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SUMÁRIO

Apresentação – Enegrecendo o Direito: questões raciais no Brasil, 7


Julio Cesar de Sá da Rocha

Samuel Vida

Misael Neto Bispo da França

João Pablo Trabuco

Aline Santana Alves

Lázaro Alves Borges

Daiane Ribeiro

Camila Garcez Leal

Jonata Wiliam Sousa da Silva


5
6 | Diversos Autores

Érika Costa da Silva

Lethycia Laynne Santos Pereira


Ana Luiza Teixeira Nazário

Caio Vinícius de Jesus Ferreira dos Santos


7
SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL E A QUESTÃO
RACIAL: CAMINHOS PARA A OCUPAÇÃO DE PESSOAS
NEGRAS NOS ESPAÇOS DE PODER

Jonata Wiliam Sousa da Silva63

“Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes


Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes
Que nem devia tá aqui
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nós?
Alvos passeando por aí
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência
É roubar o pouco de bom que vivi
Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Achar que essas mazelas me definem é o pior dos
crimes
É dar o troféu “pro” nosso algoz e fazer “nóis” sumir.”
(AMARELO, 2019).

À guisa de introdução, cumpre trazer à memória o fato de que em 520


(quinhentos e vinte) anos de história (contados a partir da colonização
portuguesa em 1500), o Brasil foi por 322 (trezentos e vinte e dois) anos
uma colônia da Coroa Lusitana e se constituiu como República Federativa
somente 67 (sessenta e sete) anos após sua independência.

63 Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em


Ciências Criminais pela Universidade Católica do Salvador. Bacharel em Direito pela
mesma instituição. Membro da Comissão Especial de Sistema Prisional e Segurança
Pública, e de Direito Criminal e de Direito Militar da OAB-BA. Associado ao Instituto
Baiano de Direito Processual Penal. Advogado criminalista. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/0568256907374105. E-mail: contato@jonatawiliam.adv.br.
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122 | Jonata Wiliam Sousa da Silva

Cumpre ressaltar que, entre o período de Brasil Colônia e Brasil Im-


pério, vigorou durante 358 (trezentos e cinquenta e oito) anos um regime
escravocrata no Brasil (a contar da chegada do primeiro navio negreiro
no Brasil, em 1530, até a abolição que deu fim à escravidão formal, em
1888), estruturando a sociedade e a economia através do tráfico maciço
de pessoas sequestradas do continente africano e aqui escravizadas, sendo
o Brasil o último país a abolir a escravidão na América, um ano antes do
golpe militar que proclamou a República. Portanto, a rigor, temos o Brasil
como um país fundado e desenvolvido em base escravocrata e com menos
de 200 (duzentos) anos de uma democracia norteada por princípios de
liberdade e igualdade.
Essa contextualização histórica se faz absolutamente necessária, por-
quanto a abolição da escravatura no Brasil veio completamente desacom-
panhada de políticas de inserção e integração das pessoas negras escravi-
zadas no contexto social, relegando-as ao desamparo e à marginalidade.
Desde então, o sistema de justiça criminal e as forças de segurança públi-
ca passaram a atuar ostensivamente para reprimir a presença dos corpos
negros nos centros urbanos, atuação essa que ao longo do tempo passou
por diversas transformações e muita sofisticação na forma de execução. E
perdura até os dias atuais.
É nesse contexto que se evidencia premente uma discussão acerca das
questões raciais no sistema de justiça criminal e a participação de pessoas
negras nesses espaços, abrangendo o sistema de justiça em sentindo
amplo, desde os espaços institucionais públicos e privados, tais como o
Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Ordem dos
Advogados do Brasil, até os espaços de produção científica, que produzem
e legitimam os saberes teóricos aplicados na prática judicial.
Partiremos, portanto, da discussão das matrizes do sistema proces-
sual penal brasileiro. Abordaremos a seletividade desse sistema e o en-
carceramento em massa que incide, não por acaso com mais força, sobre a
população negra, bem como o silenciamento e a marginalização das pes-
soas negras nos espaços de poder e na academia, para, por fim, discorrer
acerca da importância do acesso de pessoas negras a esses espaços, para
a promoção efetiva de ações afirmativas e a reforma do sistema de justiça
criminal, a fim de que, de fato, haja uma ruptura do paradigma racista
nesse sistema.
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1 DAS MATRIZES DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO


E O ENCARCERAMENTO EM MASSA DA POPULAÇÃO NEGRA

O nosso sistema de justiça e a sistemática processual penal, vigente


a partir de 1941, tem uma matriz autoritária e fascista, sendo que a nossa
legislação processual penal opera sob uma dialética inquisitória, carente
da reforma que jamais veio após a redemocratização do país em 1988. O
Brasil, um dos únicos países da América Latina que ainda não realizou a
transição do sistema processual penal inquisitorial para um sistema pe-
nal acusatório (GONZÁLEZ, 2018, p. 503-505), de modo a estabelecer
instrumentos concretos de freios e contrapesos aos arbítrios punitivistas,
limitou-se a trazer reformas pontuais e esparsas na legislação e nos pro-
cedimentos, sem verdadeiramente alterar a raiz dos problemas.
Uma consequência dessa cultura inquisitória no processo penal é a
ampla subjetividade dos atos decisórios judiciais através do livre conven-
cimento motivado e a utilização do direito penal como instrumento de
controle social, que reflete diretamente no fenômeno de encarceramento
em massa da população negra.
Nesse contexto, válido trazer dados do relatório do Levantamento
Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) de 2016, que dá con-
ta de que a população carcerária saltou de 90 mil, em 1990, para 726,7
mil, em 2016, sendo 64% da população carcerária composta por pessoas
negras (BRASIL, 2016).
Para além do expressivo aumento da população carcerária em geral,
a taxa de negros comparada à taxa de brancos aprisionados apresentou
um crescimento exponencial nas últimas décadas. No Brasil, cabe apontar
que o aumento do controle punitivo, com ênfase na guerra às drogas e no
expansionismo penal, são causas diretas desse crescimento desenfreado,
decorrente também da globalização.
Um dos reflexos do fenômeno da irrefreável globalização é o alar-
gamento da criminalidade clássica e a introdução de uma nova criminali-
dade, calcada numa suposta prevenção de riscos sociais, incidindo sobre
novos bens jurídicos penais, relativizando garantias, institucionalizando a
segurança e desacreditando outras instâncias de proteção, conforme ex-
plica Almeida (2012, p. 216):
A globalização enseja um trânsito jurídico, político, cultural, econômico,
das comunicações, ampliando as relações e atividades sociais, atravessando
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regiões e fronteiras, intensificando as interações globais, e via regressa a
explosão de riscos e de toda sorte de problemas.

Como resultado do alargamento do conceito de criminalidade oriun-


do de uma tentativa de resposta e de repressão desse fenômeno, temos um
sistema de justiça criminal estruturalmente seletivo, marcado pela ineficá-
cia das suas finalidades que, de acordo com Zaffaroni (2003, p. 47), no que
se refere à criminalização secundária (a ação punitiva exercida por pes-
soas concretas), atinge apenas aqueles que têm baixas defesas perante o
poder punitivo e cujo ordenamento jurídico-penal busca se expandir cada
vez mais e em velocidade alarmante, visando a prevenir, coibir ou mesmo
“combater” maior número de riscos.
O que não muda nesse cenário é justamente o componente racial dessa
criminalização secundária, tendo em vista que quando falamos de pessoas
com baixas defesas perante o poder punitivo, estamos invariavelmente nos
referindo à população negra, que ainda hoje detém maior vulnerabilidade
política e socioeconômica na sociedade brasileira.
O Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking de países que mais en-
carceram no mundo, seguindo os passos dos Estados Unidos (BRASIL,
2016). Segundo Borges (2018, p. 83), o perfil da população selecionada
pelo sistema prisional brasileiro é bem específico: “56% dos acusados em
varas criminais são negros, enquanto em juizados especiais que analisam
casos menos graves, este número inverte tendo maioria branca (52,6%)”.
Por essa razão, Borges (2018, p. 9), em diálogo com Alexander, numa
postura crítica para além dos estudos criminológicos hegemônicos, as-
severa que “o caráter do sistema de justiça penal é outro. Não se trata
da prevenção e punição do crime, mas sim da gestão e do controle dos
despossuídos. […] encarceramento em massa tende a ser categorizado
como problema de justiça criminal oposto à justiça racial ou problemas de
direitos civis (ou crise)”.
Dessa maneira, entendendo o sistema de justiça criminal como um
instrumento de matriz inquisitorial que opera um sistema de controle e
opressão de corpos negros, faz-se mais d que necessário entender o pro-
cesso de formação dos estudos criminológicos que legitimam esse siste-
ma, analisar quem de fato compõe a classe de operadores do sistema e os
caminhos necessários à quebra dessa lógica.
Enegrecendo o Direito | 125

2 A QUESTÃO RACIAL E O PAPEL DOS OPERADORES DO SISTEMA


DE JUSTIÇA CRIMINAL

Se o encarceramento em massa dá a tônica no sistema de justiça cri-


minal, servindo de controle social dos corpos negros, temos o inverso
quando tratamos da composição nos espaços de poder desse sistema. Juí-
zes, promotores, defensores públicos e advogados são predominantemen-
te homens brancos. Inevitável trazer os dados compilados pelo Conselho
Nacional de Justiça acerca do perfil sociodemográfico do magistrado bra-
sileiro em 2018: a partir das informações prestadas por 11.348 magistra-
dos – 62,5% do total de 18.168 juízes, desembargadores e ministros de tri-
bunais superiores –, extrai-se que a maioria se declara branca (80,3%). Os
negros compõem 18,1% desse total (16,5% pardos e 1,6% pretos) (SOA-
RES, 2018).
Já no Ministério Público, à míngua de um censo racial em escala na-
cional, valemo-nos do censo realizado pelo MP/SP no ano de 2015, que
certamente serve de paradigma para a análise proposta.
O levantamento das informações a respeito dos membros e servidores
foi obtido a partir das respostas de 82% que atenderam à solicitação de au-
todeclaração de raça/cor. Também foram elaborados relatórios a partir de
cruzamentos com outras informações cadastrais dos referidos membros.
De acordo com as informações obtidas, 93% dos membros do MP
de São Paulo se declararam brancos e 4% negros. Entre os servidores do
MP/SP, 80% se declararam brancos e 14% negros (BRASIL, 2015).
A Defensoria Pública não é diferente: de acordo com o IV Diagnós-
tico da Defensoria Pública no Brasil, 76,4% dos defensores públicos es-
taduais são brancos, enquanto 21,3% são negros (19,2% pardos e 2,2%
pretos) (BRASIL, 2015a, p. 20).
Por fim, mas não menos importante, temos ainda a advocacia, por se
tratar de atividade privada, mas com função social e de caráter indispen-
sável à administração da justiça por força constitucional. Uma pesquisa
realizada em 2018, pela ONG Centro de Estudos das Relações de Traba-
lho e Desigualdades (CEERT), em parceria com a Aliança Jurídica pela
Equidade Racial e com a Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, contou
com 3.624 profissionais de nove dos maiores escritórios brasileiros e mos-
trou que só 2% dos advogados declararam ser negros (BRANCO, 2019).
Percebe-se, então, que o sistema de justiça criminal é dominado por
pessoas brancas, a mesma realidade que é encontrada nos espaços acadê-
micos, bem como no Poder Legislativo. Logo, temos uma realidade em que
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pessoas brancas produzem as leis vigentes, analisam-nas e produzem as


críticas, integrando um ambiente hegemônico e pouco aberto a reformas.
Os impactos dessa hegemonia da branquitude no sistema de justiça
criminal se relacionam diretamente com a predominância da população
negra no sistema prisional. Afinal, de acordo com Maria Aparecida “Cida”
Bento (2002, p. 159-160):

A semelhança entre as pessoas pode desenvolver condutas que não pare-


çam, à primeira vista, como defensivas. O grupo torna-se objeto de todos
os investimentos: narcisismo individual ou narcisismo de grupo coinci-
dem. Conflitos intra-individuais ou interindividuais não são aceitos ou não
se tornam possíveis. [...] a identidade racial é profundamente ideológica,
porque auxilia a identificação de quem são o “eles” e quem são o “nós”.
Sobre o “eles”, ficará depositado o pior do “nós”. E esse pior do “nós” jus-
tificará a rejeição, a preterição, a exclusão.

Logo, a hegemonia branca nas funções pública e privada que promo-


vem a “justiça” resulta em opressão e controle social da população negra,
notadamente através do sistema de justiça criminal e do uso ostensivo das
forças de segurança pública, de modo que se faz mais do que necessário
pensar em ações concretas de acesso de pessoas negras a esses espaços,
para que haja uma efetiva mudança de status quo e uma necessária reestru-
turação do sistema. Afinal de contas, Bento (2002, p. 158-159) diagnostica
há muito tempo:

[...] a ausência de diversidade, leva à deteriorização da reflexão e da in-


ventividade e, inconscientemente, causa a falta de inovação e a utilização
de uma língua inflexível e primitiva. Assim, a uniformidade e homogenei-
dade nos lugares de comando da sociedade não se afiguram como bons
sintomas.”

Para além das instituições que atuam diretamente no sistema de jus-


tiça, contuto, também é importante analisar o papel dos espaços de produ-
ção intelectual acadêmica na perpetuação e legitimação dessa hegemonia
branca, como discutiremos no tópico seguinte.

Neste ponto, centraremos os debates no estudo da criminologia e dos


processos de marginalização e invisibilização das discussões raciais nos
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espaços acadêmicos, bem como os impactos do pensamento criminológico


em articulação com o projeto de encarceramento e genocídio da população
negra.
Felipe Freitas (2016) explica que o advento dos estudos de crimino-
logia no Brasil, a partir da década de 1970, culminou na concentração
em investigações acerca da seletividade do sistema de justiça criminal e
“organizou uma formulação teórica, que, ao lado de desnudar a fragilidade
e o cinismo do discurso penal moderno, também logrou colaborar com a
denúncia sobre as violações de direitos humanos, as condições desumanas
de encarceramento no Brasil e o caráter de extermínio largamente verifi-
cado na concepção e no funcionamento das forças policiais”. Cita ainda a
constatação de Nilo Batista (apud FREITAS, 2016, p. 491):

Inequivocamente, a criminologia contribuiu para o adensamento da crítica


ao sistema punitivo e para o aprimoramento das denúncias quanto ao cará-
ter autoritário e violento das instituições dedicadas ao controle penal. Tais
denúncias, feitas majoritariamente a partir de um enfoque marxista, foram
capazes, ainda, de apontar que, além de pobres, são negras as vítimas pre-
ferenciais do sistema punitivo ou, ainda, que estas estruturas deitam suas
raízes no, ainda recente, passado escravista brasileiro.

Todavia, essa constatação não foi o suficiente, como denuncia Felipe


Freitas, para que fosse promovida uma discussão consistente acerca das
questões raciais no sistema de justiça e mesmo na sociedade brasileira.
Assim, afirma que:

Mesmo que a criminologia estivesse denunciando os efeitos do racis-


mo, ela jamais se interessou em investigar o racismo como parte da
estrutura e da própria lógica de funcionamento do sistema, daí o re-
chaço à ideia de genocídio e a busca por caminhos “menos radicais” de
aproximação da temática racial, caminhos que indicassem os sintomas
do problema, mas que evitassem o racismo como centro do debate.”
(FREITAS, 2016, p. 491)

A realidade que se mostra nos ambientes acadêmicos, mesmo nos


espaços de pensamento crítico, que reconhecem as falhas do sistema de
justiça e a seletividade que o permeia, é que a crítica só é validada quando
proposta por pessoas brancas e desde que não envolva a centralização dos
espaços raciais. Esse fenômeno é também explicado pelo professor Adil-
son Moreira (2019, p. 217):
128 | Jonata Wiliam Sousa da Silva
Esse cinismo acadêmico determina quem pode falar sobre racismo e a ideia
é clara: só pessoas brancas podem se pronunciar sobre o tema, só pessoas
brancas podem fazer uma análise objetiva dele. Discussões sobre ques-
tões raciais e, principalmente, sobre políticas públicas, precisam estar sob
a tutela branca para que possam ser legitimadas. Esse argumento é parte
de um projeto de dominação que tem como principal objetivo promover o
silenciamento.

Vê-se, portanto, que embora produza pensamento crítico acerca das


graves falhas do sistema judicial e mesmo sobre os impactos dessas falhas
na população negra, a academia é mais um dos espaços de marginalização
e silenciamento do pensamento negro, sendo mais um espaço de poder
negado à comunidade negra, funcionando como um braço operacional do
sistema, ajudando a legitimar os discursos hegemônicos e a sofisticar as
formas de opressão.

3 CAMINHOS PARA A OCUPAÇÃO DE PESSOAS NEGRAS


NOS ESPAÇOS DE PODER

Após estas breves considerações acerca dos principais problemas do


sistema de justiça criminal, seja na clara seletividade e virulência no con-
trole de corpos negros, seja na hegemonia e controle dos espaços políti-
cos, do funcionalismo público e do espaço acadêmico, uma reestruturação
não passa por outro caminho que não o da ocupação de pessoas negras
nesses espaços, promovendo a pluralidade e a diversidade, concretizando,
de fato, uma democracia, e mudando a forma de atuação das instituições.
Nesse sentido, oportuno trazer as lições de Djamila Ribeiro (2019, p.
63) sobre a importância desta representação:

Uma simples pergunta que nos ajuda a refletir é: quantas autoras e autores
negros o leitor e a leitora, que cursaram a faculdade, leram ou tiveram
acesso durante o período de graduação? Quantas professoras e professores
negros tiveram? Quantos jornalistas negros, de ambos os sexos, existem
nas principais redações do país ou mesmo nas mídias ditas alternativas?

Essas experiências comuns resultantes do lugar social que ocupam impe-


dem que a população negra acesse certos espaços. [...] não poder estar de
forma justa nas universidades, meios de comunicação, política institucio-
nal, por exemplo, impossibilita as vozes dos indivíduos desses grupos se-
jam catalogadas, ouvidas, inclusive, até em relação a quem tem mais acesso
à internet.
Enegrecendo o Direito | 129

E na mesma esfera intelectiva, as contribuições do professor Adilson


Moreira (2019, p. 223):

A discussão sobre justiça social, tema central da Hermenêutica Negra,


precisa ser situada dentro das discussões sobre protagonismo e empode-
ramento. Um jurista que pensa como um negro está ciente de que a inter-
pretação da igualdade tem uma função essencial: a promoção da transfor-
mação social. Ela só pode ocorrer na medida em que pessoas negras têm
a chance de participar dos processos decisórios, articulando demandas de
direitos que expressam a experiência de subordinação negra.

Depreende-se, então, que os caminhos para uma necessária ocupa-


ção de pessoas negras nos espaços de poder passam, primeiramente, pela
promoção de políticas afirmativas por parte do Estado, mas também pela
articulação e protagonismo dos movimentos negros, pela reconstrução
dos saberes acadêmicos com franqueamento de voz e vez aos intelectuais
negros, além do incentivo à pluralidade nos espaços sociais.
As políticas afirmativas trazidas, e aqui destaco a Lei n. 12.711/2012
(reserva de vagas para concorrência entre negros e outras minorias so-
ciais no ensino técnico e superior público federal) e a Lei n. 12.990/2014
(reserva de vagas para concorrência entre negros e outras minorias so-
ciais nos concursos públicos federais), que têm fundamental importância
como passo adiante nesse longo caminho em busca de igualdade e promo-
ção da diversidade nos espaços públicos. Essas iniciativas, contudo, devem
ser acompanhadas de instrumentos que permitam garantir sua efetivida-
de, tais quais ações de combate às fraudes nos processos seletivos, realiza-
ção de censos periódicos destacando a identificação racial nas instituições
públicas e o acompanhamento do preenchimento das vagas destinadas aos
grupos étnico-raciais nessas instituições, para que se constate a efetivida-
de das ações afirmativas.
Mas não só isso. É também necessário o comprometimento das pes-
soas brancas, para que de fato entendam as dinâmicas de opressão e se
aliem às pessoas negras no combate ao racismo. É preciso também que
as organizações privadas que tanto se beneficiam dessa estrutura racista
promovam ações de inclusão de pessoas negras, invistam e financiem o
trabalho de pessoas negras. E que todos deem visibilidade a essas pessoas
e às questões raciais, afinal, como revela a frase icônica de Ângela Davis
(apud MUNIZ, 2019), “Numa sociedade racista não basta não ser racista.
É necessário ser antirracista”, sendo que essa postura deve ser de auxílio,
130 | Jonata Wiliam Sousa da Silva

propiciando o protagonismo das pessoas negras em ações efetivas a partir


do seu local de privilégio, construindo-se, assim, uma sociedade efetiva-
mente antirracista que beneficiará a todos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As dinâmicas excludentes que se perpetuam e se reproduzem desde a


abolição da escravatura, no Brasil, fazem-se ainda solidamente presentes,
alterando tão somente o modo de incidência e os requintes de sofisticação.
O sistema de justiça criminal é um braço operacional nesse arranjo volta-
do a controlar socialmente os corpos negros.
Assim sendo, faz-se premente que pensemos uma reestruturação do
sistema de justiça criminal, a possibilidade de uma democratização do
processo penal e a modificação das dinâmicas que impedem o acesso das
pessoas negras a espaços de poder e articulação.
A transformação necessária, nessa configuração, permeia as institui-
ções públicas, as associações privadas e a academia, tendo a ocupação ne-
gra desses espaços o caráter emancipatório, apto a reorganizar os arranjos
sociais excludentes através da consolidação das ações afirmativas e estrito
acompanhamento da efetividade das políticas públicas, pluralizando as es-
tratégias de ação e promovendo justiça social.
Através da pluralidade, reconhecimento e ampliação dos locais de fala
destacando o protagonismo das pessoas negras, do movimento negro e
das articulações verdadeiramente antirracistas com os esforços voltados
para a consecução dessa liberdade, não só formal, mas principalmente ma-
terial, poderemos avançar nesse campo, protegendo esses grupos sociais e
caminhando para que a democracia racial deixe de ser um mito e seja o pa-
vimento da necessária transformação social de que o Brasil tanto carece.

REFERÊNCIAS

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Enegrecendo o Direito | 131

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