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Ciências Sociais e Investigação Criminal:

metodologia da investigação criminal na lógica


das ciências sociais

Eliomar da Silva Pereira


Coordenação Escola Superior de Polícia
Academia Nacional de Polícia - Brasil

Dud

Resumo

A investigação criminal se desenvolve lógica e pragmaticamente à forma de uma investi-


gação científica. Além da possibilidade de aplicação de conhecimento científico, oriundo
das ciências empíricas na investigação dos crimes, ela mesma se pode desenvolver segundo
o método científico, seja em cada investigação criminal particular, mediante a aplicação de
técnicas de pesquisa que são próprias à ciência (sobretudo técnicas qualitativas), seja pela
generalização de certas conclusões encontradas no conjunto de investigações de casos co-
muns, para aplicação posterior em outras investigações particulares (tendente a uma aborda-
gem quantitativa). É certo que, ao investigar-se o crime como fato do passado, a investigação
se aproxima mais da pesquisa historiográfica , mas, ao passo que a sociedade se tem tornado
mais complexa e dinâmica, a investigação se tem tornado igualmente mais uma pesquisa de
fatos presentes, ainda em curso (como são os casos de criminalidade organizada, p. ex.), de-
vendo desenvolver-se para além de cada investigação presente, com vistas a desenvolver con-
hecimento operativo para investigações futuras. Nesse contexto é que o modelo das ciências
sociais em geral, e a sociologia em específico, parece ser o caminho mais propício a uma
metodologia da investigação criminal. É nesse sentido que se vai expor o problema metodo-
lógico das ciências sociais, suas limitações teóricas e suas técnicas de pesquisa, como forma
de demonstrar a proximidade existente com as práticas de investigação criminal e a possibi-
lidade de uma metodologia científica para ela, como uma forma particular de ciência social.
Em síntese, trata-se de parcela de estudo mais amplo que pretende demonstrar as relações e
proximidades entre investigação criminal e pesquisa científica.

PALAVRAS-CHAVE: método científico; sociologia de ação; investigação-ação; técnicas de


pesquisa.

Revista Brasileira de Ciências Policiais 35


Brasília, v. 2, n. 2, p. 35-46, jul/dez 2011. ISSN 2178-0013
Ciências Sociais e Investigação Criminal

Introdução: a lógica das ciências sociais

As ciências sociais, especialmente a sociologia, nascem com a pro-


posta de descobrirem “leis sociais”1, a partir da observação de fatos sociais
para estabelecer-lhes as ligações causais2 e chegar a generalizações teóricas,
tal como as ciências naturais. Ainda hoje há quem sustente ser essa a tarefa
das ciências sociais, embora reconheça uma limitação em virtude do estágio
científico, ou do objeto de pesquisa3.

Noutro rumo, tem-se sustentado, a partir das ideias de W. Dilthey4,


que se devem distinguir as ciências naturais (de explicação causal) das ci-
ências culturais (de interpretação ou compreensão). Mais detalhadamente,
partindo dessa distinção, fala-se que o conhecimento humano procede ou
por generalização das várias coisas pelos seus aspectos comuns, ou por indi-
vidualização, pela consideração de várias coisas por seus aspectos particulares
(BARATA, 1998, p. 23 e ss).

Essa dissensão (não entre haver duas espécies de ciências, mas sobre
a ciência social ter ou não a mesma estrutura da ciência natural) instaura nas
ciências sociais dois caminhos, o naturalismo e o historicismo5, tão bem ex-
plicado por Karl Popper (1957) que demonstra em que sentido cada um está
correto e incorreto, segundo sua perspectiva falsificacionista da ciência. Na
raiz dessa querela, segundo se tem observado (POPPER, 1976, p. 17), há
uma equivocada visão das ciências naturais, fruto de um ingênuo indutivis-
mo, contra o qual Karl Popper apresentou o falsificacionismo e o método
hipotético-dedutivo como a lógica das pesquisas científicas.

Segundo Popper (1976, p. 16), em A lógica das ciências sociais, com


base nessa premissa, “o método das ciências sociais, como aquele das ciências
naturais, consiste em experimentar possíveis soluções para certos problemas;
os problemas com os quais iniciam-se nossas investigações e aqueles que sur-
gem durante a investigação”. Quando Popper se refere a método, refere-se ao
contexto lógico de justificação do conhecimento científico, em separado do

1 Nesse sentido, encontram-se as leis da evolução social de Comte (cf. Bottomore, 1971, p. 32).
2 Nesse sentido, é a opinião de Durkehin sobre a tarefa do sociológico (cf. Bottomore, 1971, p. 33, nota 8)
3 Cf. nesse sentido, Bottomore, 1971, p. 33.
4 Cf. Barata, 1998, p. 15.
5 Ressalte-se que o que se relata aqui é a síntese rudimentar de um problema epistemológico muito mais
complexo.

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contexto de descoberta das técnicas de pesquisa. Popper (1976, p. 32; 1957,


p. 137) refere-se assim a uma “lógica situacional”, como a lógica apropriada
à pesquisa social, em que os dados da realidade são considerados como ele-
mentos da situação, permitindo compreender ações dos sujeitos em sentido
objetivo, como objetos situacionais. A essa lógica acresce a ideia de verdade
aproximada que se deve perseguir pela ciência. Em complemento, Popper
(1957, p. 108) se refere à necessária distinção que se deve fazer entre “leis” e
“tendências”, pois “as leis e as tendências são coisas radicalmente diferentes”. A
questão é que, segundo uma lógica situacional, a tendência de uma situação
histórica particular não nos leva a uma lei universal inexorável6. Apesar dis-
so, segundo Popper (1976, p. 32), “podem possuir um conteúdo verdadeiro
considerável e podem, no sentido estritamente lógico, ser boas aproximações
da verdade melhores do que outras explicações testáveis”.

Apesar desse problema metodológico, isso não tem impedido a sociolo-


gia de recorrer a métodos variados, alternativos, e avançar em sua afirmação cien-
tífica. Dessa forma, segundo T. Bottomore (1971, p. 53 e ss), tem-se visto prolife-
rar pesquisas com recurso a variadas abordagens, como a histórica, comparativa,
descritiva, estruturalista e funcionalista. Ainda no âmbito do problema meto-
dológico e sua diversidade, Bottomore (ibidem, p. 66) se refere a uma sociologia
formal, em que se considera a própria sociologia como um novo método, “uma
nova forma de olhar os fatos” que já teriam sido tratados por outras ciências.

Em conclusão ao problema do método, T. Bottomore (ibidem, p. 70


e ss) considera que uma disciplina é científica por seus métodos e intenções.
Quanto ao método, são características importante ocupar-se de fatos (não de
juízos) e trazer provas empíricas a respeito desses fatos afirmados, de uma for-
ma objetiva (no sentido de que qualquer um pode avaliar a afirmação segun-
do a prova). Quanto à intenção, a sociologia (como qualquer ciência social),
deve visar a uma descrição exata, por análise de propriedades e relações entre
fenômenos sociais, e pretender uma explicação por formulação de declara-
ções gerais. É nesse ponto que a sociologia se apresenta com certas particula-
ridades, pois ela não apresenta uma teoria geral aceita de forma generalizada,
mas apenas de forma limitada, ou de tipos diversos dos que se observam e
perseguem nas ciências naturais.

6 O que está por trás de uma explicação nesses termos não é uma questão de causalidade, mas de
condicionalidade, segundo a qual, em determinadas condições X, há uma tendência para Y, o que,
embora se torne algo limitado, tem a vantagem de reconhecer os limites do conhecimento sociológico
e avançar a partir dele.

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Entre os diversos tipos de generalizações, na sociologia, encontram-


se certas “correlações empíricas entre fenômenos sociais concretos”; “genera-
lizações formulando as condições sob as quais as instituições ou outras for-
mações sociais surgem”, ou “afirmando que as modificações em determinadas
instituições estão regularmente associadas às modificações em outras insti-
tuições”, entre outras várias (cf. BOTTOMORE, 1987, p. 37 e ss). Além de
generalização, encontram-se conceptualizações (como é o caso de conceitos
como estrutura social, ideologia, burocracia etc.) e esquemas de classificações
(como de grupos, ações etc.) muito produtivas.

A tudo isso – problema metodológico e limitações teóricas – acres-


ce-se a questão das técnicas de pesquisa e a discussão em torno dos conflitos
entre abordagem quantitativa e qualitativa, que fazem da sociologia um âm-
bito de saber ainda incerto, conquanto persista na sua afirmação como ciên-
cia, e assim como exemplo apto a fornecer modelos diversos de pesquisa que
interessam a uma metodologia de investigação criminal.

1. Sociologia de ação e investigação-ação

Tendo em consideração o problema metodológico da sociologia, po-


de-se entender porque “existem diferentes maneiras de abordar a realidade,
que são outros tantos modelos de investigação, de tradições de pensamento
ou ainda de problemáticas gerais...” – é essa a advertência que nos fazem Mi-
chel de Coster e Bernadette Bawin-Legros (1996), ao considerar que de uma
forma sucinta podemos observar duas tradições, ou paradigmas, de investiga-
ção científica em sociologia: um determinista, outro da ação ou interação.

O paradigma determinista (em que se encaixariam as tradições fun-


cionalista e estruturalista) pode ser entendido a partir de duas ideias fun-
damentais – de que todo fato social se explica por fenômenos que lhe são
anteriores, e que por ser exterior é o que orienta a ação dos indivíduos. O
paradigma da ação e da interação (em que se encaixariam tradições de abor-
dagem estratégica e individualismo metodológico), por sua vez, nasce como
reação à concepção positiva das ciências sociais como ciências de fatos ob-
jetivos, tendendo a considerar ação dos indivíduos como constitutivos dos
fatos sociais (COSTER; BAWIN-LEGROS, 1996, p. 82 e 95)7. É precisa-
7 O autor considera a possiblidade de conciliação entre os paradigmas, pois “nenhum paradigma tem
o monopólio da explicação”. Em síntese, segundo ele, “se, com efeito, por um lado, parece que a
sociedade modela o homem, por outro, é o homem que modela a sociedade, de modo que cada forma

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mente deste último contexto que parte uma sociologia de ação, que vamos
expor sucintamente como um modelo propício a fazer despertar as relações
que existem entre investigação científica sociológica e investigação criminal
científica, sobretudo a partir do conceito de investigação-ação.

A sociologia de ação, ou de intervenção, tem sido oposta a uma sociolo-


gia acadêmica, apesar de coexistirem as duas perspectivas em pesquisas de terreno
de variados campos profissionais. É nessa sociologia de campo que, segundo Isa-
bel Guerra (2002, p. 10), deram-se os primeiros passos de uma investigação-ação,
em trabalhos etnológicos especialmente, mas a sociedade industrial e urbaniza-
da também sentiu a necessidade de tal perspectiva de investigação sociológica, a
exemplo dos trabalhos da Escola de Chicago8 . Com isso, passa-se a considerar a
cidade como um laboratório natural das ciências sociais que tem por objetivo a
solução de problemas muito pontuais (GUERRA, 2002, p. 12).

Por trás da ideia de investigação-ação há toda uma discussão epistemo-


lógica que se desenvolve a respeito das relações entre o sistema social e os auto-
res, dando ensejo a paradigmas de pesquisa discordantes e variadas perspecti-
vas metodológicas, como se referiu acima sucintamente 9. Dessas perspectivas
postas em confronto, surge uma interrogação acerca da relação entre conheci-
mento e ação. É nesse contexto que se colocam certas questões às metodologias
tradicionais, tais como a necessidade de “compreensão do sujeito como ator
capaz de racionalidade e de escolha” e de “entendimento das relações sociais
como relações de poder” (GUERRA, 2002, p. 39). A tais questões se apresenta
a investigação-ação, epistemologicamente, no sentido de uma redefinição do
conhecimento científico através de uma concepção pragmática.

Nesse sentido, entende-se que “as metodologias de investigação-ação


apresentem como elemento fulcral da estratégia de conhecimento a relação

de abordagem insiste numa das duas faces de uma mesma realidade” (1996, p. 109).
8 Pontue-se que alguns trabalhos da Escola de Chicago são especialmente conhecidos no campo da
criminologia sociológica, ou sociologia do crime. Outro marco, e por muitos considerado o fundador
da pesquisa-ação, são os trabalhos de Kurt Lewin, baseados em dinâmicas de grupo, destinados não a
produzir conhecimento para depois ser aplicado por decisões políticas, mas a atuarem diretamente no
problema – daí chamar-se muito constantemente de investigação operacional. Isabel Guerra (2002,
p. 55), contudo, considera que é nos trabalhos de Dewey, no campo da educação, que se deve situar a
origem da investigação-ação.
9 Entre essas perspectivas, que não vamos desenvolver aqui, mas são relevantes para a compreensão do
tema, encontram-se o individualismo metodológico de Boudon, a análise estratégica de Grozier e a
teoria da ação de Touraine. Para uma visão geral dessas perspectivas, cf. Guerra, 2002, 21 e ss; Coster,
1996, p. 81 e ss.

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entre o cientista e o seu objeto de estudo (...), tendo em vista a mudança de


uma situação dada para outra colectivamente desejada” (GUERRA, 2002, p.
43)10. Trata-se, assim, de uma postura sociológica que pretende reequacionar
a relação entre ação e conhecimento, aprofundando as relações entre teoria e
prática, em recusa a uma concepção contemplativa da ciência11. Nessa pers-
pectiva de investigação, aceita-se que a realidade é anterior à teoria, a teoria
é um meio, não um fim, logo “a teoria não é a ciência, é apenas um quadro
hipotético de representação da realidade que se verá verificado no confronto
com a empiria” (GUERRA, 2002, p. 45).

Nesse ponto, é comum oporem-se questões acerca da ética do conhe-


cimento, pois fica evidente que a epistemologia da ciência é atravessada por
opções ideológicas. Mas a relação inversa também é igualmente controversa,
pois acreditar que a partir da ciência podemos identificar valores (no mundo
de ideias a priori), seria incorrer no problema que Hume já advertia – não
podemos deriva do ser o dever-ser. A essa questão, Henri Atlan (apud GUER-
RA, 2002, p. 48) parece nos dar uma boa proposta: “Não é a partir da ciên-
cia que se pode reformar uma ideia de homem e de sociedade, mas será sem
dúvida a partir de uma ideia de homem e de sociedade que se pode utilizar a
ciência ao seu serviço”12.

Assim, com a investigação-ação instaura-se uma metodologia diver-


sa da ciência. É uma metodologia que, em comparação com o positivismo
clássico, oriundo de uma visão das ciências naturais, possui características
muito próprias. Em relação ao tipo de generalização, não é universal e inde-
pendente do contexto, mas limitada e dependente. Quanto aos fins episte-
mológicos, não pretende predizer acontecimentos, mas construir planos de
intervenção que permitam atingir objetivos visados. Quanto ao tratamento
de informações colhidas, os casos individuais podem ser fontes suficientes
de conhecimento. Quanto à tomada de posição sobre valores, os métodos

10 Veja-se que nessa concepção se pode identificar a definição de investigação proposta por Dewey, em
sua “Lógica: Teoria da Investigação”.
11 Ou seja, “mais do que correntes teóricas, trata-se, sobretudo, de posturas de investigação – apelidadas
de investigação-acção – que procuram abranger um conjunto de experiências práticas desenvolvidas
por vários autores, e relativamente distintas entre si, mas enquadradas no mesmo propósito de
conhecer a realidade para a transformar, assumindo assim uma concepção pragmática da realidade
social” (GUERRA, 2002, p. 43). Perceba-se que, sob essa perspectiva, as práticas de investigação
criminal se encaixam facilmente nessa concepção de pesquisa científica.
12 Essa é, aliás, a via mais adequada quando nos colocamos em uma investigação criminal, em que se
devem dirigir as ações segundo valores fundamentais (os direitos e garantias do homem), devendo
qualquer ideia de ciência ser dirigida a partir deles como premissas do conhecimento e da ação.

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não são neutros, pois se desenvolvem em redes sociais e atualizam o poten-


cial humano (GUERRA, 2002, p. 54). Com esses pressupostos, entre outros
tantos que caracterizam a investigação-ação, essa metodologia encontra uma
pluralidade de campos de aplicação13, entre os quais entendemos por situar a
investigação criminal.

Quanto às técnicas dessa metodologia, utilizam-se todas as dispo-


níveis nas ciências sociais, privilegiadas as qualitativas, sob uma perspectiva
indutiva, que tentam teorizar a partir de informações empíricas, colhidas no
campo, no terreno de ação, a partir de problemas que se colocam, na ten-
tativa de resolvê-los, e para os quais a teoria se pretende voltar. Sobretudo,
considera-se que há uma relação inevitável entre epistemologia e axiologia.
Daí porque se admite que “a investigação-acção é uma metodologia ambicio-
sa que pretende conter todos os ingredientes da investigação e, mais ainda, os
ingredientes da acção” (GUERRA, 2002, p. 75). Pois se trata de conhecimen-
to produzido em confronto direto com o real, tentando transformá-lo, com
desconstrução da ideia do papel do “especialista social”. Assim, “a sociologia
da intervenção produz-se muitas vezes à margem do sistema, junto de grupos
e organizações em crise, sendo uma sociologia periférica (...) e não gozando
de um grande reconhecimento pelas academias, pelo que também sofre de
algumas debilidades metodológicas e técnicas” (GUERRA, 2002, p. 75)14.

2. A pesquisa qualitativa na investigação: observação e


entrevista

No campo das ciências sociais, manuais de investigação, ao trata-


rem dos métodos de recolhas de informações, referem-se à observação e à
entrevista como duas das principais técnicas qualitativas (QUIVY e CAM-
PENHOUDT, 1995, p. 186 e ss)15. Essas técnicas se encontram, igualmente,
entre as mais comuns na investigação criminal. Certo é, contudo, que há par-

13 Para uma visão desse diversos campos, cf. Guerra, 2002, p. 60.
14 No Brasil, essa é exatamente a situação das organizações policiais responsáveis pela investigação criminal,
na relação com a sociologia acadêmica que, a partir de uma visão sempre externa de desconstrução da
segurança publica, é incapaz de adentrar nos grandes problemas reais das instituições e construir novos
modelos de ação. E ao serem confrontadas tais sociologias com a busca das instituições policiais pelo
desenvolvimento de uma ciência própria, consideram ser impossível falar de uma ciência policial.
15 Ao lado dessas, encontra-se ainda o inquérito por questionário (QUIVY e CAPENHOUDT, 1995)
que somente em situações muito particulares poderia ser utilizado na área da investigação criminal, mas
tendo em vista outra espécie de questão não diretamente relacionada a um caso concreto investigado.
Por isso, deixamo-lo de lado inicialmente, mas não descartamos em absoluto sua utilização.

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ticularidades nesse campo que fazem da observação e da entrevista uma técnica


muito diferente do que se compreende nas ciências sociais em geral. Mas alguns
pontos são tão comuns, e certos problemas são partilhados por ambos os campos,
que é inevitável, e até é desejável, que a investigação criminal se aproveite de estu-
dos já desenvolvidos no campo das ciências sociais a respeito dessas técnicas16.

Entre as principais particularidades que se devem observar no


campo da investigação criminal, os limites jurídicos condicionantes dos
direitos fundamentais talvez seja o mais importante. Com efeito, toda
técnica de recolha de dados em sentido científico, que se possa transpor-
tar ao âmbito da investigação criminal, encontra nessa um condiciona-
mento ético muito particular, que limita mesmo a persecução de uma
verdade fática, em favor da valorização do direito dos investigados. Essa é
uma barreira intransponível da investigação como pesquisa, mas é dentro
desses limites que a potencialização das técnicas deve ser desenvolvida.
Não obstante, as modalidades de observação e entrevista encontram na
investigação uma variedade de que talvez nenhuma outra investigação
científica se possa beneficiar, como são as técnicas de interceptação tele-
fônica, para ficarmos com um exemplo corriqueiro.

A observação, como técnica de recolha de informação nas ciências


sociais, possui vários sentidos, mas “no sentido mais restrito e melhor deli-
mitado, a observação consiste em estar presente e envolvido numa situação
social para registrar e interpretar, procurando não modificá-la” (PERETZ,
1998, p. 13). Trata-se de definição que aproveita à investigação criminal. É
uma técnica que tem como objetivo encontrar, na sociologia, um significado
para os dados recolhidos, a fim de classificá-los. Na investigação criminal,
o sentido tem um parâmetro muito delimitado na teoria dos tipos penais.
Dentre as espécies de observação, pode-se ainda encontrar um paralelo entre
as formas direta, indireta e participante da sociologia com as diversas formas
de observação que se encontram na investigação criminal, a exemplo da vi-
gilância, da gravação de imagens e do agente infiltrado17. Esse em específico
16 Um estudo relevante, exclusivamente dedicado à observação, encontra-se em Henri Peretz, Método em
Sociologia: a observação, em que o autor estrutura a técnica a partir de três atividades indissociáveis – a
forma de interação social, a atividade de observação e o registro dos dados observados. Essa etapa,
em específico, teria grande utilidade às práticas de investigação criminal, na qual os agentes não
adquiriram ainda o costume científico de relato do observado. Isso, em parte, decorre de uma visão
muito difundida que limita o científico ao experimento.
17 Algumas técnicas, contudo, parecem não se enquadrar muito facilmente na observação nem na
entrevista. É o caso da interceptação telefônica que, embora se refira a dados verbais (não visuais, como em
geral são as formas de observação), tem a característica própria da observação, por não interferir na situação.

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encontra uma aproximação muito forte com a observação participante, com


vantagens metodológicas igualmente relevantes, pois exclui em absoluto o
conhecimento da pesquisa pelo pesquisado.

Quanto à entrevista, na investigação criminal essa técnica encontra,


para além de todos os problemas comuns às ciências sociais, todo um conjun-
to de problemas que decorrem da especial situação pesquisada – a existência
de um crime, a respeito do qual se procura seu autor. Nesse sentido, é aceitá-
vel que a técnica exija uma atenção redobrada na investigação criminal, mas
as questões suscitadas em sociologia podem ser um bom ponto de partida
para estudos mais específicos18. Apesar da relevância dessa técnica na inves-
tigação criminal, assim como nas ciências sociais, os pesquisadores tendem
a dedicar pouca atenção a ela (FODDY, 1993). Mas sua sistematização em
torno de um modelo de entrevista, como técnica de pesquisa fundada em
certos pressupostos básicos da psicologia, com uso de tecnologia de colheita
(gravadores de voz) e redação de relatório, pode contribuir para a qualidade
científica das investigações criminais.

3. Análise de conteúdo: em direção ao quantitativo

Além da observação e entrevista, como técnicas de recolha de dados,


na investigação criminal, assim como nas pesquisas sociais, é comum se reco-
lherem documentos vários em complemento às informações. E ao final (tal-
vez não tanto na sociologia, mas na investigação criminal em sua totalidade),
sejam os dados verbais (entrevistas), sejam os visuais (observações), tudo aca-
ba por ser reduzido a um conjunto de documentos, que se juntam aos demais
documentos existentes anteriormente à investigação19. No conjunto, todas as
informações exigem uma outra etapa, comum tanto às pesquisas científicas,
quanto às investigações criminais, que é a de análise da informação (QUIVY
e CAMPENHOUDT, 1995, 211 e ss). É nesse contexto que a análise de
conteúdo se pode apresentar como uma técnica relevante à investigação.

18 Um bom estudo acerca da entrevista se encontra na obra Como Perguntar: Teoria e Prática da Construção
de Perguntas em Entrevistas e Questionários, de William Foddy (1993), em que o autor declaradamente
assume o interacionismo simbólico como quadro teórico de fundo para o desenvolvimento de seu
estudo (p. 26). Segundo ele, “a mais básica implicação da teoria do para as situações de investigação
traduz-se na hipótese de que o significado atribuído pelos sujeitos aos actos sociais é produzido no
interior da própria relação em que esses actos ocorrem” (p. 23).
19 No direito processual brasileiro, aliás, o conceito jurídico de documento abrange tudo quanto
seja registrado em um meio físico em condições de ser consultado, conferido, confrontado ou
contraditado.

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A análise de conteúdo parece assumir, contudo, uma natureza dú-


plice. Tanto pode ser realizada em um sentido quantitativo, como em um
sentido qualitativo (QUIVY e CAMPENHOUDT, 1995, p. 227). Nesse
ponto, para cada investigação criminal em particular, interessa-nos a análise
qualitativa20. A análise de conteúdo incide sobre mensagens variadas, é um
procedimento de análise de material escrito, independente de sua origem, que
pode ser desde dados de entrevistas, até os produzidos por terceiros (FLICK,
2002, p. 193). As questões, contudo, que se colocam no campo das ciências
sociais não são as que exatamente interessam à investigação criminal de casos
concretos, mas pode interessar a identificação de certos padrões relevantes a
orientação de investigações futuras. O importante é ter o domínio técnico
das várias formas de análise sugerida pelos teóricos (sintetizadora, explicati-
va, estruturante)21 e identificar os problemas da investigação criminal para os
quais essas técnicas dispõe de uma possível resposta22.

Conclusão: padrões e medidas possíveis

As abordagens quantitativas não estão em absoluto descartadas


de uma metodologia da investigação criminal. A questão é que o méto-
do quantitativo serve a problemas outros que o qualitativo tende a res-
ponder. Mas se partirmos dos dados estatísticos que são produzidos pelas
diversas investigações – e mais que isso, se passarmos a produzir dados
estatísticos dirigidos a certas questões não levadas em consideração em
geral – podemos chegar a certas generalizações baseadas em medidas,
como qualquer outra ciência. E se tais dados forem trabalhados a partir
de programas e tecnologias de informação, são variadas as possibilidades
de extrair padrões com medidas muito bem delimitadas. O problema,
sob essa perspectiva, é estabelecer o que se pretende com um tal procedi-
mento, em que sentido seus resultados podem interessar e aproveitar às
investigações criminais em particular e de que forma tudo isso pode ser
institucionalizado pelas organizações investidas na competência de in-
vestigar e instrumentalizado de forma que essa instância seja compatível

20 A análise quantitativa não pode ser de todo excluída do nosso interesse científico, conjuntamente com
certas análises estatísticas, igualmente relevantes para a investigação criminal, mas no âmbito de outra
ordem de questões.
21 A classificação é de Uwe Flick, Métodos Qualitativos na Investigação Científica, onde o autor apresenta
outros variados métodos de codificação e categorização.
22 Uma possibilidade que se pode vislumbrar é a análise do conteúdo de diversos inquéritos investigativos,
visando a extrair padrões de modus operandi de certos crimes em conexão com modos de prová-los.

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com os problemas mais corriqueiros e imediatos das práticas de investi-


gação. Mas não temos dúvida de que é possível trabalhar com medidas e
generalizações fundamentadas em estatísticas.

Enquanto um problema qualitativo pode pretender identificar pa-


drões de investigação, a partir de padrões de modus operandi relativos a certos
e determinados crimes, visando a orientar a colheita de provas por quem in-
vestiga na prática, outra ordem de problemas se pode colocar a quem compete
não investigar, mas organizar os diversos setores (delegacias, p. ex.), em função
do tipo e quantidade de crimes que se observam em dado território e em certo
período. Ora, em tais casos, torna-se adequado falar em uma análise estatística
de dados especificamente referidos a medidas, não a padrões de crime.

Podemos falar, assim, de inquérito de inquéritos – inquérito no sentido


de pesquisa social, a partir de um conjunto de dados e resultados obtidos em
inquéritos investigativos particulares, reunidos segundo certas classificações es-
tipuladas. Seja para estabelecer padrões, seja para estabelecer medidas23.

Em síntese, assim como a sociologia surge segundo uma visão de ci-


ência que se foi modificando e multiplicando em diversidades metodológicas,
sem ainda hoje chegar a conclusões únicas a respeito de seus problemas, não
se deve esperar que uma possível ciência de investigação criminal se ponha de
uma vez, com todas suas questões já definidas. Tal pretensão seria exatamente
o inverso do pressuposto de que partimos, no sentido de que existem con-
cepções demais de ciência para que queiramos construir alguma fundada em
uma ideia unitária. Como nos adverte os metodólogos, “o desenvolvimento
da ciência deve caminhar a par com o do método sendo que as fragilidades da
autonomia de cada área científica podem entroncar a montante nas das suas
técnicas” (ESPÍRITO SANTO, 2010, p. 8).
Eliomar da Silva Pereira
Mestrando em Ciências Policiais (Criminologia e Investiga-
ção Criminal), no Instituto Superior de Ciências Policiais e
Segurança Interna (ISCPSI, Lisboa, Portugal); Especialista em
Ciências Criminais; Professor e Pesquisador na Academia Na-
cional de Polícia; Delegado de Polícia Federal (Brasília-DF).

E-mail: Eliomar.esp@dpf.gov.br

23 Quanto aos inquéritos quantitativos, Boudon (1971, p. 41) os define como “aqueles que permitem
recolher, num conjunto de elementos, informações comparáveis entre esses elementos. Esta comparação
de informações possibilita, em seguida, a inumeração e, mais geralmente, a análise quantitativa dos
dados. A condição necessária para a aplicação dos métodos quantitativos é que a observação incida
sobre um conjunto de elementos, de certa maneira comparáveis.”

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Brasília, v. 2, n. 2, p. 35-46, jul/dez 2011.
Ciências Sociais e Investigação Criminal

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LVl

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