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Rupturas ¢ continuidades na formaga transigio colénia-imp al brasileira: a Raquel Maria Fontes do Amaral Pereira 0 processo de independéncia das nagdes ibero-americanas tem inicio quando 0 desenvolvimento econémico europeu assinala a transigo para o capitalismo industrial, obedecendo as diferengas e particularidades de acordo com as condigées dominantes nas diversas regides da América, desde 0 Vice-Reinado do México até © Brasil, passando pelos Vice-Reinos da Nova Granada, do Peru e do Prata. A Revolugio Industrial responsavel pelo extraordinério aumento da produgio, decorrente da substituigio da manufatura pela maquina, coloca a Inglaterra na posi¢ao de nova metropole econémica. Em decorréncia destas transformagdes 0 antigo sistema colonial, alicergado no “pacto colonial” que defende 0 exclusivismo comercial das colénias com as metrépoles, entra em crise. A ago do monopélio comercial apresenta-se como uma necessidade, pois o intercdmbio estava, até entio, restrito as duas decadentes monarquias ibéricas que ainda conservavam grande parte de seus dominios, sobretudo gragas as rivalidades que dividiam as novas grandes poténcias européias: Inglaterra e Franga’ * Apresentado no 5* Congresso Brasileiro de Gedgrafos - AGB — CCuritiba-PR, em julho de 1994. * Doutora em Geografia Humana pela Universidade de S30 Paulo, Professora da UNIVALI ¢ do Programa de Pos Graduagdo em Geografia da UFSC. ® Para Caio Prado Jinior, tratase de uma situagio andmala pois “ja no correspondia mais a0 equilibrio mundial de forgas econémicas ¢ politicas. Depois daquele passado jé remoto do apogeu luso-espanhol, ‘outras poténcias tinham vindo ocupar 0 primeiro lugar no plano internacional: 0s Paises-Baixos, a Inglaterra, a Franca. No entanto, 0s dominios ibéricos ainda formavam os maiores impérios coloniais. CCorpos imensos de cabesas pequenas..”(in Histéria Econémica do Brasil. 14.ed. Sdo Paulo: Editora Brasiliense, 1971. p. 123). Geosul, Florianépolis, v. 14, n, 28, p. 55-60, jul/dez. 1999 38 ‘A. subordinago das areas coloniais as suas respectivas metrépoles, mantida através do monopélio comercial, impde intermediarios (Portugal e Espanha) agora ja perfeitamente dispensaveis. O fim do pacto colonial - “expresso perfeita do capitalismo comercial”, no dizer de Caio Prado - coloca-se como ‘uma exigéncia do capitalismo industrial que tem como tinico objetivo a busca de mercados para seus produtos e provoca uma ‘do répida desagregagdo que no final do primeiro quartel do século XIX Portugal perdera seus territérios americanos, enquanto a Espanha conservava apenas Cuba e Porto Rico O movimento de independéncia das colénias, no entanto, assume caracteristicas muito singulares no Brasil onde a transi¢éo se faz praticamente sem luta e mantendo a unidade territorial. Essa diferenciagao tem raizes remotas e demonstra uma conjugacao de elementos que no se reduz meramente as injungdes externas. Na verdade, aliam-se interesses intemnos ¢ externas, pois as presses extemas por liberdade de comércio coincidem com pressdes intemas no sentido de climinar a intermediago portuguesa nas trocas. Para a compreensio da evolucdo histérica brasileira, Portanto, ha que se considerar os movimentos estruturais internos, juntamente com aspectos da conjuntura intemacional, j4 que a telagdo entre estes dois planos definira a organiza colonial Portuguesa‘, * Uma breve perspectiva historica permite perceber @ peculiaridade da organizagdo colonial portuguesa. A colonizagio do Brasil inicia com a ‘mplantago do sistema de Capitanias Hereditérias, situagdo em que 0s donatérios ao mesmo tempo em que sto senhores de escravos, so vassalos do rei de Portugal. A doagdo de sesmarias foi o sistema escolhido para 0 povoamento da colénia e torou-se a base do regime de propriedade (0 latifimdio escravista). O regime das donatarias € fundamental para a tipificagdo da estrutura colonial brasileira, tida por alguns como feudal (Nelson W. Sodré, Alberto Passos Guimaries) ¢ por outros como capitalista (R. Simonsen, Caio Prado Hinior). Houve periodo também em que todo 0 Brasil foi governado por Vice-reis, ¢ isso foi possivel apesar da precariedade da administragio portuguesa Finalmente, a vinda da Corte portuguesa para 0 Brasil, sob protecdo inglesa, proporciona a montagem de um aparelhamento administrative que prepara para a Independéncia. No caso da América espanhola, a ‘guerra da independéncia ratifica as divisdes internas do periodo colonial 56 Diante disso, coloca-se em diivida a capacidade explicativa de certas teses consideradas clissicas no pensamento brasileiro que menosprezam a complexidade endégena, enfatizando a estrita dependéncia da colénia em relagao a metropole e/ou suas ligagdes com o mercado intemacional. Segundo estas teses presentes na historiografia brasileira’, 0s indicios de autonomia sio minimizados, razdo pela qual o Brasil-Colénia é considerado um enclave dependente dos interesses da metropole portuguesa, sem vida prépria nem mercado intemo*. ¢ cria outras mais. Para Joo Cabral de Mello Neto, em entrevista 20 jornal “Folha de Sio Paulo”, “a Espanha & um pais centrifugo”, enquanto “Portugal é um pais centripeto. Portugal s6 existe na medida ‘em que ele tiver consciéncia dele proprio, porque sendo ¢ engolido. E ‘um pedacinho da peninsula Ibérica. E nés herdamos dos portugueses esse espirito centripeto. Por isso ¢ que a América portuguesa ficou unida. Nao vejo nenhu futuro para o separatismo”, no Brasil Dente as correntes tebricas para a andlise da formacio social brasileira, desiaca-se a circulacionista (oposta a etapista ligada ao PC até 1964, ‘com énfase na categoria modo de producdo), liderada por Caio Prado ¢ dominante a partir de 1966. Além da parcialidade de uma visio dominada pelos fatores extemos, verifica-se uma supervalorizagdo do ‘Papel da circulagdo, das relagdes mercantis, em detrimento da producdo. A origem desta interpretagdo esta em R. Simonsen, mas sua difusdo di- se com Caio Prado, Carlos Nelson Coutinho no artigo “Uma via ‘nilo- cléssica’ para o capitalismo” (Histéria e Ideal - Ensaios sobre Caio Prado Jénior. So Paulo: Brasiliense / Ed. da UNESP, 1979), aponta para a auséncia do conceito de Modo de Producdo na obra pradiana, 0 ue acaba por fazé-lo confundir o predominio das relagdes mercantis com a existéncia de um sistema capitalista (ainda que incompleto). Os ppontos nodais no debate sobre a formado social brasileira consttui um dos capitulos da dissertacao de mestrado, defendida na UFSC por Maria Graciana Espelet de Deus Vieira sob o titulo “Formago Social Brasileira e Geografia:reflextes sobre um debate interrompido” * Jodo Luis Ribeiro Fragoso, da UFF, no recente trabalho Homens de Grossa Aventura: Acumulagio ¢ Hierarquia na Praga Mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830), publicado pela Editora Arquivo Nacional ‘questiona dois grandes mestres da historiografia brasileira: © marxista Caio Prado Jinior © 0 cepalino Celso Furtado. Apresentando um conjunto de dados inéditos, mostra que pot tris dos interesses parasitarios da metrépole, havia uma economia vigorosa em que era 7 Diferentemente das visdes teoricas da esquerda que enfatizam 0 atraso, Igndcio Rangel prope uma interpretagéo da formagao social brasileira que leva em conta a dindmica intema’. ‘Trabalhando com a combinagao de modos de produgao dominantes que compéem a dualidade basica da formagao brasileira (pélo extemo pélo intemo, cada qual com duas faces), Rangel demonstra que a economia brasileira reage positivamente no periodo depressive dos ciclos de Kondratieff. Portanto, “as dualidades assinaladas na formagéo social brasileira estavam fortemente relacionadas aos ciclos longos emanados do centro do sistema capitalista™, Vale ainda lembrar que, organizada como uma economia periférica, a economia brasileira, no que diz respeito as relagdes extemas coloca-se sempre numa varidvel superior ao de suas relagSes intemas, pois ¢ obrigada a acompanhar 2 economia dominante do mundo que integra. Por outro lado, no que diz respeito as relagdes intemas, coloca-se num estigio inferior. © ponto de partida de Rangel é a viséo da III" Intemacional Comunista que atribui aos paises coloniais duas faces: uma interna, dominada pelo feudalismo e outra externa, cdominada pelo capitalismo, raziio pela qual essas economias nao se explicam se no forem analisadas dentro do contexto mundial € também como possuidoras de especificidades intemas. O principio possivel investir enriquecer. Servindo-se de estatisticas © ‘comparagdes, comprova que ja existia no Brasil de dois séculos atrés, ‘um mercado liderado por grandes comerciantes, traficantes de escravos proprietdrios de terras, capaz de garantir a acumulagao de riquezas © © Progresso, 7A idéia rangetiana de dualidade deriva da ID" Intemacional (919, fundada por Lénin: os paises coloniais possuem duas faces: a intema, explorada pelo feudalismo e a externa, pelo imperialismo). Para Rangel, porém, o imperialismo ¢ as relagies feudais de producto podem ser estimuladoras de crescimento. Note-se ainda que 0 trabalho de Jodo LLufs Fragoso, jd referido, prova que a economia brasileira na fase “b” do primeiro ‘ciclo longo (1815-1848) no esti em recessfo, 0 que significa dizer que, contrariando as explicagdes tradicionais, no hé cequivaléncia as tendéncias intemacionais. * MAMIGONIAN, Ammen. “Introdugio a0 pensamento de Igndcio Ranget”. In: GEOSUL n3 Floriandpolis: Editora da UFSC, 1° semestre de 1987, p.63-71, 58 da dualidade, aplicado com rigor na interpretagio rangeliana, cconduz & percepgao de que o aspecto dual é uma peculliaridade nao somente de nossa economia., mas da sociedade brasileira como um todo. Na expressio de Rangel, “todos os nossos institutos, todas as nossas categorias - 0 latiffindio, a industria., 0 comércio, o capital, © trabalho e nossa prépria economia nacional - sio mistas, tém dupla natureza, e se nos afiguram coisas diversas, se vistos do interior ou do exterior, respectivamente”. Assim, pois, também a composicao de classes no interior do Estado brasileiro é dual. Ha que se acrescentar ainda que segundo Rangel, as dualidades brasileiras se abrem nas fases descendentes dos ciclos longos - periodos depressivos do comércio mundial -, quando surge a necessidade de estabelecer novos relacionamentos com o centro do sistema, As novas dualidades emergentes correspondem a reajustamentos. estruturais - alteragées das bases econémico- politicas da sociedade - que provocam mudangas nas relagdes de produgiio e nas classes dominantes. Na formagao social brasileira, caracterizada por rupturas e continuidades (idéia que Rangel vai buscar em Caio Prado: Evolusio Politica do Brasil ¢ outros estudos), algumas mudangas, adquirem o carater de “meias- revolugées”: ora se alterao lado intemo, ora se altera 0 lado extemo. Trata-se agora de voltar ao periodo histérico em questo: a transigo Colénia-Império, correspondendo ao inicio da primeira dualidade (1822/1888). Convém lembrar que o citado periodo insere-se no primeiro ciclo de Kondratieff (1790-1848) ¢, mais precisamente ainda, no inicio da fase “b” do primeiro ciclo longo, ‘casio em que a economia intemacional vive um periodo recessivo. Porém, contrariando a tese da estrita dependéncia do mercado extemo, verifica-se que, além do crescimento dos produtos coloniais, como farinha e charque, o trafico de escravos para o porto do Rio de Janeiro cresce 4% ao ano. Isto significa dizer que a economia colonial é um pouco mais complexa do que uma “plantation” escravista atrelada as oscilagdes da conjuntura ‘intemacional. ° RANGEL, Igndcio. A Dualidade Bésica da Economia Brasileira. Rio de Janeiro: MEC/ISEB, 1957. (Preficio) 59 Do ponto de vista da composi¢ao de classes - ja que 0 Estado brasileiro reflete a dualidade basica da economia e da sociedade - a dualidade associa senhores de escravos (hegeménicos) aos comerciantes import/export em posigéo subalterna (0s comerciantes portugueses sio gradativamente substituidos pelos locais). As presses extemas, por exigéncias do capitalismo, atuam em dois sentidos: 1°) abertura das areas ccoloniais s trocas intemacionais; 2°) eliminago do trabalho escravo. © impulso extemo encontra solidariedade intema apenas no que diz respeito a primeira exigéncia, pois interessava a classe dominante libertar-se do exclusivismo comercial, ja que 0 pélo bloqueado era o extemo (0 capital comercial passa a ser brasileiro), Quanto a segunda, nota-se que as pressées externas (vale dizer inglesas) pela extinglo do escravismo no terfo ressonancia intemamente por que “a escravido ainda era, no Brasil, um Instituto sélido e capaz de progresso, desde que nossas relagées extemas de produgo mudassem, ajustando-se as condigdes que se criavam no mundo exterior”. A ruptura se faz no pélo externo, ‘com um minimo de mudangas internamente. O apoio da classe doinante 4 Independéncia é trocado pela exigéncia de alteragdes minimas nas relagées intemas e a adesio se faz ainda maior com a manutengo da autoridade do Principe Regente, 0 que assegura a obediéncia de todas as Provincias, evitando a_fragmentago territorial. A libertago do jugo lusitano se faz com uma acomodagio maxima com o passado, conservando a estrutura colonial e a autoridade existentes e assegurando a unidade do terrtério.

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