insegurança em sua postura. Demeron rapidamente foi para seu lado,
ficando um pouco à frente dela apenas, preparado para me parar se eu
avançasse. Bufei.
— Não vou atacar sua noiva. Apenas me diga onde ela está e sairei
como se nunca tivesse vindo.
— Eu quero pedir que reconsidere — disse Onira. — Freya está bem
aqui.
— Ela está? Não perguntou por mim ou falou de mim nas horas que
você irresponsavelmente a tirou de mim?
Ela avançou um pouco, saindo de trás do noivo.
— Eu não a tirei de você!
— Eu pedi que a buscasse?
— Não foi preciso. Siriu, ela está aqui por mim e por Demeron, foi salva
quando você não quis ajudar, se lembra?
— E vai continuar assim porque estará comigo. Quando tempo acha que
levará para Kazel a encontrar aqui?
— Eu tenho uma arma. Demeron está sempre aqui e Freya não chamará
atenção. Não temos vizinhos, e... e...
Dei um olhar a Demeron, mostrando minha impaciência. Ele cerrou a
mandíbula. Também não gostava da ideia de Freya estar sob minhas asas,
mas não tinha escolha, ele sabia que eu era o melhor para ela.
— Acabe de uma vez com isso — falei.
— Liebe, vá buscar Freya. — Ele tocou seu ombro e me vi surpreso
quando Onira empurrou sua mão, me dando um olhar afiado.
— Ela não é sua e nunca vai ser. Assim que Kazel for embora vou dar
um jeito de abrir os olhos de Freya sobre quem você realmente é.
Eu sorri para ela.
— Por que acha que seu pequeno projeto quer estar perto de mim,
Onira? Ela sabe quem eu sou. Ela vê.
— Ela não é um projeto, é uma pessoa!
— É um projeto para você. Uma das suas esculturas. Ela é um diamante
bruto que você quer esculpir mandando para trabalhar com Kurton Ward,
levando para a terapia e fingindo que a menina pode ser uma jovem adulta
comum.
— Ela pode!
— Vai jogar esse jogo comigo, Onira? Logo comigo? Eu conheço Kazel
e sei o que ele faz. Se Freya aprender a conviver em sociedade o suficiente
para não te envergonhar como você quer é mais do que pode pedir. Ela está
condicionada a trepar e foder.
Ela exalou com força, indignação preenchendo suas feições, mas seu
noivo via a verdade. Não havia ponto em mentir e sua expressão provava que
ele sabia tudo isso, só não queria admitir. Freya nunca seria normal e quando
Onira tentava impor a ela que fosse, era como tentar mudá-la. Freya se sentia
segura comigo porque se reconhecia em mim.
— A traga para mim de uma vez.
— Eu vou perguntar a ela se quer ir. — Ergueu o queixo e eu sorri com
sua determinação em me desafiar.
— Seja minha convidada.
Ela virou sem dizer mais nada, adentrando o corredor que dava para a
parte de trás da casa, naquele penhasco maldito.
— Eu poderia quebrar a sua cara pela forma como falou com ela, mas
vejo que alguém chegou antes — disse Demeron, indicando o corte em minha
sobrancelha.
— Você nunca foi misericordioso, soldado. Sua noiva mudou muitas
coisas.
— Ela não mudou isso. Eu só não quero assustar Freya.
— Engraçado você pensar que a assustaria tão fácil.
Ele ia responder, mas a volta apressada de Onira despertou nossa
atenção.
— Vocês têm que ver uma coisa.
Eu corri atrás dela sem pedir mais explicações e assim que saímos pela
porta da varanda fiquei petrificado.
— De onde isso saiu? — Demeron perguntou.
— Eu não sei — disse Onira com uma risada. — Eu vim chamá-la e a
encontrei assim.
Perfeita.
Eu não tinha palavras pela primeira vez em muitos anos de vida. Nada
me tirava do eixo ou me chocava o suficiente para isso.
— Um vizinho distante é criador, talvez o macho tenha fugido. —
Demeron voltou a falar, mas eu parei de ouvir. Minha atenção concentrava-se
unicamente em Freya.
O vestido longo e num tom creme balançava com o vento ainda mais
forte e seus cabelos não paravam no lugar. Uma cascata castanha flutuando
para os lados. Ela estava de lado, mas eu podia ver seu sorriso enquanto
alisava a crina do cavalo branco. O animal grande parecia gigante perto dela.
Suas mãos passavam sobre ele com uma delicadeza impressionante,
como quando penteou a minha barba ou me segurou implorando que a
aliviasse de sua dor após o pesadelo naquela madrugada. O cavalo estava
pacífico, virado de costas para nós e de frente para o mar. Eu entendia sua
tranquilidade. O toque daquela mulher podia fazer uma múmia voltar a vida.
Eu senti isso.
Nós sentimos.
— Inferno. — Demeron murmurou, mas eu precisava discordar.
Paraíso.
Valhala.
Paz.
— Admire essa imagem, Siriu. — A voz de Onira cortou meus
pensamentos. — Olhe como ela parece inocente e pura. Ela não pertence ao
nosso mundo. Ao seu mundo de dor e sombras.
Meu riso rouco pareceu ecoar pelo ar, pois Freya ouviu e virou a cabeça,
olhando diretamente para mim. Arregalando as irises amarelas, ela deixou as
mãos caírem do cavalo, abriu um sorriso e segurou o vestido dos dois lados,
deixando os pés amostra. Então ela começou a correr.
— O que você dizia? — perguntei sarcasticamente.
Quando chegou a três passos de distância, Onira tentou chamar sua
atenção, mas Freya só tinha olhos para mim. Os cabelos bagunçados beijados
pelo vento e o rosto corado do frio.
— Meu senhor? — sussurrou.
Sem dizer nada, estiquei a mão, indicando que podia me tocar, mas ela
ignorou e se jogou em meus braços. Suas mãos segurando meu pescoço,
quando a bochecha se aconchegou em meu peito. Eu contive um suspiro.
Uma sensação estranha e tão nova apoderando-se de mim, fazendo aquela
velha rachadura se expandir alguns centímetros em meu coração apedrejado.
Segurei sua cabeça por trás, roçando meus lábios em seu ouvido.
— Voltará para casa comigo?
— Sim — sussurrou e naquela única palavra eu ouvi um sorriso.
Ela pensou que eu não viria. Que depois de ter lhe dado a minha palavra
sobre não estar a mandando embora, eu faria exatamente isso.
— Se despeça de Onira e Demeron.
Eu a soltei sentindo dois pares de olhos sobre mim. Meu rosto treinado
para não demonstrar nada em plena exibição e ficou claro para ambos o
quanto ela apreciava estar em minha companhia. O que Onira diria se
soubesse que aquele apego de Freya se dava ao fato de Kazel ter enchido sua
cabeça sobre quem eu era? Será que já sabia e por isso tinha tantas objeções?
Não, ela não tinha como saber. Se Freya tivesse dito, Onira me daria o
inferno, mas não me deixaria levar sua protegida. Ninguém deixaria. Até
mesmo Kaladia provavelmente se voluntariaria para protegê-la de mim.
De um demônio.
Nós não somos um demônio.
Sim, eu tinha que concordar com os sussurros das sombras dessa vez. Eu
não era um simples demônio, mas o próprio diabo.
A única coisa que eu queria era que esquecêssemos o que houve,
voltássemos para sua casa e pudéssemos retomar. O caminho no carro até sua
casa foi feito em silêncio. Eu queria perguntar o porquê mudou de ideia e
resolveu ir me buscar, se sentiu minha falta ou se eu poderia ter o grande
animal daquele penhasco para mim.
Franzi o cenho ao refletir sobre isso. Não tinha certeza se caberia na casa
de Siriu.
Embora eu amasse Onira e apreciasse o tempo que passávamos juntas,
viver com ela não era o que eu queria fazer pelo o resto dos meus dias
naquele novo mundo. Raramente saíamos de casa depois que ela criou uma
rotina para mim ou me encaixava na dela. Eu vivia em um estado de... tédio,
como as pessoas diziam, e não estava ansiosa para voltar aquilo.
Voltei minha atenção para Siriu, observando-o dirigir com uma mão. O
carro deslizava pela rua movimentada e lá fora alguns pingos batiam
suavemente contra o vidro da frente. Mais chuva. Parecia sempre chover em
Berlim. Eu gostava disso. Da água, do cheiro e da sensação de como algo
caia do céu e nos banhava por inteiro. Nunca tinha conhecido a chuva antes e
quando ela caiu pela primeira vez, Onira e eu estávamos saindo da minha
primeira sessão com a doutora Katya. Eu entrei em pânico, não conseguia
entender o que estava acontecendo. Onira me levou de volta para dentro e
avisou que esperaríamos até que a chuva passasse, mas eu não queria esperar.
Olhando para o céu, tinha visto que não tinha como alguém estar
jogando tanta água de uma vez lá de cima. Eu precisava ver por mim mesma
e sai. Quando a água forte bateu violentamente molhando-me, fiquei travada
por um longo momento, ouvindo Onira cheia de preocupação falando
comigo, mas eu não queria sair. Queria sentir a água.
Parecia que pela primeira vez em minha vida eu estava verdadeiramente
limpa. Nada podia me tocar, pois a água lavava tudo. E eu sorri. Eu sorri e ri
tão forte que Onira me acompanhou, revirando os olhos e me observando
enquanto eu ficava parada e tomava um banho de chuva.
As pessoas passavam com aquela proteção na cabeça, que depois vim a
descobrir ser um guarda-chuva e nos olhavam como se fossemos loucas, mas
eu não me importei. Nem ela.
Eu não podia deixar de agradecer a Onira por todas as coisas que fez por
mim e o quanto tentou me fazer entender seu mundo. Mas conhecer a chuva e
tentar entender um trabalho eram coisas completamente diferentes.
A mão livre de Siriu em sua perna chamava a minha para tocá-la, mas eu
resisti. Só deveria tocá-lo com sua permissão e ela não me foi dada.
Siriu não era tão diferente da chuva, afinal. Assim como a água forte e
renovadora, ele chegava e arrebatava tudo a sua volta. Quem não buscasse
abrigo contra ele seria levado. Mas eu não precisava de abrigo. Não quando
eu era a única a clamar por sua tempestade.
Nós subimos para sua casa ainda em silêncio e eu ansiei para estarmos lá
dentro. Queria descobrir de uma vez o que aconteceria.
— Tome um banho. Pedirei o jantar e vou deixar em seu quarto.
— Posso falar, meu senhor?
— Sim. — Ele tirou o terno que usava, deixando-o perto da porta.
Deslizou o relógio em seguida e uma corrente de ouro pendurada no pescoço,
deixando em cima da pequena mesa de vidro.
— Tenho permissão para voltar a casa de Onira?
Ele moveu seus olhos para meu rosto, me fitando antes de responder.
— Pensei que quisesse ficar aqui.
— Eu quero. — Me corrigi rapidamente. — Mas quero ver aquele
animal novamente.
— Eu não sabia que gostava de cavalos.
— De quê? — Confusa, inclinei a cabeça tentando entender o que dizia.
— Cavalos. Aquele era um macho que você conheceu. Muito bonito.
Forte e bem cuidado.
— Ah. — Eu sorri. — Eu não sabia o que era. Honestamente, meu
senhor, estava debatendo comigo mesma entre pular ou não pular naquela
imensidão azul quando ele apareceu e fez um barulho alto atrás de mim. Me
olhava nos olhos. — Encolhi os ombros como Blair fazia, rindo de como
manias eram fáceis de passar. — Sei que parece bobagem, mas ele realmente
olhava para mim e eu me afastei da beira para conhecê-lo mesmo sem saber o
que era.
— Está me dizendo que ia pular do penhasco? — Ele perguntou sem a
calma de antes, parecia irritado de repente, aproximando-se de mim.
— Eu só queria experimentar.
O silêncio seguiu minha justificativa por um minuto.
— Se a queda não a tivesse matado, a água fria iria. Como consequência
eu seria obrigado a matar Onira e Demeron pela irresponsabilidade de deixá-
la sozinha. Como pode pensar em algo tão estúpido?
Baixei meus olhos, me sentindo estranha com a raiva e o brilho de
decepção nele.
— Eu não sabia que algo ruim poderia acontecer.
— Diga-me, Freya. Quer ver Demeron morto?
— Não!
— E quanto a Onira?
— De jeito nenhum! Nenhum dos dois.
— Então pare de mentir para mim.
— Eu não estou...
— Não me diga que não sabia que pular daquele penhasco maldito a
mataria. Você buscou por isso. Queria o que a morte lhe traria, por quê?
— Eu não... eu...
— Estou ficando cansado de precisar arrancar as respostas de você.
Como vou confiar em deixá-la aqui se precisarei me preocupar o dia todo se
não tentará algo contra si mesma?
Eu estava prestes a responder quando a campainha tocou. Vergonha me
atacou pela primeira vez. Uma vergonha real e dolorosa que me fazia ter
vontade de correr e me esconder em meu quarto porque ele não estava
mentindo em suas impressões.
— Devo sair?
— Não — respondeu quando caminhou até a porta, tirando uma arma
pequena da cintura da calça. — Fique.
Ele a abriu e um rapaz muito novo entrou em passos lentos, dando uma
olhada rápida ao redor, sorrindo quando parou em mim.
— Ei — disse.
— Senhor. — Eu abaixei a cabeça com um pequeno aceno.
— Coloque as sacolas no balcão. Eu vou pegar minha carteira lá dentro
— disse Siriu, fechando a porta e saindo para o corredor.
O homem jovem me deu um outro sorriso quando desceu para o piso
central e levantou as sacolas que pendiam nos dois braços.
— Onde eu coloco isso?
— Oh. — Eu olhei ao redor. — O balcão da cozinha, certo?
— Acho que sim. — Ele riu e me seguiu para dentro. Tinha olhos azuis
alegres e um sorriso sincero.
— O que são todas essas coisas?
— Comida, principalmente. — Ele passou as mãos pelo cabelo loiro e
suas bochechas ficaram ligeiramente avermelhadas. — Nessas duas tem
produtos... hum... femininos. O Senhor Konstantinova fez uma lista, então, é
basicamente tudo o que ele me mandou comprar.
— Produtos femininos? — Franzi a testa, sorrindo de seu
constrangimento. — Tipo o quê?
Ele empurrou a sacola mais uma vez, evitando meus olhos.
— Eu prefiro que você mesma veja. A propósito, eu sou Heinrich.
— Freya. — Me apresentei com uma reverência curta. Ele franziu as
sobrancelhas e ficou em silêncio por um minuto.
— Hum... certo. E você vive aqui, então?
— Por enquanto. Siriu me protege.
— Está em perigo?
— Sim. — Olhei nas sacolas, reconhecendo apenas quatro dos vários
objetos lá dentro. — Mas ficarei bem em breve. Contanto que continue aqui
com ele.
— Legal. — Ele sorriu novamente, mas seus olhos eram cuidadosos
sobre mim agora. Tirando a mochila que carregava nas costas, abriu e pegou
uma caneta junto de um pedaço de papel, apoiando no balcão e escrevendo
algo, então me entregou. — Olha, se precisar de algo pode me ligar, certo?
Eu não estou ocupado na maior parte do tempo e posso te ajudar.
Senti-me profundamente aquecida por sua gentileza.
— Muito obrigada, senhor. — Hesitei, mas respirei fundo e decidi que
precisava cumprir o meu dever. — Como posso agradecê-lo?
— Já agradeceu. — Sorriu. — E se prometer me ligar quando precisar já
ficarei feliz.
Estranhei, mas decidi seguir em frente para ser mais clara. Talvez
estivesse mais uma vez falhando em me comunicar de forma decente com
uma pessoa desse novo mundo e me ajoelhei.
— Posso servi-lo com minha boca, senhor? Ou prefere outro lugar de
meu corpo?
Ele arregalou os olhos, dando dois passos atrás.
— O quê?!
— Deixe-me agradá-lo para provar minha gratidão.
Heinrich estava sem palavras e eu não sabia mais o que fazer. O que
estava errado com os homens desse mundo?
— Caramba, Freya, não...
— Levante-se. Agora. — A voz grave e irritada de Siriu atrás de mim
enviou um arrepio que percorreu meu corpo e me fez tremer. Pela primeira
vez senti medo de encarar seus olhos, então fiz o que mandou de cabeça
abaixada. — Vá para o seu quarto, Freya. Leve suas coisas.
Tentei concordar verbalmente, mas as palavras falharam, soltando
apenas um ruído estranho de minha boca. Apenas assenti e peguei as duas
sacolas seguindo para dentro. O estrondo que veio quando alcancei o
corredor me fez parar, mas segui as ordens do meu senhor e não olhei para
trás.
— Você a tocou? — O garoto preso entre mim e a geladeira mal
respirava, seus olhos refletiam o pânico que sentia sem esconder nada de
mim. Porra, eu praticamente podia cheirar o medo.
— Nã-n... — Bateu em meus braços quando não conseguiu concluir a
palavra. Eu não podia deixá-lo ir. Ele tocou Freya. Ele me fez quebrar a
promessa de que nada a alcançaria sob minha proteção. Ele tirou de mim sua
confiança.
Ele deve morrer.
Apenas tal sussurro das sombras poderiam ter me feito acordar. Se
minha parte mais obscura ordenava algo, eu imediatamente fazia o contrário.
Mesmo que não conseguisse resistir muitas vezes aos seus desejos, que
acabavam por ser os meus mais ocultos e mais profundos, lentamente tirei as
mãos do pescoço do garoto e ele caiu sob os joelhos inclinando-se para frente
em busca de ar. Seu rosto e pescoço estavam vermelhos, assim como linhas
saltadas vermelhas em seus olhos quando me olhou cheio de medo.
— Você a tocou? — repeti a pergunta.
— Não! Eu não faria isso. — Tossiu. — Ela. — Tossiu mais uma vez,
levando longos segundos dessa vez. — Ela se ajoelhou e começou a dizer
coisas...
— Que coisas? — Precisava ver se estava sendo sincero, se valia a pena
deixá-lo sair daqui com vida.
— Que iria me servir para provar gratidão. Com a boca ou o corpo. —
Ele lançou um olhar confuso na direção que Freya saíra a dois minutos. —
Senhor Konstantinova, quem é essa? Que porra é essa?
— Você terminou seu trabalho, Heinrich. — Joguei-lhe um envelope
com notas mais do que suficiente para aquele serviço e dei as costas. — Pode
ir agora.
— O que?! Eu não posso ir agora, não sabendo sobre ela, quer dizer...
não seria bom levá-la a um médico ou algo assim?
Respirei uma longa e profunda lufada de ar antes de encará-lo
novamente.
— Você gosta da sua vida, garoto?
Ele empalideceu.
— Sim, mas...
— Então esqueça sobre Freya. Ela não é da sua conta.
— Demeron sabe dela?
— Demeron a mandou para mim. — Não era uma mentira num todo. Se
ele não tivesse me pedido para ir livrá-la da cadeia eu não teria posto meus
olhos na menina e não estaria travando a guerra que começava em minha
mente.
Minha meta parecia nada comparada a minha nova obsessão.
Freya.
Eu não queria pensar sobre como Kazel a chamava. “Feiticeira”. Mas
era difícil quando parecia exatamente que colocou um feitiço em mim e agora
eu não podia deixá-la livre. Eu não podia deixar que se fosse.
Heinrich me fitou com aqueles olhos estranhamente familiares e assentiu
depois de um momento. Eu tinha minhas suspeitas sobre o porquê de
Demeron proteger e manter aquele garoto perto desde tão cedo. Talvez fosse
seu filho, talvez fruto de uma das escapadas de Regnar. Isso explicaria.
Quando o garoto saiu pela porta eu tentei me acalmar guardando os
mantimentos nos armários nunca usados antes e liguei no restaurante de alta
classe que Liémen tinha no Centro, encomendando a sugestão do Chef para a
noite. Quando terminei, sentei-me com um cigarro apagado girando entre os
dedos e um copo de gin.
Primeiro, descobria que sua mente a levava a tentar tirar a própria vida,
depois, percebi com o incidente com Heinrich que não importava o quão
segura ela estivesse comigo, ainda se sentia na obrigação de servir a outros
homens. Mesmo debaixo da porra do meu teto.
Deveria tê-lo matado.
Sabia que não era culpa dela.
A ensine.
Kazel fez tudo isso.
Cace-o e mate-o.
— Cale a porra da boca — vociferei, contendo a mim mesmo de atirar o
copo longe e fechei os olhos, apertando o vidro entre os dedos. Quando
rachou, a campainha tocou.
O barulho em minha mente se foi, os zumbidos no ouvido não estavam
mais lá, apenas o toque da chamada na porta. Eu atendi e deixei o garoto da
entrega com uma gorjeta antes que fosse embora. Liémen não teria cobrado
aquela refeição, para ele, qualquer dinheiro seria dever algo para mim. E não
apenas comigo, mas qualquer homem com um pé de autoridade na lei ou no
submundo lhe era suspeito e ele não se deixava baixar a guarda jamais.
Em todos os anos que o conhecia foi assim.
Tirei a comida das caixas e peguei um suco na geladeira para Freya.
Com o prato e copo em mãos invadi seu quarto. Ela me esperava sentada no
meio da cama, os olhos fixos na janela do lado de fora, o frio invadindo e
levando seus cabelos para trás. Ela havia trocado de roupa, vestindo-se em
uma camiseta minha.
— Foi ao meu quarto novamente?
Virando-se ao som da minha voz, Freya olhou para baixo em suas vestes
com insegurança.
— Encontrei esta roupa no armário, meu senhor.
Assenti, lembrando que deixei algumas camisas na cômoda.
— Trouxe sua comida.
— Não mereço ser alimentada, meu senhor.
— Como disse?
— Sei que está bravo comigo. Entendo sua fúria e receberei a punição
com honra.
Deixei o prato e copo na mesa de cabeceira com um suspiro e me sentei
a sua frente.
— Olhos em mim, Freya. Você será punida quando e pelas razões que
eu determinar. Vai comer regularmente porque jamais a deixarei passar fome.
— Tudo bem.
— Sua obediência não é um jogo de vida e morte para mim. Eu a quero
porque aprecio saber que você se sente segura comigo, a quero porque
preciso estar no controle em todos os momentos da minha vida. Nunca vou
colocá-la em risco. Já fomos ladeira abaixo na noite em que toquei sua doce
boceta, então não tenho como voltar atrás. Vou tocá-la mais vezes e você me
tocará também. Mas, porque me quer e vai me receber de bom grado, não por
ter medo de não ver a próxima refeição. Entendeu?
— Sim, meu senhor.
— E sobre Heinrich... — Comecei e ela apertou os olhos, abraçando-se.
— Ele tem a sua idade. — Era como se as palavras não fossem minhas, pois
não as pensei, elas simplesmente saíram.
— O que quer dizer, meu senhor?
— Garotas jovens como você ficam com meninos como ele.
Ela inclinou a cabeça, alheia ao que eu dizia.
Cale a porra da boca. Ela é nossa.
— Eu não entendo. Quer que... quer que eu fique com ele?
Lhe ofereci um sorriso frio, capaz de deixá-la ver a seriedade de minhas
próximas palavras.
— Nenhum outro homem vai encostar em você. Vou matar qualquer um
que faça isso. Você não oferecerá seu corpo novamente, não chamará mais
nenhum outro fodido cara de senhor ou, meu senhor. Essas são palavras para
mim, o resto do mundo é simplesmente sem importância.
— Mas não se é respeitoso.
— Eu estou te dizendo que não fará diferença, então não fará.
— E Heinrich?
— Cortarei o pau dele e a farei assistir, depois arrancarei a cabeça dele e
a enviarei para Demeron e Onira. Você não quer isso.
— Não! — Ela estava horrorizada, mas não surpresa. Lidou com
violência a vida toda, mas a minha vinha de uma origem diferente e tinha um
simples objetivo: deixá-la segura de si mesma.
— Quer ser tocada por outro homem?
— Não. — De olhos arregalados, fitou-me com confusão.
— Nenhum outro?
— Não!
— Nem mesmo Kazel? — Ela hesitou, desviando a atenção de mim. —
Não quer ser tocada outra vez por seu mestre? — Cuspi a palavra, sabendo
que ele não merecia tal título.
— Eu não posso responder a isso.
— Mas vai. — E essa resposta será o fim de tudo. — Diga.
— Não me faça dizer — sussurrou com olhos suplicantes. — Por
favor...
— Responda-me, Freya. — O comando em minha voz não lhe deixava
escolha.
Ela bateu os olhos em mim novamente e uma lágrima escorreu deles. O
amarelo brilhando. Aquelas eram palavras que uma escrava jamais deveria
admitir, nunca. E eu estava sedento por elas, porque assim que admitisse seus
próprios desejos, começaria a se libertar de Kazel.
E estaria pronta para nós.
— Não. Não quero ser tocada por ele também. Só você. Apenas você,
meu senhor.
Eu inalei com força, sentindo o impacto de suas palavras em meus
ossos.
Minha vida inteira foi regida por ordem e disciplina, mas com um olhar
daquelas irises amarelas eu tenho perdido o controle a cada dia em sua
presença. As sombras estiveram caladas por anos graças a todo o esforço que
fiz para ficar fora da influência maligna dentro de mim, mas agora, essas
mesmas sombras queriam tomar posse de Freya.
— Você não me chama assim.
Seu nariz pequeno torceu em confusão, os lábios inchados achatando um
no outro.
— E como devo?
— Como você acha, Freya? — Meus olhos diziam tudo e eu esperei que
ela enxergasse isso. Embora uma parte minha queria que não acertasse a
sugestão, assim, eu teria absoluta certeza de ficar longe dela.
Ela verá.
Enquanto as sombras seguravam fios do meu cérebro e torciam em nós,
eu observei seu rosto clarear como o dia e me condenei por achar tão bonito,
ainda que não fosse a noite.
— Mestre. — O sussurro rouco enviou ondas ao meu corpo, mente e
coração. A rachadura abrindo-se um pouco mais ao perceber que ela me via
como ninguém antes pode.
— Toque-me.
Ela sorriu um sorriso enorme, do tipo que só vi quando estava cheia de
esperanças e lentamente desceu da cama. Os olhos incertos carregavam uma
gratidão que eu não merecia, e a felicidade que não deveria ser minha.
Ela se colocou no meio das minhas pernas e me olhou nos olhos quando
pegou minhas mãos. Alisou meus dedos um por um e levou até seus lábios,
jogando fora dez beijos que eu não merecia, mas tomei de qualquer forma. As
pontas dos meus dedos queimavam do toque dos lábios dela e foi apenas o
começo.
Freya deslizou as mãos para cima em meu antebraço, cotovelo e chegou
ao ombro. A carícia era lenta, meus músculos contraíam violentamente e
meus dentes estavam cerrados fortemente. Eu fui tocado pelas prostitutas
mais experientes, por mulheres que juravam me amar e por Kirina, a que
realmente me amou. Mas nada se comparava aquilo. A Freya encarando-me
como se eu fosse o presente que ela esperou a vida toda receber.
Engoli em seco.
Os dedos começaram a desfazer os botões da minha camisa, deslizando-
a pelos ombros até que estava fora e eu não tinha nada me cobrindo da
cintura para cima.
— Mestre. — Ela me olhou profundamente e me puxou pelas mãos,
guiando-me a ficar de pé. E naquele momento eu não reclamei. Não reclamei
de ser guiado por ela — O senhor é lindo — sussurrou, rodeando meu corpo
muito lentamente sem deixar a mão cair. Passeou os dedos sobre meu peito,
braços e costas até chegar à minha frente outra vez, erguendo os olhos para
fitar meu rosto. — Perfeito.
— Quero dizer algo.
— Você está cheia de vontades essa noite — disse ele, fazendo-me rir.
— Ouvi falar sobre primeiro beijo.
— É mesmo? — Ele tinha a voz sufocada, o caroço no pescoço
movendo-se ritmicamente. Subi minha mão até seu peito, bem em cima do
coração. Batia forte, forte como senti o do cavalo no penhasco.
— Sim. Quanto mais pensei sobre isso, mais convencida estava de que
quero que o meu seja com o senhor.
— Você nunca beijou antes?
— Beijei o Kazel. Isso conta?
— Não — rosnou, os olhos piscando um brilho que não entendi.
— Imaginei que diria isso. — Minha risada o fez encarar meus lábios de
cenho franzido. O azul cobalto dos olhos ferventes, fixavam-se em mim
como se eu fosse seu único foco naquele momento e eu amei ser.
Foi para isso que fui até ele. E para isso faria qualquer coisa para
permanecer ali.
— Tenho permissão para beijá-lo, meu senhor?
— Com uma condição.
— Qualquer coisa. — Não menti ao dizer isso. Eu queria sentir mais
uma parte dele em mim e não negaria nada que me levasse a tê-lo.
— Pense bem antes de me dar suas respostas, Freya. Quero sua
honestidade, mas não vou poupá-la de desconfortos se quiser algo que não
está pronta para me dar.
Minhas sobrancelhas uniram-se em confusão. Ele não me entendia?
— Darei qualquer coisa que quiser de mim, mestre. É só dizer e terá.
— Muito bem. — Suas mãos encontraram minha cintura e minha pele
aqueceu onde fui tocada por seus dedos grossos e calejados. — Me dirá o
porquê pensou em se jogar do penhasco na casa de Demeron. Será honesta e
vai me contar sem filtrar seus pensamentos.
— O que isso quer dizer?
— Filtrar os pensamentos? — perguntou e eu assenti. Ele continuou. —
Escolher o que dirá. Pensar sobre o que dizer e o que manter guardado. Não
quero.
Foi lento quando seu rosto começou a aproximar do meu. Precisei ficar
impossivelmente parada, mas eu sabia como fazer isso. Fui treinada para
obedecer e aceitar, mas nunca tinha sido assim, nunca tinha sido algo que eu
pedi e estaria prestes a receber. Aquele era o meu presente. Um que eu pensei
desde que assisti Ghost, um filme romântico que Onira me obrigou a lhe
acompanhar. A cena era linda. No começo, eu me senti comovida por todo o
filme, mas queria que acabasse logo para voltar a assistir 007 e ter a única
parte de Siriu que podia. Então o fim chegou e junto dele, o momento em que
Sam pode finalmente encontrar a paz. Ele se aproximou lentamente de Molly
e a beijou. Seus lábios mal se tocam porque naquele momento ele é apenas
uma luz forte, sem vida e ainda assim tão vívido. Mas aquele curto beijo me
fez perguntar a Onira porque eu sentia que foi tão especial.
Ela me deu uma resposta que jamais sairia da minha mente.
“É o último beijo dela com o amor de sua vida. As vezes não
valorizamos as coisas enquanto as temos e o primeiro beijo fica esquecido,
mas quando eles só têm o último... isso é tudo. Há apenas uma última
chance.”
Eu sabia que entraria em curto no momento, em que Siriu me tocasse
daquele jeito, simplesmente sentia, mas não queria. Queria estar sã e com a
mente clara para me lembrar de tudo. Cada movimento, cada sensação, cada
vez que ele me segurasse mais forte ou respirasse contra mim.
Queria valorizar nosso primeiro beijo como se fosse o último.
Após alguns segundos apenas encostado ele lançou sua língua para fora,
invadindo minha boca. Timidamente eu deixei a minha própria tocá-lo e
deslizar contra a maciez de sua boca. Os lábios eram firmes e inchados contra
os meus e seus braços me seguraram firme pela cintura antes de subir e
agarrar um punhado do meu cabelo com uma mão enquanto a outra segurava
meu pescoço. Siriu inclinou minha cabeça para o lado, lhe dando liberdade
para explorar minha boca como quisesse.
Eu ardi e suspirei. Tremi, mordendo levemente e de modo desleixado
seu lábio inferior, o que me rendeu um riso curto e sombrio. Eu amei. Meus
dedos apertaram em seus ombros, tentando puxá-lo para mais perto de mim e
ele veio, ele me deixou pressionar contra seu corpo alto e forte, deixando-me
sentir os músculos que desenhavam ele todo. Meus seios duros e rígidos
estavam amassados nele e eu gemi. Era tão bom.
Ele puxou meu cabelo num aperto firme, sem machucar, apenas
lembrando-me que estava no controle.
Ele me oprime.
Me deixa tonta.
E eu quero ainda mais disso.
Após esse momento ele puxou a cabeça para trás separando nossos
lábios e eu tentei resistir, mas Siriu segurou meu rosto no lugar enquanto
escovava nossos lábios uma última vez. Um último e doloroso toque. Eu
sabia que tinha acabado. Acabara de beijar um homem e sabia com certeza
que nada superaria aquela sensação. Suas mãos me segurando, seu corpo
inigualavelmente forte contra o meu, seu cheiro me cercando e um
movimento no meu interior que fazia minha barriga revirar deliciosamente.
— Obrigada, mestre — sussurrei, ainda incapaz de abrir os olhos.
Estava presa no encanto do que seu beijo fez para mim.
— Te darei o que posso, mas em troca quero tudo. Seus lábios. — O
polegar correu pelo o meu lábio inferior. — Sua atenção. — Ele beijou minha
orelha. — Seus olhos fodidamente loucos. — Ele soprou em minha pálpebra,
fazendo-me abrir. — E seu corpo e vai amar cada minuto disso. — Siriu
forçou minha frente contra a sua. — Enquanto estiver aqui comigo me dará
tudo.
Enquanto estiver aqui comigo...
Eu não precisava estudar ou pesquisar na internet para saber o que
significava aquilo. Minha estadia tinha data de término e meu coração errou
duas batidas ao reconhecer que não ficaria ali para sempre.
O resto dos meus dias no mundo novo não seriam os mesmos sem a
segurança dele ou a única familiaridade que eu encontrava. Meu lar. Eu cresci
ouvindo sobre ele. Sonhei com ele quando a dor era demais para suportar.
Acreditei assim que o vi do lado de fora e longe de Kazel, que Siriu seria
minha salvação, ainda que não soubesse precisar de uma na época.
Mas acabaria.
Eu sabia que uma vida sem a Kambarys e sem Kazel, eu podia lidar.
Podia me isolar em solidão e esperar o fim, mas depois de conhecer o
conforto de um mestre como Siriu, não podia esperar a mesma coisa.
Ele não buscava prazer em me ver sangrar, ele não me faria correr pela a
minha vida e jamais permitiria que outros homens me machucassem como
Kazel fazia. Embora eu gostasse da dor que vinha antes daquele alívio
delicioso, nunca apreciei a dor da tortura, do sangue e da humilhação.
Aguentei porque tinha que suportar.
Mas, assim que Siriu estivesse feito de mim, eu estaria feita para a vida.
E eu encontraria paz sabendo que fui cuidada e protegida pelo diabo. O
homem que nos meus sonhos me salvou.
“Ela te fará amaldiçoar, mas ela é uma bênção
Porque ela está mexendo com sua cabeça”
AVA MAX, SWEET BYT PSYCHO
— Eu fiz certo? — Ela perguntou com a voz baixa, ansiosa e olhos
suplicantes.
Se fez certo? Porra, ela beijava como uma deusa. Raiva me corroeu ao
pensar que Kazel tinha feito isso. Que devia tê-la torturado até que ela
beijasse perfeitamente, até que os toques de suas mãos e sons fossem
sincronizados com a língua. Tudo nela foi feito para tirar o juízo de qualquer
homem.
— Fez, mas ainda precisamos praticar muito mais.
Dei dois passos atrás, livrando-me de seus braços e recolhendo meus
dedos ou eu a tocaria mais do que o planejado para aquela noite.
Não foi planejado.
Sim, eu precisava reconhecer que não foi, as emoções que eu trancava
tão fortemente estavam evoluindo e entraram em ebulição com o que Freya
disse. Mestre. A honra de tal palavra não podia ser explicada. No meu
mundo, significava confiança profunda e incondicional. Não importando o
que eu decidiria fazer com ela, ela deixaria e ficaria feliz, e por fim me
agradeceria.
Eu era um sádico filho da puta e nunca escondi, mas pela primeira vez
estava desesperado por algo. Alguém. Ela. Queria escravizá-la, domá-la,
levar Freya em todos os sentidos.
A sodomizar.
Fazê-la precisar de nós.
— Agora, sobre o nosso acordo...
— Posso beijá-lo novamente? — Ficando na ponta dos pés, ela tentou
alcançar minha boca, mas a mantive firme pela cintura.
— Trato é trato, Freya. Você recebe algo e precisa me devolver em
troca.
— Como uma compra? — comparou.
— Sim, como uma compra. Agora me diga por que pensou em se jogar
do penhasco?
— Eu gostaria de não precisar falar sobre isso, mestre — sussurrou,
causando-me um arrepio não só pela voz suplicante, mas a palavra que tão
facilmente atribuiu a mim.
— Mas vai. — Segurei seu queixo, levantando o rosto para mim. — Eu
quero que me diga.
Ela era bonita demais. Não como uma beleza rara, mas algo confuso até
de se entender. Os olhos grandes e amarelos, a pele tão macia mesmo depois
de ter sido tão maltratada, os lábios num formato perfeitamente cheio e
avermelhados. Lembrei-me que logo que Demeron voltou do resgate, avisou
que uma escrava resgatada de Kazel ficaria na mansão, avisando que a
menina estava perdida. Sem vida e sem brilho. Mas eu olhava para Freya e
não conseguia entender de onde meu primo tirara aquela conclusão.
Passamos por infernos diferentes, ela sofreu muito mais do que eu, não
era possível nem comparar, e ainda assim, sorria. Sorria, ousava ter esperança
e me trazia a porra de filmes para assistir.
— Diga-me, agora.
Ela me observou por um momento, como se analisasse cada linha e traço
do meu rosto.
— Eu nunca tive nada além do peso das mãos de Kazel sobre mim, mas
aquelas também eram as mãos que me davam amor e atenção. Quando
finalmente te conheci, percebi que era um tipo diferente de segurança. O
senhor me deu alívio, mas não me fez sangrar. O senhor preencheu o que
estava vazio desde que fui libertada de Kazel, mestre. Como eu poderia voltar
àquele vazio?
— Então... quis se matar porque pensou que eu a tinha mandado
embora?
Ela franziu o cenho, dando um passo à frente quando eu a soltei e me
afastei, mas pensou melhor e ficou parada.
— Eu não diria me matar, mestre. Ia apenas livrar-me do vazio.
— E como essas duas coisas são diferentes?
— Eu... eu não sei.
— Porque não são. — Firmei meus olhos nos dela, sentindo um misto de
raiva, preocupação e um fodido desejo. — Você não pensará mais em tentar
contra a sua própria vida, Freya. Se fizer algo para machucar a si mesma
intencionalmente vou fazê-la se arrepender.
Quando ela desviou os olhos, fiquei tentado a puxá-los de volta para
mim, mas aquilo precisava vir dela. Tinha que ser sua compreensão de que
não me agradaria.
— Sim, mestre.
Outra mentira.
Como eu poderia prometer que não faria nada se ele me deixasse? Não
era isso o que um mestre procurava em sua amante? Disposição e adoração.
Eu aprendi a orar por Kazel, esperar por ele para ser banhada, alimentada,
cuidada e punida. Quando fiquei enferma ele me tratou e me mostrou que por
ele eu continuaria viva mais um dia. Minha gratidão e servidão lhe pertencia.
Ele ficava feliz em me ter dependente.
Por que Siriu não?
Ele não te ama.
Ele não se importa o suficiente.
— Prometa para mim. Diga isso. Me dê a sua palavra de que não irá se
pôr em risco.
— Dou-lhe minha palavra e promessa, mestre, de que não vou me
colocar em risco.
As mentiras saíam tão fáceis de meus lábios que me fez pensar que
aquele mundo já estava me modificando e antigamente eu teria me
importado, mas quando mestre me deu um olhar aquecido eu percebi que
faria qualquer coisa para que me olhasse sempre assim.
Para que se importasse.
Para que aprendesse a me amar.
Depois da estranha conversa com Freya eu saí de seu quarto em meio a
um debate comigo mesmo enquanto a mandava comer e ir se deitar. Ela
precisava cuidar de sua mão, e por mais que uma parte de mim quisesse fazer
aquilo eu já tinha passado muitos dos meus limites.
Preocupando-me, tentando entender a jovem mulher, conhecendo partes
de mim mesmo que até então não sabia ainda existir.
Depois daquela mais de uma década atrás naquele hotel, eu não me
permiti mais possuir nada. Nem uma casa, nem um carro, um animal de
estimação e muito menos uma mulher. A única coisa que chegou o mais
próximo de família fora minha própria família de sangue, eu joguei para
longe como se não fosse nada e naquela época não era. Ainda não é.
Por anos e anos e ainda hoje, me condenei por ter acreditado em Kazel,
na história que contou e mesmo depois de ter ficado ao seu lado, sempre me
pegava pensando no que no fundo da mente eu sabia que era verdade: ele era
o monstro que os policiais me procuraram aquela manhã para falar. Ainda
que dissesse o contrário.
Então por que fiquei?
Pergunta para a qual eu jamais teria a resposta.
Agora Freya, a única pessoa que ele se importava, mesmo que fosse
apenas para provar a si mesmo doentiamente, estava comigo. Precisava de
mim. Tiraria a própria vida apenas com o pensamento de que eu a
abandonaria.
Parecia rápido e exagerado, mas não para mim.
Onira não entenderia, Kaladia tampouco, mas eu sim. Eu sabia o que era
precisar de algo tão desesperadamente que tudo se tornaria preto e branco.
Nada mais faria sentido além daquela única coisa.
Minha justiça.
Nossa vingança.
Freya viveu intensamente toda a sua vida. Essa intensidade se virou para
mim e eu era tudo o que ela via. Embora quisesse me sentir mal por isso, não
conseguia. Eu gostava de ser o centro de seu mundo, mas o pensamento
incômodo de que quando eu a mandasse para longe ela faria algo consigo
mesma me sufocava.
Não tinha como consertar isso. Era o que era.
Quando deslizei o carro para esquerda na porta da boate de Kirina meu
celular tocou. Poderia ser o segurança que deixei no apartamento ao lado
observando Freya e apenas por tal motivo eu decidi atender.
— Siriu.
— É Onira.
— Adeus. — Desliguei.
O telefone voltou a tocar três segundos depois.
— Que porra você quer?
— Será que você não sabe ser civilizado? — gritou.
— Não com você.
Ela rosnou do outro lado.
— Se Freya está sendo tratada assim eu vou saber, Siriu, e não me
importo com seu nome ou sua fama, vou cobrar o que fizer para ela!
— Diga de uma vez o porquê ligou.
Ela me irritou. Freya estava sendo tratada melhor que qualquer pessoa
que já cruzou meu caminho e Onira continuava agindo como se tivesse voz.
Como se eu fosse virar seu cachorrinho igual meu primo fez.
— Não é porque a deixei sair da minha casa com você que estou
abrindo mão dela. Freya tem compromissos e responsabilidades.
— Ela não voltará a trabalhar para Ward. Diga-me o contrário e o
sangue do homem que ousou tocá-la estará em suas mãos.
Houve um momento de silêncio.
— Ela te contou sobre isso?
— Eu não tenho tempo livre, porra, o que você quer?
— Ela precisa ir a terapia! Você tem que levá-la toda sexta-feira até
que a psicóloga diga o contrário. Ela também tem que tomar seus remédios
e...
— Sem psicóloga, sem remédios.
— O que quer dizer?
— O que parece? — ironizei. — Ela acabou com toda essa merda.
— Você não pode! Ela está num caminho melhor e logo estará curada
de suas cicatrizes, Siriu, não tire isso dela.
Eu quis rir. Eu quis rir pra caralho. Caminho melhor? Cicatrizes? Em
que mundo aquela mulher vivia?
— Você se lembra quando foi levada por eles?
Ela bufou sua indignação.
— É claro que sim, todos os dias.
— Então não entendo de onde está vindo toda essa merda de cicatriz.
Inferno, ninguém se cura disso. Aprender a viver um dia após o outro é o
máximo.
— É para isso que a psicóloga e psiquiatra servem! Elas têm me
ajudado e Freya também po...
— Onira — falei calmamente, mas o gelo em minha voz não tinha como
ser perdido. Eu esperava que ela não perdesse. — Não me ligue cheia de
ordens do caralho. Na verdade, não volte a me ligar ou eu vou dizer a
Demeron que temos uma segunda Kaladia na família. Entendeu?
— Ah, meu Deus, você é um porco!
— Sim, mas foi você quem me ligou. Freya não vai querer voltar de
qualquer maneira.
— Apenas pergunte a ela! Não, melhor... Ela dirá que não quer.
Nenhum paciente quer ser tratado ou admitir um problema, por favor,
apenas a faça ir.
— Você quer que eu a force? — Fiz uma pausa do lado de fora ao jogar
a chave do carro alugado para Heinrich guardar.
— Não é forçar, mas por alguma razão ela te escuta. Você poderia só
dizer que ela tem que ir.
— Ou seja... a forçar.
— E você por acaso tem algo contra isso? Eu não duvido que já tenha
coagido muitas mulheres a fazer coisas com que não estavam confortáveis.
Sua irritante mania de trazer sua amiga, Slom ao assunto em qualquer
oportunidade me tirou do sério.
— Você é uma hipócrita, não é, japonesa? Critica meus métodos, mas
quando te interessa você distorce o assunto até ser cabível de justificativa em
sua cabeça para se sentir melhor consigo mesma e você faz exatamente o que
eu faria.
— Posso ser. Mas só quero o melhor para Freya.
— Pode deixar que eu decidirei isso. — Desliguei, e o telefone não
tocou novamente.
O garoto me observou enquanto esperava que eu saísse da frente da
porta da BMW. Ele parecia indeciso de falava algo ou não.
— Cuspa. — Mandei bruscamente fazendo-o se sobressaltar.
— E-eu só queria pedir desculpas mais uma vez, senhor.
— Ela é muito bonita, não é?
— Eu não reparei. — Ele abaixou a cabeça com sua mentira,
escondendo os olhos azuis idênticos aos de Demeron, de mim. Eu precisava
fazer um teste de DNA para comprovar minha teoria ou ficaria louco.
Demeron era seu pai, não havia como mentir sobre isso, mas e sua mãe? Será
que o garoto sabia de suas raízes?
— Reparou sim. Não minta mais para mim, garoto.
— S-sim, senhor.
— Kirina te deu esse emprego?
— Sim, senhor.
— E você gosta?
Ele deu de ombros.
— É mais uma forma de ganhar experiência até que eu possa entrar na
Liga.
Minhas sobrancelhas saltaram ao saber de sua ambição.
— Quer ser igual a Demeron, eu suponho.
Ele me olhou dessa vez. Seus olhos cravando tão forte nos meus que
precisei desviar por um segundo. Ele engoliu em seco, depois assentiu.
— Sim, por Demeron. Claro.
Eu assenti lentamente.
— Cuide do carro.
Adentrei a boate vazia, encontrando quem eu procurava lá dentro. As
luzes estavam todas acesas, dando-me uma vista de cerca de nove meninas
ensaiando para suas performances ao anoitecer. Atraí atenção quando entrei,
sentando-me numa poltrona para esperar que Liémen chegasse. Ultimamente
o homem vinha me chamando com mais frequência e a minha suspeita sobre
suas motivações não me agradavam. Ele queria a identidade de Freya e não
fez segredo sobre isso.
Kirina não amarrava um ponto sem nó. Tudo em seu estabelecimento
gritava luxo, servia prazer e liberava endorfinas. Ela entregava drogas em
uma bandeja de prata e bebidas caras em bandejas de ouro. As mulheres que
trabalhavam lá também eram boas. Bonitas, cuidadas. Uma ou duas eram ex
escravas da Kambarys que ficaram presas por pouco tempo e quando saíram
não quiseram deixar a proteção que tinham em Berlim de jeito nenhum.
Outras eram viciadas que Kirina resgatou da rua e cuidou, depois ofereceu
duas opções: serem jogadas a própria sorte outra vez ou ganhar dinheiro
trabalhando para ela. Havia também as que já não tinham mais esperanças e
passaram por coisas o suficiente, cansando de esperar qualquer bondade do
destino.
Kirina as dava o melhor da estética no começo, comprava suas belezas e
as mulheres a pagavam quando o dinheiro começava a entrar, e se sentiam
em dívida com a mulher por anos.
Ela tinha 38 anos, mas ninguém lhe dava nem 30. Tinha mais respeito
do que muitos homens conquistavam na vida. E dava casa para os que
precisavam de abrigo.
Por isso eu me encontrava ali mais uma vez. Depois da confissão de
Freya foi difícil ficar lá. Eu tinha que sair antes que meus pensamentos
sombrios ganhassem a batalha em minha mente e eu me tornasse outro Kazel
para ela.
Que ela precisasse de mim para guiá-la eu conseguia entender. Que ela
poderia se matar ao pensar que eu a deixaria... isso não me entrava na cabeça.
Eu queria protegê-la e garantir sua segurança, não lhe causar um mal
irreversível.
Mas nós gostamos de sua dependência.
— Você anda muito pensativo, meu amigo. Depois não quer que eu me
intrometa. — A voz de Liémen não me assustou ou surpreendeu, mas irritou.
— Me seguindo?
Ele tomou a poltrona mais próxima sem me olhar no rosto.
— Sim.
— Eu pensei que me conhecia bem o suficiente para levar meu recado a
sério, Liémen.
— Eu faço, mas o submundo fala. Passarinhos cantam e ratinhos correm
do esgoto mais podre na periferia para os canos mais caros da cidade.
— Seu ponto?
— A palavra é que você mantém alguém importante para si mesmo. Que
sua nova mulher é alguém.
— Conto de fadas adorável.
— Um conto de fadas, de fato. Principalmente se você a mantém
guardada numa torre alta.
Mantive minhas mãos para baixo, escondendo o quão perto da verdade
ele estava e o quanto odiei isso. Eu sorri.
— Isso não seria muito heroico para mim?
— Veremos em breve. Assim que meu homem voltar de seu
apartamento em Frank e confirmar minhas suspeitas.
Tarde demais. Eu me movi antes que pudesse pensar. Minhas mãos em
seu pescoço e sua risada reverberando por cima da música que tocava baixo.
A voz das meninas se calou e o barman atrás do balcão parou de tilintar as
bebidas que praticava a preparação.
— Oh, bem. — Liémen me olhou nos olhos. — Parece que não terei que
mandar ninguém lá afinal de contas. Já tive a minha resposta.
Eu pressionei o aperto um pouco mais, observando os olhos começarem
a arregalar, mas não de medo. Liémen jamais se deixaria mostrar tal fraqueza,
mas de vitória. Ele blefou e eu caí como um pato desesperado por migalhas.
E eu fui tão incrivelmente estúpido. Ainda que ele tivesse mandado
alguém verificar o apartamento, eu tinha câmeras que avisariam os dois
seguranças no momento em que acionassem o andar no elevador. Só que o
simples pensamento de alguém alcançando Freya para machucá-la ou usá-la
contra mim me deixava fora de controle. O sentimento não me pertencia.
Nem uma única vez eu deixei algo me subjugar de tal forma, mas agora o fiz.
E agora Liémen sabia.
Havia dois grupos de indivíduos que buscavam encontrar algo ou
alguém que era importante para mim. Meus inimigos, para usá-los como
forma de me machucar e aqueles que queriam fazer negócios comigo, e
poderiam usá-la para me chantagear.
Freya não estava segura de nenhum deles. Nem mesmo de mim.
E ainda tinha Kazel.
— Diga-me quem é ela, meu amigo.
Eu o soltei. Matá-lo só colocaria mais lenha na fogueira. Liémen era
precioso para muitas pessoas que adorariam buscar sua vingança, mas o que
mais me preocupava: buscariam o motivo para eu tê-lo matado.
— O que você quer pelo seu silêncio?
— Eu? — Ele gargalhou. — É realmente comigo que deve se
preocupar?
— Com quem você compartilhou isso?
Ele me deu um olhar demorado, analisando meu rosto como nunca fez
antes.
— Ela é importante — constatou. — Não é um brinquedinho para você
bater e foder como as outras. Agora estou curioso para conhecê-la.
— Jamais, Liémen. Com quem abriu o bico?
— Ninguém, mas devo dizer que seu primo atuou melhor do que você.
Me disse que não se falavam há mais de dois meses e não se importava com
seus assuntos.
Saber que Demeron mentiu melhor do que eu mesmo tendo se tornado
um cachorrinho emocional de Onira me deixou infeliz e irritado.
— Ele não mentiu — falei. Mesmo que Liémen tivesse pegado a
informação sobre Freya de bandeja comigo, eu ainda podia esconder sua
associação com Demeron e assim, proteger a verdadeira origem dela.
— Eu quero vê-la.
Dessa vez eu fui o único a rir.
— Que pena.
Ele desviou os olhos de mim e focou na menina que ensaiava sua dança
de cadeira no palco.
— Então me mostre uma foto.
— Qual é a porra do seu problema? — perguntei. — Eu vim para ter um
pouco de paz se está difícil perceber.
— E terá assim que me mostrar sua Rapunzel.
— Me foda, Liémen.
— Não direi a ninguém sobre ela.
— Eu agradeceria se não soubesse que seu silêncio me custará algum
dia.
— Siriu. — Seu tom foi mais grave, me fez encará-lo e pela primeira
vez o vi com algo a mais nos olhos. Eu não sabia o que era, mas estava lá e
Liémen não estava tentando esconder. — Apenas uma foto.
Ele a quer.
Mate-o.
— Cale a boca — rosnei.
— O quê? — Liémen perguntou.
Acabe com isso de uma vez!
— Nada. — Cuspi, então assoviei chamando a atenção de uma das
mulheres e ela se aproximou, sentando-se em meu colo. Eu nunca a tinha
visto ali e me estranhou que suas colegas de trabalho não a ensinaram como
me tratar. — Levante-se.
— Eu posso fazer melhor sentada aqui. — Ela ronronou, esfregando os
seios em meu peito.
Eu não tirei minhas mãos dos braços da poltrona, esperando que meu
olhar lhe desse o recado sobre o quão sério eu falava. E funcionou, ela se
afastou com medo no olhar, mas não se levantou, a sede de dinheiro era mais
poderosa que seu temor.
— Você vai servir ao meu amigo aqui do lado, ele está se sentindo um
pouco para baixo hoje. Tire essa vulnerabilidade dos olhos dele antes que eu
os arranque.
— Mas eu quero servir o senhor. — Inclinando-se para a frente e
encostando os lábios em minha orelha, ela sussurrou: — Senhor X.
Eu não senti nada. Nem sequer meu pau ficou tentado. Houve apenas
irritação pela mulher não ter seguido minhas ordens, embora eu pudesse ver o
motivo nos olhos injetados. Kirina não permitia drogadas em seu clube
justamente por isso. Elas não aprendiam seus lugares.
Mas, antes que eu pudesse levantar e mandá-la embora de uma vez, uma
sombra cobriu a luz que vinha do palco e eu mal reconheci a voz tamanha a
fúria que havia no tom.
— Saia de cima do meu mestre.
A mulher olhou para cima, onde Freya se erguia sobre nós e eu a senti
ficar tensa, preparando-se para brigar. Se a puta pensava que olharia errado
para ela, estava muito enganada.
— Quem você pensa que...
— Cale a boca — falei. — Saia de cima agora.
Se minha voz não foi o suficiente para convencê-la, meu olhar foi. A
mulher olhou entre mim e Freya e saiu apressadamente. Eu me levantei e
segurei o braço da mulher que deveria ter ficado em casa segura, e condenei a
morte os homens que ficaram para garantir sua segurança.
— Mestre. — Ela falou enquanto eu a puxava para trás da boate ao
longo do corredor, mas era tarde. Eu ouvia os passos de Liémen atrás de
mim. Eu imaginava que ele tinha conseguido ver seu rosto, mas não tinha
como saber. Caso contrário ainda dava tempo de protegê-la.
— Siriu.
— Saia Liémen, ou eu vou matá-lo.
— Vou pagar para ver. — Senti sua mão alcançar meu braço, a um
passo de me parar e conseguir enxergar o rosto de Freya.
Faça alguma coisa.
Eu tirei minha arma do sobretudo e apontei para Liémen. Ele não parou.
Ele sabia que eu jamais atiraria nele por qualquer razão. Mas Freya não era
qualquer coisa. Ela era a única que me importava.
Apontei para seu joelho e atirei, arrancando-lhe um grito de surpresa e
ele desabou no chão.
— Não venha atrás de mim, Liémen. Para protegê-la eu mataria você.
Esqueça o dia de hoje.
Nós pegamos o elevador até o quarto andar, onde eu usava aquele único
quarto com Kirina e tranquei a porta mais segura da boate.
— O que diabos você pensa que veio fazer aqui? — rugi, soltando-a e
encarando os olhos amarelos arregalados.
— O senhor estava prestes a tomar outra — sussurrou.
— Freya. — Aproximei-me e sentindo o fogo dentro de mim eu sabia
que estava perto de fazer algo que não teria volta. — Eu lhe disse para ficar
no apartamento. Deveria ter me ouvido.
— O senhor é meu. — Ela falou com uma coragem impressionante. E
suas palavras tanto me irritaram quanto excitaram. O que a prostituta de
Kirina não conseguiu fazer com o corpo, Freya fazia com uma simples frase.
Porra, bastava que eu a olhasse.
— Eu decidi que precisava fazê-lo me amar, mestre. Se eu aprendesse a
ser como as outras mulheres... então... então...
— Então o quê?
— Então talvez...
— Talvez o quê?
— Talvez o nosso tempo juntos não acabasse e eu poderia manter a
promessa que lhe fiz.
Porra.
Porra. Porra. Porra.
Ela tirou a minha capacidade de falar.
Ela abriu a boca e arrancou a porra das minhas palavras.
— De joelhos. — Foi tudo o que eu consegui dizer.
Minha mente começou a escurecer e percebi que as sombras me
dominavam ali. No momento, em que entrei naquele quarto elas saíram. E
disso eu não podia proteger Freya, não importa o quanto tentasse.
— Mestre? — perguntou com um semblante confuso.
— Ajoelhe-se, eu não vou repetir. Abra as minhas calças e me coloque
na boca. Eu sou seu, não sou? — Minha voz era perversa, e o olhar assustado
no rosto dela confirmou isso.
Existia uma barreira e mil soldados, eu era todos eles. Quinhentos
estavam de um lado e o restante do outro. Eles tentavam se puxar para ambos
os lados, ansiosos para ganhar a batalha entre, eu e eu mesmo. Naquele
espaço de tempo a parte mais escura de mim ganhara.
Freya não estava mais comigo, ela estava com as sombras. E eu só podia
assistir como se estivesse fora do corpo.
Ela não hesitou.
E me doeu não saber se ela obedeceria porque queria fazer ou porque
seu treinamento de vida a obrigava a seguir ordens.
E isso importa?
— Sim, mestre.
— Não fale.
Ela abaixou a cabeça e ajoelhou onde estava, engatinhando até estar na
minha frente. Seu rosto a centímetros do meu pau de aço. Os cabelos
escorregaram cobrindo um lado do rosto e ela inclinou-se para abrir minha
calça após puxar o cinto, seus dedos ágeis me irritaram, o modo como ela
sabia ir lento quando deveria, e rápida no melhor momento me irritou.
O conhecimento de quantos paus ela já chupou na vida me fez querer
descer até o salão da boate e estripar cada corpo vivo.
Ela mordeu o lábio inferior quando levantou os olhos para mim assim
que meu pau veio à tona. Ela já o tinha visto uma vez muito rapidamente,
mas agora estava a um palmo de seu rosto e pesado como uma rocha. A
cabeça vermelha e as veias saltadas a ponto de estourar doíam. Eu estava
dolorido pra caralho. Ansiava sua mão, sua boca, seu corpo... o que quer que
pudesse alcançar dela.
Vamos aproveitar sua punição.
— Faça isso rápido — rosnei.
Como ela ousava se colocar em perigo daquele jeito? Vindo até aqui
sozinha, descumprindo a minha ordem quando tudo o que eu queria era
deixá-la segura?
Você só quer garantir que Kazel não pegue seu brinquedo de volta.
A respiração acelerada de Freya fez a minha própria correr. A primeira
coisa que senti foi sua respiração onde eu já estava molhado, arrepiando-me
por inteiro. Parecia que nunca tinha ganhado um boquete na vida. Ela foi
lenta, indo contra a minha ordem. Beijou a cabeça inchada e minhas pernas
tremeram. Contive um gemido entredentes cerrados. Minha cabeça girou e
ela tropeçou ao se aproximar mais, raspando ligeiramente o dente sob minha
pele.
— Porra.
— Perdão, mest. — Eu agarrei sua cabeça e me enfiei dentro.
— Ordenei o seu silêncio, göttin.
Freya fechou os olhos, gemendo seu próprio tesão quando eu soltei sua
cabeça e ela começou a trabalhar por conta própria. A sensação daqueles
lábios em torno do meu pau era indescritível.
Ela lançava sua língua em minha fenda, sugava profundamente
afundando as bochechas e me engolia por inteiro. Minha grossura era um
mero detalhe em seu desempenho. Eu agarrei os cabelos longos de um lado e
me permiti acariciar sua mandíbula do outro, olhando nos olhos amarelos que
vazavam com água e ficavam vermelhos cada vez que ela afundava
profundamente. Minhas bolas precisavam de atenção, mas eu simplesmente
não podia tirá-la da extensão. Balancei sua cabeça ora depressa, depois de um
lado para o outro e ela tomou tudo. Ela não reclamou dos engasgos e
tampouco se afastou quando eu apertei o cabelo com mais força.
Não.
Minha göttin tomou tudo o que eu dei.
Perfeita.
Seus olhos não desviavam dos meus. Havia sentimentos que eu só podia
deduzir a origem.
O medo do que eu faria a seguir.
A ansiedade para ser tocada por mim.
A pressa de ter seu próprio prazer.
Mas havia algo que me fez sentir o orgasmo vindo com força: sua
confiança. A certeza de que não importava o que eu a mandaria fazer, ela
faria e agradeceria por isso.
— Tome cada gota que vou te dar.
Ela gritou e seus olhos reviraram quando meu pau pulsou em sua
garganta, afundando-me ainda mais, deixando seus lábios fechados na raiz,
acariciando minha pélvis. As unhas arranharam minhas bolas e acariciaram. E
ela soltou um “mestre” no fundo da garganta que arrancou o esperma do meu
corpo.
Eu pressionei o aperto em seus fios compridos e joguei a cabeça para
trás, sentindo o alívio, contraindo meus músculos e o suor fino brotando em
minhas costas.
Caralho.
Por alguns segundos eu a mantive ali. Seus braços tremiam e o rosto
estava vermelho e todo molhado. Ela mais do que nunca parecia uma deusa.
Meine göttin.
Puxei para fora, soltando-a e fechei a calça antes de me agachar a sua
frente, passando os dedos pelo rosto bonito. Ela levantou os olhos cansados
para me encarar, esperando que tivesse me agradado, mas ela nunca saberia.
Não haveria jamais como explicar o que senti ali.
Eu jamais entenderia como Demeron se tornara tamanho pau mandado
de Onira, mas minha compreensão chegava perto de seus motivos agora.
Eu faria definitivamente qualquer coisa que Freya precisasse.
— Boa menina, Freya. — Alcançando a barra da saia, a puxei um pouco
e enfiei minha mão por baixo, alisando sua perna enquanto subia até o lugar
que procurava. Freya se desequilibrou enquanto tremia sob meu toque.
Estava ansiosa e esperançosa sobre o que eu faria, se agarrou com as duas
mãos nos meus ombros sem deixar de me olhar nos olhos.
Eu encontrei a calcinha absurdamente encharcada e sorri para ela. Passei
um dedo sob a linha do lado, empurrando o tecido fino para encontrar a
abertura de sua pequena boceta e penetrei um dedo, recebendo um gritinho
surpreso dela. Não me demorei lá. Puxei de volta e trouxe ao rosto, cheirando
sua intimidade em minha pele. Levei o dedo a boca, chupando e fechando os
olhos rapidamente.
— Vamos para casa.
Quando Siriu saiu de casa eu me vi sozinha no quarto desejando que não
tivesse ido. Desejando que me quisesse tanto que qualquer compromisso que
tivesse do lado de fora das portas do apartamento fossem nada em
comparação a mim.
Eu sabia deixar homens com vontade de mim. Sabia usar meu corpo,
minha boca e minhas palavras, mas Siriu era mais do que um simples
homem. Meu treinamento não podia seduzi-lo e minha cabeça confusa não
me deixava entender o que fazer para conquistá-lo.
Eu não queria ir embora quando se cansasse de mim. Não queria que se
cansasse. Queria que por um momento ele se tornasse o diabo e não me
deixasse ir. Porque ele era a minha proteção, minha maior vontade e a única
parte desse mundo que pude entender.
Eu me vesti e escapei do apartamento que Siriu me deixava pela porta da
frente, mas um homem logo saiu da casa ao lado e me mandou voltar para
dentro, então ele tomou a chave de mim e me trancou, avisando que diria ao
chefe que tentei sair. Só que eu precisava ir até Kirina. Em meu novo plano,
encontraria alguma das meninas que estivesse disposta a me ensinar como
deixar meu mestre tão louco em mim que jamais me deixaria ir embora.
Assim, eu não quebraria a promessa que fiz a ele.
Então eu pensei em todas as formas que já havia fugido de Onira e
comecei a andar pelo apartamento, buscando uma nova forma de sair. As
janelas eram altas demais, mas tinham o lado de fora aberto com apenas uma
porta, como Onira chamava de sacada quando fomos a um restaurante que
tinha algo igual. Eu saí pela porta e dei de cara com a cidade e o vento
congelante. Olhei dos dois lados. De um, tinha aquela que deveria ser da casa
ao lado onde o homem que servia Siriu estava e do outro, eu não sabia, mas
arriscaria.
Então eu saí e encontrei um lugar vazio, com chaves penduradas ao lado
da porta. Não vi a porta de nossa casa quando saí, e o elevador estava ao lado
contrário, mas não me apeguei a detalhes de minha fuga.
Pensei em como fiz Zippo pagar o táxi na porta da boate de Kirina e
agora estava frente a frente com Siriu. Vê-lo com uma das meninas doeu.
Doeu e eu não escondi isso.
Por que esconderia?
— Te ver com outra pessoa me dói, mestre.
Doeu como nunca antes. Nem com Kazel, quando ele levava mulheres e
homens ao nosso quarto. Nem quando ele tomava meninas na minha frente e
me fazia assistir. Mas, Siriu estava vestido, suas mãos não tocavam a mulher
dançando para ele e ainda assim eu senti como se ela estivesse torcendo-me
com as próprias unhas afiadas.
— Eu não estava com outra pessoa.
— Ela o tocava. — Minha voz estava diferente, eu me sentia diferente,
mas não conseguia controlar. Sentia raiva. Sim, raiva muito séria.
— Isso não é motivo para que fizesse o que fez. — Me repreendeu.
Tudo o que eu queria era voltar lá e fazer pior.
Todas elas precisavam saber que não podiam tocá-lo.
— Eu não posso ver. — Fechei os olhos. — Não posso ouvir, nem posso
pensar, mestre, por favor... — Minha cabeça balançava sem que eu pensasse
sobre isso, uma negação diante de todas as visões que me torturavam. Ele,
outras mulheres... sexo. Muito sexo.
— Eu não fiz com aquela mulher o que fiz com você. — Sua voz era
calma e eu tentava me acalmar ao ouvi-lo. Mas sorri ao ouvir suas palavras.
— Eu gostei do que fizemos, mestre.
— Esse é o objetivo. — Ele ficava tão bonito dirigindo e a beleza só
aumentava quando eu lembrava que estávamos indo para casa.
“Boa menina, Freya. Vamos para casa.”
Casa.
Sorri com o pensamento. Eu não considerava mais aquela casa apenas
sua, não. Ela era nossa.
— Vamos fazer mais? Quando chegarmos?
O canto do lábio dele ergueu um pouquinho e eu percebi pela primeira
vez um buraquinho na pele.
— Toda ansiosa — murmurou. — Por hoje basta. Você vai tomar um
banho, deitar-se em sua cama e vai dormir.
Me enchi de decepção, mas também percebi algo.
— O senhor não gostou — sussurrei.
— Não gostei do quê?
— De mim. De como eu o toquei.
— Não diga bobagens. — Sua testa franziu, a pele ao lado do olho
juntando-se daquele modo que o deixava ainda mais bonito.
— Foi o jeito como chupei o seu pênis, mestre? Eu posso fazer melhor.
Sei fazer isso de muitas formas. O senhor pode ter meu corpo como quiser.
Minha boca, minha vagina e minha bunda também. Sei que muitas mulheres
não gostam, mas eu estou acostumada e...
O carro acelerou para o lado e parou tão rápido que me fez ir para a
frente com tudo. O cinto e seu braço me seguraram no lugar, então ele estava
livrando-me da segurança do cinto e me puxou para seu colo, na segurança
daqueles fortes braços.
Eu não sabia o que esperar, mas com certeza não o que recebi. Ele bateu
a boca na minha com tanta vontade que bebeu meu gemido, minhas mãos
queimaram para tocá-lo, mas eu não podia, não sem sua permissão. A língua
quente varreu minha boca, suas mãos tocando meu corpo onde alcançavam, a
barba raspando meu rosto e deixando uma ardência deliciosa. Eu me movi em
seu corpo, sentindo o volume de seu pênis duro embaixo de mim e ansiei vê-
lo outra vez. Queria tocar, beijar, dar minha adoração de modo que ele
esquecesse qualquer erro que cometi antes e não me negasse mais. Nunca
mais.
Mas, antes que eu pudesse aproveitar mais do beijo, ele nos separou. As
mãos grandes segurando meus cotovelos, mantendo-me no lugar enquanto
respirávamos fundo olhando nos olhos um do outro.
— Primeiro. — Começou. — Você nunca mais falará de outros paus.
Ninguém mais teve o seu corpo. Eles são todos fantasmas distantes, Freya.
Eu tenho você. Você me pertence e eu não quero ouvir mais falar sobre sua
vida nas Kambarys.
Ele parecia tão... tão bravo. Meu coração caiu. Agora definitivamente
me mandaria para longe.
Eu não sabia o que dizer. Como o convenceria de que era capaz de estar
ao seu lado se não pudesse contar sobre como deixava os homens felizes?
— Eu não tenho mais nada — sussurrei.
— Você não é mais uma escrava. Você saiu, está no mundo agora.
— Mestre... eu não sei nada além de como servir. Com... com o meu
corpo. — Eu senti a água deslizando de meus olhos e não as parei. Nunca
parava.
— Aprenderá. Não foi por isso que veio até mim?
— A única coisa para que sirvo não lhe agrada — desabafei,
empurrando meu braço de seu aperto e olhando para fora da janela.
— Mas o que... — disse ele, segurando-me novamente. — Olhe para
mim.
Eu não queria.
— Freya.
— Vai me mandar embora — falei. — Vai fazer o que Demeron e Onira
queriam e vai me internar como a louca que sou.
— Basta. — Ele me colocou de volta no banco e acelerou o carro outra
vez. — Levante sua saia. Arranque a calcinha e me entregue.
— Me-mestre...
— Agora — rosnou, desviando os olhos para a estrada para me mostrar
o quão sério falava.
Eu não hesitei mais. Tirei a calcinha e lhe dei, levantando minha saia até
a cintura. Nua no banco de couro de seu carro. O cheiro dele estava presente
lá dentro. Ou será que já impregnara em minha mente?
— Vire em minha direção, apoie-se na porta e abra as pernas. Eu quero
ver sua boceta inchada.
Eu o fiz, e ele puxou um pé para apoiar em sua perna. Eu estava
escancarada para ele e embora sua atenção estivesse na estrada escura, meu
corpo sentia como se ele não parasse de me verificar.
— Tire a camiseta.
Obedeci e meus mamilos já espremidos arrepiaram do ar do carro.
— Onde está seu sutiã? Responda.
— Eles me incomodam.
— Incomodam? Em que, Freya? Em deixar seus lindos seios presos? Ou
você só gosta de senti-los raspando na camisa o tempo todo como a pequena
pervertida que é?
Eu gemi, mordendo o lábio para conter a emoção de suas palavras. Eu
precisava de um toque, apenas isso. Se ele me tocasse por alguns segundos
seria o suficiente.
— Me diga, Freya. Me diga o porquê não tem nada segurando seus
peitos.
— Para que eu sinta quando o senhor me abraça, mestre.
— Então é uma provocação? Hum? Você quer me provocar?
— Sim — sussurrei, fechando os olhos.
— Abra seus olhos, göttin. — Deusa, não esconda meu sol de mim.
— Mestre, eu preciso de alívio.
— Eu sei. Mas estou pensando se merece. Você é uma criatura tão
perversa, Freya. Falando para o seu dono sobre outros homens. Isso está
certo?
— Eu acho que não.
— Você acha?
— Não está — corrigi de imediato. Qualquer coisa para que ele
aproximasse sua mão das minhas pernas.
— Isso mesmo. Não está. Depois você me provoca com seus seios
perfeitos e sua boceta molhada e ainda começa com essas bobagens de como
vai fazer melhor. Eu não gozei em sua garganta?
— Sim, mestre.
— E isso não foi sinal o suficiente do quanto você me agrada?
— Mas o senhor não me quer quando chegarmos em casa e...
— Você não fala sem que eu permita. Responda-me sim ou não, caso
contrário, fique quietinha. Ou sua boceta não receberá nenhum alívio de mim.
Eu lamentei com um gemido, meus quadris subindo, buscando qualquer
atrito mesmo que fosse impossível. Até o vento serviria para me tocar e levar-
me ao lugar bonito.
— Sim, mestre — sussurrei.
— Eu te quero e eu te terei quantas vezes e onde quiser. Mas quando eu
quiser. Não foi para isso que veio até mim, para que eu a guiasse?
— Sim, mestre.
— Então me aceite. Eu já disse que não tenho muito, mas vou lhe dar o
que posso, Freya. — Sua voz suavizou no final, fazendo-me encará-lo e ele
rapidamente bateu os olhos oceânicos nos meus antes de voltar a estrada. —
Agora toque sua boceta até sentir que está vindo.
— Mestre?
— Pode falar.
— Devo avisá-lo quando estiver chegando?
Seu sorriso dessa vez subiu dos dois lados do rosto, era carnal e
perigoso, e meu líquido escorreu mais um pouco ao vê-lo.
— Seu corpo é meu, Freya. Você apenas o guarda para mim. Eu vou
saber quando estiver gozando.
Não esperei mais. Toquei meu pontinho sensível e meus olhos tremeram
quando suor frio brotou, mas resisti a fechar os olhos, minha visão focada em
seu perfil másculo. Ele era tão, tão bonito... Lembrei-me de como seu
membro pulsante encheu minha mão, como cresceu em minha boca e como
se derramou em minha garganta. Pensei em como eu queria que afundasse em
meu corpo, mas mesmo que não pensasse em nada daquilo, teria sentido o
início do orgasmo. Só sua imagem muda já fazia tudo por mim. Ele era a
minha maior tentação. Condenei-me por pensar em Kazel quando Siriu me
proibiu de lembrar de outros homens, mas era por uma boa causa.
Ele me queria. Ele me decretou como sua.
Pela primeira vez eu entendi as palavras de Kazel.
“Qualquer homem morreria para ter você, Freya. Você enfeitiça nossas
mentes e consome nossos pensamentos até que a única saída seja tomá-la em
qualquer hora e qualquer lugar.”
Siriu me queria assim.
Eu sorri.
Eu sorri e apertei meu dedo sobre meu clitóris, sentindo chegar e...
— Pare.
Como se fosse um botão, o som de sua voz fez minha mão congelar. Eu
fitei seu rosto sério, distante e me perguntei onde estava o homem que me
autorizou a gozar.
— Mestre?
— Toque-se novamente.
Franzi a testa e ele sorriu sombriamente.
— Esse é o seu castigo por sua desobediência, Freya. Toque sua boceta
ensopada e chegue na beira do precipício.
Eu arregalei os olhos, meu corpo desesperado começava a doer da
proibição. Começava a se tornar físico o quanto eu precisava chegar lá.
— E você me chateou, göttin. Você só pula se eu mandar, mas não vou
deixar nem tão cedo.
Soltando uma mão do volante, ele a trouxe para o meio das minhas
pernas e enfiou dois dedos tortuosamente lento na minha boceta, tirando-o e
deixando o que antes era a fogueira de uma casa, incendiar uma vila. Ele fitou
os dedos e os esfregou um no outro, enfiando na própria boca. Eu engasguei
com a visão.
— Leckere kleine schlampe. — Ele rosnou, então cuspiu nos dedos e os
trouxe aos meus seios, lambuzando meus mamilos rígidos e dando um aperto
em cada. — Prepare-se.
Ele abriu sua janela, desligando o ar do carro e quando o vento gelado
bateu onde ele molhou eu gritei. Não apenas minha boceta implorava por
atenção agora, mas meus seios estavam pesados como rochas. E ele não me
tocaria, eu vi em seus olhos. Lágrimas escorreram novamente quando
escorreguei meus dedos em minha vagina outra vez.
— Eu amo seu prazer, Freya. Mas também amo suas lágrimas. — A voz
dele era diferente de qualquer outra vez que o ouvi. Eu não reconheci seus
olhos.
Eu pedi tanto que meu mestre me punisse e ele o fez.
O que me confundiu foi que ele parecia mais feliz com isso do que
quando me fazia sentir bem.
Eu precisei carregar Freya para o apartamento. Suas pernas estavam
moles e enquanto eu alonguei nossa viagem de quinze minutos para quarenta
e a fiz se masturbar sem chegar ao orgasmo por todo o tempo, ela desmaiou.
A ensinamos a lição.
— Cale a porra da boca. Eu fui longe demais.
Eu não sabia o que tinha acontecido. Não menti quando lhe disse que
conhecia seu corpo. Eu podia dizer por cada sinal físico que ela dava, pelas
expressões, pela respiração e os gemidos. A forma como ela me olhava
denunciava seu clímax, mas eu ignorei isso hoje. Seu corpo cansado
sucumbiu a tortura e eu tinha gostado de assistir. Elas gostaram.
Assim que sua cabeça bateu no vidro e as mãos caíram, moles e o rosto
corado começou a ficar pálido eu percebi que havia se desligado.
Ela não deveria ter falado de outros homens.
Ela é nossa.
A deitei no sofá e eu fechei os olhos, apertando minhas mãos em meus
ouvidos, mas não adiantaria. A voz estava em minha mente, não na porra do
mundo.
Ajoelhando ao lado dela, deitei o rosto no estômago plano, mais uma
vez consciente de nossa brutal diferença física. Eu não era melhor do que
Kazel, deixando minha raiva levar a melhor sobre mim e dando a ela
sofrimento e dor.
O ciúme me consumiu ao ouvi-la falar sobre seu passado, sobre como
podia transar bem porque praticou muito. Não era sua culpa. Não era a porra
da culpa dela e eu a puni como se fosse. Não deveria ser assim. Eu devia tê-la
acendido e enfiado meus dedos em sua doce boceta até que ela gozasse. Nós
voltaríamos para a casa e ela dormiria em sua cama satisfeita.
Você é fraco.
Todas as vezes que eu perdia o controle as sombras dominavam minha
mente. Minha razão se perdia, meus pensamentos escureciam e minhas ações
governavam-se por tudo o que havia de ruim em mim. Mais vezes do que eu
gostaria aquilo aconteceu. Às vezes eu me perguntava se havia outra pessoa
morando ali. Habitando aquela cabeça danificada além do reparo.
Eles tocaram Freya.
Eu segurei sua mão, esperando que acordasse.
Eu vi seu olhar também.
Quando ela enxergou além de mim. Quando percebeu que Kazel não
mentia quando falava sobre mim. Havia algo podre em minha cabeça.
E em breve seremos a única coisa que existirá também.
A soltei e mexi no gelo novamente, fazendo seu olhar cair para a taça.
— O senhor vai enfiar isso em mim?
— Eu vou.
— Mestre, isso vai doer — sussurrou.
Segurei seu queixo, inclinando o rosto para o lado.
— Você me quer ou você não quer. É simples, Freya. Pode entrar em
seu quarto, se vestir e ligar para Onira se quiser.
Ela balançou a cabeça com veemência.
— Eu vou fazer.
— De costas. Incline-se sob a sacada e afaste as pernas.
Ela fez e me olhou sob os ombros.
— Eu mandei olhar?
Quando virou para a frente de novo, eu me inclinei junto com ela,
encaixado atrás de seu corpo.
— Não gosto de desobediência, não gosto de ficar me explicando e com
certeza não vou ficar pisando em ovos com você.
— Sim, mestre.
— Eu não sou Kazel e essa é a última vez que direi isso. Não vou
machucá-la sem um motivo prazeroso para isso. Se hesitar mais uma vez sob
minhas ordens, a mandarei de volta para Onira. Entendeu, Freya?
— Eu entendo, mestre.
— Muito bem. — Peguei uma pedra e levei para baixo comigo quando
me ajoelhei e analisei seus buracos. A boceta escorria com cada palavra que
eu dizia, o que me fez deixou satisfeito. O ânus era fechadinho, mas estava
úmido também. A excitação escorreu para todos os lados. Enfiei o rosto entre
as bochechas e lambi do clitóris até o buraquinho traseiro. Freya esticou as
pernas, ficando na ponta dos pés com os gemidos escapando para o céu.
Meus vizinhos teriam uma visão incrível.
Chupei uma pedra de gelo antes de esfregá-la em sua pele franzida e
empurrar para dentro. Queimaria, mas seria bom.
— Você já sabe que não tem uma palavra segura.
— Sim, mestre.
Enfiei uma segunda.
— Isso significa que vai aguentar tudo o que eu te der.
— Eu agradeço, meu senhor.
Ainda não, mas ela iria. Ou talvez ligaria para Onira afinal de contas.
Nós nunca a deixaremos ir.
Depois de enfiar a terceira pedra e ver seu cu inchando com o volume
me dei por satisfeito e deixei a taça de lado, tirando o meu cinto e abrindo a
calça enquanto a observava se contorcer para continuar de pé.
Todo o vento circulando no ar corria entre suas pernas abertas.
Ela parecia deliciosa.
Aproximando-me, não a toquei além do pescoço, onde segurei a frente
da garganta e encaixei minha boca em seu ouvido.
— Você pode gemer para mim, Freya. Grite quando quiser gritar e faça
nossos vizinhos ouvirem o quão bem fodida você está sendo pelo seu mestre.
— Meu senhor...
Ela não teve tempo de dizer mais nada. Suas palavras foram cortadas e
largadas ao vento quando a penetrei de uma vez. Parei por um momento
apenas. A boceta era tão apertada, macia e escorregadia que eu parecia estar
sendo envolto a uma luva de veludo. Era quente e minha vontade em algum
lugar no fundo da mente foi de abraçá-la, mas o pensamento se apagou no
segundo seguinte, quando ela gritou a todo pulmão e sacudiu a bunda para
trás.
Era a primeira vez que eu transava com ela e podia me ver fazendo em
todas as formas que imaginasse. Um minuto afundado ali e todos os outros
rostos que tentei imaginar para aplacar aquela sensação de posse se tornaram
o dela. Morenas, loiras, ruivas, negras, até as asiáticas que depois de Onira
jurei nunca mais tocar. Todas ganhavam o rosto de Freya em minha mente.
Segurando sua garganta, eu a puxei para o meu peito e bati dentro dela.
Ela cantava seus gemidos para mim no ritmo da minha respiração pesada.
Apertei os dedos um pouco mais, não resistindo a envolver a outra mão
em seu seio e torturar os mamilos que pareciam congelados de tão franzidos.
Eu quis poder me contorcer naquela posição, onde ela esmagava o meu
cacete e chupá-los. Freya gemia alucinada e eu queria fechar os olhos, mas
olhei para seu rosto de perfil, os olhos fechados, a boca aberta, o corpo todo
moldado ao meu. Perfeição, porra.
Não era suficiente.
As pedras de gelo derretiam em seu ânus e escorriam direto para a
boceta, causando um choque entre o ar, nosso suor e o fogo que rompia de
onde nossos corpos se uniam.
Os gritos de Freya eram tão altos que eu achava plenamente possível
quem passasse pela rua ouvir.
Mas não era o bastante. Eu precisava de mais, precisava de sua
confiança completa e sua submissão plena.
Sai dela e dei um passo atrás.
— Vire-se para mim. — Ela obedeceu com olhos ansiosos, cambaleando
com a fraqueza das pernas.
Me aproximei outra vez e a levantei pela cintura, ela gritou quando viu
onde eu a colocava e jogou os braços em meu pescoço, buscando segurança.
— Você vai confiar em mim, agora, Freya. Sente-se aqui sem segurar
em mim. Enrole suas pernas na minha cintura. Eu vou segurá-la.
Ela abriu a boca para questionar, mas se deteve e lentamente tirou os
braços, fechando os olhos quando sentia o vento em seu corpo sustentado sob
o palmo da sacada. Ela era pequena, mas cairia tão facilmente se eu não a
mantivesse firme.
— O que eu já disse sobre os seus olhos?
Ela os abriu, respondendo sem palavras.
— Esses olhos são o meu sol, reinheit.
Me afundei nela outra vez, suspirando com o aperto que não dava uma
folga. Mas, dessa vez era ainda mais apertado, pois era a única forma de
Freya se segurar. Eu a agarrei pelo topo das coxas, seus braços soltos ao lado
do corpo e os olhos frenéticos em mim. Ela estava terrivelmente dividida.
Aproveitar meu pau batendo duro e fundo dentro de seu corpo ou garantir o
aperto das pernas em volta de mim para não cair.
Aquilo era o que precisava acabar. Ela tinha que saber que mesmo se
soltasse as pernas, eu não a deixaria cair.
Eu teria sua confiança. Fosse para saber que me agradava, para ficar em
casa quando eu mandasse ou pelos deuses... ficar criando planos de como me
fazer... amá-la.
A boceta nua e brilhante estava toda aberta para mim, deixando o clitóris
inchado para fora, irritado e todo vermelho. Eu me retirei com um grunhido e
esfreguei toda a extensão em sua abertura, me molhando ainda mais nos
líquidos que escorriam dela. Quando a cabeça escorregou na abertura de trás,
fiquei tentado a empurrar para dentro ao sentir o gelo que estava lá, mas
voltei para a frente e me enluvei em sua boceta novamente.
Meus impulsos eram firmes, rápidos, sua bunda molhada escorregava na
estrutura e eu escorreguei uma mão através do estômago plano para os seios
onde agarrei um, depois o outro, levando Freya a gozar uma segunda vez para
mim. Sua boceta me espremeu impossivelmente e apenas o movimento quase
me fez gozar junto, mas apertei os dentes e diminuí meus impulsos enquanto
ela convulsionava, esperando que passasse para acelerar outra vez.
Soltei suas pernas para segurar o cabelo. Ela estava completamente
inclinada contra a sacada agora. A única coisa que a mantinha lá em cima era
meu pau dentro dela, suas pernas segurando minha cintura como se um
vendaval fosse levá-la a qualquer momento e precisasse garantir que não se
soltaria de mim, e minhas mãos segurando firme todo o cabelo dividido dos
dois lados. Dor para todo lado, prazer sendo sugado de mim para ela e dela
para mim.
Eu a observava a cada segundo, embora seu rosto continuasse no meu,
ela estava aterrorizada demais que fosse cair para ver a adoração no meu
próprio semblante.
Ela gemia e gritava o quão gostoso era, mas tinha medo e eu precisava
acabar com aquilo. Tinha que acabar.
Então eu a olhei nos e me permiti fazê-la confiar.
Era tão gostoso. Tão bom. Eu nunca tinha sentido algo tão sublime em
toda a minha vida. Não importa quantas vezes fiz sexo, nenhuma foi daquele
jeito. O mestre tinha algo. Talvez fosse a escuridão que vi nele mais cedo,
talvez fosse apenas quem ele era, mas contribuiu para me fazer sentir insana.
Eu desviei meus olhos dele para cima, onde podia ver o céu entre o
nosso prédio e o da frente. Talvez assim fosse esquecer que minha vida
estava em suas mãos, que ele era o único me impedindo de cair de uma altura
inacreditável.
A sensação de seu pau dentro de mim era avassaladora e eu estava tão
apertada por me segurar nele naquela posição que o aperto se tornava
agonizante. Mas ainda era o maior prazer que já senti na vida.
Lágrimas começaram a rolar dos meus olhos, mas o vento forte as
secava antes que chegasse à testa. Eu fiz força para me inclinar e olhar o rosto
do meu mestre e a única coisa que encontrei foi o mesmo prazer que eu
sentia. Eu o estava agradando.
Meu corpo já tinha sido varrido em dois orgasmos e ele continuava
penetrando-me como se sua força e resistência fossem inacabáveis.
Por que não me puxava para cima?
Será que meu medo o excitava? Saber que eu estava a sua mercê?
— Me dê, Freya.
O quê? O que mais ele queria de mim?
— Mestre?
— Confie. Me dê o que eu quero.
Eu o olhei sem piscar, reconhecendo em meu coração o que ele queria,
mas me senti incerta por um segundo. Kazel sempre quis a mesma coisa de
mim, mas aquela caixinha escondida em minha mente sempre estava
protegida dele e agora Siriu me pedia a chave dela. Seu pau grosso
escorregou para fora e adentrou com uma força que me fez escorregar quase
toda a bunda para fora, mas não desgrudei meus olhos dos dele.
Eu podia dar?
Ele me protegeu, me aliviou e nunca me mostrou crueldade, ainda que
eu esperasse por isso. O diabo me deu o sentimento de lar pleno que nunca
tive, mesmo conhecendo Kazel e sua casa, durante a vida inteira.
— Sim — sussurrei.
Se havia alguém para quem eu entregaria a minha confiança, seria ele.
Ele inalou e fechou os olhos brevemente, quando os abriu, o azul estava
escurecido e eu jurava que podia ver ondas de um oceano em meio a uma
tempestade se movendo ali.
— Reinheit — murmurou, então ele me puxou para cima e retirou seu
membro de dentro, seu líquido espirrou pela minha barriga, seios e os lábios
maltratados da minha intimidade.
Quando os meus pés firmaram no chão, joguei meus braços em seu
pescoço e respirei ele. Respirei profundamente a segurança e a imensidão do
que tínhamos acabado de fazer.
Ele deslizou as mãos em minhas costas uma, duas vezes antes de me
afastar pela cintura e desviar os olhos dos meus.
— Vá tomar um banho e se vestir. Eu vou pedir comida para você.
Sem me deixar responder, ele virou as costas e entrou pelo corredor. Eu
queria pensar que estivesse indo me encontrar no meu chuveiro, mas sabia
que não ia acontecer. Meu mestre ainda mantinha algo entre nós e mesmo
que eu tivesse dado a chave de tudo de mim para ele, ele não fez o mesmo
comigo.
Eu o encontrei sentado no sofá com partes de uma arma de fogo em
cima da mesa baixa. Me sentei ao seu lado, esperando suas próximas ordens.
Seu rosto estava franzido em concentração, o cabelo e barba molhados e a
camisa preenchendo o corpo forte e bonito que eu vi e senti a meia hora atrás.
— Como se sente? — Ele perguntou depois de alguns minutos, mas não
me olhou.
— Estou bem, mestre. E o senhor?
Ele parou o que fazia e levantou os olhos para mim, suas sobrancelhas
saltando.
— Você se preocupa comigo depois de tudo?
Eu sorri genuinamente.
— Depois do quê? Eu me sinto incrível. Obrigada, mestre. — Eu peguei
sua mão livre e levei aos lábios, beijando os dedos.
Sua bondade não tinha limites e a pureza nunca iria embora.
Eu ainda a encarava procurando o que dizer quando a campainha tocou,
por isso, me mantive no lugar por alguns segundos sem desviar o olhar dela,
dividido entre agradecer a interrupção ou ignorar e levá-la para a cama. Mas a
pessoa lá fora decidiu por mim quando começou a bater insistentemente na
madeira.
— Espere por mim.
Ela assentiu e eu avancei, pegando minha pistola no sobretudo ao lado
da porta antes de abrir. Harlen não esperou que eu pensasse sobre sua visita,
ele passou por mim e fechou a porta, apoiando-se de costas na madeira e me
dando um olhar agitado.
— Preciso da sua ajuda.
— Da última vez que eu chequei você estava nessa fase de
independência em Las Vegas. — Cruzei os braços e avancei para o lado
quando ele franziu a testa ao ver Freya. Entrei em sua frente. — Olhos em
mim. O que aconteceu com seus irmãos?
— Eu preciso de você para isso.
— É mesmo?
— Se quer que eu ajoelhe e chupe seu pau te chamando de mestre, pode
parar com as fantasias, filho da puta. Você me deve, então considere uma
cobrança.
— Não venha a minha casa e me ameace, Harlen. Família ou não, eu
não gosto disso.
Ele reconheceu seu erro com um aceno sutil e cerrou a mandíbula. O
assunto parecia ser sério, pois meu primo estava andando na corda bamba de
seu temperamento ali.
— Não viria de Vegas até aqui se não fosse importante.
O observei por um curto momento, apreciando que guardasse seu humor
para outra pessoa e me mostrasse respeito.
— Qual é o negócio?
— Não vai me oferecer algo para beber? — Tentou brincar, mas eu o
conhecia e aquela seriedade no rosto me deixou inquieto.
— Não tenho nada aqui, a não ser que queira leite ou suco natural.
Harlen ergueu as sobrancelhas, passando sua atenção de mim para
Freya.
— Eu vejo.
— Você não vê nada.
— Demeron sabe?
Me irritou que ele visse Freya como algo ligado a Demeron. Porra, eu
quis bater sua cabeça na porta e chutá-lo para fora por isso.
Faça isso.
— Demeron tem sua própria comitiva para cuidar, sinta-se à vontade de
ir ajudá-lo.
— Certo. — Harlen não escondeu a curiosidade na voz, mas deixou o
assunto de lado, mostrando-me mais uma vez que realmente precisava de
algo que só eu poderia oferecer. — Estranhamente é uma situação com que
você está familiarizado.
— Eu duvido — respondi. Fora questões de nossa família. Meu primo e
eu não tínhamos mais nada em comum há muito tempo.
—Uma das vadias do clube...
— Não, Harlen. — Meu tom cortante o fez levantar os olhos. — Eu não
me metia com suas fodas nem quando saíamos juntos, não vou começar
agora. O preservativo vem com explicações na embalagem, use isso.
Avancei para a porta na clara intenção de abrir e mandá-lo sair, mas ele
entrou na frente.
— Você me deve — recordou-me. — Me deixe falar até o fim e de sua
resposta, mas eu não estou te dando uma opção aqui. Pague sua dívida
comigo com isso e estaremos limpos.
Eu hesitei. Meu primo estava prestes a jogar mais um problema na
minha crescente pilha de merdas.
— Fale — rosnei. Eu sabia que deveria mandar Freya para longe, deixá-
la ouvir sobre meus negócios não fazia parte dos planos, seja qual fosse meu
plano para ela. Ela não tinha minha confiança, tampouco poderia me ajudar
com algo, mas ainda assim eu não disse nada.
— A vadia está gravida. Ou ela diz.
Minhas sobrancelhas saltaram.
— Bem, eu desejaria felicidades, mas tratando-se de você só posso
desejar sorte a criança — zombei e ele ficou mais sério.
— Eu não acho que seja meu, mas não tenho como provar sem a porra
de um exame e a cadela está fazendo um inferno na minha vida. Então eu
preciso saber como você lidou com isso quando a...
— Pare — ordenei, minha voz tão forte que ouvi uma ingestão de ar
com a surpresa de Freya em meu tom, pela primeira vez eu senti que ela
queria se afastar de mim. Entretanto eu não a estava enxergando. Não. Eu só
via Harlen trazendo à tona o segredo que pertencia apenas a mim e outra
pessoa, que no auge dos meus dias governados por cocaína e heroína deixei
escapar para ele.
Como se atrevia?
Desenterrar algo que eu escondi tão profundamente que conseguia
esquecer. Antes de levantar da cama todas as porras de dias eu me forçava a
jogar tal lembrança no breu mais profundo da minha inconsciência. Dia após
dia.
— Siriu. — Ele imitou meu tom. — Eu não posso acabar com ela
porque se trata de uma protegida do clube, ela é filha de um dos caras
grandes. Eu preciso da sua ajuda nisso.
— Saia da minha casa.
Eu não podia.
De repente, toda a minha cabeça estava de volta dezenove anos atrás. Eu
apertei os olhos imaginando que faria as imagens saírem da minha frente,
mas só tornaram mais claras. Ela indo embora cumprir o que eu mandei que
fizesse, ela voltando meses depois, ela me condenando, ela dizendo o quanto
me odiava pelo o que a forcei a fazer.
Nem mesmo Kazel comparava-se àquele precipício, não, ele não era
páreo para a maior tragédia da minha vida.
— Mestre. — O toque da mão brutalmente danificada de Freya em meu
rosto me trouxe de volta. Eu abri os olhos lentamente vendo os seus amarelos
preocupados, a testa franzida e a boca apertada numa linha fina. Por quanto
tempo ela ficou ali me chamando antes que eu a escutasse era o ponto de
interrogação e eu não queria saber a resposta.
— O faça sair. — Eu falei, mas falei diretamente para ela. Pedindo para
ela.
— Mestre, está tudo bem. Se não quer fazer isso está tudo bem. Ele
entenderá.
— Pelo amor de Deus, diga ao seu brinquedo para não se meter. Por que
diabos ela está nos ouvindo afinal?
Eu queria me mover, eu queria voar no pescoço dele levá-lo ao chão
com violência descontrolada, mas meus olhos não conseguiam desviar dela.
Eu estava preso. Pelo menos até que ela virou o rosto em direção a ele e eu
me libertei.
— Você deve cuidar da criança. É uma oferta generosa a que lhe foi
feita, por que parece tão descontente? — Ela cerrou os olhos, julgando-o.
Harlen soltou um riso sombrio, morto.
— Uma oferta? Eu ser possivelmente morto pelo presidente de um clube
infame parece uma boa oferta para você?
— Eu não acho que alguém vá matá-lo por isso a não ser que essa
criança seja defeituosa, mas o sen... — Ela fez uma pausa, provavelmente
lembrando-se do que eu disse sobre falar com outros homens. — Mas você
vai desejar a morte se sua honra for manchada assim.
Eu franzi o cenho, Harlen me encarou com confusão.
— Que porra ela está falando?
— Freya. — Eu a chamei.
— Sim, mestre?
— Vá para o seu quarto.
— Posso apenas dizer uma última coisa, meu senhor? — Ela me fitou
com tanta ansiedade que eu dei um aceno, então a pequena mulher
aproximou-se de Harlen. Eu me segurei para não avançar e trazê-la ao meu
lado novamente. — Você deve cuidar dela e de sua criança, Harlen. Quando
o príncipe vier buscá-lo será um dia de alegria. As crianças que eu entreguei a
ele foram motivo de honra para mim.
Eu levei dois segundos para entender suas palavras, então isso me bateu.
Eu avancei e a virei para mim.
— O que você disse?
— Que foi honroso, mestre.
— Não, antes. Sobre crianças que você entregou.
Eu sabia que estava certo. Porra, eu sentia que não entendi errado, mas
ainda precisava ouvi-la confirmar. E se fosse isso... se eu não estivesse
ficando louco...
— Eu entreguei a Kazel duas crianças. Um menino e uma menina.
— Freya. — Minha voz falhou, meu corpo gelado ficou tão tenso que
foi difícil levantar o peso morto do braço para segurar seu rosto. — Você teve
filhos nas Kambarys?
Ela inclinou a cabeça para o lado, observando-me, pensando.
— Minha barriga cresceu, mestre. Durante algum tempo ela cresceu
quando eu estava em meu décimo quarto ano de vida. E depois em meu
décimo sétimo.
Harlen amaldiçoou atrás de mim, mas eu não podia tirar meu foco dela.
Ela estava me dizendo isso. Ela teve filhos na Kambarys e as crianças ainda
estavam lá. Seus filhos teriam quase seis e três agora. Fogo atiçou minhas
veias enquanto gelo nublava minha mente. Eu estava tão atordoado com a
notícia que o pedido de Harlen perdeu a importância e meu próprio problema
que ele trouxe de volta também.
Uma mini Freya e um garoto de olhos amarelos passaram como uma
visão em minha mente e inconscientemente eu a puxei para perto. Eu segurei
seu pescoço enquanto seu rosto aconchegava-se no meu peito. Minha mão
livre fechada num punho ao lado do corpo.
Meus olhos fixos a frente, imaginando mais cem novas formas de fazer
Kazel sofrer.
— Você sabe quem ajudou a conceber as crianças?
Ela levantou os olhos, apoiando o queixo em meu peito.
— Kazel foi o único a se derramar dentro de mim sem um elástico, ele
disse que por isso as minhas ofertas sempre pertenceriam a ele.
— São preservativos. — Cuspi, mas minha raiva não era para ela. Eu
precisava me lembrar que aquela menina não sabia de nada. — A porra de
preservativos de merda, caralho!
Fechei os olhos e puxei uma longa respiração.
O que eu estava fazendo?
Anos, anos e incontáveis anos caçando Kazel. Por vezes reconheci que a
forma como minha família estava hoje foi consequência da guerra que eu
arrastei para dentro da minha casa. Levando Stark a entrar naquela guerra
comigo, depois Demeron, Regnar e Harlen. Até mesmo Kaladia. Anos.
Eu nunca o peguei e quando cheguei perto voltei atrás porque fui
ambicioso e queria mais. Queria derrotá-lo em maior força e levar junto com
ele a maior quantidade de filhos da puta associados da Kambarys que
conseguisse.
E Freya...
Freya aguentou por anos.
Freya deixou seus filhos irem; acreditando que era a coisa certa e
quando entendesse a verdade aquilo a destruiria. Quando o mundo aqui fora a
mostrasse que crianças deveriam ser cuidadas, protegidas e amadas, ela
entenderia que não lutou por seus filhos.
Que sua menina provavelmente já estava sendo treinada e seu filho
servia a eles também.
Eu olhei para Harlen e sua expressão de aço me mostrou o que eu
poderia ver na minha própria se me olhasse no espelho. Sede de sangue.
Fome de caos. Ânsia por destruição.
Chega daquele jogo.
Eu acabaria com tudo.
De uma vez e para valer.
“Você reflete no meu coração
Porque com a sua mão na minha mão e um bolso cheio de alma
Posso dizer que não há lugar aonde não podemos ir
Apenas ponha a sua mão no vidro
Estarei aqui tentando puxar você
Você só tem de ser forte”
JUSTIN TIMBERLAKE – MIRRORS
Tornara-se repetitivo quantas vezes nas últimas 24 horas debati comigo
mesmo entre ir ou não até ali. E perdi.
Crianças nunca me afetaram. Nunca. Mas, depois do que Freya contou a
mim e a Harlen... pelos deuses, eu queria tanto que ela tivesse esperado até
que estivéssemos sozinhos para me falar sobre sua gravidez. As duas. Dois
filhos.
O olhar que Harlen me deu quando eu o levei para fora do apartamento
foi um que nunca vi antes. Meu primo nunca escondeu o que sentia sobre as
coisas, o tempo e as experiências que viveu podem tê-lo tornado um homem
duro, mas diferente de mim e de Demeron, ele sempre deixou transparecer.
Antes eu não sabia se aquilo o tornava forte ou burro, mas depois de
descobrir que sobreviveu a um atentado da Liga, percebi que a resposta era
forte. Nenhum homem escapava das ordens de Stark e vivia para contar a
história, menos ainda fazia como Harlen conseguiu, tornando-se um dos
homens mais temidos de Las Vegas no MC como VP.
— Você me chama se decidir que quer encontrar essas crianças. — Foi a
única coisa me disse antes de entrar no elevador e sumir.
Por isso eu cedi e decidi vir. Talvez depois de tudo conversar com
alguém seria bom para Freya. Ainda que tudo que eu queria era escondê-la no
alto de uma torre e mantê-la para mim, não podia. Não se eu quisesse que ela
sobrevivesse em sua mente. Se Kazel não a quebrasse de vez por pegá-la de
volta, sua mente ainda cativa o faria.
Doía a porra do meu orgulho admitir que precisava de ajuda, mas eu não
tinha todos os caminhos. Essa médica me ajudaria, mas seria do meu modo.
Encostado no carro do outro lado da rua, observei o prédio e a mulher
alta e magra através das janelas grandes de vidro. Doutora Katya Hoosfen. Eu
não a pesquisei como teria feito de imediato antes de me dar ao trabalho de ir
ao seu consultório, mas o faria dependendo de como a nossa conversa
seguisse.
A última vez que entrei em um daqueles lugares foi há mais de uma
década e pensava que conversar poderia acalmar o que a tempestade
com Kazel começou em minha mente, mas estava errado. Minhas questões
eram demais para o cérebro humano de alguém normal. Não importava
quanta merda minha antiga médica ouvisse, ela jamais ficaria bem novamente
depois de me ouvir. Então eu fui embora antes que me abrisse e a fiz ter seu
visto negado, assim teria que voltar aos Estados Unidos. Era a única forma da
mulher não vir atrás de mim.
Eu me perguntava se Katya era tão preocupada com seus pacientes como
minha terapeuta era.
Atravessei a rua quando seu paciente saiu do prédio e entrei antes que a
porta travasse. Eu não tinha uma avaliação marcada, mas ela me ouviria de
qualquer forma.
Quando cheguei na recepção a encontrei inclinada sobre a mesa
escrevendo algo enquanto falava no telefone. As palavras eram curtas e a
ligação rapidamente terminou.
— Boa tarde. — Eu disse. Katya sobressaltou-se, me olhando como se
fosse sair do próprio corpo.
— Jesus Cristo!
— Amém. — Eu não acreditava em tal homem, mas por enquanto quis
aliviar seu susto.
— Desculpe. — Limpou a garganta. — Eu não ouvi o interfone.
— Eu não o toquei. A porta estava aberta.
— Oh. — Ela se ajeitou, saindo de trás da mesa e vindo ao meu
encontro com a mão estendida. — Sou a doutora Katya, mas o senhor já deve
saber disso se veio até aqui.
Ela devia estar na casa dos 30 anos, sem nenhuma aliança de
compromisso, bonita e usava óculos de grau grosso. O tipo de mulher com
quem se era esperado um homem como eu casar. Em outro momento eu a
chamaria para jantar, agiria como um homem normal assim como já fiz
outras vezes. Com Slom Ward, com Naya, com outras.
Ela não é Freya.
A voz em minha mente me recordou e eu me amaldiçoei por compactuar
com aquela verdade.
— A senhorita não sabe quem eu sou — constatei com surpresa e apertei
sua mão. Àquela altura imaginava que Onira já tivesse feito minha
propaganda negativa para a mulher.
— Eu deveria?
— A senhorita me diz. Tem um momento para conversarmos?
— Eu tenho um paciente em menos de uma hora, mas posso ouvi-lo.
Estou intrigada com a visita misteriosa. — Tentou brincar.
— Sou Siriu Konstantinova, senhorita Hoosfen. Nós temos um assunto
em comum.
Seu rosto brilhou com reconhecimento e vi a leveza sumir de sua
expressão, adquirindo uma de educação profissional.
— Eu não imagino como.
— Certo. Vamos jogar esse jogo. — Sentei-me numa das poltronas
livres. — A senhorita tem informações que eu gostaria de saber. Qual o seu
valor?
Não havia ponto em enrolar. Meu objetivo era terminar aquela conversa
rápido o suficiente para que ela pensasse se aconteceu ou foi imaginação, mas
quando Katya cruzou os braços e franziu o cenho eu soube que o trabalho não
seria tão fácil.
— Eu não acho que entendi, senhor Konstantinova.
— Preço. Dinheiro. Quanto a senhorita gostaria para me falar sobre uma
paciente?
— Isso é uma pegadinha?
— Não. Sem câmeras. A senhorita está segura para negociar comigo.
— Negociar? — Havia indignação em seu tom. — Não vou negociar
coisa nenhuma, senhor Konstantinova. Uou... essa conversa desceu ladeira
abaixo repentinamente! Como é que pulamos de uma apresentação para isso?
— Podemos ir mais rápido ainda se me der o que eu quero. — Meu tom
era contido, fresco e deixava Katya saber que não estava lidando com um
marginal, mas um homem que sabia das coisas. Enquanto ela não fosse uma
ameaça para mim estaria segura.
— Eu trabalho há anos para construir uma carreira sólida, confiável e de
respeito, senhor Konstantinova. É ridículo que apareça aqui exigindo...
Eu não queria ouvir seu discurso sobre ética e moralidade.
— Freya fala sobre mim em suas conversas? — Ela travou, olhando-me
fixamente e apertou os lábios. — Doutora, facilite para nós dois e responda
de uma vez.
— Eu não vou trair a confiança da minha paciente,
senhor Konstantinova. Se é para isso que veio eu lamento informar que
perdeu seu tempo.
— Não. — Dispensei com um gesto de mão. — Eu não faço nada atoa,
apenas preciso me empenhar mais para fazê-la entender quem eu sou e que
vou ter o que quero.
— Eu não tenho medo de ameaças. Não passei anos na faculdade para
me dobrar a qualquer intimidação. O analisei desde que passou por aquela
porta e poderia apontar diversos fatores do senhor, mas não vou. Caso queira
se consultar o indicarei a algum colega muito capacitado.
— Acha que preciso de terapia, doutora?
— Todas as pessoas precisam.
— Não sei se concordo. Já tentei uma vez e não acabou bem.
— Para o profissional? — Senti uma contração involuntária em minha
boca com sua pergunta.
— Sigilo médico e paciente — refleti. — Eu poderia mandar que
alguém invadisse o seu consultório e levasse seus arquivos sobre Freya.
Vocês anotam tudo, não?
— Eu o processaria por isso, senhor Konstantinova. É um ultrage que
até mesmo me diga tal absurdo!
— Então diga-me de uma vez — falei com calma, mas irritava-me cada
segundo de sua recusa.
— Não! — A mulher era casca grossa, isso eu precisava admitir. Raros
eram os homens que levantavam a voz para mim ou me negavam algo e ela
não se acovardou como a maioria deles, mas isso não me surpreendeu de
todo. Mulheres geralmente superam homens de dois a dez. Eu via
por Kirina diariamente e relutantemente, por Onira também.
— Ela é só a porra de uma pessoa que paga para conversar com você,
qual o problema em responder minha simples pergunta?
Dessa vez ela riu.
— Ah, não... o senhor simplesmente disse isso, não é?
Dei de ombros.
— É o que é.
— Não, não é o que é. O senhor como um homem instruído e muito bem
vivido sabe que minha profissão é mais do que isso e se me ofender é sua
estratégia para irritar-me até que eu fale, vai falhar. Lido diariamente com
pessoas que me dizem muito pior do que isso.
— Muito bem doutora. — Levantei-me, ajeitei o terno e lhe lancei um
último olhar. — Nos veremos em breve.
Foi o tempo de eu alcançar a maçaneta quando ela me chamou.
— Ela tentou contra a própria vida, não foi? Por isso veio até aqui.
Eu não respondi, continuei de costas e condenei a médica por ser tão
perspicaz. A visita de Onira tinha sido um pretexto, mas o que eu realmente
queria tratava-se de quão profundos aqueles pensamentos de Freya eram.
— Por isso veio até aqui. — Seus saltos denunciaram a aproximação. —
O senhor quer saber o motivo que ela faz isso.
— Eu sei o motivo.
— Completamente, senhor Konstantinova? Não há nenhuma dúvida
sobre isso?
A fitei sobre o ombro esquerdo.
— Se tem algo a dizer diga de uma vez, doutora.
Ela apenas me observou por um momento. Um momento longo demais
para o meu gosto.
— Você se importa com ela.
Girei a maçaneta.
— Senhor Konstantinova. — Ela chamou e eu prometi silenciosamente
que seria a última vez que parava para ouvir suas besteiras. — Deixe
que Freya volte a vir me ver. Ela precisa disso.
Bati a porta e virei-me completamente para ela. A mulher precisava ver
que independente de sua inteligência e do meu terno sofisticado, existia uma
besta em mim. Sombras de um homem sem medo de fazer o que fosse
preciso para garantir seus interesses. Ela deu um passo atrás, enxergando-me
verdadeiramente.
— Se Freya voltar você não ousará tentar fazer sua cabeça contra mim.
Se disser a ela uma única vez sua opinião pessoal sobre mim pagará por suas
palavras. Freya é minha. Você a terá de volta sob minhas condições quando
eu decidir que quero isso. Compreendeu, doutora?
Engolindo em seco, ela franziu os olhos ligeiramente, mostrando-me que
não queria ouvir calada, mas seu medo pela primeira vez ganhou a batalha.
Bom para ela.
— Sim.
— Então estamos conversados. — Abri a porta, dessa vez ela não me
chamou e eu não parei até que estivesse no carro.
“Eu tenho um reino a comandar,
Criado em cima de sangue inocente e lágrimas de pureza,
Quem me serve servirá até que meus dias cheguem ao fim
Até que a conta de todo o mal
Volte para me fazer pagar”
NANA SIMONS
MARIBOR, ESLOVÊNIA
— Você tem visto Ward? — perguntei a Siriu antes que ele saísse do
apartamento.
— Não, reinheit. Ninguém o vê faz um tempo.
— Vou perguntar a Slom. Se é que ela vai me atender.
— A essa altura Slom Ward já superou o que aconteceu, Freya. Mas
seria melhor perguntar a Onira. Se Slom sabe de algo, contou a ela.
— Tem razão — confirmei com um sorriso, fechando os olhos quando
me beijou rapidamente.
— Trarei o jantar.
— Obrigada, mestre.
Quando a porta fechou eu voltei minha atenção ao noticiário da TV.
Imagens de Naya dançando, cantando e dando entrevistas passavam e ao
fundo, eles diziam que o misterioso desaparecimento de uma das maiores
estrelas da indústria musical durava um mês. Embora todos procurassem uma
resposta, apenas nós sabíamos o que havia acontecido e é claro que ninguém
falou.
Stark, Demeron e até Siriu estavam abalados com a perda dela, embora
deixassem claro que não iam desistir de pegar Naya de volta.
Depois daquele telefonema no dia em que Siriu me deu meu cavalo, eu
pensei que tudo ficaria bem, mas foi apenas um aviso do que estava por vir.
Pouco depois que ele saiu, recebemos a notícia de que Naya havia sumido, e
mais tarde, Siriu apareceu. Ele não confirmou nada, ninguém o fez. Nenhum
deles dizia as palavras que todos sabiam.
Na TV seus fãs acampavam no portão da casa dela e protestavam em
frente a delegacias, exigindo respostas. Ela não era amada apenas pela família
e amigos, mas também por uma legião de espectadores que não deixariam
ninguém esquecer seu sumiço. Eu entendia agora. Entendia o que aquelas
pessoas sentiram e o que sentiam.
E senti raiva. Senti tanta raiva de Kazel que meu rosto se avermelhou de
ódio. Meu reflexo no espelho ao lado da televisão mostrava meus olhos
brilhantes com lágrimas não derramadas e profunda tristeza. Naya estava em
minha pele. Sentiria tudo o que eu senti, mas sofreria 100 vezes mais, pois
não conhecia aquela vida. Ela só conhecia amor, esperança e felicidade.
Eu não podia imaginar como sairia daquilo quando nós conseguíssemos
libertá-la de Kazel.
Meu celular tocou no sofá e o peguei para atender, sorrindo ao ver o
nome de Liémen.
— Olá?
— Filha! Como você está?
— Bem. — Minha voz falhou e eu suspirei. — Estou vendo as notícias
sobre Naya na TV.
— Todos estamos abalados, ela é uma boa garota.
— As pessoas estão sofrendo tanto, pai — sussurrei. — Será que Kazel
não consegue ver isso?
— Eu aposto que consegue, querida. Acho que é exatamente o que ele
queria.
— Eu acho que sim — exalei e limpei as lágrimas, levantando-me. — E
você, está bem?
— Sim, sim, tudo certo. Eu liguei na verdade querendo convidá-la para
o almoço.
— Eu adoraria. Não estou fazendo nada e Siriu acabou de sair.
— Ótimo. Vou buscá-la em meia hora, então.
— Claro, hum... eu vou apenas ligar para ele antes.
Meu pai ficou em silêncio e eu sabia como era difícil para ele engolir
que eu estava com Siriu. Vivendo com ele, sendo feliz por causa dele e
dependendo dele. Literalmente dependendo dele. Meu pai e todos a nossa
volta viram meses atrás o que aconteceria se tentassem me afastar do meu lar
e eu não escondi que faria novamente. Ainda que meu mestre odiasse saber
que eu pensava naquilo.
— Em meia hora, Freya. Até breve. — Ele desligou e eu suspirei,
procurando o número de Siriu na agenda, mas então parei e pensei... Mestre
gostava de me castigar quando eu não seguia suas ordens e já fazia algum
tempo desde que fui desobediente.
Talvez eu devesse esquecer de pedir sua permissão. No fundo ele
adoraria isso.
Assim como eu.
Estacionei em frente à minha casa escondida no lugar mais pobre da
cidade e vi um dos agentes da Liga fumando do lado de fora. O dia estava
chuvoso e meu humor não podia ser pior. Eu ainda tinha muita merda para
consertar depois de ter sido roubado por Kazel e estar ali era nada além de
um desperdício de tempo que eu preferiria não ter que lidar, mas Mudié pediu
por isso. E ele teria.
— Acha que hoje conseguiremos arrancar alguma coisa dele? — A
frustração na voz de Heinrich me fez querer mais uma vez dizer a ele que ali
não era o seu lugar, que ele era jovem demais para estar seguindo o mesmo
caminho que eu e meus primos e se afundando na merda que não tinha volta.
Mas ele era determinado e destemido e não se calou nenhuma vez diante
das minhas reprimendas. É claro que eu não esperava ser obedecido e
adorado, mas o garoto tinha mais coragem que muitos homens com o dobro
de sua idade. Muitas vezes ele me olhava como se quisesse me encher de
porrada e só evitasse porque era só um caminho difícil demais a tomar.
Naqueles momentos eu queria ser como Freya, ela encontrava assuntos com
ele e os dois preenchiam os raros jantares que tivemos nos últimos meses
como se fosse algo que tivéssemos feito pelos últimos 10 anos.
Suas idades eram mais próximas, e mesmo que os pensamentos não
fossem os mesmos, ainda se davam bem. Eu era um fodido que conseguiu
sentir ciúme dela com o próprio filho e até mesmo o mandei embora uma
certa vez antes que ela conseguisse servir a sobremesa.
— Será difícil — falei. — Preciso descobrir um jeito de quebrá-lo, mas
ele não tem nada a perder. Mudié sabe que não sairá daqui vivo, então seu
último consolo é nós fazer esperar que tenha algo a dizer dia após dia.
— Assim ele atrasa a própria morte.
— Sim — confirmei e peguei a bolsa no banco de trás.
— E vamos esperar?
— Vamos, mas não por causa de seus jogos e sim porque eu quero.
Demeron ainda precisava ter seu tempo com ele, assim como Ward.
Ao entrar na casa, um odor podre nos atingiu e eu sorri com o quão
decadente o cenário parecia. Mudié estava exatamente no mesmo lugar com
os braços erguidos acima da cabeça e uma corrente nada confortável segurava
os punhos. Os pés bem separados estavam presos em duas gaiolas no chão,
deixando as pernas impossivelmente abertas.
— Olá, Mudié — cumprimentei com entusiasmo fingido na voz. —
Como vai hoje? — perguntei ironicamente, então ouve o barulho do chuveiro
e sorri sabendo que o homem que contratei já tinha vindo para sua punição do
dia. Eu dei a volta no corpo maltratado do homem que fez milhares de
meninas e meninos sofrerem durante anos e um sentimento vitorioso aqueceu
meu peito quando vi o sangue escorrendo de suas pernas. — Uau... isso
parece o doloroso.
— Vá... — sussurrou, seguido por uma crise de tosse. — Vá. Se. Foder.
— Não, você já fez isso por nós dois. E apenas um de nós é o suficiente
para o grandão ali no chuveiro. — Ele tentou me enviar um olhar ameaçador,
mas tudo que conseguiu foi uma carranca e lágrimas em contidas escorrendo
pelo rosto.
Eu não tinha vergonha de ter sujado minha mão com ele nos primeiros
dias batendo, torturando e até mesmo ligando para Luigi DeRossi oferecendo
como uma trégua por minha ofensa a sua esposa a oportunidade de assistir e
me ajudar a torturar o homem em questão. Mas nada o fez falar. Seu silêncio
— salvo os gritos agonizantes de dor — foram suficientes para me fazer
acreditar que ele não sabia de nada.
Os dois homens que se revezavam para cuidar dele tinham ordens
expressas de estuprá-lo da forma mais dolorosa e brutal que conseguissem,
minha única exigência era que o deixassem consciente enquanto acontecia e
que nunca o ferissem a beira da morte. Sua recuperação levaria dias e eu não
queria ficar tanto tempo sem meu brinquedo particular.
Meus planos tanto para Mudié quanto Kazel não envolviam uma tortura
de um mês e então a liberdade da morte. Não. Eu queria muito mais. Deixar
os dois presos como animais insignificantes apenas para me divertir e deixar
que qualquer um se divertisse livremente com ele seria um bom castigo para
os próximos 15 ou 20 anos.
Embora eu soubesse que nem aquilo compensaria toda a dor que
causaram principalmente a Freya. Mudié estava sentindo apenas o começo do
que lhe aconteceria e ele não era idiota de duvidar de mim.
— Alguma novidade, meu caro? — perguntei ao erguer o cabo de
vassoura com resquícios de sangue na ponta e quebrá-lo no meio, apontando
o lado quebrado e cheio de fiapos em seu rosto. — Se me disser que não tem
nada a dizer serei obrigado a agir. Você sabe que seus gritos são minha
música favorita agora.
— Eu já disse tudo o que sabia!
— Aí é que está a questão... você não me disse nada.
— O que mais você quer saber? Eu não sei onde ele está vivendo, onde
estão os filhos dela ou mesmo onde Naya está! A única coisa que ele disse
antes de me cravar uma faca nas costas foi que viria atrás da substituta de
Freya e a tiraria de você, já que você retirou sua feiticeira dele.
— Já ouvimos essa parte da história. — Meu filho apontou e me fez
sorrir com a malícia em seus olhos.
— Tem que ter algo mais, Mudié. Vamos, quem sabe se você não for
um bom rapaz eu lhe permita uns dias de descanso por provar sua nova
lealdade.
— Faria isso? V-você pode?
— É claro que posso. — Dei de ombros. — Eu posso tudo e qualquer
coisa.
Ele pareceu refletir enquanto observava minhas expressões, mas eu as
deixei em branco. Não tinha nada para ele ali.
— A única coisa que eu não contei foi que ele não pegou quem
planejava. Treinar uma garota jovem é sempre mais fácil, pois elas não sabem
que podem revidar ou agir com teimosia.
— Desde que eu não conheço nenhum bebê você vê por que fica difícil
acreditar em suas palavras?
Ele se contorceu nas correntes quando dei um passo ameaçador a frente.
— Tem certeza de que não conhece nenhuma jovem garotinha que
serviria as exigências dele?
— Dele? — perguntei, então ergui e esfreguei o cabo de sua testa até o
queixo arrancando alguns pinguinhos de sangue dos vergões, e seus
choramingos ridículos encheram meus ouvidos. — Você está incluso nisso.
Sabe que também é um abusador, estuprador e pedófilo de merda, não sabe?
E é por isso que eu cortei o seu pau. Por isso deixo que homens se aproveitem
de sua bunda suja todos os dias.
Afastei o cabo, deixando-o sentir o novo ferimento.
— Tenho pensado em um leilão — provoquei, mas era a mais pura
verdade. — Colocar você em frente à uma linha e lançá-lo ao maior preço.
Mas deixaria que todos te experimentassem antes de pagar, assim como
vocês faziam com Freya. Imagine isso, Mudié. Não é tão excitante quanto
tocar garotas e queimá-las a ferro quente, é? Imaginar diferentes homens
metendo em você como uma bonequinha de pano. Imagina o quanto todos
adorariam encher o seu rabo de porra. Como eles amariam te ver sangrar.
Um. De. Cada. Vez.
Ele estremeceu e vomitou, jogando seus fluídos há pouquíssimos
centímetros do meu pé.
— Blair! — Ele gritou entre os espasmos. — Ele veio por ela, então não
sei o porquê levou Naya, eu juro que não sei. Ela está provavelmente
escondida junto com os filhos de Kazel e de Freya. — Ele chorou mais alto.
— Se você encontrar uma, encontrará os três. Por favor, eu estou
implorando...
Suas lágrimas não me comoviam, não me despertavam, não me faziam
reconsiderar. Na verdade, eu só ficava ainda mais puto por não conseguir
fazê-lo sofrer ainda mais sem matá-lo.
— Viu só como fizemos progresso? Como recompensa da próxima vez
que eles vierem para você, vou pedir que não te fodam a seco.
Ele chorou de alívio, imaginando que estaria livre da dor. Eu não pude
evitar. Comecei a rir vendo tanto graça em seu olhar desesperado que
arranquei um sorriso igualmente distorcido do meu filho.
— Ao invés disso, vou mandar que lubrifiquem seu cu com pimenta. —
Me aproximei e dei uma série de tapas em seu rosto para deixá-lo bem atento
as minhas palavras antes de segurá-lo, fitando-o no fundo dos olhos. — Seu
sofrimento não terá fim, putinha. Seu corpo é minha propriedade, você come
merda se eu cagar no chão e fode quem eu quiser que sirva. E você me dará
suas lágrimas, seu sangue e seus ridículos gritos por misericórdia apenas para
a minha diversão. Eu vou filmar para que Freya veja antes que eu faça amor
com ela.
O poder das minhas palavras aumentava o medo que crescia dentro dele.
Isso era bom. Eu queria que visse o rosto de cada mulher, cada criança.
Queria que se lembrasse dos países de onde as roubou e de seus nomes.
— Você passará o resto da vida miserável comigo, e conhecendo Kazel
você acha que conhece o mau. Mas não tem ideia do que eu sou capaz.
— Eu tenho algumas ideias para adicionar à lista da penitência dele. —
Meu filho disse e eu vi o brilho de vingança em seus olhos, a fome pelo
sangue pecador. Decidi ali parar de lutar contra o inevitável. Kirina achava
que se tivéssemos um filho poderíamos dar a ele outra vida, mas ele se fez
por si mesmo. Ver Heinrich querer justiça me fez mais orgulhoso do que
qualquer merda de conquista que eu mesmo tive.
Eu soltei Mudié e dei um passo atrás.
— Vamos falar sobre isso enquanto almoçamos. Vamos pedir para
buscar e comeremos aqui, assistindo enquanto o eunuco chora o começo do
seu inferno particular.
— Nós comeremos olhando para ele?
— É claro. — Eu me juntei as sombras para sorrir um sorriso
verdadeiro. — Isso vai apenas aumentar o meu apetite.
Então eu voltaria para casa e foderia Freya, depois a seguraria nos
braços, sabendo que um dos monstros que a assombrou não estava e nunca
mais estaria solto novamente.
"...Oh, amor, me deixe ver dentro do seu coração
Todas as rachaduras e rupturas
Há sombras na luz
Não há nenhuma necessidade em se esconder
Porque estou em chamas
Como mil sóis
Eu não poderia queimá-lo para fora
Mesmo se eu quisesse..."
ROSS COPPERMAN, HUNGER
— Freya! Freya! — Os gritos de Blair foram ouvidos assim que a porta
se abriu, revelando a menina correndo em nossa direção e abraçando as
pernas de Freya. Minha mulher se segurou em meu braço para não cambalear
e acariciou a cabeça da menina.
— Olá, Blair!
— Eu cuidei de Vidar para você! Ele comeu maças e muitas folhas, quer
vê-lo agora? Eu pedi a mamãe que comprasse lacinhos para ele, mas ela disse
que eu deveria te perguntar primeiro. Você não se importa, não é?
— Não, Blair. — Ela me soltou para ajoelhar em frente a menina. —
Vidar é seu protegido, lembra? Eu não posso estar com ele agora e confiei em
você para cuidar dele. — Ela falava baixo, como se não quisesse que
qualquer outra pessoa além de mim e Blair ouvisse. — Se ele estiver bem,
você pode colocar até calças nele.
— Sério?!
— Não vamos tão longe — murmurei, puxando Freya de volta para
mim. — Deixe o cavalo quieto, Blair. Vista suas bonecas.
Ela fez um bico que funcionava com Freya, mas comigo só me fazia ver
que seria tão manipuladora quanto sua mãe e terrível como a tia.
— Não seja rude. — Freya tocou meu peito, aliviando todo meu corpo
como sempre fazia.
— Está tudo bem, Freya. — Blair apoiou as mãos na cintura, lançando
um sorrisinho inocente a ela. — O Siriu está brincando.
Eu não estava e Blair sabia, mas eu precisava admitir que gostava do
fato da garota sempre tentar tranquilizar Freya e deixá-la confortável.
— Finalmente. — Kaladia surgiu virando o corredor, fitando-nos
rapidamente antes de virar as costas. — O jantar será servido agora.
Blair agarrou a mão de Freya e tentou puxá-la, mas eu a segurei e lancei
um olhar a garota.
— Vá com sua mãe, Blair.
Ela estreitou os olhos para mim.
— Eu gosto mais de Freya do que de você agora, Siriu.
— Bom — murmurei, pendurando o meu casaco antes de segurar a mão
que Freya me esticava e seguir em frente até onde todos nos esperavam.
— Você é impossível. — Minha Freya sussurrou, mas ela sorria como
se toda a situação fosse divertida. Eu não achava. Não queria estar ali e
quanto mais rápido pudéssemos sair melhor.
Stark estava na cabeceira da mesa, ao seu lado, Angelina e a frente dela,
Kaladia. Regnar, Demeron e Onira ocupavam cadeiras lado a lado, deixando
para mim e Freya nos sentarmos ao lado de Kaladia. Blair foi rápida em ficar
ao meu lado. A garota não desistia.
Cumprimentos foram descartados enquanto olhávamos um para o outro
num questionamento silencioso: quem levantaria e encerraria aquela cena
primeiro? O cheiro de comida era da melhor qualidade, mostrando que Stark
se adiantou a contratar o melhor chef da cidade para a noite.
— Finalmente conseguimos nos reunir, minha estimada família. — As
palavras de dele vieram acompanhadas de um silêncio gritante.
— Claramente estamos todos entusiasmados, pai. — Regnar provocou
quando ninguém disse nada, servindo-se de meia taça de vinho e depois
encheu a de Kaladia até a borda, lhe dando um sorriso. — Seu jantar, esposa.
— Mamãe não vai comer comida? — Blair perguntou, a única que
parecia realmente ansiosa para a farsa — que em sua cabeça era real —
começar.
— A mamãe prefere se afogar de álcool até esquecer que estamos todos
aqui, bruxinha.
Blair olhou de um para o outro, coçando o olho antes de dar de ombros.
— Posso comer a parte dela da sobremesa, então?
— É claro que pode, filha. — Kaladia lhe forçou um sorriso. — A
mamãe mesmo dará a você.
— Então, Siriu. — Angelina limpou a garganta. — Quando trará o seu
bastardinho para um jantar?
Sua pergunta me irritou de modo fenomenal.
— Assim que enterrarmos a senhora, talvez o clima melhore e ele se
sinta à vontade para comer.
Suspiros e engasgos cortaram o ar, Angelina não achou graça da minha
piada, o que era bom, já que eu falava sério.
— Tenha mais respeito, Siriu — disse Stark.
— Quando ela tiver por mim, volto a ter por ela.
Peguei um sorriso disfarçado de Onira e sabia que ela adoraria poder rir
do que eu disse. A velha não a suportava e não escondia isso. Eu mantive
minha boca calada a vida toda diante da amargura de minha avó por ela ser a
matriarca da família, mas aquilo durou apenas até o momento em que tive
Freya ao meu lado, quando ela não se incomodou em sequer olhar
diretamente a minha reinheit.
E tanto quanto eu gostava que as pessoas não se distraíssem com minha
Freya, eu odiava que a desprezassem. O mesmo desprezo era direcionado a
Heinrich. Pensar no garoto me fez pegar o celular para conferir se tinha
enviado alguma mensagem, ele vinha se acostumando com a nossa nova
descoberta. Já conhecia meus primos e Stark há muito tempo, e se dava bem
com todos. Com Harlen particularmente.
Sendo pai, minha menor preocupação era ele estar na companhia dos
meus primos e mesmo com pouco tempo que passamos juntos o garoto vinha
mostrando que aprendeu a se virar. Era muito inteligente, calado e nem uma
única vez me perguntou o que houve para que eu aparecesse depois de anos
sem explicações. Ele teve sua própria conversa com Kirina e eu não perguntei
o que foi dito, não era da minha conta. Soube apenas, porque a vi saindo da
casa que ele vivia, puxando-o para um abraço antes de entrar em seu carro
com Zippo e desaparecer na noite.
Em breve eu o deixaria decidir sobre outro lugar para morar. Ele seria
bem-vindo em um apartamento onde quisesse, ou até mesmo no que estava
vazio ao lado do meu. A escolha seria dele, eu só queria esperar que
resolvêssemos toda a confusão de Naya batendo na nossa porta.
— E você, Onira?
A esposa do meu primo encarou Stark com sua feição simpática, mas a
dureza disfarçada nos olhos mostrava que entrava naquela casa sempre
preparada para o pior.
— Qual sua próxima grande exposição?
— Ah, bem, eu tinha algo planejado para daqui duas semanas, mas não
posso fazer isto com Naya desaparecida. Eu não conseguiria.
A palavra “desaparecida” soava amarga para todos nós. Era ridículo que
estivéssemos ali jantando quando sabíamos que na melhor das hipóteses ela
tivesse tido uma morte rápida, porque a opção pior, era estar exatamente onde
Freya esteve a vida inteira.
— Bobagem. — Kaladia opinou, o que surpreendeu a todos, já que a
mulher preferia fingir que Onira não existia. — Você não pode parar seu
trabalho por algo que não temos nem ideia de quando se resolverá.
— Mas também não posso seguir em frente como se ela nunca tivesse
existido.
O silêncio desconfortável era palpável. Se eu levantasse o garfo poderia
espetar o clima pesado pairando sobre a mesa, mas é claro que ninguém
reconheceria em voz alta e acabaria com aquele show de uma vez. Era mais
fácil fingir que adorávamos estar ali quando na verdade Kaladia preferia estar
se afogando em álcool lá em cima, Blair preferia estar com o cavalo do lado
de fora e Regnar adoraria ir atrás de uma de suas amantes convenientes.
Demeron e Onira em um piscar de olhos fugiriam para se esconder em sua
privacidade o mais rápido possível.
Como se eu não estivesse louco para levar Freya para casa.
— Como vai à escola, Blair? — perguntou Onira.
A conversa seguiu por todo jantar enquanto cada um se obrigava a
arrastá-la até que pudéssemos finalmente levantar da mesa. Nós comemos a
entrada acompanhada do vinho escolhido por Stark, menos eu, que
acompanhei Freya na água. E rapidamente finalizamos uma sobremesa que
parecia estar em alta naquela época do ano.
— Vocês se importam se Siriu me acompanhar até lá fora? — Minha
família parou de comer e todos a encararam, como se vê-la falar uma frase
inteira sem dizer algo constrangedor fosse impossível.
Ela abaixou a cabeça, constrangida com a atenção e com o que ela
chamava de “defeito” em sua voz. Maquiagem cobria as cicatrizes leves que
ficaram em seu queixo, mas no geral, Liémen pagou cirurgias plásticas o
suficiente para consertar quase tudo o que Kazel tinha causado – uma quantia
considerável que eu fiz questão de transferir para a sua conta e deixar claro
que não aceitaria de volta. Freya era minha, assim como qualquer custo que
ela tivesse.
Eu não sabia se me sentia abençoado ou amaldiçoado por ela não
encarar os traumas do que viveu como “traumas”. Era tudo apenas um grande
incômodo em sua cabeça, algo que ela viveu e passou. Como crianças que
precisam fazer o dever de casa para passar pela escola.
— Vá em frente — disse Demeron, acenando com simpatia. Onira sorriu
ao lado dele, mas ela também se manteve tão quieta quanto Freya.
Blair começou a se levantar, mas sua mãe a parou.
— Onde pensa que vai?
— Com o Siriu e a Freya. — Deu de ombros.
— Eles não te chamaram, Blair. Sente-se e finalize seu prato.
A menina fez uma careta e se sentou sem gostar da ideia. Antes que eu
pudesse parar Freya, ela se aproximou e agachou ao seu lado.
— Eu preciso muito conversar com Siriu, mas podemos ver se sua mãe
permite que durma em nossa casa hoje. O que acha?
— Freya — rosnei, não aprovando a ideia.
— Eba! — Blair gritou antes de lhe dar um rápido abraço e voltar a
comer lançando olhares gentis a Kaladia.
Desde que ela tinha voltado a morar comigo, a presença da garota se
tornou irritantemente comum em meu apartamento. Para ficar ainda mais
estranho Freya levou o que eu lhe disse sobre “se sentir em casa” muito
confortavelmente e passou a convidar Heinrich para visitá-la. Eu ainda não
sabia lidar com a presença do rapaz e ainda mais com o conhecimento de que
era meu filho.
Estava aliviado por estar vivo, era uma culpa que agora vivia apenas
50% em mim. Nunca esqueceria como mandei Kirina dar fim a sua gravidez
e tampouco os anos me condenando por aquilo. Ele estar vivo não eliminava
o fardo, só o tornava ligeiramente menos pesado.
Ele, entretanto, não parecia ter dificuldade em lidar com tudo. A
primeira vez que percebi que ele gostaria de criar uma relação comigo foi
quando me mandou uma mensagem de texto simples, perguntando se eu
poderia ensiná-lo a atirar, visto que Demeron estava ocupado. Acontece que
meu primo estava bem a minha frente quando recebi o recado, e falava sobre
como adoraria ter algo a fazer ao invés de ajudar Onira com a decoração da
casa nova.
Eu segui Freya até a porta, mas ao invés de sair, segurei sua mão e
subimos dois lances de escadas, minha intenção era guiá-la até o terraço onde
anos atrás eu costumava passar a maior parte do tempo. Era enorme, cobrindo
toda a estrutura da casa. A céu aberto e vazio. Lembrava-me dos dias que eu
levava apenas um edredom e travesseiro e dormia a céu aberto, acordando
com o sol queimando minha pele. Uma época distante onde eu apreciava
estar exposto e deixava as emoções governarem minha vida.
Eu tinha escolhas. Acreditava em um futuro comum e honroso.
Acreditava na bondade humana depois de servir para protegê-la por anos.
Foi preciso uma única pessoa para mudar aquele jovem
insuportavelmente inocente. Kazel.
E ele foi o mesmo que levou Freya a mim. A única alma viva capaz de
me fazer lembrar profundamente de quem eu costumava ser.
— Não quero ter filhos, Siriu. Nunca. — Suas palavras nos detiveram
quando eu toquei a maçaneta da porta para nos levar perto do céu. Ela fez
uma pausa como se a realidade daquela afirmação a pegasse. — Não quero
ter outros filhos — corrigiu.
Eu virei completamente para ela, isolados onde ninguém nos
encontraria. Me perguntei o porquê ela decidiu falar aquilo agora. E como eu
não tinha percebido que algo a incomodava.
— Tudo bem, não teremos. Não precisamos de nada que você não
queira.
— Tem certeza? Tem certeza de que não se importa?
— O que quer dizer?
— Que está mentindo para mim. Você continua procurando as duas
crianças. Não entende a gravidade disso?
Eu escondi minha surpresa. Comecei a procurar as crianças no momento
em que Liémen me expulsou do hospital. Era difícil, e devido as novas
conexões forçadas de Kazel, quase impossível, mas eu não podia desistir.
Não me chateei que Freya soubesse sobre aquilo e não perguntei como soube,
porque ou Onira lhe disse, ou Kirina. Ou ela mesma podia ter descoberto, já
que a cada dia ela se abria mais. Pesquisava, perguntava, se interessava por
tudo ao seu redor. E a única felicidade em minha existência era fazê-la
entender tudo o que quisesse.
Eu lhe disse que não tinha muito para dar, mas o que tinha seria dela e
não estava mentindo.
— Eles são seus, portanto, são meus também. Só os quero seguros.
— Não — sussurrou, balançando a cabeça e se encolhendo, abraçando a
si mesma.
— Reinheit, ficaremos bem. Você ficará bem.
— Se... estiverem vivos, minha menina — ela se engasgou, engolindo a
saliva seca. — Ela terá quatro e meu menino terá 6.
— Eu sei, liebe.
— Ele não será mais virgem e terá tantas cicatrizes profundas. Ela já terá
tido mais homens do que uma mulher de trinta em toda a vida.
Suas palavras cravaram o punho invisível ainda mais fundo em meu
estômago, porque eu sabia de tudo aquilo. Nenhuma criança passaria
por Kazel e seria intocada. Seus filhos com Freya? Dada a sua obsessão de
anos por ela, eu diria que as crianças sofreram ainda mais que outras. Mas eu
não disse a Freya. Eu não podia inserir ainda mais imagens em sua mente
torturada.
— Vamos apagar essas memórias, vamos dar a eles dias bons e
lembranças boas. Eles serão acompanhados por profissionais e receberão
todo o conforto que for preciso.
— Eles vão me odiar. — Fechou os olhos, deixando escapar um soluço.
— Não diga isso.
— É a verdade! Eu os trouxe para esse mundo! Se soubesse... se ao
menos soubesse que há algo melhor do lado de fora, que tudo aquilo era
errado... teria os livrado ainda em meu ventre. Eu sinto muito. — Seu choro
me dividiu entre querer consolá-la e querer apressar os homens que estavam
procurando pelas crianças. — Mas teria feito meus filhos partirem antes de
nascer. Só que eles nasceram e eu nunca sequer os vi!
— Você foi outra vítima, göttin, apenas isso. Quando crianças passam
por traumas muito profundos ainda jovens, há possibilidade de esquecerem.
— E se lembrarem de tudo?
Eu cerrei os lábios juntos.
— Consertaremos isso. Eu vou trazê-los para você e eles terão uma
família em quem se apoiar para esquecer o inferno das Kambarys. Está bem?
— Não. — Ela apoiou a cabeça em meu ombro, as lágrimas iam
atravessando o tecido da camisa e molhando minha pele. Eu acariciei seus
cabelos. — Não está nada bem.
— Confie em mim, reinheit. Ainda não está, mas vai ficar. Ficará tudo
bem em breve.
Eu ainda teria que aprender a ser uma mãe. Aprender a até mesmo olhar
para eles e entender que eram meus e em meu coração eu torcia
desesperadamente para que Siriu não demorasse a encontrá-los. A cada dia eu
reconhecia mais o que sofri nas mãos de Kazel e quando pensava sobre as
duas crianças passando pelo mesmo ou pior... meu coração parecia derreter
no peito e ser consertado, apenas para sofrer outra vez. Repetidamente.
Pesadelo eram terríveis e tinham vezes que eu parava olhando para o nada,
mas imagens de dor e sofrimento passavam diante dos meus olhos. As
vítimas eram duas pequenas crianças inocentes que eu entreguei.
Ele chamou minha atenção de volta quando abriu a porta e beijou a
lateral da minha cabeça, sussurrando mais uma vez que tudo ficaria bem. Eu
confiava nele. Se tinha alguém que podia me juntar dos pedaços era Siriu.
Minha esperança se agarrava a certeza de que via em seus olhos cada vez que
ele me prometia um futuro de amor e paz. Eu, ele e as duas crianças que dei à
luz anos atrás.
— Uau... — suspirei, olhando o céu escuro com um amontoado de
estrelas. — A lua está bem acompanhada. — Eu sorri, esticando a mão para
ele. Siriu a segurou e grudou o peito em minhas costas.
— Eu acho que ela prefere ficar sozinha — murmurou em meu ouvido.
— Por quê?
— Para brilhar sozinha. Assim, quando o sol se aproxima e estão quase
se cruzando, ela não teria medo de que ele a confundisse com estrelas.
— Não — sussurrei. — Ela sabe que não importa quanta luz houver ao
redor dela o sol sempre a reconhecerá.
— E como tem tanta certeza disso?
Dei de ombros, sorrindo para o céu sem fazer ideia se o que eu diria
fazia algum sentido.
— Porque você me encontrou mesmo mergulhado em sua escuridão.
— Você me encontrou, Freya.
Eu me virei em seus braços, encarando os olhos azuis opacos.
— Você estava perdido, Siriu, mas eu... eu nunca tinha sido encontrada.
Você — enfatizei. — Você me encontrou.
Ele inalou uma respiração profunda, segurando meu rosto com os lábios
levemente encostados nos meus.
— Quando eu encontrar as crianças você vai se casar comigo.
Eu sorri.
— Sem pedidos?
— Eu não preciso de um. Você vai.
Eu senti um pingo em meu ombro e olhei para cima, rindo quando
pingou na ponta de seu nariz. Eu passei meu dedo pela gota e o olhei no
fundo dos olhos.
— Como eu poderia te contrariar se Odin está abençoando? — Eu disse
a ele, sabendo que as palavras significariam o mundo para Siriu.
Um raio soou após as minhas palavras e eu me senti sendo examinada
pelos olhos de seus deuses, como se estivessem realmente me dando
permissão para ter seu guerreiro. A chuva começou a cair feito um sinal.
Ele balançou a cabeça e mesmo que nunca tivesse sorrido para mim, eu
sabia que não tinha diferença. Ele não sabia como ser feliz, eu tampouco, mas
ensinaríamos um ao outro. Por enquanto eu estava bem de ter suas mãos
suaves em mim. Tocando-me como se eu fosse pura e inocente. Como se me
proteger estivesse enraizado nele. Também tinha aquele olhar que o deixava
parecer menos perigoso. Aquele olhar aberto e cheio de emoções era mais do
que ele já deu a qualquer outra pessoa.
— Sou este. — Ele respondeu.
— O quê?
Ele empurrou meu cabelo molhado do rosto, acariciando meu queixo e
aproximando mais seu nariz do meu.
— Este é quem eu sou quando ninguém está olhando.
Eu sorri, lembrando-me do dia em que lhe fiz aquela pergunta.
— Depois de todo esse tempo você se lembrou de responder?
— Eu nunca esqueci, reinheit. Só percebi que estava pronto para
responder agora.
Eu queria saber alguma oração para ele naquele momento, tinha que ter
algo que pudesse dizer para agradecer por Siriu Konstantinova.
Ele me abraçou forte e ao esconder meu rosto em seu peito, pensei sobre
Kazel. Como ele me tirou da vida da qual me pertencia e me transformou em
sua vítima, como arrancou pedaço por pedaço do que queria de mim e ainda
assim eu sobrevivi. Talvez no fundo eu já soubesse que Siriu me encontraria?
Talvez já estivesse escrito que não importava por quanto eu passasse,
havia uma lua cheia de estrelas esperando por mim. Aquele era o sentimento
de plenitude? Aquilo era felicidade?
Eu apertei os braços ao redor do meu mestre implorando
silenciosamente que jamais me deixasse ir.
— Siriu? — sussurrei. Nenhum de nós parecia com pressa de se
esconder da chuva.
— Freya — sussurrou de volta.
— E se ele voltar?
— Ele não vai. — Ele agarrou meu rosto novamente, franzindo os olhos
molhados. — Eu vou matá-lo antes que sequer pense em machucá-la outra
vez. Eu prometi isso antes e falhei, mas não vou falhar novamente.
— Eu sei que não vai.
— Nada vai levá-la de mim, Freya. Nada e ninguém. Você é minha para
sempre.
— E você é meu?
— Eu sou seu. Embora eu seja o único que se deu bem de nós dois, você
não tem uma escolha.
Eu dei risada, me erguendo na ponta dos pés para beijá-lo.
— Não preciso de uma. Depois de uma vida sendo possuída finalmente
tenho algo meu. O homem mais forte, poderoso. — Toquei seu peito como já
fiz tantas outras vezes e pressionei a mão lá. — A escuridão do seu coração
foi forçada em você, mestre. Assim como no meu. Nós nascemos para nos
encontrar.
— Você pensou sobre mudar o seu nome? — perguntou e eu assenti.
— Vou esperar até que possamos acrescentar o seu, mas continuarei
sendo Freya.
— Tem certeza? Foi ele quem escolheu.
— Não — neguei. — Não foi. A mesma força que nos uniu me nomeou
assim. Eu sou sua Freya. E quando as crianças estiverem conosco serão Thor
e Iduna.
— Freya. — Ele exalou, praticamente cantando. Segurando minha nuca
para me beijar com tanta intensidade que fez minhas pernas fraquejaram. Me
agarrei a ele com força, como se fosse a primeira vez.
O beijo confirmava o que ambos sabíamos: aquilo foi escrito.
Fosse por seus deuses, o Deus de outros ou o próprio Príncipe a quem
cresci servindo. Não importava mais. Estávamos juntos.
As sombras eram o meu lar e eu me esconderia nelas para sempre.
"Eu guardo sua fotografia
E eu sei que me faz bem
Eu quero te abraçar forte e roubar sua dor
Porque eu estou quebrado quando estou sozinho
E eu não me sinto bem quando você vai embora
Mas você foi embora"
SEETHER FT. AMY LEE, BROKEN
COLÔNIA, ALEMANHA
O cheiro que invadiu as narinas de Slom Ward quando ela abriu a porta
da enorme casa de seu irmão escondida no interior da pequena cidade da
Colônia, ela respirou fundo do lado de fora e entrou, decidindo respirar pela
boca antes que desmaiasse.
Chamando por seu irmão com preocupação na voz e pânico nos olhos ao
olhar ao redor, Slom recebeu o silêncio e começou a buscar por ele. Kurton
Ward sempre foi o homem mais organizado que ela já conheceu e ver sua
casa naquele estado a fazia pensar se deveria voltar para lá ou arrastá-lo com
ela para sua própria casa.
— Até parece — bufou, o pensamento a fazendo rir. Seu irmão era
teimoso e não ganhou fama à toa. Embora fosse um perfeito galã e muito
educado, Slom sabia que não havia ninguém que pudesse obrigar Kurt a fazer
algo que não queria.
Ela sempre o viu como o homem mais forte e jamais esperava ter que
assisti-lo passar por aquele momento tão difícil. O desaparecimento de Naya
fez seu irmão se perder de um jeito que ela nunca viu antes. O homem
inabalável e fortemente poderoso andava com olhos vagos e a expressão
cansada como se cada noite que passava longe da mulher o deixasse mais
perto de seu próprio fim.
Odiava o pensamento, mas ela tinha visto seus pais caírem um após o
outro. Sua mãe morreu de forma lenta e triste, acometida por um câncer
maligno. E logo em seguida, seu pai se afundou numa depressão que nem
mesmo o amor pelas duas crianças o fazia querer melhorar, eventualmente
acabou com a própria vida, deixando Ward para lidar com os negócios e uma
Slom pequena. O amor de sua vida se foi e não havia nada para ancorá-lo ao
mundo.
Assistir seu irmão seguir o mesmo caminho que o pai a aterrorizava.
Antes do casamento de Onira e Demeron Konstantinova, ela nem sequer
sabia que Ward estava vendo alguém, mas aquele dia ficou muito claro para
todos. Ward era poderoso em Berlim e Slom não se importava com o que
diziam dele ou as teorias da conspiração o envolvendo. Ele era apenas seu
irmão e se Naya o fazia feliz, ela daria todo o apoio.
Ward se preparava para viajar o mundo ao lado de Naya em sua turnê de
shows quando ela desapareceu sem nenhuma pista. Talvez fosse algum fã
maluco, ou até um de seus ex-namorados querendo se vingar. Era triste.
— Achei você — disse Slom para si mesma. Ward dormia em sua cama
em pleno meio do dia, quando antes estaria correndo por Berlim para tratar de
seus muitos negócios.
Ao seu lado, uma camisa rosa que já vira Naya vestida. Dizia “staff” na
frente e ela mesma admitiu ter roubado de um de seus produtores porque
adorou e não tinham feito uma para ela. Slom sorriu com melancolia ao
pensar que não era justo seu irmão ter perdido o amor de sua vida antes
mesmo que pudessem começar sua história.
Havia toques e resquícios da presença da estrela da música mundial em
toda a casa. Um batom na mesa de cabeceira, creme de mãos no lavabo e até
um tapete novo na sala que antes pertencia ao apartamento dela em Berlim.
Havia uma blusa pendurada no porta casacos como se a qualquer
momento ela fosse aparecer para vesti-la.
Slom percebeu que não perdeu apenas sua amiga, mas perdia seu irmão
também. Ela enxugou as lágrimas que começaram a cair e deixou Ward
sozinho, fechando a porta atrás de si. Voltando a cozinha, Slom começou a
limpar.
Foi uma droga que ao ter ligado o rádio para espantar o peso de sua
mente, começou a tocar uma música de Naya.
ALGUM LUGAR NO MUNDO