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Etnografia Como Potência Criativa Do Corpo...
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Bacharela em Dança e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais na Universidade
Federal de Santa Maria. Artista-pesquisadora no Núcleo de Estudos Contemporâneos (NECON).
Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN
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de valor entre elas. Portanto, são essas camadas que conduzem essa escrita como um
fio que costura todas essas possibilidades de produção de conhecimento.
Antes de elaborar o meu fazer artístico-etnográfico – que está amparado por
diversos autores – apresento a pesquisa que dá subsídio a tais reflexões, pois, é a partir
dela que me encontro nessa encruzilhada de saberes e fazeres entre Antropologia e
Dança. Ainda em andamento, a pesquisa “Corpos negros dançantes no ensino superior:
processos identitários no campo artístico da Universidade Federal de Santa Maria” está
dentro do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM), é financiada pela CAPES e está sob orientação da Profª. Drª. Maria
Clara Mocellin e co-orientação do Prof. Dr. Flávio Campos.
Através de tal pesquisa, inserida na linha “Identidades Sociais, Etnicidade e
Educação”, tenho como principal objetivo compreender os processos identitários de
bailarinos negros que estão ou estiveram inseridos nos cursos de Dança da UFSM entre
2013 e 2018. Para tanto, invisto no trabalho de campo como possibilidade de mapear,
conhecer e registrar as trajetórias dos sujeitos considerados interlocutores e é a partir
disso que construo a presente narrativa.
É imprescindível destacar que falo aqui enquanto mulher negra, artista da Dança,
pesquisadora e antropóloga em formação, em um trânsito ininterrupto entre esses
lugares. A partir disso, utilizo da primeira pessoa para narrar o estudo sobre identidade
negra na Dança, tendo em vista que é o meu corpo negro dançante que investe em um
sensível e minucioso trabalho de campo nos cursos de Dança da UFSM. Ingressei na
primeira turma2, portanto, sou a primeira negra bacharela em Dança no Rio Grande do
Sul e utilizei o sistema de cotas3 me autodeclarando negra. A partir da vivência
enriquecedora na graduação realizei um mergulho interior e isso me proporcionou um
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O curso de Dança Bacharelado foi criado em 2013 pelo Centro de Artes e Letras (CAL) e no mesmo ano
o Centro de Educação Física e Desportos (CEFD) criou o curso de Dança Licenciatura.
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Sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em 29 de agosto de 2012, a Lei 12.711/2012 é aplicada nos
processos seletivos reservando vagas para o candidato egresso do sistema público de ensino médio e
autodeclarado preto, pardo e indígena (PPI). Fonte: http://www.planalto.gov.br
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trabalho de expressão corporal, de autoconhecimento, de empoderamento e de
autoaceitação.
O final da graduação marcou um momento importante na minha trajetória, tendo
em vista que no período formativo a minha identidade negra foi de fato construída,
reconhecida, aceita e afirmada. Por isso, segui a carreira acadêmica com a intenção de
realizar uma investigação reflexiva na pós-graduação. Abordei a temática étnico-racial
em meus estudos desde a graduação e hoje, no mestrado, encaro a negritude enquanto
uma problemática instalada e incrustada no corpo e na vida de tantos negros. Essa
problemática é encarada a partir da identidade negra e seus desdobramentos nos
processos identitários de artistas no processo formativo, sobretudo nos cursos de
Licenciatura e Bacharelado em Dança na UFSM.
Tendo em vista que a negritude se define e redefine ao longo da trajetória como
um todo, o objetivo da pesquisa é compreender como esses processos ocorrem no meio
artístico, investigando de que maneira a Dança pode reverberar na identidade de cada
sujeito – considerando que no espaço acadêmico a negritude pode ser potencializada
mas também silenciada e invisibilizada.
Para dar conta dessas densas discussões, identidade e negritude são
compreendidas a partir do que aborda Patricia Pinho (2004), pois a autora traz em suas
reflexões a reinvenção das possibilidades de construção da identidade negra,
desmistificando a ideia de uma suposta essência que limita a imagem do negro e
considera o desenvolvimento da negritude sem um desdobramento prévio definido.
Em diálogo com outros autores, principalmente com Oracy Nogueira (2006),
estabeleço uma discussão de identidade negra no Brasil, pois a partir deles é possível
encarar a negritude brasileira não como o resultado de uma “herança africana”, mas sim
como uma construção que ocorre a partir de diversos processos sociais. A escolha pelo
mestrado em Ciências Sociais na UFSM traz também a seguinte questão: o que é ser
negro no meio artístico-acadêmico, em específico, na Dança?
Para dar conta dessa reflexão, utilizo a etnografia como uma via mapear, conhecer
e registrar a trajetória dos interlocutores de pesquisa. Ao mesmo tempo, no meio do
trabalho de campo, me encontro revisitando meu próprio caminho. Esta etnografia se dá
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através de conversas com caráter de entrevista e conversas informais, somadas a
Observação Dançante, junto da escrita constante do diário de campo, auxiliando na
construção desse artigo.
Chamo de Observação Dançante o que tradicionalmente é considerado
observação participante4 pois utilizo do meu corpo que dança para acompanhar e
perceber através dos sentidos o cotidiano de alguns dos interlocutores. Além disso, o
trabalho de campo com a Observação Dançante permite evidenciar como se dá a
inserção dos bailarinos negros dentro do universo acadêmico e a experiência com o
processo formativo, mantendo sempre o corpo como ponto de encontro entre os sujeitos
e como lugar de referência para pensar as noções de identidade e de negritude.
O universo de pesquisa é formado por acadêmicos negros de diferentes
semestres dos cursos de Dança Licenciatura e Bacharelado da UFSM, escolha pautada
na intenção de contemplar as diversas fases da graduação. Aliado a isso, também
investigo as trajetórias que por algum motivo foram interrompidas, considerando os
alunos que contabilizam os números de evasões e as graduações finalizadas, integrando
também alunos egressos ao grupo de interlocutores.
Investigo, de corpo presente, o cotidiano de alguns desses sujeitos a partir do
retorno aos cursos de Dança. Agora não mais como aluna, mas com o olhar observador
de pesquisadora, que busca compreender como são as relações entre os alunos negros
e os outros alunos, entre os professores, entre eles mesmos e com a Universidade como
um todo. Para tanto, faço a Observação Dançante em uma disciplina obrigatória para
ambos os cursos, já que os primeiros semestres possuem uma grade curricular comum
entre a Licenciatura e o Bacharelado. A docência orientada também é realizada em uma
disciplina da Dança mas, dessa vez, é uma disciplina complementar a graduação e nela
está matriculado um dos interlocutores da pesquisa. Frequento o campus Camobi da
UFSM quase que diariamente, e é lá que estão alocados ambos os cursos de Dança.
Por isso, consigo observar também os espaços extraclasse, como Restaurante
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Sobre observação participante, ver Ingold (2016)
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Universitário, eventos promovidos pela Dança ou que atingem essa área e por fim, o
cotidiano no prédio da Dança-Bacharelado onde há uma grande circulação de alunos.
Aos que não estão mais na graduação, seja por ter evadido ou concluído,
mantenho contato pelas redes sociais. Alguns deles eu conhecia antes de ingressar no
mestrado, portanto, temos vínculos que possibilitam o contato virtual e também
conversas informais, já que tenho uma relação mais próxima de amizade com um
pequeno número de interlocutores.
Considerando que o campo de pesquisa é na Universidade, é indispensável
apontar que há uma reflexão sobre a ingresso e a permanência do negro no ensino
superior. Aqui, por se tratar de uma breve apresentação da pesquisa, apenas ressalto
que a partir de Kabengele Munanga (1999) e Nilma Lino Gomes (2002) discuto as
particularidades e articulações entre educação e identidade negra, evidenciadas pela
potência política contida na presença de estudantes negros no ensino superior –
principalmente quando se diz respeito a uma instituição de ensino pública e que possui
um programa de ações afirmativas como é o caso da UFSM5.
O ingresso e a permanência de artistas negros no ensino superior dizem respeito
a lugares de poder ainda muito cristalizados nos dias de hoje, por isso, através da minha
pesquisa, penso numa possibilidade de ver esse lugar muito mais preto. Pretear as
cenas, os palcos, as salas de aula, os espetáculos, as performances. Pensar em um
futuro com mais Dança preta, feita por negros e legitimada por todos.
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A UFSM instituiu o Programa de Ações Afirmativas pela Resolução 011/2017 e a adoção das ações
afirmativas visa suprir a necessidade de democratização do acesso ao Ensino Superior público e erradicar
as desigualdades sociais e étnico-raciais. Para tanto, conta com as atividades do Afirme5, que assessora
o ingresso e a permanência universitária dos acadêmicos cotistas. (Fonte: CAED - Coordenadoria de
Ações Educacionais <https://www.ufsm.br/orgaos-executivos/caed/>
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Com essa breve apresentação da pesquisa tive como objetivo contextualizar o
campo de investigação e apontar os possíveis desdobramentos a partir dela. Nas linhas
que seguem compartilho como eu, artista-pesquisadora, me encontro em meio a estudos
antropológicos após uma graduação em Dança e sendo ela o campo de pesquisa.
Senti a necessidade de expressar corporalmente as informações que estavam e
estão me atravessando a partir do intenso trabalho de campo que acabei de apresentar.
Precisava colocar o meu corpo negro em movimento para entender qual lugar em mim
habitam tantas inquietações, como por exemplo: que relações existem entre Dança,
identidade negra e Antropologia? Como se entretecem negritude e educação – esta
última enquanto uma complicada trama de práticas pedagogias, sistemas e significados,
no campo do ensino superior? Eis que em meus estudos procuro refletir, mais do que
responder.
Trago Tim Ingold (2018) para amparar a discussão sobre o fazer artístico
relacionado ao fazer etnográfico, pois o autor aponta a Arte como antropológica e ainda
completa que os artistas da Dança são muito mais próximos da verdadeira Antropologia,
mesmo que não façam conscientemente seu trabalho como tal.
Para pensar, dançar, fazer, falar e criar, fiz uso de ações performáticas para
compartilhar a pesquisa em determinadas situações durante o mestrado, iniciado em
2018. Assim, realoquei essas inquietações e a própria estrutura metodológica do
trabalho, me sentindo contemplada pelas constatações de Ingold (2018). Apresentar
uma pesquisa através da fala e do movimento, principalmente em espaços que não são
predominantemente artísticos – como o curso de mestrado em Ciências Sociais – causa
impacto e fomento para a discussão entre Antropologia, Dança e Performance.
Não cabe aqui uma extensa discussão sobre o que é Performance, mas para
situar o leitor, me refiro a expressão corporal, vinculada a minha criação artística para
compartilhar a pesquisa de forma poética. A Performance nasce como uma manifestação
expressiva disruptiva e principalmente a partir dos anos 80, no Brasil, muito se realiza
performance do ponto de vista prático e o mesmo não acontece no ponto de vista
conceitual (COHEN, 2002). As raras formulações teóricas sobre esta expressão
acarretam uma noção para o público brasileiro de que Performance é uma improvisação
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apresentada eventualmente em lugares alternativos. Porém, outras características
podem ser mais apropriadas para arte que “rompe com convenções, formas e estéticas,
num movimento que é ao mesmo tempo de quebra e de aglutinação” (Cohen, 2002, p.
27) e que permite analisar questões complexas como usos convencionais do corpo, de
processos criativos, de lugares a serem ocupados e tensionados, entre outras.
Apesar dessa manifestação artística, por certas vezes, tentar escapar de rótulos,
a Performance é antes de mais nada uma expressão cênica (COHEN, 2002). Portanto,
expressar o trabalho etnográfico com meu corpo todo – incluindo fala, movimento,
gesto... – cria um espaço que difere do cotidiano, das apresentações mais tradicionais,
configurando um espaço para inverter ou negociar o papel do etnógrafo. Nesse processo,
cria-se espaço para a reflexividade da autonomia acadêmica, pois conhecida
principalmente a partir dos estudos de Clifford Geertz (1989), a reflexão é desenvolvida
após o trabalho de campo somente em forma de escrita.
Aqui, a reflexão se dá (também) através da experimentação e da elaboração do
movimento, pois dentro do campo da contribuição das Ciências Sociais e da Dança –
onde começa uma? Onde acaba a outra? – existe uma aliança de saberes que
instrumentalizam as discussões do presente trabalho. A partir da minha formação em
Dança posso afirmar que como área de conhecimento a Dança opera a partir de modos
de fazer e fruir – poéticos e estéticos – específicos, peculiares e distintos das demais
ciências. Portanto, o entrelaçamento com as Ciências Sociais resulta em um diálogo
potente, em processos criativos a partir de diferentes formas de produção de
conhecimento.
A minha relação com ambas as áreas viabiliza que esses afetos, essas
sensações, essa proximidade com o campo e com o universo de pesquisa sejam também
instrumentos de pesquisa antropológica. Então, enquanto artista-etnógrafa sustento uma
relação não tanto de observação, mas de relação corpóreo-sensorial (PUSSETTI, 2016)
com os sujeitos de pesquisa através dos nossos corpos em movimento. O trabalho de
campo é aqui considerado simultaneamente como uma metodologia e principalmente
como uma experiência que envolve a interação com outras pessoas, redimensionando a
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo aqui proposto se justifica pela criação de pontos de contato entre as duas
áreas de conhecimento – Arte e Antropologia – reconhecendo a extrema relevância de
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS