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Escola de História da Igreja – Patrística - Lucas Régis Lancaster

“II APOLOGIA”, DE SÃO JUSTINO DE ROMA

A obra

➢ A Segunda Apologia de São Justino foi escrita em Roma por volta do ano 155. É bem mais
breve do que a primeira (alguns inclusive negam que seja um texto autônomo, entendendo que
se trata de apenas um apêndice), mas é de uma riqueza comparável e, a nosso ver, dotada de
um brilho particular.
➢ Complementaridade das duas apologias: como Padre Apologista,
movido apenas pelo desejo de poupar os cristãos das injustiças e de
levar a verdade aos incrédulos, não é a intenção de São Justino fazer
teologia. Porém, ele faz, e nisso que reside a complementaridade
doutrinária dos dois textos: enquanto na I Apologia o santo mergulha
no Antigo Testamento, ou seja, nos dados da Revelação, para provar
a veracidade da fé cristã, na II Apologia ele aponta para as verdades
que os antigos filósofos alcançaram através da reta razão e sentencia
que elas não se opõem à fé cristã, muito ao contrário. Assim,
enquanto na I Apologia Justino olha para a Revelação (apesar de
alguns apontamentos esparsos a respeito dos antigos filósofos e da
sua participação no Lógos), na II Apologia, para a sã filosofia. Por
certo este dúplice movimento não foi algo consciente da pluma do
santo, mas lá está, de modo evidente e decisivo.
➢ Importância da II Apologia: Enquanto o retorno às profecias do
Antigo Testamento sobre Cristo era lugar-comum nos Padres da
Igreja (Santo Irineu o faria com maestria poucos anos depois em sua
“Demonstração da pregação apostólica), a ênfase na conciliação
entre as verdades alcançadas pelo intelecto humano desprovido da
Revelação, através de sua participação no Lógos divino (que Justino São Justino Mártir
chama de “verbo seminal”) com a Revelação cristã, é encontrada
pela primeira vez em São Justino. Ele não teve tempo de desenvolver essa ideia que a Igreja
bem abraçaria (seria martirizado pouco tempo depois, como ele deixa antever na própria II
Apologia), mas teve a honra de mostrar o caminho. Com efeito, de Clemente de Alexandria a

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Santo Tomás de Aquino, todo o pensamento católico é devedor da brilhante intuição que um
dia teve Justino de Roma, o Filósofo Mártir.

A estrutura do texto

➢ Não é possível subdividir metodicamente a II Apologia. Trata-se de um texto curto e


provavelmente escrito às pressas, durante um movimento de indignação do seu autor.
➢ Essa aula se subdividirá de acordo com as ideias centrais do texto:
o A motivação da II Apologia.
o Reflexões sobre as perseguições.
o Fundo filosófico da II Apologia.
o A conciliação entre a Fé cristã e a Filosofia grega.
o Conclusão.

A motivação da II Apologia

➢ O que motiva a II Apologia é o que motivara a primeira: “em todas as partes há gente disposta
a nos levar à morte” (1,2). Não obstante, nesta houve um caso específico que indignou o santo
e levou-o a se queixar aos imperadores: o martírio de três cristãos em Roma somente pelo fato
de serem cristãos.
➢ A história é narrada no capítulo 2 da Apologia, e se trata de uma autêntica “Ata de martírio”.
Conta Justino que havia uma mulher de má vida que, convertendo-se ao cristianismo, não
conseguiu suportar a devassidão de seu marido pagão e decidiu divorciar-se dele. Irado, o
marido denunciou-a como cristã perante os tribunais e, como por hora nada podia fazer contra
ela, voltou-se contra certo Ptolomeu, responsável pela conversão dela. Levando-o perante
Urbico, prefeito de Roma, declarou-se cristão e confessou sê-lo, sendo por isso condenado.
Certo Lúcio, que também era cristão, vendo Ptolomeu sendo levado ao suplício, protestou
contra a injustiça e, acusado de também ser cristão, confirmou prontamente, sendo condenado
à morte com Ptolomeu. Aos dois santos uniu-se ainda um terceiro, que compartilhou com eles
a coroa do martírio.

Reflexões sobre as perseguições

➢ Nesta apologia Justino aponta causas sobrenaturais da perseguição aos cristãos.

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➢ Os responsáveis últimos pela perseguição aos cristãos, argumenta, são os demônios, que outrora
induziram os gregos a matarem Sócrates por dizer a verdade, e agora induzem os romanos a
matarem os cristãos, por igualmente dizê-la (6,3). Os demônios recebem dos cristãos “merecido
tomento e castigo” e sua vida é “aviso do futuro castigo no fogo eterno que os espera,
juntamente com aqueles que os servem” (7,4).
➢ Conta Justino que, quando ainda era pagão, “ao ver como caminhavam intrepidamente para a
morte e para tudo o que é considerado espantoso, comecei a refletir que era impossível que
tais homens vivessem na maldade e no amor aos prazeres” (12,1). Ora, diz ele, como seria
possível que pessoas que praticassem incesto, canibalismo e amassem os prazeres da carne,
aceitariam com alegria a morte, eu os privaria dos seus deleites criminosos? Convertendo-se,
percebeu que os pagãos na verdade acusavam os cristãos do que eles próprios eram.
➢ É por isso que Justino diz sem medo aos imperadores que eles imputam “a pessoas inocentes a
mesma coisa que praticais publicamente”, atribuindo aquilo que é próprio deles e de seus
deuses a pessoas que nada têm a ver com isso (12,7). E no final das contas, conclui, quando os
pagãos condenam os cristãos com base naquelas falsas acusações, “eles dão sentença contra si
próprios”, pois são eles os fornicadores e adúlteros (14,2).
➢ Explica, ademais, porque os cristãos, abraçando a morte, não podem buscá-la: se defendessem
o suicídio, estariam violando a obra de Deus, que deseja a multiplicação do gênero humano,
mas ao mesmo tempo, sendo-lhes oferecida a morte, preferem-na a viver na mentira, negando
a verdade que professam (3).
➢ Argumenta ainda que é por causa dos cristãos que Deus não destrói o mundo: “Deus adia pôr
um fim à confusão e destruição do universo por causa dos cristãos, recém-espalhados pelo
mundo, que ele sabe ser a causa da conservação da natureza” (6,1).

Fundo filosófico da II Apologia

➢ Assim como há um fundo filosófico platônico claro na I Apologia (a ideia de que “cometer
injustiça é pior do que sofrê-la”), a influência socrático-platônica na II Apologia também se faz
ver:
o Verdade e opinião: Tratando de sua discussão com Crescente, suposto filósofo
anticristão que São Justino humilhou publicamente demonstrando que nada entendia da
fé cristã, o santo diz que como aqueles que condenaram Sócrates “não é homem que
ama o saber, mas a opinião, como quem não aprecia o dito socrático tão digno de ser
apreciado: ‘Não se deve estimar nenhum homem acima da verdade’” (8,6). Existem

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duas ideias socrático-platônicas aqui evidentes: (a) não se deve procurar agradar os
homens à custa da verdade: como Sócrates diz no Críton de Platão (46d-48a), aquilo
que diz respeito à verdade, não devemos levar em conta a opinião da multidão; (b) a
opinião é distinta da verdade: São Justino diferencia verdade e opinião como faz
Platão exaustivamente no Teeteto. Crescente é movido pelas aparências, não sabe do
que diz, portanto não é amigo da verdade e sim da opinião.
o Objetividade da virtude e do vício, contra o relativismo moral: No capítulo 9 da II
Apologia São Justino responde àqueles que dizem que os cristãos seguem a virtude e
evitam o vício por medo do castigo de Deus. Na opinião deles Deus não se preocupa
com essas coisas. Responde o santo que “então Deus não existe ou, se existe, não se
importa em nada com os homens; a virtude e o vício nada seriam, nem os legisladores
castigariam com justiça os que transgridem as boas ordenações” (9,1). São Justino diz
que também há aqueles que relativizam a virtude e o vício. Em muitos dos diálogos
platônicos, Sócrates refuta esse tipo de relativismo, típico dos sofistas, muitos dos quais
entendiam que o bem e o mal, a virtude e o vício, são relativos, seguindo o dito de
Protágoras de que “o homem é a medida de todas as coisas”. Como os filósofos, São
Justino defende a existência de um bem objetivo alcançável pela reta razão (ou pelo
Lógos), que mostra que as leis são boas ou ruins.
o Aparência de bem: De Platão São Justino retira o clássico conceito da “aparência de
bem”, da enganação que algumas realidades viciosas ou inferiores promovem fazendo-
se passar por superiores. No Górgias e na República, Platão demonstra que os vulgares,
ou seja, para aqueles que não vivem segundo a reta razão, são continuamente enganados
sendo atraídos para bens apetecíveis, atraentes, mas que na verdade ocultam algo que
não é bom, seja para o corpo, seja para a alma. Do mesmo modo São Justino cita certo
mito de Hércules, para o qual a virtude e a maldade se apresentaram cada qual a seu
modo: a virtude austera, a maldade enfeitada e atraente. Diz Justino que “Nós estamos
persuadidos de que alcançar a felicidade todos aqueles que se desfazem dos bens
aparentes e seguem o que parece duro e contra a razão. Nós estamos persuadidos de
que alcançam a felicidade todos aqueles que se desfazem dos bens aparentes e seguem
o que parece duro e contra a razão. Porque a maldade veste as suas ações com as
qualidades da virtude e do que é de fato bem, remedando o incorruptível, pois ela em
si não tem nada de incorruptível e nem é capaz de produzi-lo, e torna escravos seus os
homens que se arrastam pelo chão, atribuindo à virtude os males próprios da maldade”
(11,6-7). É impossível não enxergar aqui, sendo Justino um platonista, a ideia platônica

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de aparência exposta no diálogo “Sofista” (235c-241d), quando ele diz que os sofistas
são justamente aqueles que se dedicam à arte da imitação, oferecendo aos que os
escutam cópias de coisas boas, e com isso prejudicando a alma daquele se entrega para
ser por eles formados. É necessário, tanto para Platão quanto para São Justino, ir além
da cópia, da aparência do bem e encontrar o bem em si mesmo, que só pode ser a virtude.

A conciliação entre a Fé cristã e a Filosofia grega

➢ Na I Apologia São Justino pincelara uma ideia que desenvolveria com maior profundidade na
II: a possibilidade, ou ainda a imperiosidade, de se conciliar a Revelação cristã com a filosofia
antiga. Não por outras razões Justino é considerado o “pai da filosofia cristã”.
➢ No cerne de sua argumentação nesse sentido está a conceito de “Verbo de Deus” (em grego
Lógos), que ele extrai da filosofia e reaproveita no pensamento cristão. Não foi, com efeito, o
primeiro a fazê-lo: já no prólogo do seu Evangelho, São João utiliza essa expressão para se
referir a Jesus Cristo: “No princípio era o Verbo. E o Verbo estava com Deus. E o Verbo era
Deus. [...] E o Verbo se fez carne e habitou entre nós”.
➢ Antes do Evangelista, os filósofos já tinham esboçado em múltiplas aproximações essa
concepção grandiosa do Verbo, do Logos, da Palavra que cria, que ordena e revela. Era um
termo espalhado por todo o Oriente mediterrâneo. Platão tinha-lhe atribuído a origem das ideias
e Fílon, judeu fiel, reconhecera nele o mundo inteligível, a representação imperfeita de Deus.
São João transformou todas essas tentativas em certeza: o Verbo, o Lógos, não é um princípio
abstrato, é um ser pessoal, é Jesus.

Não sem razão muitos consideram o filósofo grego helenista Fílon de Alexandria (c. 20 a.C. – c. 50 d.C.) como
precursor da filosofia cristã, por ter se esforçado para conciliar a filosofia com o judaísmo.

Fílon aproveitou o conceito grego do Lógos, mas distinguindo-o de Deus. Fez dele uma hipóstase, e denominou-o
inclusive “Filho primogênito do Pai incriado”, “Deus segundo”, “Imagem de Deus”. Em algumas passagens fala
dele como causa instrumental e eficiente. O Lógos de Fílon expressa as valências fundamentais das expressões
bíblicas “Sapiência” e “Palavra de Deus”, que é a Palavra criadora e fazedora. Ele é uma realidade incorpórea e
transcendente, a razão-criadora de Deus pela qual Ele tudo criou e tudo mantêm.

➢ São João já dissera, no prólogo do Evangelho, que a Razão-criadora de Deus, o Verbum ou


Lógos, é o próprio Deus (algo que contraria o dito por Fílon), e mostra que ele é uma pessoa,
que se fez carne e entre nós viveu: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós”.
➢ O Evangelista semeou a ideia e coube a Justino desenvolvê-la.
➢ Em primeiro lugar, São Justino demonstra que o Verbo ou Lógos é Jesus Cristo:

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o Na I Apologia (63), o santo extrai passagens das Escrituras em que o Filho (Verbo)
falou, mas em que os judeus viram o Pai. “E o próprio Jesus Cristo, repreendendo os
judeus por não saberem distinguir o que era o Pai e o que era o Filho, também disse:
“Ninguém conhece o Pai, a não ser o Filho; ninguém conhece o Filho, a não ser o Pai
e aqueles aos quais o Filho o revelar”. O Verbo de Deus é seu Filho, como dissemos
antes. E também se chama mensageiro e embaixador, porque ele anuncia o que se deve
conhecer e é enviado para nos manifestar tudo o que o Pai nos comunica. O próprio
nosso Senhor o deu a entender, quando disse: “Quem ouve a mim, ouve aquele que me
enviou” (I Ap 63,3-5). É na sarça ardente, sobretudo, que São Justino identifica o Verbo,
aquele que se apresenta como “o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó” é Jesus Cristo, o
Filho, “que apareceu algumas vezes em forma de fogo, outras em imagem incorpórea
e agora, feito homem por vontade de Deus, por causa do gênero humano submeteu-se
a sofrer tudo o que os demônios quiseram que os insensatos judeus fizessem com ele.
Estes, tendo expressamente dito nos escritos de Moisés: “E o anjo de Deus falou a
Moisés em fogo de chama desde a sarça e lhe disse: Eu sou Aquele que sou; o Deus de
Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó”, insistem que foi o Pai e artífice do universo
quem disse essas palavras” (I Ap 63,10-11).
o Na II Apologia ele o diz de forma ainda mais clara e concisa – o Verbo, o Lógos, é Jesus
Cristo, que se fez homem: “Quanto a seu Filho, o único que propriamente se diz Filho,
o Verbo, que está com ele antes das criaturas e é gerado, quando no princípio criou
e ordenou por seu meio todas as coisas, chama-se Cristo por sua unção e porque Deus
ordenou por seu meio todas as coisas. Sim, com efeito, como já dissemos, o Verbo se
fez homem por desígnio de Deus Pai e nasceu para a salvação dos que crêem e
destruição dos demônios” (5,3-4).
➢ Até aqui não há nada de novo: Justino apenas expõe de forma mais extensa o que São João já
dissera. A originalidade de seu pensamento está no desenvolvimento que promove na ideia do
Lógos e na relação da fé cristã (que possui o Lógos total) com o que os antigos filósofos
(dotados do Lógos parcial) alcançaram pela reta razão.
➢ Sendo o Lógos, o Verbo, o Filho, Jesus Cristo a Razão-Criadora de Deus, aquele pelo qual tudo
foi criado, ordenado e se mantêm, quando Deus criou o ser-humano fez dele partícipe deste
Lógos, dotando-o de razão e predispondo-o à ação da sua graça.
➢ A essa participação de todos os homens no Lógos de Deus através de sua razão, Justino chama
de “semente do Verbo” ou “Verbo seminal”. Já na I Apologia, ao tratar de certos acertos de
Platão no Timeu, o santo conclui que “daí parece haver em todos algo como germes da

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verdade” (I Ap 44,10) e na II Apologia repete a ideia, atribuindo os acertos de alguns filósofos


e de alguns poetas à “semente do Verbo, que se encontra ingênita em todo o gênero humano”
(7,1).
➢ É necessário, porém, esclarecer que essa participação no Lógos por cada ser humano, deste
“verbo seminal” que em todos reside, não é uma participação do homem na vida íntima de Deus
(que somente a graça santificante concede), mas uma realidade natural pela qual o homem pode
buscar, conhecer e contemplar a verdade. É a “luz natural da razão’, ou “reta razão”, e não a
luz sobrenatural da graça.
➢ Buscando, conhecendo e contemplando a verdade, o homem faz algo que é próprio de Deus e
que Ele concedeu a apenas duas criaturas ao criá-las – aos anjos e aos homens. Por
consequência, São Justino explica que “tudo o que os filósofos e legisladores disseram e
encontraram de bom, foi elaborado por eles pela investigação e intuição, conforme a parte do
Verbo que lhes coube” (10,2). Todos aqueles que antes de Cristo alcançaram e disseram a
verdade, só o fizeram por essa “semente do Verbo” que neles residia. Com efeito, “os demônios
sempre se empenharam em tornar odiosos aqueles que, de algum modo, quiseram viver
conforme o Verbo e fugir da maldade. Portanto, não é de se admirar se eles, desmascarados,
procuram também tornar odiosos, e com mais empenho ainda, àqueles que vivem não apenas
de acordo com uma parte do Verbo seminal, mas conforme o conhecimento e a contemplação
do Verbo total, que é Cristo” (7,2-3). E, assim, aqueles que “antes de Cristo tentaram investigar
e demonstrar as coisas pela razão, conforme as forças humanas, foram levados aos tribunais
como ímpios e amigos de novidades. Sócrates, que mais se empenhou nisso, foi acusado dos
mesmos crimes que nós, pois diziam que ele introduzia novos demônios e que não reconhecia
aqueles que a cidade considerava como deuses” (10,4-5).
➢ Contudo, eles possuíam apenas o Verbo parcial, a semente e a predisposição à graça, tudo
conforme a natureza. O Verbo, porém, se fez carne no seio da Virgem Maria e revelou-se a si
mesmo por inteiro, em sua vida íntima com o Pai e fazendo-nos partícipes dessa vida, que é
sobrenatural. A luz sobrenatural da graça é superior à luz natural da razão, de modo que, ao
mesmo tempo que os filósofos tinham o Verbo parcial, nós, cristãos, “temos o Verbo total, que
é Cristo, manifestado por nós, tornando-se corpo, razão e alma” (10,1). As doutrinas de Platão,
diz adiante, não são alheias a Cristo, mas não são totalmente semelhantes, como também as dos
outros filósofos, poetas e historiadores. “De fato, cada um falou bem, vendo o que tinha
afinidade com ele, pela parte que lhe coube do Verbo seminal divino. Todavia, é evidente que
aqueles que em pontos muito fundamentais se contradisseram uns aos outros, não alcançaram
uma ciência infalível, nem um conhecimento irrefutável” (13,2-3).

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➢ Considerando tudo isso, São Justino faz a afirmação que de alguma forma faz a ponte e a ligação
definitiva entre a Igreja Católica e a Filosofia antiga:

“Portanto, tudo o que de bom foi dito por eles, pertence a nós, cristãos, porque nós adoramos
e amamos, depois de Deus, o Verbo, que procede do mesmo Deus ingênito e inefável. Ele, por
amor a nós, se tornou homem para partilhar de nossos sofrimentos e curá-los. Todos os escritores
só puderam obscuramente ver a realidade, graças à semente do Verbo neles ingênita. Com efeito,
uma coisa é o germe e a imitação de algo, que é feita conforme a capacidade; e outra, aquele
mesmo do qual se participa e imita, conforme a graça que também dele procede” (II Ap. 13,4-6).

➢ Em outras palavras: os antigos filósofos e escritores contemplaram algo do Verbo pela luz
natural da razão. Nós, os cristãos, possuímos o Verbo total, de modo que tudo o que o de
verdadeiro eles alcançaram nos pertence.
➢ Algo semelhante o santo já dissera na I Apologia: “Nós recebemos o ensinamento de que Cristo
é o primogênito de Deus e indicamos antes que ele é o Verbo, do qual todo o gênero humano
participou. Portanto, aqueles que viveram conforme o Verbo são cristãos, quando foram
considerados ateus, como sucedeu entre os gregos com Sócrates, Heráclito e outros
semelhantes; e entre os bárbaros com Abraão, Ananias, Azarias e Misael, e muitos outros,
cujos fatos e nomes omitimos agora, pois seria longo enumerar. De modo que também os que
antes viveram sem razão, se tornaram inúteis e inimigos de Cristo e assassinos daqueles que
vivem com razão; mas os que viveram e continuam vivendo de acordo com ela, são cristãos e
não experimentam medo ou perturbação” (I Ap 46,2-4).
➢ Com acerto Daniel-Rops (A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires, p. 554) escreve que “quando
o antagonismo entre o cristianismo e o mundo antigo deixar de se traduzir em violências
sangrentas, a quase totalidade do pensamento cristão encontrar-se-á impregnada do desejo,
consciente ou não, de fazer desaguar toda a cultura antiga no imenso oceano de Cristo”.

POLÊMICA RECENTE ENVOLVENDO SÃO JUSTINO

Nas últimas décadas inovadores deturparam as palavras de São Justino e suas famosas “sementes do Verbo” para
fundamentar a participação das religiões falsas na verdade que só pertence à Igreja. Com efeito, o erro se assenta
no seguinte parágrafo do decreto Ad Gentes do Concílio Vaticano II que, infelizmente, usa a clássica expressão de
São Justino para sustentar uma ideia que não corresponde ao pensamento do mártir filósofo:

“Para poderem dar frutuosamente este testemunho de Cristo, unam-se a esses homens com estima e caridade,
considerem-se a si mesmos como membros dos agrupamentos humanos em que vivem, e participem na vida cultural
e social através dos vários intercâmbios e problemas da vida humana; familiarizem-se com as suas tradições
nacionais e religiosas; façam assomar à luz, com alegria e respeito, as sementes do Verbo nelas adormecidas.”
(Concílio Vaticano II, Decreto Ad Gentes, 11).

O Decreto diz expressamente que nas tradições religiosas não cristãs existem “sementes do Verbo”. O Papa Bento
XVI afirmou enfaticamente em Audiência Geral sobre São Justino em 21 de março de 2007, que o santo jamais
disse que na religião greco-romana houvesse sementes do Verbo e sim na filosofia, no esforço da razão natural
pelos filósofos”
Conteúdo licenciado (54,1).
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Não é preciso grande esforço para sustentar a tese de Bento XVI. Em múltiplas passagens das duas Apologias São
Justino chama as religiões não-cristãs de diabólicas, inventadas por “demônios perversos para enganar e extraviar
o gênero humano” (I Ap 54,1). Diz que os deuses pagãos são demônios (I Ap 4,6) e que Sócrates e os demais
defensores da verdade foram mortos por instigação destes demônios, uma vez que mostraram a falsidade de seus
cultos (II Ap 6,3). Como conciliar essas categóricas afirmações do santo com a ideia de que as religiões não cristãs
possuem sementes do Verbo adormecidas, sendo elas mesmas invenções do demônio?

A “semente do Verbo” em São Justino, em suma, não diz respeito à realidade sobrenatural ou a nenhuma doutrina
religiosa, mas à luz natural da razão, que todos os homens, em especial os filósofos, possuem.

Conclusão

➢ Na II Apologia fica claro que São Justino sabia que seria morto. Humilhou publicamente o
filósofo pagão Crescente e fora denunciado como cristão: “Eu mesmo espero ser vítima das
ciladas de alguns desses demônios aludidos e ser cravado no cepo, ou pelo menos das ciladas
de Crescente, esse amigo da desordem e da ostentação” (8,1).
➢ Mas não tem medo, diz sem receio que é cristão (13) e está pronto para enfrentar seu destino.
Não obstante, suplica a Deus, e assim termina a apologia, “para que a todos os homens de todo
o mundo seja concedido conhecer a verdade” (15,4).
➢ Por isso São Justino viveu, e por isso morreu.

São Justino, Filósofo e Mártir, rogai por nós!

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