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1.ª estrofe - O sujeito poético diz que na casa defronte de si e dos seus sonhos existe felicidade.
A casa não está dentro dos seus sonhos (na sua imaginação), mas «defronte» de si e «defronte»
dos seus sonhos.
Tal significa que aquela casa está defronte do sujeito poético no momento em que ele
sonha, em que ele divaga, em que deixa o pensamento correr. E que nessa casa existe felicidade.
A referência a essa felicidade é expressa por um verso exclamativo («que felicidade há sempre!»),
sugerindo a admiração do poeta, eventualmente a estranheza, pelo facto de haver felicidade, ou
pela dimensão dessa felicidade («que felicidade»), ou pela sua perenidade («há sempre»).
2.ª estrofe - No primeiro verso da estrofe, o sujeito poético especifica quem vive na casa: são
pessoas que o poeta já viu, mas que verdadeiramente não conhece («pessoas que desconheço,
que já vi mas não vi»). É compreensível: são pessoas para as quais o poeta já olhou, mas que,
propriamente, não conhece, não sabe quem são nem o que pensam (viu, mas não viu).
No segundo verso da estrofe, retoma a ideia da felicidade referida na primeira
estrofe: essas pessoas são felizes. E acrescenta que o são porque não são ele. Começa aqui a
expressão da diferença: se as pessoas são felizes porque não são o poeta, tal significa, por um
lado, que aquelas pessoas têm uma perspectiva da vida diferente da do poeta (e é porque a têm
que conseguem ser felizes: se fossem como o poeta, não seriam felizes), e, por outro lado, que o
poeta não é feliz.
3.ª, 4.ª e 5.ª estrofes - Estas três estrofes têm uma unidade: caracterizam a felicidade das pessoas que
o poeta observa.
Na 3.ª estrofe são referidas crianças que brincam, sem consciência da passagem do tempo
(«eternamente»), numa alegria de quem é inconsciente, de quem vive «entre vasos de flores», ou
seja, rodeado do que é belo, sem a noção da realidade, do sofrimento.
Na 4.ª estrofe, é referido o cantar que ecoa dentro da casa, também sugestivo da alegria de quem
canta fechado no seu mundo, na simplicidade da felicidade doméstica.
Nestas duas estrofes, repete-se a expressão «sem dúvida» (vv. 7 e 9), um comentário do próprio
sujeito poético, que dá como certas essas características da vida dos outros: não tem dúvidas de que
as crianças usufruem da felicidade e de que as pessoas cantam (isso ele vê, é a sua certeza).
O verso 10 («Sim, devem cantar.») traduz a constatação da lógica daquele tipo de viver: sim, têm de
cantar, é lógico que cantem («dever» significa aqui obrigação: é sinónimo de «ter de»). Essa lógica
é explicada na 5.ª estrofe: para aquelas pessoas tudo se ajusta, tudo está certo (a festa que revelam
exteriormente é a que sentem interiormente). O verbo «dever» do verso 10 tem correspondência, no
verso 12, na expressão «ter que» («Assim tem que ser»).
Então, as pessoas que o sujeito poético observa seguem o que é natural, cumprem a sua função de
pertença ao meio em que se inserem, a cidade. O verso «O homem [ajusta-se] à Natureza, porque a
cidade é Natureza» poderá interpretar-se como a tradução da harmonia do mundo que o poeta
observa: a cidade é, para o homem que nela vive e à qual pertence, a Natureza.
6.ª estrofe – Esta estrofe significa o seguinte: que felicidade o poeta não ser como aquelas pessoas!
Observe-se que o verbo ser não está na 3.ª pessoa do plural, mas no singular. Se o verso fosse «Que
grande felicidade não serem eu!», tal significaria que as pessoas eram felizes por não serem o poeta,
ou que o poeta se regozijava por elas não serem como ele, mas o que é dito é totalmente diferente:
que bom o poeta não ser assim, como essas pessoas!
Campos recusa identificar-se com aqueles embotados ou inconscientes que conseguem ser felizes.
7.ª estrofe - Depois desse verso de afirmação consciente da diferença e da recusa de uma felicidade
apenas apanágio dos inconscientes, o sujeito poético como que pára para se interrogar sobre o que
acabou de pensar e de escrever: «Mas os outros não sentirão assim também?»[3] (v. 15). Este verso
quer dizer o seguinte: Será que os outros não pensam como o sujeito poético? Isto é, será que os
outros também não se sentem diferentes?
Esta interrogação retórica leva o poeta a reflectir sobre o facto de, afinal, ninguém saber o que
se passa no íntimo dos outros, pois o sentimento de cada um é algo pessoal, não podendo ser
vivenciado por mais ninguém (v. 16): existe incomunicabilidade entre os seres no que diz respeito à
revelação dos sentimentos (v. 17 – a metáfora da «casa com a janela fechada»: as pessoas não
revelam o que sentem).
O poeta acrescenta que, quando há indícios de revelação de sentimentos («quando se abre» a janela
– v. 18), ou há um vislumbre da felicidade inerente a quem não tem consciência da vida, a quem não
pensa (a metáfora das crianças que brincam na varanda de grades, entre vasos de flores – vv. 18-20)
ou de uma felicidade aparente («vasos de flores que nunca vi quais eram» – v. 20).
9.ª estrofe - O sujeito poético interroga-se, então, sobre o facto de não estar sentindo nada
(«Nada?»), considerando não ter a certeza disso («Não sei…») e explicando esse reticente «Não
sei…»: é que esse tal «nada», afinal, «dói». O último verso («Um nada que dói») consiste, pois,
num oxímoro que pode ser interpretado de duas formas:
– o facto de não estar a sentir nada incomoda o sujeito poético, fá-lo sofrer;
– o sujeito poético não sabe se, realmente, não está a sentir nada, pois esse tal hipotético
«nada» «dói», fá-lo sofrer, isto é, fá-lo sentir.
O sujeito poético sugere, na última estrofe, que sente amargura por se aperceber de que não tem a
capacidade de sentir felicidade: recusa a hipotética felicidade que os outros parecem deixar
transparecer nos raros momentos em que se revelam, mas não encontra alternativa. O sujeito
poético opta pela clarividência da impossibilidade de se sentir feliz, mas, simultaneamente, sofre. É
que não está na sua natureza ser capaz de ser inconsciente de tal modo que pudesse sentir-se feliz
sem se aperceber de que tal sentimento seria revelador da ausência de consciência.
Concluindo, O poema traduz, assim, a angústia existencial de quem está condenado a ver a
felicidade dos outros, impossibilitado, pela sua natureza de ser pensante, de nela entrar e de usufruir
qualquer bem-estar, dada a lucidez da percepção da inexistência de alternativa.