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8. Os elementos do desenho Embora néo exista um grupo de caracteres codifica- dos, uma espécie de e6digo grifico do desenho, existem lementos miinimos que podemos identificar como sendo o trago ea mancha. 0 traco € a propria «hist6riay do movimento da mo sobre a folha de papel, e de todos os acidentes © acasos {que possam acontecer durante o seu percurso. ‘A mancha € uma ocupagio da superficie que, ou tendo uma fungao definidora de planos internos do dese- rho com a capacidade de iludir uma modelagio volumé- trica, ou um caricter de elemento pléstico em si mesmo, define uma apropriagio do plano sobre 0 qual se dese- nha. (© tratamento da luz € conseguido através da utiliza @o da mancha, quer pela intensidade dos contrastes, pela suavidade do modelaclo, quer pela possbilidade de apresentar formas e espagos mantendo uma indefinigio aque transpGe para o papel a mobilidade da experiéncia dos sentidos, abre a bidimensionalidade do plano a uma expresso mais vaga e podtica 38 Por outro lado o plano original, isto é, 0 lugar onde o cenho € feito, vulgarmente o papel, contém uma espé- de transferéncia do sujeito desenhador e das suas sin- laridades fisicas e psicoligicas, transpostas em elemen- simples, mas que podem adquirir um eardcter quase bic. Imaginemos uma folha de papel rectangular orienta- com 0 seu lado maior na largura. Ao desenhar uma_ ha horizontal que atravesse toda a folha, estabelece- uma situaGio equivalente a uma linha de horizonte, {que vai desencadear um processo associativo que ten- 4 a identificar uma parte de baixo da folha que pode st equivalente a chao ¢ uma parte de cima equivalente céu, Esta transposicio pode nao ser tao literal, porém, nda antes de qualquer risco ter sido feito, essa intuigio plano sobre o qual se desenhard é preexistente: qual jer elemento colocado na metade inferior do. plano tard sujeito a uma forga de atracgao que o limite infe- jor da folha desencadeia, ¢ um elemento colocado sobre sa metade superior conteré implicitamente caracteris- de leveza, ou reforcard o sentimento de leveza, uma ‘que a tendéncia € para consideré-las equivalentes, 1 transposicfo, a0 espaco que o nosso corpo habita Estas tensdes do plano sobre o qual se desenha exis- independentemente de, sobre ele, alguma coisa ter ido desenhada. -F imteressante que as tensdes de forcas dentro do lano da folha do desenho a existir,akém do o definir, de cio, como uma entidade activa, permitam desencadear dialogo entre ele mesmo e quem desenha. A presen- (a da folha de papel antes de ser desenhada (ou escrita) ulta disto mesmo: transpomos de nés préprios para a iperficie a desenhar, numa identificacio simbdlica de 59 cequivaléncia, e, depois, a0 desenhar, desencadeamos ‘uma relagio fisica € afectiva com todo 0 processo de transformacio que a folha, o nomeado Plano Original! vai sofrendo. Antes de todo 0 processo mental e eriativo do acto de desenhar, existe esta relagio origindria que vai acompa- nhando qualquer acgio do desenhar Anogio de plano, nao a nocio geométrica em que um plano é uma entidade infinita, mas o segmento de plano sobre o qual habitualmente se trabalha (o rectangulo de papel), € um conceito relativamente recente. A prépria possibilidade de transferir do sujeito desenhador para ‘esse plano de desenho é ela mesma recente, se pensar- mos que se desenha desde tempos anteriores a prépria Historia, As definigées de espaco, de ser ¢ de poder alteraram- -s¢ ao longo de diversas épocas ¢ com elas a ideia interio- rizada que o sujeito faz de si mesmo e da sta relagio com ‘0 mundo. Quer a relacéo do sujeito com 0 grupo, como a relagio do sujeito ou do grupo com o poder, 0 tipo de poderes ¢ finalmente a relacio com uma ou varias ent dades divinas, vio pelo seu lado estabelecer uma possi lidade de defini¢ao de mundo que varia consoante as referidas. Assim, a identidade a transferir, ou a propria capaci- vari dade de assumir essa possibilidade de transferéncia nem sempre foram tio evidentes como hoje. Também a idea de Plano Original nem sempre ter’ sido téo dbvia, uma ver que a sua hierarquizagio esta tanto mais estabilizada quanto 0s formatos sobre os quais se trabalha (desenha " Plano Original ou P.O. como definido por Kandinsky, Wasi, Pint Ligne, Pan la grammaive de a création I, Pavs, Ed. Deno, 1970 60 pinta) estdo normalizados e, muitas vezes e talver por 0 mesmo, a ideia de composicao sera mais presente & strita na pintura do que no desenho, uma ver que este, ser entendido frequentemente como estudo, como pjecto sempre inacabado ou acumulado noutros estos, ue se sobrepdem no mesmo suporte, niio cheyava a iquirir a importincia de obra acabada, ¢ essa indefini- cera transportada para a propria atitude a desenhar. Desenha-se num qualquer pedaco de papel, na pare- no cho ou mesmo muma sobra limpa de outro dese- . Por outro lado, a pintura exige desde mais cedo apresentacio final, defintiva, dentro das fronteiras laras do limite da tela, - Porém, a tendéncia sempre mais individualista da cule 1ra ocidental, no sentido do sujeito como uma entidade ica € reconhecida como tal, provocara por sua ver que | identificacio do plano sobre o qual se desenha mante- ha latente, € de uma maneira cada vez mais definida, sa transferéncia do eu fisico € mental para o plano de lesenho. __ E tala intensidade de transposicio do «eu» do sujeito enhador para o plano sobre 0 qual desenha, que ssivel estabelecer um elo entre o tipo de relagio que srminado grupo geogrifico ou cultural tem com 0 lo de propriedade ¢ © tipo de hierarquia social se grupo. Todavia, as mesmas transposig6es do eu fisico para o spo de trabalho do desenho v3o acontecendo € estabe- endo, por exemplo, as verticais laterais com a mesma iensidade com que nds mesmos definimos um mundo esquerda e direita, reflexo afinal do nosso eérebro, 0 especializado em termos de uma lateralidade assi ica. 61 © mundo aparece-nos hierarquizado num acima e ‘num abaixo, num & esquerda ¢ & direita, tanto quanto 0, nosso proprio corpo se hierarquiza a si mesmo, a partir da colocacao de érgios vitais (da eabeca para baixo, lte- ralmente) ¢ a partir da maior ou menor capacidade do seu uso a esquerda ou a direita ‘Ao procurar defini como se entende o que é desenhar, ‘importante ter presente a entidade activa que € 0 plano de trabalho, a superficie sobre a qual se desenha, para perceber ‘que qualquer colocagio de um elemento, por mais simples, sobre a folha, vai acender todas as transferéncias abstractas ‘ou simbolicas que fazemos, mesmo antes de ela conter qual (quer grafismo desenhado. A possibilidade de transferéncia do sujeito que dese- nha ou observa para 0 P.O. € tanto maior quanto as hie- rarquizagdes do individuo tomam primazia em relagio as hierarquizacées do grupo. As horizontais com todas as desmultiplicagées da) nogio de horizonte, de descanso, de calma (€ sobre uma: horizontal que o nosso corpo repousa) e as verticais como, oposigio activa e dinamica ao descanso, arvanque violen= to a forca atractiva da gravidade, constroem uma entida- de cuja activagao esta latente esperando apenas alguma intervencio grafica Embora nao pareca directa, esta transposicio existe de modo to intenso quanto a prépria hierarquizagio que 0 nosso corpo faz do espago onde se desloca Assim, qualquer elemento colocado sobre a superficie que €4 folha de papel vai deseneadear uma relagio dint mica entre a tensao interior do plano ¢ as Forgas que esse mesmo elemento vai activar. Um desenho, ainda antes de representar descrtivae ‘mente aquilo que os olhos véem, é j4, em si mesmo, um acontecimento grafico, O jogo plistico das tensdes no plano e das relacoes entre si dos diversos elementos gré- Ticos acresce a todas as ontras combinacées cromaticas, ‘onais, luminosas, volumétricas, espaciais ¢ estéticas que podem estar contidas no desenho, Cada desenho estabelece um mundo préprio de pos- sibilidades comunicativas como representagio © como centidade em si. 63 9. O desenhador desenha-se a si mesmo!" © acto de desenhar implica um gesto do sujeito para 0 ‘exterior. Nio € pensamento ou contemplacio, & accio,, mas contendo toda a expressio corporal e gestual que’ identifica aquela pessoa determinada. Cada gesto meu é ‘completamente meu, mesmo tendo 0 eco de todas as fami- liatidades e condicionantes educacionais e genéticas vestigio de um gesto meu, ¢ estou a pensar num taco, vai ter esta qualidade \inica de ser o meu gesto € 0 ‘meu traco, F claro que esta identidade se define numa, espécie de infraniveis, por vezes dificeis de identi que nao contradiz a afirmagéo de que 0 resultado, em, marcas, dos gestos que eu faga, transporta toda a minha, historia consciente € ndo consciente, a minha vida no, mundo € a minha vida dentro de mim, © Gomo parifiase a0 que afirma Leonardo: +O pintor pintse a s ‘mesmo [-ll pitore pinge se steseo], Leonardo da Vind, Rucitos Filossics, ci. de Kosthauaky, Die nse der Zeichnung, Monique, 1901 Isto € verdadeiro para mim ¢ para todas as pessoas e para todos os gestos de todas as pessoas. ‘Quer entio dizer que, ao fazer um desenho, a minha identidade contida na maneira dos meus gestos esti impressa em cada trago e em cada mancha. Ao usar 0 verbo de forma rellexa, «desenhar-ses, pretend impor dlrectamente esta ideia de identidade contida no acto de dlesenhar. Digo de mim, em desenhos, porque posso querer lazé-lo ~acto consciente mas desenho-me sempre, tanto quanto essa aecio tem como resultado final um objecto ‘que € 0 seu vestigio ~ acto com caracterfsticas mais vege- tativas do que subconscientes, Esta diferenga que me dis- lingue de todos os outros refere-se ao cardeter tinico € irrepetivel que € cacla entidade viva, e deste modo cada pessoa, tanto quanto sio tinicas as minhas caracteristicas, mesmo a um nivel microscépico, ¢ tinica a minha identi- dade genética. Assim sera toda a acgio que a criatura, por hipétese, eu vier a fazer O objecto desenho nao existe anterior a nds, ele € um. resultado quer da nossa relacio espacial e fenomenal com » mundo, quer um resultado directo da nossa vontade e ‘capacidade de accfo, neste caso do desenhar. A partir daquele que desenha e das variedades de personalidade, imaginacio, talento, estado de espirito ou satide, sex lidade, habilidade manual, que © podem caracterizar, «stas vlo imprimir ao resultado do fazer um cunho pes- soal que o individualiza, nio apenas no seu sentido, mas nna propria forma que cada elemento adquire. A ideia de que um desenho possa resultar de um esto de méo to controlado que anule qualquer vestigio dlo seu autor, uma espécie de méquina impessoal de ris. «ar, € quase © proprio oposto do acto de desenhar 65 ‘Ao tragar uma qualquer linha sobre uma superficie, a ‘mio vai sofrer variacées de intensidade de traco, ques conforme a maior ou menor forga com que € feito, per- manecerd firme ou tremente, deixando desenhada uma ‘marca ao acaso, que a vontade consciente do autor no desejava e que, dependendo de tantas possiveis varian- tes, permitiré, num simples gesto, transpor para as carac~ teristcas do tragar individual de cada um coisas como a ‘boa ou ma disposicdo para a vida, a raiva, 0 entusiasmo, 0 tédio, o interesse. Afinal, toda uma gama de estados de (0, vontades, intencoes € disposigdes imaginaveis, Se a mesma linha é desenhada com intensidades diversas eonsoante a forca que a mio imprime ao gesto tuma vex que esta variagio pode acontecer no mesmo autor, até de momento para momento, ela corna possivel identificar como ao longo dos anos ¢ da vitalidade de cada um esas mesmas caracteristicas se alteram, inde- pendentemente das intencées plisticas e gralicas que existam, ‘Assim, mesmo antes de procurar entender 0 que desenhar, existe um nivel prévio que € 0 dos sentid Implicitos, nao conscientes © pessoais, contidos no pro prio tracar. ‘Tanto quanto € possivel identificar expresses pré: prias na interpretacio, no mesmo instrumento, de um: obra musical por diversos amisicos, assim existem expres s6es préprias da personalidade grifica de cada criador. ‘Toda a pequena histéria contida no registo do gesto indo, e que existe implicitamente contido como vestigio personalidade de quem a desenha, é por sua vez trabalhi da e desenvolvida por cada autor numa espécie de fia pessoal, 0 que nos permite olhar para um desenho identifici-to mesmo antes de saber o nome de quem o fe Lembro como exemplo dois autores que, de 140 conhecidos, facilmente se recorre de meméria a imagem de alguns dos seus desenhos, e distingo os riscos violen- tos, desesperados ¢ investigantes de Van Gogh das linhas angustiadas ¢ de uma sensualidade rasgada do tracar de Egon Schiele Duas personalidades torturadas e, no entanto, dese- nnhando essa angiistia de modo préximo e diverso, A identifieagio das caracteristicas préprias do tracar de cada autor, da linha ou dos grafismos simples que cada um fard, e que pode ser definida por adjectivos dife- rentes com maior ou menor cor, $6 demonstra que cada pessoa risca de um modo que a define, e que & apenas seu, € esta constatacio € to verdadeira quanto a de que ‘ada pessoa tem uma letra e uma assinatura que a iden- tificam, como uma impressio digital A quase organicidade do desenhar, neste sentido de vestigio de nds mesmos, é um dos aspectos funcamentais, para entender a sua importancia como método de inves- ligagio ¢ registo do mundo que nos envolve, bem como de nés préprios, tanto quanto permite estabelecer uma relagio directa enire a coisa a pereeber, a percepcio e 0 registo de como foi percebido. Um registo que nio $6 faz sentido para nés proprios, como & também imediata- mente compreensivel para quem olhar 0 desenho. ‘Ao considerar a espessura ou a leveza de uma linha, a sua intensidade, a rapidez que ainda ecoa do gesto que «fez ou, pelo contrério, a violéncia, a sua seguranca ou «sua imprecisio, estamos a considerar todos os atributos que os clementos graficos adquirem © somam as suas, ‘aracteristicas de grafismo, totalizando a vivéncia com- pleta do objecto desenho ¢ interferindo directamente na. sua definigéo, or Enquanto a comunicacio que utliea cédigos como estrurura de base recorre sempre & sua estrutura fix, no desenho, os préprios elementos origindrios no tém ‘qualquer normalizagfo,O sistema é sempre aberto ecom possibilidades in cntanto, uma manifesagio a varios niveis de consciéncia da propria pessoa que desenhou © sentido da afirmagéo de Leonardo sublinha a ten= déncia que cada artista tem para criar um mundo eom- pletamente seu, extabelecido pelos dversos sentdos da sua obra que se exclaecem numa referéncia recorrente 20 seu autor. K cutioso pensar que exstem poucas sia bes de heteronimia nas artes plstins, Seria um assunto wdaveis de combinacio, sendo, na que em si mesmo mereceria uma longa anzlise que extrax vasaria o Ambito deste texto; porém, esta relagio entre uma arte que exige accfo fisca que fiea em eco no sew préprio resultado dificultaré, por hipétese, 0 desdobra- mento mental necessério a criacio de outros autores, o¥ entao postulé-lo-é de maneira completamente diferente. A mente desdobra-se, porém 0 gesto tende, intensa- mente © por processos diffceis de controlar, por menos conscientes, a apresentar uma identidade definida © Mas nio € $6 pela manifestacio da sua relagio com 0 ‘mundo ¢ da manifestagio inspiradora das suas obsessGes que o artista se pinta, ou, neste caso, se desenha; ¢ sobre- tudo pelo caricter de registo directo de um movimento, porque o desenho, além de intencio comunicativa, & também o vestigio de um gesto que cada um de nés, 20 desenhar, deixa como uma espécie de prova de existén- «ia, 4 ideia de desenhar como sendo um vestigio dese: ‘adeia imediatamente uma outra constatagio da cons- in de si através da identificacio do Outro, (O desenho de figura humana, paradigma maximo da nogio de alteridade, vai mobilizar 0 conhecimento do, corpo préprio, pelo entendimento, através da observa- ho, de tudo o que refere a0 corpo do Outro. Das esquematizacdes diagramaticas das pinturas rupestres, as varias invengGes totémicas e facticias das diversas religiées, pasando pelas idealizacdes enterneci- das criadas pelos Gregos ¢ perpetuadas por toda a arte cidental, 0 corpo humano e todas.as estruturas de enten- dimento da sua forma — harmonias, cénones, excepgoes, aberragées ~ foram € continuam assunto de eleigio do desenho que o investiga, usa, devassa ¢ eterniza © corpo, lugar por exceléncia da nossa relagio com 0 mundo e com os outros, € 0 ponto de partida de enten- dimento das coisas. E porque as pernas passeiam que a extenséo se escla- rece; porque a cabeca esté colocada na parte mais eleva- da da unidade que € um sujeito que hé coisas acima e abaixo € ao nivel dela; porque o cérebro & assimétrico que me mostra uma hierarquia de coisas a esquerdla e direita; porque o corpo se articula em elementos vari dos como falanges, dedios, mos, pés, bracos ¢ pernas que € tio evidente poder contabilizar as coisas ou dividilas: porque um braco ou uma mao sio sempre e ao longo da ‘mesma vida do mesmo tamanho que podem servir de medida, em polegadas, palmos, bracas, pés. Mas a rela- ‘gio com tudo o que me é exterior & bem mais complexa «do que o simples esclarecimento através da accio e intui- ‘Gio do corpo. A consciéncia da identidade individual esta intrinsecamente ligada ao facto de este sujeito observar ‘outro € outras criaturas semelhantes, aos quis imediata- mente reconhece parecengas que possbilitam constatar {que provavelmente tudo o que eu, sujeito, sinto & penso 69 acontece de maneira parecida com a dessa outra pessoa que me olha € que eu olho e que me diz pensar e sentir. Porém, esse meu semelhante éme também diferente, com variantes de mim que me atraem ou repelem, que eu amo ou odeio, que me eneantam ou desgostam. Esse Outro mobiliza-me a curiosidade e os afectos e, quando se torna meu modelo, explica-me a minha iden- tidade, a minha forma ea minha diferenca, isto € identidade, a sua forma ¢ a diferenca que talver me, tenha movido a desenbé-lo O entender do mundo a partir do sujeito nao implica uma explicagio centrada no ego do sujeito, mas na sua consciéncia, que por sua ver teré a capacidade de se ‘encantar com essoutros ¢ a vida e 9 mundo, entendides. Da observagio da figura, da cara ¢ do corpo dos outros conchui-se que, se existem diferencas, existem também constantes, e as constantes podem ser sistemati zadas. Indo mais longe, se juntar numa mesma sistema tizagio tudo 0 que considero de mais belo ¢ harmonioso das pessoas, tenho a criatura que para mim seria um) ideal de beleza. Simplificando, € um pouco deste modo que se constr6i o cinone da figura humana. Mas se 0 canone ordena os elementos que alguém ow alguma época consideram os melhores, os mais beles, torna-sé cevidente que os canones variam, tanto quanto varia aqui To que comove e encanta cada grupo em cada tempo. Estamos a tentar entender os métodos do desenho do que podera ser um processo do principio para o fim na realidade, quando se comega a desenbar, comeci-se da} fim, ¢ 05 sistemas, 0s eddigos e os cénones aprendem-se antes de se pensar porque funcionam, © que fica manifesto é que o desenho contém plenat ‘mente a qualidade de participar do conhecimento ate 7 vés de um exercicio do olhar, no qual estéo mobi todos os sistemas de relago que usamos para existir, com ‘uma énfase particular na observagio e nos afectos. © desenhador desenha-se a si mesmo também, da forma mais directa, uma vex que & frequente fazer 0 auto-retrato ou desenhar as préprias maos, 0 préprio corpo. No desenhar, ou porque esté a deriva, sem mode- Jo, ow porque se deseja conhecer com a lucidez que guarda para os outros, acaba por consumir 0 proprio agente da acgéo que cumpre. n 10. Ressonancias gréficas anteriores a representacio Precisamente porque o desenho, antes ainda de ser ‘comunicagio intencional, é um desencadear de acidentes gréficos, ¢ podendo conter, desde logo, uma situacio, cstética embrionaria, importa identificar até que ponto 0 menor acidente grafico € potencialmente um desenho. ‘Ao questionar quando 6 que um desenho é um dese- nho, estamos perante 0 problema da intencio de eri um objecto com a capacidade de ser percebido e de comover esteticamente. Porém, tal afirmacio, que, dita ‘em palavras, tende a ser mais hermética, torna-se clara a0 perceber a relacio de jogo grifico que qualquer ele- ‘mento desencadeia sobre o plano da folha. Ao estabele- cer 0 desenho como objecto a ser percebido esteticamen- te, e, assim, como uma finalidade em si mesmo, devemos indo desconsiderar todo 0 cardcter decorativo que os seus elementos tém, ¢ tanto nos podem tocar as incisdes geo- meétricas feitas numa qualquer cerdmica como as linhas que perante nds estabelecem uma perspectiva, ‘Aqui, € precisamente a intengio que estabelece uma diferenca, no entanto, os elementos utilizados sfo os mes- mos, com 0 mesmo tipo de potencialidades. Se é possivel definir a superficie sobre a qual se dese- nnha como uma transposigao de nds mesmos, seré entiio interessante comecar a pressentir a infinidade de possibi- lidades combinat6rias entre essa criatura a existir, 0 P.O. todas as variantes possiveis de grafismos que este pode conter num vestigio directo da entidade que os produ. ‘Num desenho, podlemos ver entretecer uma ideia de twansposigio da relacio espacial do sujeito com o mundo, com um «caminhar» directo da mio desse sujeito mar- cando essa superficie, agora tornada mundo, Convém ainda lembrar que neste tecido ainda mio se considerou sequer se existe representagio ¢ que tipo de representacées podero acontecer, Estamos apenas peran- teo fenémeno do gesto do desenhar, o hugar onde se dese nnha e a relagio destas duas parcelas com quem as realizou. (0s elementos gréficos minimos, © ponto, o traco € a mancha existem como conceito abstracto na geometria ‘enquanto ponto, linha € plano. Estes conceitos, sem rea- lidade material e com uma existéncia abstracta que Ihes permite terem uma definicio em termos de infinito, baseiamse na situaco experimentavel do ponto enquan- fo 0 momento em que 0 instrumento riscante toca no plano do desenho, no risco que resulta do movimento da ao registado por esse mesmo instrumento, ou na man- cha que € a prépria conquista da planura da superficie. Quer pensemos nos elementos grificos minimos como abstracgées, quer como coisas» materinis, referimo-nos até agora ao desenho sobretudo como um plano sobre © qual cexistem acidentes gréficos ainda nfo completamente iden- tificiveis, Por outras paras, pensamos num desenho, a como uma supertice sobre qual exstem riscose manchas, Porém, mais clo que estabelecer um jogo grafico, existe fre- quentemente uma intengio de representar, de organicar uum dscorrer do pensamento especfico do mundo das for= mas €, muitas vezes, ainda uma intengio de comunica. ‘Tendo referido como cada linha desenhada (cada esto) & em si mesma um acontecimento carregado de informagio, quer sobre o seu desenhador, quer sobre as relagbes grificas que estabelece com 0 lugar onde foi desenhada, podemos concluir que desde muito «cedloe existe uma situagio comunicativa, embora nfo num sen- tido Tteral e descritivo. A pessoa manifesta-se no proprio gesto do desenhar, «num sentido muito directo, desenha de si mesma ves- tigios da sua entidade, como uma identidade. Antes de 0 desenho ser comunicacio consciente, mé todo ou investigacdo, antes de existir uma vontade que implica intencao estética, estd toda a realidade material e ‘conceptual dos instrumentos e dos elementos do dese- nho, bem como toda a realidade material, mental e alec tiva de quem vai desenhar, e, em potencialidade, as res- sontncias das interaccées de ambas. Antes da representagdo encontramo-nos no lugar do’ desejo, tanto num sentido da acco de querer ~ quero fazer, quero desenhar, quero dominar uma expressio _grifica, quero guardar a experiéneia de uma imagem ‘que me encantou, de um rosto que me comoveu -, quan= to num sentido de conquista — © que desejo tenho-o por- que odesenho. Assim, 0 desenho € o objecto que me aparece, € 0 acto, de o fazer, mas é também toda a energia da libido e da ‘mente contida num antes, que desencadeia na acco que se propée, “ LL. Representagao De entre as vivas sintagdes comunicaivas estabelec- das pelo desenho, a posilidade de representagio de imagens visuais de uma naneira muito imediata e com mcios extremamente simples permanece como das suas caracteriticas mais fascinantes. Pode gerarse muita confuséo pelo facto de chamar- mos desenhos @ uma quuntidade vasta de imagens © representacdes grafic Representar, no num sentido metabrico, mas no sentido objetivo do termo, um conceito que esta implt- cito1em muitos aspectos do desenbo e sobretdo no dese- ho A vista, que constitui uma fase importante do pré- prio desenbar. F verdade que nem todos os desenbos se referem realidade. O proprio fendmeno de desenhar, como tem ‘indo a ser definido, posibiita wm jogo comunicativo com 0s seus elementos que dispensa qualquer represen- tacio. Todavia, a anilse da realidade experimentada através do olhar e entendlida e estudada pelo desenbo € 7% tum dos seus primeiros fenémenos, do qual decorrem todas as possivcis variantes do desenhar, daquilo que se quer desenhar e das atitudes ao desenhar. Este primeiro representar da realidade refere-se sobretudo ao desenho a vista, que € em si mesmo estudo, dessa realidade, mas que acaba também por incluir 0, proprio aprender a fazer. Daqui se infere de imediato como esta disciplina contém aspectos formativos interes- santes, uma vez que se aprende no mesmo momento em, que se investiga. © termo «representagio», referindo-se ao fenémeno artistico © particularmente ao desenho, levanta proble- ‘mas espectficos que ultrapassam largamente a ideia mais imediata, em que representar se refeve a uma imagem a partir daquilo que foi observado. Representa-se tanto a partir da realidade observada ‘como cle uma subjectividade sentida, como se represen- tam ainda concepcoes abstractas. Representar, que implica a intencio do sujeito que desenha de representar, contém niveis variados de uni- versalidade, ‘Se um esquema simples de um segmento de recta vers tical, com uma bola em cima e dois pequenos segmentos menores irradiantes e simétricos a meio e dois segmentos, irradiantes simétricos na extremidade inferior, pode ser identificado como uma figura humana por grupos cultu- ral ¢ historicamente diversos, existem outros niveis de Fepresentagao que, sendo profundamente claros e «falan- tes» para um determinado grupo cultural, sio totalmen- te mudos e indecifraveis para outro. Por exemplo, sabe- ‘mos que um tridngulo isésceles com um olho dentro, no grupo familiarizado com a religido catslica identifica um, simbolo que representa Deus e a Santissima Trindade, 6 mas pessoas que desconhecam esta religiio toda a sim- bologia a si assocada ido apenas ver 0 trdngulo € 0 ‘lho, sem qualquer outro sentido representativo. ‘Ainda outro nfvel de representagées refere-se 3s figu- ras geométricas que, nfo representando nada naturals ticamente, apresentam conceitos, abstractos ou nio, da Finguagem da geometria Vitrivio, no preficio do seu Livro IV. eonta como Aristipe, filésofo disipalo de Séerates, que naufragara na costa de Rodes, chega a uma praia onde vé na arcia tracados geométricos € rita aos seus companheiros «nada ha a temer, vemos vestigios de homens». ‘A intengio de representar, quando se concretiza, € importante, mesmo quando a identficacio nio € bem sucedita ~ porque se eu desenho um objecto determina- ddo quero desenhar esse objeeto. Mesmo que © meu pro- cesso de identificagio remeta para cédigos tio indi dduais e herméticos que poucas pessoas além de mim possam vir a reconhecer o que eu quis representar E verdade que, no caso das representagies artisticas, & expressio como outro factor de comunicagio pode esta- belecer um campo dialogal entre a obra e 0 observador que desencadeia, mesmo assim, o fendmeno de emogio, cestética, Porém, quanto mais tender para uma si representativa restrita, menores serdo as possibilidades de que essa experiéncia seja universal Da definigio dos elementos do desenho pode con- dluir-se que a representagio existe contida no préprio esto do fazer, na medida em que a pessoa se mostra, nesse fazer, se desenha no acto de desenhar: ‘Assim, 0 fenémeno da representagio pelo desenho contém no 6 todos os acidentes menos conscientes do esto de desenhar, como também as ressonincias dos n diversos componentes do desenhar, instrumentos ¢ ele- mentos grificos, € ainda a intengio de representar, ma qual est implicito um contexto cultural especifico. Quer isto dizer também que, se, por um lado, temos as ressonincias dos elementos do desenho entre si mes- ‘mos € com o plano sobre o qual estio desenhados, por outro, 0 cardcter pessoal ¢ personalizado do registo des- ses elementos e finalmente a sua utlizacio com o sentido de representar alguma coisa ou de estabelecer a existén- cia de um objecto a ser percebido esteticamente so 0 que parecer como desenho. ‘Todavia, «represemtar» € «comunicar», referindo os termos aspectos especificos da criagio artistica, no so completamente sinénimos. No caso do desenho, embora existam desenhos no representatives, o fenémeno da representacio € fundamental na sua génese, dai que, destas divagagGes se devera manter presente a forte rela- ‘Glo do desenhar com a apresentacio ¢ representagio da realidade registada pelo olhar. Excluindo as situagoes extremas de abstracgio ou de nio-representagio, 9 desenho estabelece sempre uma ponte com a realidade dos sentidos, mesmo quando as imagens surgem da imaginacio. ‘Talver seja discutivel afirmar que o desenho apresen- ta, desereve e representa, porém, se invertermos 0 esque- rma de pensamento em relagio ao que € desenhar, creio que ser possivel concluir que nem sequer teria sentido 0 aeto de desenhar sem antes ter existido uma intengio de registar e representar a realidade. ‘Quero dizer que é do desejo de representar e guardar aquilo que se observa que nascera a necessidade, 0 dese jo de desenhar,e s6 entio a divagagio Kidica com os seus elementos se integra neste conceito. Tudo isto est conti- 8 do no acto de desenhar, € 6 tal objecto banal simples ¢ ‘acessivel a qualquer pessoa comeca a aparecer em toda a sua complexidade, sem nunca perder a qualidade de ser utilizado e percebido por qualquer ur. Assim, sendo o desenho um processo que desencadeia fenémenos complexos da nossa relaglo connosco € com ‘© mundo, tem a capacidade de 0 fazer de uma maneira simples e imediata, isto é quem esti a desenhar esté a utilizar as qualidades da sua mente de modos extrema- mente elaboraclos, sem que 0 processo seja consciente, ¢ sobretudo sem que Ihe seja exigida uma formagio cultu- ral ou académica particular. Qualquer erianea desenha e qualquer crianga desen- cadeia esse processo simples e complexo. Rapidamente este pode adquitir um cardcter simbélico, magico ou até mistico no Ambito das mobilizacées que desencadeia a partir de nds mesmos e das relagées que estabelece entre nds, € 05 outros e o mundo, Finalmente refira-se que este registo, o da represen- tagio pelo desenho, no 6 um gesto passivo ou mimético, sendo, pelo contrério, uma espécie de um entender in- teractivo da paisagem fenomenoldgica que 0s nossos sen- tidos experimentam, através de uma expressto grifica, nao codificada que se inventa a cada nova realizagio. 79 12. Desenhos 0 desenho & um modo de expresso grifica que, uti- lizando a sensibilidade e a afectividade como instrumen- tos privilegiados de uma maneita de pensar especifica, exterior a um raciocinio légico-dedutivo, participa no proceso de ctiacio artistica plistica e espacial, quer como intermedidrio, quer como objecto com identidade propria Participa enquanto 0 desenho € obra com intengées?” artisticas, enquanto o desenho & sistema intermédio de concepgio de obra plistica e mesmo enquanto 0 desenho €o modo de pensamento e concepeao de uma realidade diversa, isto é, como finalidade em si mesma, como estru- tura de outra obra final ou como projecto de um devir. No primeiro caso, aparece-nos aquilo que € um modo de expressio artstica, veiculado através de uma forma Sie fa eae ree mak sre 80 sjas restrigdes so apenas uma existéncia bidimensional, com um conjunto de elementos minimas simples, trago ‘mancha, ¢ realizado directamente com a mio (ou qual quer extenséo equivalente); tudo o que posteriormente ‘acontece coma fenémeno grafico ndo esté predetinido, ido ¢ previsivel, nem existe padronizado. £ um sistema ppletamente aberto eujas ordenacées serdo as da pré- pria expressio artstca, isto €,o estilo. No segundo caso, o desenho sujita-se quer a técnica fa ser posteriormente utiizada, quer a nio necessidade ‘comunicativa no sentido pleno. Ele existe como alicerce & ‘como esboco a ser legivel sobretudo para 0 seu autor. Nio ha uma intencionalidade comunicativa expressa, € se tal vier a acontecer ¢ indiferente a sua razio original E uma situagio de representagio ¢ autocomunicagao rm estado quase puro de pensamento embrionario, e, “como se depreende do que antes se afirma, se o sistema é completamente aberto, neste aso, € se assim for possi- vel, existe ainda mais liberto de qualquer o seu corpo ¢ a sua mente para a realizacio dle uma tarefa cuja complexida- de, além de mobilizar aspectos tao variados do nosso eu, € um exercicio de concentragio ¢ controlo, que, ainda or cima, tem o bénus de ser uma accio geradora de prazer, no sentido em que € também eminentemente lidica Desenhar comeca por ser um prazer, quando se é crianga; provoca momentos dolorosos durante a apren- dizagem ¢ rapidamente se transforma de novo num pra- er, agora mais completo, jé que nos mobiliza (mente € corpo) totalmente. ‘Temos continuado a falar do desenho recorrendo, sobretudo a ideia de desenho como «desenho a vistae. ‘A classificagio ndo dever ser entendida de uma ‘mancira estrita porque quem desenha a partir da obser- vyacio da realidad nao deixa de transportar de si mesmo, a sua propria mancira de ver a realidade, que ficard 87 express no desenho feito, do mesmo modo que quem desenhe por imaginacao, salvo situagGes excepcionais, estar sempre a referir-se explicita ou implicitamente & realidade registada pelos sentidos. ‘Quer entio dizer que desenhar, dado que se refere irectamente ao sentido do olhar, refere-se por isso ‘mesmo & capacidade de observar ¢ entender visualmen- te essa realidade que se observa Ao abordar aquilo que € 0 desenho como metodolo- gia, estamos a considerar varios tipos de desenho, obser vando preferencialmente a sua producio e utilizagio, ¢ no tanto o tipo de objecto resultante. Contidlo no processo de trabalho das diversas discipli- nas artisticas, existe implicito 0 desenho. ‘Num texto fundamental para estabelecer a maneira livre e inventiva da metodologia de estudo de Leonardo a Vinci, bem como da evolugio da sua maneira de dese~ thar vinda de uma atitude mais medieval em que o pri- mado da linha de contorno pura e perfeita caracterizava © talento do artista, para um processo, 0 seu processo, quase escultérico de desenhar, Gombrich’? afirma: “Ele (Leonardo] trabalha como um escultor modelando em barvo, que munca aceita uma forma como final, mas cont ‘nna eriando mesmo com o rsea de obseureceras sas inte: 6es originas. [..] Nao existe paralelo no trabalho de artis tas anteriores. Leonardo sabia que este, metodo era tunicamente set ena passayem que desejo discuir ele expl- ca tanto a sua novidade como a sua raison détre®: “Tu que compoes imagens, nao artcules as partes individuais dessas ®Gombrich, E.H., The Esental Gombrich, ed. Richard Woodie, Londres, Phaidon, 1996, p. 211, «Leonardo's Method for Working ‘out Compositions, 1952 °

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