You are on page 1of 4

Na casa defronte de mim e dos meus sonhos:

➔ Análise das estrofes:

Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,


Que felicidade há sempre!

1.ª estrofe - O sujeito poético diz que na casa defronte de si e dos seus sonhos existe felicidade.
A casa não está dentro dos seus sonhos (na sua imaginação), mas «defronte» de si e «defronte»
dos seus sonhos.
Tal significa que aquela casa está defronte do sujeito poético no momento em que ele
sonha, em que ele divaga, em que deixa o pensamento correr. E que nessa casa existe felicidade.
A referência a essa felicidade é expressa por um verso exclamativo («que felicidade há sempre!»),
sugerindo a admiração do poeta, eventualmente a estranheza, pelo facto de haver felicidade, ou
pela dimensão dessa felicidade («que felicidade»), ou pela sua perenidade («há sempre»).

Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.


São felizes, porque não são eu.

2.ª estrofe - No primeiro verso da estrofe, o sujeito poético especifica quem vive na casa: são
pessoas que o poeta já viu, mas que verdadeiramente não conhece («pessoas que desconheço,
que já vi mas não vi»). É compreensível: são pessoas para as quais o poeta já olhou, mas que,
propriamente, não conhece, não sabe quem são nem o que pensam (viu, mas não viu).
No segundo verso da estrofe, retoma a ideia da felicidade referida na primeira
estrofe: essas pessoas são felizes. E acrescenta que o são porque não são ele. Começa aqui a
expressão da diferença: se as pessoas são felizes porque não são o poeta, tal significa, por um
lado, que aquelas pessoas têm uma perspectiva da vida diferente da do poeta (e é porque a têm
que conseguem ser felizes: se fossem como o poeta, não seriam felizes), e, por outro lado, que o
poeta não é feliz.

As crianças, que brincam às sacadas altas,


Vivem entre vasos de flores,
Sem dúvida, eternamente.

As vozes, que sobem do interior do doméstico,


Cantam sempre, sem dúvida.
Sim, devem cantar.

Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.


Assim tem que ser onde tudo se ajusta —
O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.

3.ª, 4.ª e 5.ª estrofes - Estas três estrofes têm uma unidade: caracterizam a felicidade das pessoas que
o poeta observa.
Na 3.ª estrofe são referidas crianças que brincam, sem consciência da passagem do tempo
(«eternamente»), numa alegria de quem é inconsciente, de quem vive «entre vasos de flores», ou
seja, rodeado do que é belo, sem a noção da realidade, do sofrimento.

Na 4.ª estrofe, é referido o cantar que ecoa dentro da casa, também sugestivo da alegria de quem
canta fechado no seu mundo, na simplicidade da felicidade doméstica.
Nestas duas estrofes, repete-se a expressão «sem dúvida» (vv. 7 e 9), um comentário do próprio
sujeito poético, que dá como certas essas características da vida dos outros: não tem dúvidas de que
as crianças usufruem da felicidade e de que as pessoas cantam (isso ele vê, é a sua certeza).
O verso 10 («Sim, devem cantar.») traduz a constatação da lógica daquele tipo de viver: sim, têm de
cantar, é lógico que cantem («dever» significa aqui obrigação: é sinónimo de «ter de»). Essa lógica
é explicada na 5.ª estrofe: para aquelas pessoas tudo se ajusta, tudo está certo (a festa que revelam
exteriormente é a que sentem interiormente). O verbo «dever» do verso 10 tem correspondência, no
verso 12, na expressão «ter que» («Assim tem que ser»).
Então, as pessoas que o sujeito poético observa seguem o que é natural, cumprem a sua função de
pertença ao meio em que se inserem, a cidade. O verso «O homem [ajusta-se] à Natureza, porque a
cidade é Natureza» poderá interpretar-se como a tradução da harmonia do mundo que o poeta
observa: a cidade é, para o homem que nela vive e à qual pertence, a Natureza.

Que grande felicidade não ser eu!

6.ª estrofe – Esta estrofe significa o seguinte: que felicidade o poeta não ser como aquelas pessoas!
Observe-se que o verbo ser não está na 3.ª pessoa do plural, mas no singular. Se o verso fosse «Que
grande felicidade não serem eu!», tal significaria que as pessoas eram felizes por não serem o poeta,
ou que o poeta se regozijava por elas não serem como ele, mas o que é dito é totalmente diferente:
que bom o poeta não ser assim, como essas pessoas!
Campos recusa identificar-se com aqueles embotados ou inconscientes que conseguem ser felizes.

Mas os outros não sentirão assim também?


Quais outros? Não há outros.
que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
Ou, quando se abre,
É para as crianças brincarem na varanda de grades,
Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.

7.ª estrofe - Depois desse verso de afirmação consciente da diferença e da recusa de uma felicidade
apenas apanágio dos inconscientes, o sujeito poético como que pára para se interrogar sobre o que
acabou de pensar e de escrever: «Mas os outros não sentirão assim também?»[3] (v. 15). Este verso
quer dizer o seguinte: Será que os outros não pensam como o sujeito poético? Isto é, será que os
outros também não se sentem diferentes?
Esta interrogação retórica leva o poeta a reflectir sobre o facto de, afinal, ninguém saber o que
se passa no íntimo dos outros, pois o sentimento de cada um é algo pessoal, não podendo ser
vivenciado por mais ninguém (v. 16): existe incomunicabilidade entre os seres no que diz respeito à
revelação dos sentimentos (v. 17 – a metáfora da «casa com a janela fechada»: as pessoas não
revelam o que sentem).
O poeta acrescenta que, quando há indícios de revelação de sentimentos («quando se abre» a janela
– v. 18), ou há um vislumbre da felicidade inerente a quem não tem consciência da vida, a quem não
pensa (a metáfora das crianças que brincam na varanda de grades, entre vasos de flores – vv. 18-20)
ou de uma felicidade aparente («vasos de flores que nunca vi quais eram» – v. 20).

Os outros nunca sentem.


Quem sente somos nós,
Sim, todos nós,
Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.
8.ª estrofe - Nesta estrofe, o poeta conclui o raciocínio desenvolvido na anterior, especificando que
desconhecemos o que se passa no íntimo de cada um (v. 21 – «os outros nunca sentem») e que só é
possível sentir enquanto primeira pessoa («nós» – v. 22).
Especifica, então, que nesse «nós» se integra o «eu» do sujeito poético (v. 24), mas, em
vez de referir o que está a sentir – que era aquilo de que o leitor estaria à espera, pois, se
quem sente somos «nós» (vv. 22-23), o «eu» também sentiria –, afirma, inesperadamente,
que naquele momento já não está sentindo nada. Neste verso final da penúltima estrofe são,
assim, de salientar dois aspetos: o facto de o poeta já ter sentido, já se ter identificado com
os que constituem «nós», e de, naquele momento, já não estar sentindo nada. Surge, aqui,
subtilmente, a «inépcia congénita para os sentimentos humanos e simples», característica de
Álvaro de Campos.

Nada! Não sei...


Um nada que dói…

9.ª estrofe - O sujeito poético interroga-se, então, sobre o facto de não estar sentindo nada
(«Nada?»), considerando não ter a certeza disso («Não sei…») e explicando esse reticente «Não
sei…»: é que esse tal «nada», afinal, «dói». O último verso («Um nada que dói») consiste, pois,
num oxímoro que pode ser interpretado de duas formas:
– o facto de não estar a sentir nada incomoda o sujeito poético, fá-lo sofrer;
– o sujeito poético não sabe se, realmente, não está a sentir nada, pois esse tal hipotético
«nada» «dói», fá-lo sofrer, isto é, fá-lo sentir.
O sujeito poético sugere, na última estrofe, que sente amargura por se aperceber de que não tem a
capacidade de sentir felicidade: recusa a hipotética felicidade que os outros parecem deixar
transparecer nos raros momentos em que se revelam, mas não encontra alternativa. O sujeito
poético opta pela clarividência da impossibilidade de se sentir feliz, mas, simultaneamente, sofre. É
que não está na sua natureza ser capaz de ser inconsciente de tal modo que pudesse sentir-se feliz
sem se aperceber de que tal sentimento seria revelador da ausência de consciência.

Concluindo, O poema traduz, assim, a angústia existencial de quem está condenado a ver a
felicidade dos outros, impossibilitado, pela sua natureza de ser pensante, de nela entrar e de usufruir
qualquer bem-estar, dada a lucidez da percepção da inexistência de alternativa.

You might also like