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ene ee co en Sten ee ee nny eee ed eee tn Siren See ee rec ee eee eee ‘considerar um caso de deméncia o de wn ee ee er en a one eee eee een Se eee ee ee ee qualquer definicio ou eselarecimento, etn ater er neers ees ee eee ‘em tantas aetividades hmanas, mas oe eet lesenwolvimentos do conhecimento eee are eee cee Desenho rosters i niet nts Ana Leonor M. Madeira Rodrigues © Ana Leonor M, Madeira Rodrigues 1 edge: 2003, Revisie: Lei Coninno Gimeepn gesen:TVMesigaere Impress eaabament: Tipe Peres Deposit Lega 1341B08 “Toso drcon reservados por: ‘Quimers Ediores, a ‘Wimeraeuimers-eorescom ‘te gumervedonenconn "Nenfuma parte dest ts pode ser reprodusda sab qualquer forma (elesrdnict, mecini, fod, ec) sem a previa aterizaae da tora eda stor ‘apa monragem a past de desentos de Hating © Darer BN 972.559.102-9 Sumario Introducio coe |, Ba necessidade do desenho 4, O termo «desenho ‘i © que queremos que os nossos olhos vejam Alinha de contorne Por que razio no é o desenho uma linguagem Finalidade do desenho . 6.1 Desenhos como objecto artistico euja finalidade existe em si mesma 6.2 Desenho como projecto para um objecto final diferente de si mesmo 5.3 Desenho como disciplina Aaatiuade de quem esté a desenhar 7.1 Desenhos de quem esté a aprender 17.2 Desenhos de quem esti a praticar 7.8 Desenhar da realidade 7.4 Desenhar sem modelo 8. Qs elementos do desenba 9.0 desenhador desenba-se a si mesmo 10, Ressonancias grficas anteriores a representagio 1. Representacio 12, Desenbos 80 18, Desenho como metodologia e disciplina 14, Desenhos para nao serem vistos In desenhando, 15. Desenho como estratura interna da consumagio de outra obra F 16, Desenho como um devir de outra obra final 17. Desenho como finalidade em si préprio, ‘ou desenhos para serem expostos 18, Dar imagens a uma ideia ou a um texto. 19, Desenho ¢ o mundo contemporaineo das artes Bibliografia Bt 1 98 101 108, nt ns 119 Introdugéo Falar sobre 0 que é 0 desenho ¢ falar sobre um objec- Jove uma acco tao familiares e Go comuns a todas as pes- soas, que parece dispensar qualquer definigio ou escla- secimento, (Um desenbo ¢ um conjunto de linhas sobre um papel, feitas directamente com a mio, que resulta nesse objecto ‘comm, Objecto que estd presente em tantas actividades uumanas ¢ € to importante para determinados desen- volvimentos do conhecimento e das artes, que requer nai atengio do que um primeiro olhar deixaria supor. Desenhar no <6 implica um gesto controlado da tno, come envolve processos mentais € capacidades de abstracgéo tie. complexos que sfo, em si mesmos, um dlesafio pata estabelecer a aproximagio ao que tender para uma definigio. Dos primeiros riseos que uma erianca faz, em que a slescoberta do poder de alteraras coisas € mais intensa do «que qualquer outra significagio, ao acto investigativo da, tealidade através do olbar, para culminar no que pode viv a ser uma obra artistica, © desenbo vai mobilizar a mente ¢ «ensinar» 0 eérebro a ver €a utilizar essa capacie dade de modos especificos ¢ titeis a uma area vasta de acqies, das quais as artes e © pensamento eriative subjar Cente so um dos principais ambitos de interesse. Porque falar de uma coisa tio simples e tho complexa constitai um desafio muito estimulante, existe uma bibliografia vasta que trata e explica o desenho e a acco de desenhar. Assim, 0 que nesta abordagem sera privile: sido sera sobretudo o seu carter de processo mental, ‘do tanto a evidéncia do que € um desenho, mas antes pereeber porque se desenha, porque permite um dese: nnho uma comunicagio tio imediara, quais sia as diferen- tes atimudes ao desenhar e que tipos de desenho resultam conforme o que se deseja fazer como obra. Existe um preconceito muito comuum que difinde a nogio de que desenhar ¢ um talento com © qual alguns hascem e que vém ou no a desenvolver mais tarde Desenhar consiste sobretudo num método, como tal se pode aprender, antes mesmo de ser uma expressio artstica acessivel a qualquer pessoa que esteja disposta a tilizéla Nao hi pessoas incapazes de aprender a desenar, da mesma maneira que ndo ha pessoas incapazes de apren- der a escrever Desenhamos porque os nossos olhos véem, desenba- mos porque © nosso eérebro tende a identifcar perfis, isco € contornos, e porque tem a capacidade de aceitar uma representagio em substituigio do que se quer repre- Desenhamos ainda porque a capacidade de abstrac- Go, nao s6 nos € dul porque permite guardar uma imen- sa quantidade de informacio, como é também uma fonte de prazer intelectual e artistio. Nos simos anos, surgiu um conceito aparentemente novo, 0 de realidade virtual, isto é, existéncias que n20 sendo reais na acep¢4o comum do terme, so reais de ‘wma maneira codificada e tém uma dupla aparéneia para ‘08 n9ss0s sentidos. Sdo € ndo slo. A palavra svirtnal> é um termo da Optica, ¢ significa Juma imagem que se forma para ki do plano de reflexio, do espelho, ou de uma superficie reflectora. Sem que existisse © habito de o nomear como virtual, ‘existe um conceito equivalente a este, de realidade vir ual, implicto na ilusio de profundidade operada por lum desenho perspectivado. A propria definigio de Alberti, Desenho um quadrado [J 6 qual imagino ser ‘uma janela aberta, através da qual olho aquilo que depois serd pintado-?, estabelece essa situagho de realidade que Ee nto 6. (0 sentido do olhar identifica essa estrutura desenbra ‘da como profundidade, porém a mente sabe que se tata de uma dlusio, Tal como a imagem ao espelho, ¢ tal, também, de urna maneira mais elaborada ¢ completa, a hhoje nomeada srealidade virtual. A perspectiva, embora possa ser trabalhada em pintu- rae tena sido inventada para a pintura, € um sistema da jjeometria que se realiza através do desenho. Muito mais ddo que basear-se na imitagdo do Grgio da visio, a pers- pectiva nfo imi o visto, pelo contrario, baseiase na rea- lidade que os nossos sentidos criam, de as coisas parece: 1 per, Leon Bata (1404-1472), arqitert tian cu obra esr teesobrstudootatdo de angeteturs De Re Adio ger tikmental pa toda a tenis stqutectnies do Rensscneno, Sino x indueneiar como referencia ares ators e epoca poster 2 "Stvno un quadrangle quae repute mere wna fenestra apes ‘er donde omit quo que gut ara pinto ‘rem menores com a distancia, transformando essa carac- {erfstica num sistema, que abstrai da realidade e que nos faz idemtificar profundidade onde ela nao existe. A perspectiva como paradigma daquilo que é 0 dese- hho € uma imagem que me agrada, porque remete ime- ddiatamente para uma capacidade do eérebro, que éa de sentir prazer em decifrar estimalos enigméticos. Afinal, ‘chamamos a isso aprendizagem mais tarde investiga ‘Gio, , de entre outras caracteristicas, essa é uma das que melhor estabelecem a necessidade da arte © objecto artistico estimula os nostos sentidos, a ‘mente, 0 intelecto, enfim a entidade completa do eu, de modos intensos € com uma poderosa capacidade de desencadear prazer, um prazer estético que € mental € indirectamente fisco, mas que se torna imprescindivel para a prépria vontade de viver. Quer para quem o faz, como para quem o vé, existe uma relagio com o desenlho que tem o poder de se carac- terizar de um modo particular © desafiante, Assim, mesmo antes de ser categorizado enquanto expressio artistic, um desenho desencadeia estimulos que 0 tor- nam merecedor de abservagio, Por outro lado, estamos perante um modo de expres: ‘sio © umm sistema comunicative que requer meios extre- mamente simples para ser realizado ¢,alinal, poco mais Edo que o vestigio dos movimentos que a mio faz, Ima- ginemos a mais complexa perspectiva desenhada com tum lapis e um papel e riscos invisiveis; nada podia entao set olhado a nao ser os gestos que construsam aquilo que se queria fazer, uma espécie de accio teatral coreogra fando a movimentacio do desenbar de uma perspectiva, Quer dizer, quem estiver a ver alguém a desenbar, sem saber o que & desenhar, nfo ind entender o fenéme- no do desenho, embora este, 0 objecto sdesenhor, seja 0 vestigio directo desses gestos! E claro que nfo haveria desenho, pois o desenho é lum objecto, nfo a ideia ow a intengio de objecto, porém 6 tio discreto, vo frgil, que Ihe poderfamos atribuir a caracteristica de vestigio, ago de uma aetividade, Um esenho seria entio 0 que ficou da nossa intengio de fazer um desenho. Existem tipos variadissimos de desenhos. Uns mais pragmacicos em relagio & sua fungio, outros mais secre- tos, outros virmosos, outros que sio porque contém a possbilidade de outras existéncias. Todas estas situagées, tendencialmente inefiveis, tecem o conceito que se vai elaborando de desenho. O carscter discreto e a fragilidade sio atributos funda- smentais do seu encanto, Um desenho ¢ parecido connos- co, 11ma estruvura mental complexa, com idemtidade pré- pia e nica, num suporte fil e mortal, (© papel, que nao € 0 seu tinico suporte mas o mais frequente, é semelhanteA pele humana, com a qualidade de guardar num registo rigido a prova dos acidentes que sofreu, tanto quanto fica desenhado, na cara ¢ no corpo de cada um, a forma da sua propria historia. Como a pele, € fragile resistente, ficando nele o vestigio da mo, ‘linha, elemento remanescente de um movimento, qu por isso mestmo é meméria e cicatriz (como uma tatua- gem € desenho e cicatriz), 5 Eola aescontanes que, por vermoso gest de pint no vimos 0 (que realmente aeredtumos ver (a), Foster, Vem, Gest, Ver ich einer Phinomenolgie ct. Balla Bote, Dis 991 p. 8b, De Gene des Nlens (2) Gent le Pita) 1. Da necessidade do desenho © pereurso das artes plisticas durante todo o século XX velo levantar a questio da necessidade do desenho como diseiplina imprescindivel na formacio artstca do ‘estudante de artes, Se, até entio, o desenvolver laborioso da eapacidade ide registar através da linha e da mancha aquilo que os dolbos observam era quase indissociado do proprio pin- lar, do esculpir e da ideia generalizada dos conhecimen- 1s basicos requeridos a um artista aliberdade inventiva tas possbilidades exiadoras, que o século anterior nos apresentou, estabeleceu processos, téenicas € posturas ue, embora retiranda a0 desenho alguma imporeincia ‘metodolégica, aumentaram a sua autonomia como obra de arte, promovendo-o a modo de expresso em si ‘mesmo ¢ tendendo a dar-The o lugar de obra maior em toda a sua plenitude. © facto de comecar a ser menos importante como ‘metodologia artstca vai provocar uma tendéncia para a pphitica cada ver menos incensa do desenho, ¢ uma reco locacdo do seu contribute na formagio académica, 15 ‘Tais alteragbes tornaram a aprendizagem do desenho ‘um conhecimento de cardcter facultative € nem sempre necessirio & pritica artistca ‘A discussio da necessidade ou nio desse conhecimen- to € talvex uma das mais intevessantes questbes levanta- das, nos altimos anos, das que existem sobre a obra de arte e a criagio artistica, uma vez que se refere nlo 36 a lum conceito de artista, como ao tipo de formagio que este devera adquirir, «& sua postura na acgio de criar. Se é verdade que uma grande parte da criatividade plistica acontece independentemente da formagio esco- lar, no sendo esta uma condliglo sine qua non para que se realize a obra artstica, também é yerdadeiro que a aprendizagem do desenbo permite, numa primeira fase, (© desenvolver ¢, mais tarde, o exercitar de um tipo de observagio especalizado, por um lado, € de discorrer mental, por outro, especifeo ¢ interessante par vidade do ambito destas mesinas artes ‘Ao contritio de outros modos de expresso plistiea m que a manifestagio de um sentimento comunicativo em termos artsticos pode ser mais espontanea ¢ impulsi- va, pensando-se menos em aprender a pintar e mais em cestimulos para 0 fazer, em relagio a0 desenho & comum considerar-se que é preciso aprender, praticare exerciar © ensino tradicional do desenho chamado «A vista» tomou-se, durante algumas décadas, quase obsoleto, quer pela morosidade desse aprender, num tempo em que o sentimento procurava uma expressio imediata € intensa, quer pelos resultados tendencialmente dlassici- ‘antes nem sempre 20 gosto desse mesmo momento, Mesmo assim, algumas escolas mantiveram 0 ensino do desenho de uma maneira mais tradicional, e disso mesmo ¢ exemplo toda a pintura realizada por grande 6 “parte dos artistas ingleses, ou de formagio em excolas inglesas da segunda metade do sée. xx, como por exem= plo David Hockney « Paula Rego, sobretudo aqueles for- tmados pelas academias de Londres. Esta questio do maior ou menor academismo da pr tica do desenho levanta o problema interessante da sua pripria definigio como modo de expressdo artista. Desenhar é uma técnica de caricter artstco que se aprende (o que nio impede a existéncia de talentos fesponténeos onde certas etapas da aprendizagem esto tltrapassadas), mas desenhar também € um acto tio banal e banalizado que poucas serdo hoje as pessoas que ‘possam dizer nunca ter feito um desenbo. “Talvez enquanto criangas, uma ver que é das brinca- deiras mais acessiveis e baratas,talvez para explicar algu na localizacéo, talver ainda distraidamence rabiscando fenquanto a mente se ocupa a comandar outras faculda- des, fazer viscos com um lipis sobre uma superficie & via acgéo familiar e generalizada. Porém, se a pritica do desenho € vulgarmente asso- cada a uma actividade artistica ou afim, é interessante considerar que a possibilidade de fazer um desenho imobiliza o nosso cérebro € a nossa mente de maneiras cespecificas, que se referem directamente a nossa orient ‘Go espacial © A nossa especializagio como animais emi rnentemente visuas, inal como a maioria dos simios. ‘Ao referirse directamente a expressividade artistica, 1 gesta do desenho regista de nés mesmos bem mais do que a simples intengio contida no trago que se executou. Deixamos nessas marcas uma gama infinda de vestigios pessoais que transformam o risear num acontecimento tuja leitura pode exisir plena de sentidos e possbilida- des estticas, Assim, restringir 9 desenho a pritica morosa © as vezes sofrida de uma manera de desenhar mais clissca ignorar a sua propria definigio e a sua caracterizacio. No entanto, mesmo a pritica tendencialmente mais académica € aparentemente tio incémoda hoje para algumas pessoas (lembro que existem alunos que finali- zam 0s seus estudos de arte sem sentirem a necessidade de desenhar e alirmando sem timider que nao dese- nham) contém a possibilidade de desenvolver e afinar 0 desenho a vista, que, por sua vez, ira especializar 0 olhar permitindo um entendimento do mundo das formas das imagens especifico de certas disciplinas artisticas Podemos desde jé enumerar algumas das maneiras de entender 0 acto de desenhar ¢ que se referem direc tamente ou a um modo de expressio antstica em si ‘mesmo, ou a um exercicio e desenvolvimento dessa expressividade, ou a uma téenica de preparacio e de estudo prévio da obra a realizar noutra técnica e com outras tecnologias, mas também podemos explicé-lo ‘como a manifestacio de uma maneira de pensar especi- fica € como um modo de comunicagio simples ¢ imedia to no qual radica a propria escrita. Quer isto dizer que o desenho tanto € considerado como uma téenica, com tecnologias préprias para obter resultados preparatérios no sentido de experimentar solug6es provisérias, como um modo de expressio art tica em si mesmo. Todavia, subjacente a todos os dese- nhos existe um tipo de relagio quase directa com a mente, que constr6i a possibilidade de elaboracio de um modo de pensar que se desenvolve numa relacio imedia- a com 0 olhar € numa expresso directa com 0 gesto para construir um discorrer do pensamento exterior a qualquer situagio diseursiva, is Se qualquer pessoa sabe 0 que € um desenho, e so rmuitas as que sabem desenhar, esquecemos, por veres, que um processo que nos € tio familiar utiliza processos ‘complexos e apela a capacidades insuspeitadas da nossa 19 2. O termo «desenho» +O substantive “desenho” deriva do latim designy, vocibulo rico de sentido, podendo simultaneamente sig- nifcar “desenhar” e “designar". O desenho, obra inscrita sobre tum suporte com duas dimensies, apresenta plasti- camente uma esséncia, um conecito, um pensamento ox representa as aparéncias do nosso mundo naturals! ‘A simples definigio do termo «desenho» varia bastante, lumas vezes restringindo-se 3 simplicidade da identiticagio do seu caricter bidimensional ¢ a0 reyisto de elementos iaficos, ¢ outras indicando desde logo a possbilidade da Aelineacio de formas, desde a sua génese. Originariamente, 9 desenho apresenta o movimento da mao, sobre uma superficie plana, quando esta segura ‘um instrumento riscante que o realize. © facto de 0 movimento da mio aparecer na génese a definicio permite distinguir desde logo duas direc: Ges diferentes do acto de desenhar: uma que esté dic rectamente ligada 20 gesto do desenho & mio livre e * Sourin, Benne, Vocbubire dExhétiqu, Paris, PUE, 190. 20 outrs, mais conceptual, que utiliza quer mec es quer e6digos que, ainda no Ambito da defini- fo, se afistam do gesto directo do faer. E mmanifesto que o termo designa um objecto definido ‘© uma acco determinada, porém 0 uso € abuso corrente deste substantivo acaba por englobar uma quantdade ‘asta de significados, chamando nds desenho is marcas as ondas na areia, A imagem impressa a partir de ura [programa cle computador, as sombras de um objecto, 30 Soltear de uma figura em movimento ou até a qualquer fmayem de cardcer nio foogratico. O facto de o abuso ea divagacio nos afastarem da cla teza definidora ndo obsta a que esses mesmos abusos © ‘excepcbes expliquem ¢ ajudem a perecher 0 processo complexo que é desenhar. Quando que ma imagem bidimensional éum dese- tho? Ou melhor, até quando é que um desenho & um Adesenh nosso cérebro, a partir da informacéo perceprionada pelos centos de vist, regisa um conjunto de informacées sobre a realidade que muito pouco se asemetha a qualquer regiso grafico, mestoo quando mato naturalist Lembrando 0 que foi dito antes sobre © abuso do termo, podemos pensar na semelhanga que um desenho fer com ona sombra ~ forma plana projecada sobre uma superficie ~e encontraremos entretanto sentido no que ances parecia ndo.o ter: € mais préxima da definiczo tledesenho a forma de uma sombra do que a imagem do préprio abjecto que, perante os nossos olhos, a provees ‘espensar que um descnho naturalista do objectooapre senta em toda a sua verdade, esquecemos que a transpo- fig para duas dimenséesrequer uma sbstraego da rea- fidade, que nada tem de conereto enquanto imitaco, a Afexiste uma transposicio de volume para plano, que o cérebro aceta como equivalente a0 objecto a represen- tar, Assim, tanto a sombra de uma pessoa como 0 dese- ‘nho do seu perfil me mostram uma imagem que facil ‘mente aceito, ¢ ser unanimemente reconhecida como representacio. Estamos afinal perante uma das explicagées miticas da corigem do desenho referidas por Plinio: uma jovem, que ‘ovamado se vé obrigado a abandonar, desenha-Ihe 0 con- torno do perfil que a luz de uma vela projectou sobre Juma parede, e assim guarda um registo bastante fiel da Jmagem do seu amor Comove pensar poder ter sido 0 amor a mover a acgio de desenhar, mas a ideia condensa perfeitamente, numa imagem, aquilo que de nés € mobilizado: por um lado a mente, a inteligéncia analitica, © sentido ordena- dor, a conscigncia do observat, mas também a sensibili- dade e os afectos,e, por outro, © corpo no préprio gesto de fazer, ¢ 0 olhar, sempre o olhar. Tudo isto de nés esta contido no desenhar (© mundo natural aparece-nos de modes pluridimen- ea representagio a duas dimensées dessa reali- dade implica um processo de afastamento da percepgio original, ou seja, uma abstractizago, Um objecto percepcionado pelo eérebro pode ser definide como «uma quantidade de dados que se deslo- cam em conjuntos’. Nao consideramos agora 0 que se pode entender pelo «proprio objector, mas sim 0 objec- lo visto no cérebro. E entio a este conceito do objecto no cérebro que se poder comparar 0 objecto desenhado. 5 no, Metre Nora ro XY, et de Damn, Hubert, Tate (da Tn, Pa 15, p Loven, Kona UEnvers du mio, Pars, Hmmacion, 1975, 22 Ambos sto definiveis como um grupo de dados que se dleslocam em conjunto, em que o deseno € um conjun- fo com menos dados, menos informagio objectiva e flyuma informacéo pessoal (que se refere a quem 0 esenhou). Assim, um desenho nunca é igual a0 que vimos, Implica sempre um processo mental que esté associado & fapacidade de abstraccio simblica e sinalética que exis- tena génese de toda a comunicagéo humana, Na transposicio de volume para plano sio utilizados pocessos variados de representagio que entiquecem fos sentidos explicitos ¢ implicitos de um desenho. Se-excluirmos a situagao directa da marca, que na natu- teza acontece através dle um registo por pressio ou fric- lo (pegada, riscos, etc), marca essa imitavel quer por Jmpressio quer por frottage? e que no passa por um processo de transposicio (€ um regisia directo e equiva Hente ao que acontece na natureza), 0 desenho recorse a diversas ilusées para criar imagens que © nosso eérebro, focita como representagées da realidade. ‘Tal acontece & sugestio do volume, conseguida, por exemplo, através Ado uso do claro-escuro, ou aparéncia da profundidade, io plano, sugerida quer pelo uso da perspectiva quer pela sobreposicfo de formas em planos préximos e pla- ‘nos afastados. Ou a possibilidade de identificar abjectos € formas dos quais observamos apenas algumas linbas sim- ples que os sugiram, Recorrendo de novo 20 uso comum do termo, € Arequente associar desento a representacio, uma ver que ‘que tendea surpreender-nos néo € tanto a possbilidade Proceso de esto directo da textura de un superficie, conse ‘locando uma ftha de papel soe a extra eopare percent hoa fll com um ssromento rant mic stp un pr ties de gravaio, extn aparecer descoada na ua 23 dea mio deixar registado o seu movimento, mas que o Conjunto dinamico mioimente seja capar de cransferir aquilo que os olhos véem para um grupo de riscos e man- has, e dar-Ihes um sentido universalmente evidente. Se por um lado o acto de desenbar atravessa épocas, lugares e culturas, por outro a atitude cultural implicta ‘a quem desenha e ao desenho varia conforme o contex- to cultural em que se inser De uma maneita geral, ¢ nosso conceito de desenho esti enraizado na atiude cultural do Ocidente, onde, sobrenuclo nos dois sltimos séculos, se comecou a aceitar a considerar manciras de desenhar, cuja cantextualiza- Gio se refere a realidades culturais exteriores a esta rmaneira de pensar, ¢ que vieram enriquecer as suas pos- sibilidades expressivas e comunicativas’ Refiro-me nao 86 a uma utlzagho diferente do registo da profundidace, como acontece nos desenhos chineses & _japoneses, em que temos um registo da terceira dimensio sem no entanto vermos hierarquizada a distancia, como também a um entendimento diverso sobre aquilo que é ou do € uma pritica artistca, tenclo em consequencia, por exemplo, a caligrafia como uma arte equivalente a0 dese- nnho ou pintura, estabelecendo pardmetros grficos com- pletamente inesperados para o estar cultural da culeura ocidental porta ter presente que, embora nao desconside- rando outros olhares e outros westaress no desenho, o Dresente texto insere-se sobretudo na tradicio da culku- 12 ocidental nln em seid contro acontecenaturaliente, wn vr ‘quca tendénca para que a cular oidentl et ahem sr 233 quer econdmica que os timor eles ceria per teen geogrdfca a Osdonte»dexn manera, colonia cleaner ‘e outrsatiudes cultura, quer por iene, quer por impor 24 “Todavia, pese ou nio uma contextualizagio cultural specifica, a produgia de representagbes gralicas a res pectiva identifcacio acontecem de modo suficientemen- te generalizado para que o desenho exista como proces- so comunicativo e artistico universal e que ultrapassa as préprias especificagSes cultura e lingufsticas. Enquanto pensamos em elementos grificos com cardcter decorativo, a relagio com um assunto ou objec (0 a representar no se levanta, pois estes resultam dos tais vestigios de movimentos. Porém, no momento em que observarmos uma representacio, comecamosa ques- tionar como € que o processo de identifiacio funciona, sem qualquer tipo de incerteza. 25 3. O que queremos que os nossos olhos vejam Riscos ¢ manchas sio os elementos daquilo que 0 eére- bro identifica como imagens, representando formas € espacos do mundo que habitamos. Os alhos, enquanto instrument de registo, vem os tas riscos ¢ manchas, que imediatamente sio straduzides» no cérebro como repre: sentagées. Um jogo de ilusdes divertido, que qualquer pessoa alguma vez terd feito, € tentar descobrir no movie ‘mento das nuvens ou nas manchas de uma parede sdese- hose de formas da realidade, que 0 acaso parece fazer?, Identificar, com 0 sentido de reconhecer, refere directamente a identidade, E curioso, no entanto, lem= brar que na sua origem o termo sidentifcar» quer dizer: (0s mesmos nfo fazer seniio ut. 7 Jo to gia veto ne muvot etm mache, che manno deste 2 benno aida chore ane Xe fon ins priate i perieione sng mero non branchavano dl perfection nell loro movimento size eins eo ‘aro da Vine Tratado da pints, Codex Urinus Laon 12 de Gombe, Lsoarda Meth for Working out Compost ‘om Chicago, 188 26 Assim, a0 identifcar © que esté desenhado, nao 56 reconheco a identidade do que esta representado, como reconheco que tem um carcter idéntico 0 que se dese ja represencar, Mesmo a nogio de abstraccio implica que nada se identifica, para li dos elementos nas suas caracteristicas simples. © sentido do conceito de identificagio que importa para o desenho é 0 do reconhecimento, isto & que atrar 165 de linhas e manchas ha a intengio de representar eterminada coisa, sendo que 0 éxito dessa representa ‘Gio ¢ tanto maior quanto maior for a identificagio que posteriormente um outro observador faga do que se representa. Quer dizer que o desenbo consegue estimu: lar o eérebro de maneira a provocar uma proximidade entre 0 modelo © o seu desenho, ligando-os de modo Indissociivel. Mais adiante veremos que este processo pode ser complecamente subvertido, resultando dat qualidades estéticas insuspeitadas. Mas o fendémeno de identificagio é de tal modo auto- ‘mitico (poderoso © pouco consciente), que para pensar no desenho, ow num desenho como um conjunto de ele- entos simples sobre uma folha, & necessirio fazer um ‘esforgo de distanciamento em relagio ao que realmente ‘esta Id representado. O cérebro & activado de maneiras variadas ¢ interdependentes, por isso uma circunfe- ‘réncia com uma sombra a iludir 0 volume € tendencial- ‘mente lida como uma esfera, ou seja como um volume € nnio como um conjunto abstracto de riscos curvos e de manchas, ‘A demonstragio através do absurdo, de Wittgenstein, tao inverter a realidade, mostra até quanto nos € natural 2 ‘esse reconhecimento: «Nie poderiamos nés considerar uum caso de deméncia o de um homem que, reconhecen- do num desenbo o retrato de N.N., exclamaria: "E 0 Sr. NINA", “Ele deve ser doido” diriam as pessoas, “ve um bocado de papel com uns tragos negros em cima e toma isso por um homem"»!® E precisamente na tal eapacidade de o eérebro identi- ficar uma imagem ¢ de reconhecé-la que radica toda a possbilidade de comuniear através de modos de expres slo gralfica e plistca Desenho é, entio, tanto o acto de desenhar, como 0 ‘objecto dat resultante, como 6 que esta contido no con- ‘ceito do proprio term, amos perante um modo de expresso grafiea que, através dos seus clementos plisicos ¢ grficos livres, con: segue representar e transmitir imagens que pereebemos ‘como equivalentes as fixadas pela nossa percepcio, no mundo real, referimos uma das origens miticas do desenho, ‘mais dll ser4 encontrar uma origem evalutiva possivel, Apenas poderemos tentar par hipéteses acerca das ra 270es pelas quais 0 desenho adguive una importincia tio ‘grande, quer como registo, quer como vestigi. Embora nao seja posstvel demonstri-lo, € provivel que 0 facto de 6 nosso eérebro identificar formas que so © vestigio de coisas que li nio estio, isto é, marcas de ‘outras criaturas deixadas no chdo como pegadas, ou per ceber que os riscos feitos na areia tinham origem nos ‘movimentos das ondas de agua, desencadeassea idea de reproduzir vestigios. Tenha a motivagio sido a de decla- "© Wiugensten, Ludwig, Remargues sue philophiede pyc Jogi trad ances, Ps 1980, p. S00 be 2s uma presenca ou iudir outras eriaturas, ou fazer areas que permanecessem para Ié do momento presen- le (maneira de declarar presenca que € comum a muitas ‘species de animais, com 0 sentid de marcar terreno), & povével que a hablidade crescente da méo humandide iliada & capacidade de identifcagao tenha desencadeado “Mtendéncia para regista formas observadas e mais tarde xmas descjadas. “0 facto de as formas desenhadas eonterem nio 36 0 “registo, em vestigio, do gesto que as definiu, mas também Wontcrem latentes os movimentos feitos, provoca no phar do observador tanto um reconhecimento desse ves tigio, quanto, sobrevudo, uma idenifcagio Asica do esto realizado ‘Skoyles'! demonstra que existe uma percepeo motriz econhecida através do olhar, que nos mobiliza memé- tins de identificagio do gesto feito, consoante a nossa propria capacidade de realizar esse gesto. Assim, aquilo {que os olhos véem desenhado desafia 0 nosso cérebro a fexperimentar fisicamente gestos ¢ acgbes que nds talvez ‘nfo sejamos capazes de realizar, ainda que possamos Jdentfiear no nosso corpo, do modo pleno do reconhe- €,0.que foi previso mobiliar em accées para obtermos 6 resultado do isco que esté perante 0s noss0s alos. | A capacidade de observagio € o talento plistco dos desenhos existentes em alguns vestigios pré-hist6ricos io surpreendentes, se pensarmos que so feitos por hhumanos com uma memria visual e cultural relativa- mente virgem, e que desenham quase pela primeita Bist joka Rector pereption and at thepuraw loalnetcouk?-skoylert hen 29 Este conceito de uma espécie de inocéncia visual per- dida tem sentido sobretudo no contexto cultural que hoje nos define. Estamos imersos numa culmura cuja especializagio em comunicagio visual € tio desenvolvida somos bombardeados com uma quantidade tio vasta de imagens visuais, que a nossa mente se adaptou, « desen- volveu processos © modos, especificos da comunicagio mples, e da comunicagio artistca, assentes no press pasto de todos sermos mais ou menos «ultos» visual- Enquanto método, € pouco importante a quantidade de informacio visual que um sujeito possa conhecer, ‘uma vee que o préprio acto de desenhar tenderd a exer Gitar e a desenvolver essa capacidade, eBxiste uma diferenca imensa entre ver uma coisa sem o lipis na mao, ¢ vé-la desenhando.a. Ou, de outro modo, sio duas coisas bem diferentes que se vem. Mesmo o objecto mais familiar 20s nossos olhos torna-se ‘outro se nos aplicarmas a desenhé-lo: percebemos que 0 igmorivamos, que nunca antes o tinhamos visto verda- deiramente. Até af, os olhos 56 tinham servido de inter medisios»!® Olhar um objecto desenhando-o obriga a uma obser- vvagio disciplinada e organizada e estabelece uma diferen- «a clara entre o olhar distraida sobre as coisas ¢ 0 olhar activo sobre 0 que se desenha, sobre 0 que se quer ver. "Yall, Paul Ly a une immense difzenceente vor ue chowe ‘enya in enn esa Ou the ‘ont deux doves ben dilvetes gue on ve Meme Fab pos ftir no yeux devent toe aut ion applique Sle desir tn fapentquvon Vigorat, con ae Tawa ma veiabiement ‘a Hoe jnquet war ser qu dnermede Deges, Dane, Desi, Pats, Galan, 149 (1536, p 5 30 Nesta medida, desenhar 6 adquirir conbecimento, ‘mas também investigar. Aquilo que se desenhou despit ‘se, sob os olhos, da névoa que funde tudo no todo € Aadquirin a presenca de uma identidade definida, Acexperigncia de ver, desenhandbo, é profunda e inten- Jue explica a razdo por que muitos artistas de vias éreas fornam o desenhar uma paixio quase obsessiva. Por os olhos quererem ver completamente o que Wem, 0 mundo abrir-se-ia aos sentidos, aos afectos & 20 Incelecto, numa vertigem imparivel e sempre crescente Desenhar & sobretudo um prazer ‘Acontece que a especializacao visual do nosso tempo & lal, que desenhar pode parecer supérfluo, uma espécie He gesto primitivo numa cultura, cujas arte « tecnologia Alispensam tal process. Mesmo nio sendo absoluramente deste modo que as coisas se processam, existe latente em muitas das obras frtstcas actuais um distanciamento dos processos m: fartesanais, no sentido directo do fazer com a propria no. Porém, retomando a historia referida por Pio, tedescobrimos-ihe um sentido que pode estar mais liga do.a memérias ou A experiéncia directa do quea imagens Initicas, uma ver que a sombra dos objectos materiais everia impressionar bastante quem estivesse atento, € Imais ainda no interior sombrio de cavernas, onde essas projeccdes apareceriam no s6 reais, mas também, pro- vayelmente, magicas. Se tais probabilidades, neste sucinto percurso, nada Imais sio do que hipéteses, 0 que permanece € que capacidade de abstracgio do cérebro, aliada a un meméria cada ver mais especializada e a um desenvolvi- mento da acuidade visual, em detrimento de outros sen- ‘tidos (caracteristica de muitos primatas), teré desenea- 4, A linha de contorno eadoa possilidade de registar em linhas formas bidi- ‘mensionais aquilo que se vé ou se deseja ver. ' ‘As diferengas que um hipotético desenho tera em rela. (Gio a0 objecta real tornam a sia imagem digna de inte- ‘esse, na medida em que nos perguntamos como € que 0 feontorno delineado de uma chévena ou um grupo de pes- sas a varias distancias continuam a ser identificados como [iso mesmo, chavena ou pessoas a varias distincias, e no fem um conjunto de linhas curvas ou planas e manchas variadas, que se espalham sobre uma superficie. O que os fnossos olhos véemn €o conjunto de manchas e linhas, con tudo 0 cérebro vé a chivena ou o grupo de pessoas. Ao conjunto de manchas e linhas vai corresponder, fo cérebro, um equivalente grupo de estfmulos que se fesloca em conjunto © que -

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