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Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas

Livro: Família e Famílias - Práticas sociais e


conversações contemporâneas

Apresentação

Esse livro é um produto acadêmico de diversos enfoques sobre o


estudo da família na sociedade contemporânea.

Preocupação dos autores: divulgar e transmitir conhecimentos e


investigações sociais sobre o tema para ampliar o debate interdisciplinar
sobre o assunto, pois a família é histórica, afeta e é afetada pelas
mudanças sociais, políticas e econômicas, estando em constantes crises e
transformações.

A publicação foi dividida em partes:

1- Família, Política Social e Serviço Social: práticas e concepções.


2- Família, Cuidado e Demandas Sociais: perspectivas críticas
3- Família, Trabalho e Direitos Sociais: cenas contemporâneas

Prefácio

Este livro é expressão dos debates que se vem travando em torno do


tema família e das relações que esta estruturou ao longo do tempo com o
trabalho e a política social, incluindo-se aí o serviço social.

Cabe investigar as fronteiras entre o público e o privado. Assim, é


procedente investigar o papel das famílias nas tradições antiga e
moderna para buscar os vestígios que modelaram o perfil contemporâneo
de família.

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Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas

A distinção privado-público não foi imune às contradições que o


mundo moderno estruturou nem às mudanças que se operaram nas
mentalidades e nos planos social e político. Daí, vem a tona o
problema: é possível identificar uma equivalência entre o público e o
privado? Se sim, como especificá-la? Se não, quais as alternativas e/ou os
obstáculos que a ela se interpõem?

Há que se observar que a equivalência entre o público e o privado


foi modulada em um momento da história em que o privado se
potenciou na direção do público → tendência que ganhou expressão no
Brasil no final dos anos 1980, quando a mulher entrou na cena
pública sob a mediação do trabalho e produziu um abalo nos
alicerces da família patriarcal, insinuando certa igualdade entre os
sexos. Tal processo se desenvolveu no bojo do movimento pela
democratização do país, quando muitos dos temas até então de cunho
privado foram submetidos à luz pública e aí requalificados a partir de uma
dialética que configurou uma “relativa autonomia do privado”.

No final dos anos 1990, essa dialética foi bloqueada pela


mundialização do capital, que submeteu o político ao econômico. Tal
fato veio atribuir ao privado funções antes públicas, como a proteção
social. Neste processo, a relação família-trabalho também é
reconfigurada. Inserida nesta rede complexa de relações, a família é
obrigada a ultrapassar as suas funções tradicionais e a redefinir o espaço
privado: ela é responsabilizada pelo resultado de programas públicos,
sendo implicada na relação custo-benefício; além de ser obrigada a a
avalizar as ações fragmentadas de agentes sociais que disputam o campo
do social na junção privado-público, com promessas de integração social e
melhorias de vida.

Pode-se dizer que a família e o espaço privado são atravessados


por ações que, segmentadas e contraditórias, absorvem as
experiências populares, subtraindo-lhes as iniciativas e definindo, a
partir daí, novos modos de intervenção e controle. Nestes registros, a
noção do público como lugar do político se esvazia e se dobra a meros
agenciamentos técnicos e a novas estratégias de relacionamento com o
público.

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Parte I
Família, Política e Serviço Social: Práticas e
Concepções

Texto 1: trata das concepções situadas na base do debte sobre as


relações familiares e a assistencia social e das exigências
colocadas aos assistentes sociais na lida com a família

Família e Assistencia Social:


Subsídios para o Debate do Trabalho dos Assistentes
Sociais

Regina Célia Tamaso Mioto

O debate contemporâneo sobre a matricialidade sociofamiliar na política


social reaviva o debate sobre a família. Este foi secundarizado por
muito tempo no Serviço Social ante as novas exigências teórico-
metodológicas impostas para a consolidação da profissão nos marcos
da teoria social crítica diante da pecha do conservadorismo
profissional. Por isso, neste momento, impõem-se demarcar qual é o foco
do debate sobre a família que interessa ao Serviço Social e oferecer
alguns parâmetros para subsidiar a ação profissional no campo da
política social, especialmente da política de assistencia social que tem por
diretriz a matricialidade sociofamiliar.

É a família que “cobre as insuficiências das políticas públicas, ou


seja, longe de ser um “refúgio num mundo sem coração, é
atravessada pela questão social (Campos: 2008).

Ponto de partida deste trabalho: o reconhecimento da família como


espaço complexo, que se constrói e se reconstrói histórica e
cotidianamente por meio das relações e negociações que se estabelecem
entre seus membros e entre estes e outras esferas da sociedade
tais como Estado, trabalho e mercado. Reconhece-se que ela é
capaz de produzir subjetividades, além de ser uma unidade de
cuidado e de redistribuição interna de recursos, com papel importante na
estruturação da sociedade em seus aspectos sociais, políticos e

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econômicos. Logo, não é apenas uma construção privada, mas


também pública.
(Mioto, 2008; Campos; 2004).

Esse ponto de partida é a base para delimitar o foco de interesse do


Serviço Social sobre a temática da família: entendê-la na sua dimensão
simbólica, multiplicidade e organização subsidia a compreensão sobre
o lugar que lhe é atribuído na configuração da proteção social de uma
sociedade, em determinado momento histórico. Como e quais famílias são
incorporadas à política social; em que políticas e os quais os impactos que
estas políticas têm nas suas vidas.

A forma de gerir e distribuir os riscos sociais entre Estado,


mercado e família faz diferença nas condições de vida de uma
população (Esping- Andersen: 2000).

1- Família e assistencia social: concepções

A família, na história da humanidade, sempre foi uma instância


importante de proteção social. Especialmente pelo trabalho não pago da
mulher, constituiu-se em um dos pilares estruturantes do bem-estar
social, em muitos países. Vê-se que, ao longo da história, se
construíram diferentes formas de pensar a família no contexto da
proteção social.

Atualmente na sociedade brasileira, onde estão em disputa


diferentes projetos de proteção social, o debate sobre o lugar da
família na política social não pode ser descurado, especialmente quando
se trata da política de assistencia social. O ponto de partida deste é
a identificação das duas tendências ou concepções que subjazem à
compreensão da relação família e assistencia social e interferem nas
formas de encaminhamento da própria política: uma entende a
família e assistencia social como ajuda pública e a outra entende esta
relação como direito de cidadania.

1.1 – A assistencia social como ajuda pública

A relação entre assistência social e família, entendida como ajuda pública,


ancora-se na idéia de que a família é a principal instância de proteção
social. A assistência social se estabelece quando a família fracassa
na provisão de bem-estar a seus membros. Assim, família e
mercado são entendidos como canais naturais de provisão de bem-
estar. Somente quando estes falham é que há a intervenção pública
temporária, ou seja: o bem-estar dos indivíduos fica condicionado às
possibilidades de provisão de sua família. Incide nesta concepção a
prevalência do princípio da subsidiariedade, constituinte da Doutrina

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Social da Igreja (não por acaso), que consiste na centralidade que


as famílias, comunidades, associações (tidas como instâncias
menores), tem na provisão de bem-estar, prevendo a
responsabilidade pública e coletiva apenas quando se esgota a
capacidade dessas menores instâncias (Off, 1994; Campos, 2004).

Ter essa compreensão sobre a divisão de responsabilidades da


proteção social, significa conceber a relação entre assistencia social e
família mediada pela idéia de falência, medida pela incapacidade em
buscar, gerir e otimizar recursos que implica a sua relação com a
esfera do Trabalho. Incapacidade também em desenvolver adequadas
estratégias de sobrevivencia e convivência, em alterar
comportamentos e estilos de vida, além de não se articular em redes de
solidariedade. Nesse contexto, se estabelece a premissa que
assistencia social deve ocorrer sob a forma de compensação e ter
um caráter temporário.

Atualmente, como indica Campos ( 2004), a falta de integração em


uma sociabilidade familiar ou a imersão em uma sociabilidade tida
como “problemática”, são entendidas como fatores de risco e as torna
objeto de políticas sociais.Paralelamente, aquelas sociabilidades
familiares que mantém a força da solidariedade e conseguem manter
sua capacidade de proteção social, são estimuladas à reciprocidade e à
autoprodução de serviços vinculados ao mercado. São alimentadas
ideologicamente para se defenderem dos valores antifamiliares,
confirmando um discurso oficial de valorização das redes familiares.
Nessa conjuntura, os apoios informais tem papel preponderante e
as redes familiares são amplamente reconhecidas. Essa premissa,
porém, obscurece o fato de que pode haver limites para o
comportamento adaptativo das pessoas pobres e não considera o
diferencial de impacto das crises econômicas sobre os vários membros
da família. A incidência cada vez maior da pobreza tem redundado numa
decadência das chamadas “redes” ou “capital social” sobre o qual
se estrutura parte das estratégias familiares de sobrevivência. Logo,
conclui-se que, hoje, seria mais apropriado falar em “pobreza de
recursos” das famílias do que em “recursos da pobreza”. (Mioto; Campos.
Lima, 2006).

Essa concepção foi delineada em meio ao desenvolvimento capitalista e ao


liberalismo econômico (sec. XVIII e XIX) quando, com a separação entre
casa e empresa, se conformou uma nova forma de família (nuclear
burguesa). Então, foi delegada à família a responsabilidade pela
reprodução social e também os problemas e os conflitos gerados na esfera
da produção. A insuficiência de recursos para a provisão de bem-estar
passou a ser tratada como “caso” ou “problema” de família. Essa é a
concepção que se revitaliza no bojo do neoliberalismo, com a proposição
do pluralismo de bem-estar social (Pereira, 2001; Mioto, 2008).

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Proposição que se realiza num contexto em que se está mais distante da


possibilidade de a família ter recursos suficientes para responder às
necessidades de seus membros e às expectativas que lhes são
colocadas (Martins, 1995; Mioto, 2004), questão crucial na análise da
impossibilidade real dessa “revivencia” da família como instância principal
de proteção social.

1.2- A assistência social assumida como direito de cidadania

Segunda concepção que pauta o debate da relação família e


assistencia social no campo dos direitos sociais, da cidadania social.
Para Esping-Andersen (2000), isso só ocorre quando o Estado se constitui
na principal instância de provisão de bem – estar porque só
quando ele se torna elemento ativo no ordenamento das relações
sociais é que se torna possível a autonomia dos indivíduos. Assim,
a cidadania é atingida quando os direitos sociais, na política e na
legalidade, se tornam invioláveis e universais. Isso ocorre quando há
a desmercadorização do indivíduo e de sua família em relação ao
mercado, ou seja: quando a prestação de serviço é concebida como
direito ou quando o indivíduo pode manter-se sem depender do
mercado. O autor postula também que a cidadania social não pode
estar apenas vinculada ao processo de desmercadorização, mas também a
um processo de desfamiliarização, ou seja: da necessidade de haver um
abrandamento da responsabilidade familiar em relação à provisão de
bem-estar social.

Nessa perspectiva, rompe-se com a idéia que a assistencia social só deve


ocorrer no caso da falência das famílias e ela passa a ser pensada em
termos de socializar os custos enfrentados pela família, sem esperar que
sua capacidade se esgote. Nesta direção, Saraceno ( 1996) afirma
que a presença do Estado na garantia dos direitos sociais torna
possível a autonomia dos indivíduos em relação à autoridade familiar
e da família em relação à parentela e à comunidade.
No escopo desse alinhamento, vem o debate sobre a pertinência de
tomar a família como unidade de referência/sujeito destinatário da
política social, considerando alguns fatores: incapacidade de a política
social abarcar a diversidade de famílias existentes; a política social,
agregada a outras políticas, a uma cultura de especialistas, tende a ter
forte impacto no processo de normatização da vida familiar e se
constitui vetor importante de controle do Estado sobre a família. Além
disso, os estudos feministas tem demonstrado que a política social
tende a reforçar desigualdades e hierarquias culturalmente
consolidadas, dentre as quais se destacam as de gênero, particularmente
no âmbito dos programas de transferência de renda destinados à família
(Parela, 2001; Gomes, 2000).

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A crítica mais contundente à afirmação da família como referência


das políticas públicas, hoje, está associada à regressão da
participação do Estado Social na provisão de bem-estar, ou seja:
desvia da rota da garantia dos direitos sociais através da políticas
públicas universalizantes e entra na rota da focalização das políticas
nos segmentos mais pauperizados da população; fortalece o mercado
enquanto instância de provisão de bem-estar e aposta na organização da
sociedade civil como provedora. Nesta configuração, a família é chamada
a reincorporar riscos sociais, retrocedendo assim a cidadania social.

Quando se assume a Assistência social como direito de cidadania,


considera-se que o acesso dos indivíduos a ela não está
prioritariamente vinculado às condições de sua família, mas a sua
própria condição. Desvincula-se da idéia de falência da família na
provisão de bem-estar. Quando a política é pensada no sentido de
“socializar”antecipadamente os custos enfrentados pela família, sem
esperar que sua capacidade se esgote (Campos; Mioto, 3002).

2 – A família na política de assistencia social brasileira:


disputa entre as diferentes concepções.

Essas formas de entender a relação família e proteção social estão


presentes tanto no senso comum quanto nos formuladores e
executores de política social e alinham-se a projetos societários
diferentes. No Brasil, a família segundo Carvalho e Almeida (2003),
vem exercendo o papel de amortecedor das crises do país,
especialmente após os anos 1990. Apesar do baixo salário e da
inconstância dos serviços públicos, ela tem viabilizado a reprodução
social por meio da solidariedade e de práticas dos grupos
domésticos. Então, a assistencia social está sendo construída na
tensão entre as duas concepções apontadas. Essa tensão está
presente na Loas e intensificou-se no processo de implantação dos
programas de transferência de renda, na concepção do SUAS e nos
processos de implementação deste Sistema.

Essa tensão pode ser verificada no artigo 2, item V da Loas, que afirma “a
garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de
deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a
própria manutenção ou tê-la provida pela sua família ( grifo
nosso). Isso é reafirmado no artigo 20, que explica quem é a
família e a renda para acesso ao benefício. A tensão também se
expressa entre necessidades e mínimos sociais, dizendo que a
assistencia social se realiza de forma integrada com as políticas
setoriais, visando o enfrentamento da pobreza, à garantia dos
mínimoa sociais, ao provimento de condições para atender às
contingências sociais e à universalização de direitos. A tensão

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aumenta quando eles se vinculam às famílias em situação de


vulnerabilidade social. Ainda deve ser considerado que o acesso a
esse direito vai ocorrer por meio de programas de transferência de
renda e não como direito assegurado na Loas. Nesse processo
contraditório, avança-se com a formulação, estruturação e
implantação do SUAS, em que as tensões se multiplicam entre a
afirmação da assistencia social como direito de cidadania e a afirmação da
responsabilidade da família na provisão de bem-estar social.

3 - O trabalho dos assistentes sociais: uma questão a ser


debatida

Partindo da existência de um projeto ético-político no campo de


Serviço Social, espera-se que a competência ético-política dos
Assistentes Sociais não fique restrita à vontade política e à adesão
a valores. E sim se afirme mediante a capacidade dos profissionais
em torná-los concretos por meio da apreensão das dimensões ética,
política, intelectual e prática. Isso implica no desenvolvimento de ações
estratégicas diante das condições objetivas da realidade, a fim de ampliar
os limites da cidadania inscrita na sociedade capitalista atual. Implica num
constante processo de tencionamento a favor da construção da política de
assistencia social como direito de cidadania, buscando responder à
orientação do Código de Ética.

Diante disso, ressalta-se que, quando se fala em trabalho com


família no campo da política social, postula-se a realização de dois
movimentos:

Primeiro: pensar a política de assistencia social como campo de


tensões entre projetos distintos, alinhados a projetos societários
diferentes.Embora a referida política tenha encetado um avanço, ela
ainda não tem consolidada a inserção da família na perspectiva do
direito. Coexistem perspectivas antagônicas de inclusão da família na
política de assistencia social e essas se expressam no texto legal, nas
diretrizes e nos encaminhamentos da gestão, e se materializam nos
contextos institucionais. Logo, a identificação dos projetos em disputa
desde o texto da lei até as posturas e atitudes de gestores e
profissionais no cotidiano dos programas e serviços é elemento
fundamental para a orientação de qualquer trabalho.

Para tanto, exige - se conhecimento sobre as concepções postas em


disputa e como elas se expressam no cotidiano do trabalho profissional.
Isso demanda qualificação profissional nas suas dimensões teórica, ética
e técnica para que se permita o diálogo com as diretrizes,
normativas e orientações oficiais relativas à política de assistencia
social, e possibilite o encaminhamento consciente e responsável das

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ações profissionais. Em suma, a possibilidade de tencionar a política de


assistencia social como direito de cidadania e fazer frente à tendência
hegemônica da assistência social como ajuda pública só é possível
por meio da percepção de que a política social não se constitui um bloco
monolítico. O diálogo entre o profissional e as demandas que lhe são
colocadas pelo arcabouço institucional da política só pode ser
realizado a partir da formação profissional/projeto profissional.

É a formação que vai permitir o distanciamento necessário para


identificar as disputas em pauta, particularmente o papel que está
sendo atribuído à família na proteção social, e decidir sobre a
orientação de suas ações. Se o profissional deixa de estabelecer
este diálogo, ele renuncia à própria profissionalidade, pois toda ação
profissional implica em consciencia, responsabilidade e autonomia.
Essa é a condição para que os assistentes sociais não continuem
exercendo apenas o papel de executor terminal de política social.

O segundo movimento consiste no redimensionamento do trabalho


com famílias com base no pensamento social crítico, pautado em
dois aspectos: a interpretação das demandas e o alcance e a
direcionalidade das ações profissionais. O primeiro refere-se à
interpretação das demandas postas pelas famílias aos assistentes
sociais, entendidas como expressões de necessidades humanas
básicas não satisfeitas decorrentes da desigualdade social. Essa
premissa exige ultrapassar a lógica do tratamento das demandas como
“problemas ou casos de família”e não admite que se vincule a satisfação
das necessidades sociais à competência ou incompetência individual das
famílias. Assim, compreende-se os processos familiares como uma
construção singular, arquitetada na família, no entrecruzamento de
múltiplas relações que condicionam e definem a dinâmica familiar e a sua
“estrutura de proteção”. Articular ações profissionais a partir dessa
perspectiva, oposta à lógica da responsabilização da família, implica no
rompimento com a tradição ideológica que ainda marca o exercício
profissional, pautada na identificação do problema e na busca de solução
para eles. Portanto, não em torno das necessidades da família ou do
conhecimento sobre qual é a “estrutura de proteção” para atender a tais
necessidades em face das expectativas que se tem para a família.

O outro aspecto relaciona-se ao alcance e à direcionalidade da ação


profissional. Ao postular que as famílias apresentam demandas que
extrapolam as suas possibilidades de respostas e cujas soluções se
encontram fora delas, a ação profissional não pode direcionar-se apenas a
ela enquanto sujeito singular. Entende-se que os problemas de
proteção social não estão restritos às famílias, e a solução desses
extrapola as suas possibilidades, pois está condicionada ao acesso à
renda e ao usufruto de bens e serviços de caráter universal e de
qualidade. Tal redimensionamento impõe uma nova lógica ao trabalho

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com famílias na perspectiva dos Direitos, entendidos como caminhos para


a concretização da cidadania por meio e políticas sociais de caráter
universal orientadas para o atendimento das necessidades humanas e
tendo o Estado como instancia responsável por essa garantia e atenção.
Nessa perspectiva, as ações profissionais passam a incidir em
diferentes níveis de atenção. Esses níveis seriam: proposição,
articulação e avaliação de políticas sociais, organização e articulação
de serviços e atendimentos a situações singulares. A atuação nesses
níveis de atenção requer o encaminhamento de ações profissionais que se
articulam em três processos: processos político- organizativos; processos
de gestão e planejamento; e processos socioassistenciais. (Mioto;
Nogueira, 2006; Mioto; Lima, 200).

Trabalhar com famílias significa recorrer à categoria da totalidade e de


integralidade como possibilidade de compreensão do objeto de trabalho.
Para o desenvolvimento do trabalho com famílias é necessário
conhecimento sobre os sujeitos das ações profissionais que seriam:
as famílias, as instituições e os sujeitos organizados ou sociedade
civil (conselhos de direitos, movimentos sociais, etc). É necessário
clara distinção entre os objetivos das ações , as formas de
abordagem dos sujeitos da ação e dos instrumentos técnico-
operativo.

4 - A modo de conclusão

Essa discussão configura a complexidade e contraditoriedade existentes


em torno da questão da família como referência da política de assistencia
social. Indica também que, ao tratá-la, estão sendo colocadas em
movimento diferentes concepções sobre famílias e suas relações com
outras esferas da sociedade, como Estado, Mercado e Trabalho. Dessas
diferentes formas de concepções nascem diferentes formas de formular e
executar as políticas públicas.

Trabalhar com a idéia de matricialidade sociofamiliar não significa


atender à lógica da cidadania e do Direito, como está na lei. A
centralidade da família abre espaço para incrementar práticas que
promovam a sua proteção e participação cidadã ou, ao inverso, que
reforcem a lógica do controle do Estado sobre as famílias, por meio da
reiteração de práticas de caráter disciplinador, tão presentes na
história do Serviço Social e da assistencia social.

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Texto 2: Problematiza elementos em torno da centralidade da


família e da mulher no âmbito da proteção social.

Famílias e Serviço Social – Algumas reflexões para o


debate
Rita de Cássia Santos Freitas

Cenira Duarte Braga


Nívea Valença Barros

Este texto não traz respostas, pois não é conclusivo Ele foi
elaborado a partir das experiências das autoras como professoras em
disciplinas que versam sobre a família e redes, crianças e adolescentes,
gênero e cultura.

Famílias – existe um tema mais familiar?

Falar sobre famílias significa pensá-las em suas relações com a sociedade


mais ampla onde se inserem e nas formas como estas relações se
atualizam na vida diária das pessoas que lhe dão concretude. Não
podemos esquecer que a família faz parte de nossa vida privada. Nós,
assistentes sociais, temos nossas famílias (e modelos) e trabalhamos com
elas – em sua diversidade.

Pensar a família na sociedade contemporânea significa considerar que


vivemos num mundo globalizado, onde a reestruturação do trabalho e a
retração do Estado na área social são realidades com que temos de lidar.
As transformações demográficas constituem-se em outro fator para
se pensar família hoje. Temos uma família transformada em seus
elementos, em suas ocupações, nas formas de relacionamento, que
aparecem nas análises “tradicionais” como caracterizando a fragmentação,
crise ou um suposto fim das realidades familiares. Encontramos no
dia a dia uma multiplicidade de tipos de família.

O mundo familiar mostra-se, na realidade “vivida”, com uma variedade


de formas, de organização, de crenças, valores e práticas.

É localizando a família na complexidade da sociedade moderna, tendo por


pressuposto sua pluralidade e a perspectiva de que os sujeitos sociais
são sujeitos em transformação, que se inicia este texto. Sem negar
a importância do fator econômico, enfatiza-se também a dimensão do
simbólico e do cultural como dimensões importantes para se discutir
família. Por isso, é fundamental a atenção para a formação histórica
brasileira para conhecer essa realidade.

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Primeiro é necessário se definir o que se pode entender sobre o termo:


família. O que significa? O que caracteriza? São as relações de
parentesco, os laços sanguíneos que a definem? Ou a proximidade
física, a convivência entre as pessoas?

As relações de parentesco são resultado da combinação de três relações


básicas: a descendência entre pais e filhos; a consangüinidade entre
irmãos; e a afinidade a partir do casamento, sendo a família
considerada como grupo social por meio do qual se realizam esses
vínculos. Contudo, tem-se convivido com realidades diferenciadas que
conformam a constituição do fenômeno família para além das relações de
parentesco. Pensar família hoje pressupõe seu entendimento enquanto um
fenômeno que abrange as mais diferentes realidades. O indivíduo está
envolvido em redes de significado ( Geertz, 1997). A vida social é
organizada a partir de modelos, de regras culturalmente elaboradas, e é a
partir destes que os indivíduos vivem sua vida cotidianamente e se
relacionam uns com os outros. Mas estes modelos não são estáticos.
Eunice Durhan (1983), ao estudar famílias argumentava que modelos são
mutáveis. Por isso mesmo, a existência de inúmeras exceções não
significava (como não significa) a contestação da regra.
Representava, sim, sua “aplicação maleável”para permitir a solução dos
problemas cotidianos.

Esse modelo da família que conhecemos tem sua história recente.


Conforme P. Ariès (1981), no início do século XVIII é que começou a se
desenhar o perfil de família que hoje conhecemos e aprendemos a pensar
como universal, sem atentar para a sua construção social. A constituição
desta família respondia às necessidades de um dado momento
histórico. A importância dada à criança e a constituição de um novo
papel da mulher, dando-lhe certo poder, são as molas mestras
para a construção desses novos sujeitos.

Essa é uma realidade moderna. O surgimento da família moderna


é associado à separação entre o mundo privado e público, sendo o
privado (a intimidade) da ordem dos sentimentos. As obras de Gilberto
Freyre retratam a crescente privatização da vida doméstica, ao
estudar a sociedade brasileira. Em Sobrados e Mocambos (2006),
assiste-se ao processo de recolhimento da família à casa; a separação
entre o mundo público e privado – a rua e a casa. As mudanças na família
eram vistas como transformação da família patriarcal extensa e da
qual ter-se-ia “saudade”, demonstrando, ainda hoje, a força desse
símbolo.

Uma das coisas que se tem aprendido é a necessidade de estabelecer


diálogos além das fronteiras do serviço social, buscando a articulação com
outros saberes. Há a necessidade de se voltar aos estudos sobre a
realidade brasileira, sua história e cultura. Nesse sentido, o recurso à

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demografia, à antropologia e à história é fundamental. Foi a partir deste


que se pôde ir conhecendo que, mesmo no período colonial, a casa grande
e a senzala não eram as únicas realidades possíveis – como viviam os
brancos pobres neste período? E as famílias escravas, como se
constituíam? E as relações entre brancos, escravos e índios? O
recurso à antropologia é central para o assistente social. A
perspectiva de compreender a família como uma realidade em rede e
não nuclearizada deve-se estudos antropológicos.

Enfatiza-se a importância de não esquecer os sujeitos em suas análises,


mas também a necessidade de situar esses sujeitos historicamente.
Desnaturalizar algo tão familiar é um salto fundamental para o
assistente social, para que ele consiga lidar com realidades
diferenciadas com um olhar que busque o conhecimento, não o
julgamento e o preconceito – que habita dentro de nós.

Afonso e Filgueiras (1995) já apontavam a existência de uma


diversidade de arranjos familiares existentes, bem como a
centralidade da família na vida das crianças e dos adolescentes. A
partir da constatação dessa diversidade é que se pode escapar aos
perigos de uma naturalização da família, entendendo-a enquanto um
“grupo social cujos movimentos de organização – desorganização –
reorganização mantêm estreita relação com o contexto sócio-cultural
(Op. Cit., 06). É importante enfatizar essa diversidade de respostas
possíveis para se poder escapar de uma leitura dicotomizante e
empobrecedora. É fundamental sair da polaridade família estruturada x
família desestruturada.

É no meio dessa diversidade que se trabalha; é a partir dessas


leituras que se vai definir família enquanto um processo de articulação
de diferentes trajetórias de vida, onde se entrecruzam as relações de
classe, gênero, etnia e geração. Além do lugar da reprodução
biológica – é “o lugar onde se entrecruzam as relações sociais fundadas
na diferença dos sexos e nas relações de filiação, de aliança e
coabitação”(Lefaucheur, 1991, p. 479).

A diversidade talvez seja uma das principais características humanas. É


essa noção do outro”que constitui a base da vida social. Esta só é possível
se se compartilhar um mínimo de valores comuns. A vida em sociedade
demanda a construção de normas de convivência, de modelos de agir e
pensar, de símbolos onde nos reconheçamos. Esses “modelos”de
convivência e relacionamento esbarram na realidade concreta onde as
pessoas vivem e sentem ( e para os quais tem de encontrar respostas e
criar estratégias cotidianamente). Se hoje o modelo hegemônico é a
família nuclear, não se pode negar que o recurso às avós, aos parentes
e aos vizinhos continua sendo prática cotidiana, principalmente em
nas classes populares - fazendo emergir de novo uma família extensa,

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ainda que as pessoas não convivam na mesma casa ( Sarti, 2003). E esta
é uma realidade não só das classes trabalhadoras. Alguns textos clássicos
mostram como as famílias pobres se aglutinam em torno de um
eixo central moral onde as mulheres ocupam posição central. É uma
realidade que não pode ser vista como “desviante”, mas sim como a
construção possível das relações familiares. Dessa forma, é
fundamental desnaturalizar essas relações, tentando melhor conhecer
esse fenômeno tão familiar e tão diverso.

A coletivização no cuidado das crianças vem caracterizar o que Cláudia


Fonseca ( 1990 e 2003) chama de “circulação de crianças”- um conceito
que se considera central para o estudo das famílias brasileiras. Esse
fenômeno pode ser entendido relacionado aos rearranjos conjugais,
mas não só. Frente às grandes dificuldades econômicas, a internação
dos filhos em escolas particulares ou a sua circulação entre amigos
ou parentes aparece como uma alternativa importante em vários
segmentos de classe.

O fenômeno da circulação de crianças é central para discutirmos a


família brasileira, pois faz parte da “cultura familiar”.

A circulação de crianças: conceito fundamental para pensar a


família brasileira

A expressão “circulação de crianças” denomina a transferência e/ou


partilha de responsabilidade de uma criança entre um adulto e outro.
Interpretar esse fenômeno como abandono é descaracterizar o
sentido dessa palavra; não considerando as questões que motivam essa
dinâmica e desconsiderando as diferenças de outras realidades sociais.

A circulação de crianças aparece como forma de demonstrar que a


hegemonia do modelo de família moderno não se exerce da mesma
forma em todas as camadas sociais. Este não está ao alcance de
todos (material e simbolicamente falando). Cynthia Sarti afirma que
nos tempos atuais, evidencia-se o conflito gerado pelo abandono das
tradições. Fatos como amor, casamento, família, sexualidade,
trabalho, que antes eram vividos a partir de papéis preestabelecidos,
passaram a ser concebidos como parte de um projeto em que a
individualidade adquire uma importância social cada vez maior
(Sarti,2003), e onde nada pode estar previamente assegurado. No
entanto, no universo cultural dos pobres, não estão dados os
recursos simbólicos para a formulação desse projeto individual que
pressupõe condições sociais específicas de educação e valores sociais,
muitos dos quais alheios ao seu universo cultural. Ao invés de um projeto
individualista moderno, é a tradição que se mantém como uma referência
fundamental em suas exigências, já que:

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Pensam seu lugar no mundo a partir de uma lógica de


reciprocidade de tipo tradicional em que o que conta
decisivamente é a solidariedade dos laços de parentesco e de
vizinhança com os quais viabilizam sua existência. Sua busca
em serem modernos, ou seja, de usufruírem da possibilidade,
dada por nossa época, de conceber e realizar projetos
individuais, quando chega a ser formulada, torna-se uma
busca frustrada, em que aparece o peso de sua subordinação
social. (Sarti, 1995., p. 47)

Como afirma a autora, as potencialidades do mundo contemporâneo são


amplas, mas é árdua a tarefa de realizá-las. Não se pode pensar o
universo simbólico dos pobres a partir de nosso próprio horizonte porque
a família, para o pobre, não é a mesma que para a classe média. Família
para o pobre é definida, segundo Cynthia Sarti, como aqueles em
quem se pode confiar; não havendo status ou poder a ser
transmitido. O que vai definir a extensão da família é a rede de obrigações
construídas: “são da família aqueles com quem se pode contar, isto
quer dizer, aqueles que retribuem ao que se dá, aqueles, portanto,
para com quem se tem obrigações” (Sarti, 1994, p. 52). A família se
define, assim, em torno de um eixo moral, onde a noção de
obrigação sobrepõe-se à de parentesco. Assim, a circulação de
crianças deveria ser vista enquanto um aspecto de organização
diferenciada e não de “desorganização familiar”: “... a circulação de
crianças..., seria apenas uma entre várias normalidades possíveis
entre as práticas familiares na sociedade complexa atual” (Fonseca,
2002, p. 56 – grifos nossos).

A circulação envolve aspectos econômicos e culturais, sendo um das


estratégias de sobrevivencia possíveis às nossas classes trabalhadoras. É
dentro dessa experiência que ganham sentido as noções de parentesco e
de relações familiares. Essas redes formadas por meio da circulação de
crianças entre adultos – parentes ou não- não são harmônicas.
Outra característica dessa prática é a formação de redes sociais em
função da sobrevivencia a criança que, com isso, contribui para o
fortalecimento de outras redes já existentes.

Suely Gomes Costa (2002) traz para o debate a noção de “maternidade


transferida” para se referir à forma como mulheres se atribuíram
mútuas responsabilidades com a delegação de tarefas administrativas
de suas casas a outras mulheres. Este é um fenômeno de longa duração
histórica e pode ser localizado na circulação de crianças por outras casas,
mas, principalmente, dentro das casas onde podemos encontrar a
empregada, ou aquela pessoa que “da uma ajudazinha”. Outra realidade
comum nas classes populares é como as irmãs mais velhas vão assumindo
as atividades “típicas das mulheres” e passam a gerenciar a casa e os
cuidados com os irmãos menores – não usufruindo da infância a que
teriam direito, ao partilhar essas responsabilidades.

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Como reflete Cláudia Fonseca, é fácil transformar crianças carentes


em menores abandonados, culpabilizando seus pais. Ao projetar o
ideal de uma infância inocente, muitas vezes denunciamos a
exploração de crianças pobres. Não se tem o mesmo olhar contra
a brutalidade cometida contra seus pais. Barros (2005) nos diz: “estas
famílias, na maioria das vezes, estão sendo negligenciadas em termos
de políticas públicas e também sofrem com o descaso com que são
tratadas e com as injustiças geradas pela desigualdade social” (OP. Cit., p.
217). O assistente social é um dos maiores notificadores da violência
contra crianças e adolescentes. Mas, muitas vezes, as famílias acusadas
de negligencia são extremamente negligenciadas. Cabe à família
prover a proteção para criança e adolescente, diz a Constituição
Federal (bem como o ECA). Mas ali diz também que essa é uma
tarefa da família, da sociedade e do Estado. A quem denunciar a
negligência sofrida por essas famílias? Como “enquadrar” o Estado que
pode ser caracterizado como o principal agente perpetrador da violência –
ao não possibilitar educação e saúde para as crianças e seus pais, por não
oferecer políticas eficazes de transferência de renda, por não prover
políticas culturais para essa população, por não garantir um padrão
de sobrevivência mínimo e decente para cada cidadão e cidadã deste
país?

Dessa forma, a família moderna não deveria ser pensada enquanto


uma meta a ser alcançada; sua ausência não significa um vácuo
cultural; “a circulação de crianças é o exemplo de uma dinâmica
alternativa; é indicação de formas familiares em grupos populares
que longe de serem uma etapa anterior à família moderna, vem
crescendo e se consolidando ao mesmo tempo que ela “( Fonseca,
2002, p. 38 – grifo nosso).

Assim, além de desnaturalizar a compreensão das diferentes


realidades familiares, enfatiza-se a necessidade de conhecer mais
proximamente a realidade das famílias brasileiras.

Família hoje: diversidade e continuidades

No mundo novo em que vivemos, assistimos a mudança nos padrões de


relacionamentos entre homens e mulheres que rebatem nas relações
familiares. A posição das mulheres se alterou profundamente, uma vez
que estão cada vez mais ocupando os espaços públicos, trabalhando e
estudando mais – ainda que isso não tenha trazido transformações nas
relações de gênero. Dizer que as mulheres estão mais no mundo
público não significa dizer que elas tenham estado ausentes dele
algum dia. As mulheres, principalmente as pobres, sempre
trabalharam. A idéia recente do trabalho como emancipação é uma
realidade mais das camadas médias.

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A legislação sobre a família também mudou: o casamento não é


mais o único mecanismo de reconhecimento legal das relações
familiares. A Constituição Brasileira prevê como famílias a
comunidade formada por qualquer um dos cônjuges e seus descendentes
(art. 226). O reconhecimento se dá pela união formada pelo casamento,
união estáve entre homem e mulher, incluindo a possibilidade da família
monoparental – ainda está ausente o reconhecimento das relações
homoafetivas. O ECA também define a família como uma
comunidade “formada pelos pais ou qualquer deles e seus
descendentes”.

Hoje tem- se uma multiplicidade de tipos de organização familiar: o


casal sem filhos, as famílias chefiadas por mulheres; famílias
extensas nas quais irmãos casados dividem a mesma casa; casais
separados permanecem debaixo do mesmo teto; famílias formadas a
partir de segundas uniões (famílias recombinadas). O reconhecimento
de casais compostos por pessoas do mesmo sexo traz outro
elemento revolucionador na definição das famílias modernas.

Outra realidade que vem conquistando espaço é a discussão da


paternidade. Em nossos campos de intervenção se tem aberto
espaços para os homens participarem? Ou continuamos a utilizar
visões generificadas dos papéis de homens e mulheres na família e não
abrimos espaços nas instituições onde trabalhamos para que essa
participação se dê de forma plena. A visão da masculinidade e dos
homens como invulneráveis ainda percorre as falas de profissionais
para os quais é difícil admitir que homens podem precisar de ajuda.

Sente-se no dia a dia, e as análises de diversas disciplinas vêm


comprovar essas impressões, o modo como a paternidade (e por
conseqüência a masculinidade) vem sendo posta em questão e
estabelecendo formas diferenciadas de exercício. Cresce o número
de famílias em que os homens se afirmam como único chefe,
exercendo o papel materno e paterno, entre os pobres, mas
também nas camadas médias. O recurso a avós, tias ou amigos se faz
necessário, estabelecendo uma rede de apoio mútuo. É impossível
pensar a família brasileira sem atentar para a importância do
parentesco e da vizinhança na vida das pessoas – uma realidade mais
próxima das mulheres (socialmente predispostas a atuar em rede) do que
dos homens.

Trazer essa dimensão da realidade não quer dizer que não se enxergue a
extrema vulnerabilidade das famílias monoparentais femininas expressa
na chamada feminização da pobreza. É importante lembrar que a
associação famílias monoparentais femininas e pobreza reforça o estigma
de que as mulheres são menos capazes para cuidar de suas famílias

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e de suas vidas sem a existência de um homem. Faller Vitale


(2002) relembra que enquanto houver a associação maciça entre
monoparentalidade e pobreza “(...) acaba por fortalecer muito mais a
adjetivação dessas famílias como vulneráveis ou de risco do que como
potencialmente autônomas” (Op.cit.,p.51).

Outro dado interessante é a queda da taxa de fecundidade acompanhada


de um aumento da expectativa de vida. Caminha junto com a queda da
taxa de fecundidade a existência – principalmente nas camadas
populares- da gravidez na adolescência. Ser mãe constitui a identidade
para muitas mulheres jovens. A gravidez passa a fazer parte de seus
cotidianos, podendo ser símbolo de status e de inserção na vida
adulta.

Nesse sentido, é interessante um comentário em relação ao


surgimento dos chamados Estados- providência na Europa. Gisela Bock
(1991) aponta como fundamental, na França, as reivindicações e os
movimentos das mulheres. No pós-guerra, se assiste ao incremento
do welfare state e para Nadine Lefaucheur (1991), este, ao entrar no
lar, empurrou a dona de casa para fora dele, devido ao processo de
coletivização do trabalho de reprodução. Conforme afirma
Lefaucheur, os Estados do bem-estar permitiram às mulheres
conhecer certa autonomia em relação aos homens e à instituição
conjugal. Ajudou ainda na criação de postos de trabalho, públicos e
privados. Onde os Estados-providência foram mais fortes, foi maior a
autonomização das mulheres e menor feminização da pobreza.

No processo de constituição de proteção social no Brasil, a realidade foi


diferente. Enfatiza-se, com Góis (s/d), o fato de que a reprodução dos
pobres, durante várias décadas da história brasileira, passou ao largo
da intervenção estatal, pois sem a atenção dos mecanismos públicos a
população engendrava sua sobrevivencia “no circuito das solidariedades
sociais comunitárias e familiares”. Durante o Estado Novo – ao se
consolidar uma política social mais interventiva – a família ocupou
um papel de destaque. A importância dessas reflexões é mostrar, de
um lado, como na construção da proteção social brasileira as
solidariedades grupais se tornaram um elemento fundamental para a
sobrevivencia das famílias pobres. De outro lado, tem-se o fato de
que a família foi e é tomada como elemento de intervenção para
as ações estatais. Recentemente, os programas de renda mínima
recolocaram a família no centro da discussão sobre proteção social.
Estes a tomam como alvo prioritário e como um “parceiro” preferencial
para sua implementação. O Programa Bolsa-Família e o PETI (
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), direcionados para a
infância carente, tinha na família o alvo prioritário de suas
investidas. O Benefício de Prestação Continuada termina tendo a família
como parâmetro para sua operacionalização, uma vez que o

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recebimento de tal benefício está condicionado à renda de toda a


família. Na área da saúde é que a família surge como elemento
fundante. Tem-se o PSF (Programa de Saúde da Família) e, em alguns
municípios, o PMF (Programa Médico de Família). A família aparece
como uma dimensão fundamental para o estabelecimento e a
implementação dessas políticas.

Essa assistência, mais próxima e preventiva, pode significar uma efetiva


melhora nas condições de vida da população atendida e tem gerado
demandas entre os profissionais pela humanização no atendimento.
Por outro lado, persistem as denúncias de falta de transparência,
da continuidade de práticas clientelistas, de mau atendimento, etc.
Na verdade, deve-se considerar a dialeticidade da realidade e ver,
nesses processos, formas de continuidade e de rupturas com
procedimentos e com a construção de novos protocolos de
atendimento. O que parece inquestionável é a
continuação/consolidação, hoje, da família como instância
fundamental na elaboração das políticas sociais. Se as famílias estão
sendo chamadas para uma “parceria” com o Estado, é importante pensar
que uma parceria pressupõe uma relação de iguais e, nesse
sentido, pode-se perguntar: como se dá essa participação da família,
com que graus de autonomia? A centralidade da família trouxe como seu
correlato a centralidade da figura feminina como interlocutora dessas
políticas.

Construindo uma conclusão: a centralidade da mulher nas políticas


voltadas para a família A família tem um papel fundamental na hora da
manutenção de seus membros. A proteção, o cuidar das crianças, dos
idosos e doentes sempre se caracterizou como uma das características da
família que teve historicamente na mulher um elemento de destaque.
Nas políticas sociais dirigidas às famílias ( bem como idosos,
crianças e adolescentes, enfermos e doentes mentais), o contato da
família com a sociedade e o Estado continua ocorrendo, em grande
parte, por meio da figura materna. As políticas sociais dirigidas a
esse público tomam como pressuposto a presença de alguém em
casa para cuidar daqueles, e esse lugar é “naturalmente” identificado
com a mulher. A nossa sociedade não construiu condições para suprir a
saída de casa dessas mulheres incorporadas ao mercado de
trabalho, não apenas no que se refere à realização de tarefas
domésticas, mas também em relação a esse suporte para as políticas
sociais.

A família que se conhece destinou um papel específico a estas, como


mães e guardiãs do lar. Tem-se o movimento feminista negando esses
papéis e sua hierarquização. Hoje, a prática ainda está bem
diferente do discurso. Ser casada e ter filhos torna-se uma dificuldade,
que é resolvida com o apelo para uma rede de solidariedade, formada por

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parentesco ou vizinhança (normalmente constituída também por


mulheres). Contudo, a inclusão simultânea da mulher nas esferas pública
e privada, ainda que de modo contraditório, é uma realidade
indiscutível. A maioria das políticas, porém, toma a mulher como
aquela que está e fica em casa. É ela a responsável por receber os
benefícios, é quem “pode” acompanhar crianças e idosos, “pode” ser a
responsável por cuidar dos doentes crônicos ou terminais, ou
doentes mentais que vão para casa. De que família se está falando? E de
que mulheres? Estas têm efetivamente condições (econômicas e
psicológicas) de cuidar de seus parentes? Podem abandonar
trabalhos e afazeres para cuidar de seus entes queridos?

Dessa forma, as políticas vêm continuamente reafirmando os papéis de


gênero, contribuindo pouco para a transformação destes. O advento de
muitas dessas políticas vai ao encontro de muitos desejos das
mulheres, porém esse fato recoloca a responsabilidade por esses
cuidados nas mãos das mulheres. Essa responsabilidade reafirma o
local da casa como o local da mulher (Suárez; Libardoni, 2007)

Concorda-se com Novellino (2005) que as políticas públicas para as


mulheres pobres deveriam ser políticas de combate à pobreza que
envolva não só renda, mas também acesso a serviços. Entretanto, estas
deveriam ser igualmente políticas de gênero comprometidas com a luta
pela igualdade de direitos e oportunidades para mulheres e homens.
Políticas púbicas de gênero não podem envolver apenas mulheres; os
homens devem necessariamente estar presentes.

É importante não perder de vista a perspectiva universalista na hora de se


pensar políticas públicas. No entanto, há diferenciais de gênero (e
classe) que devem ser analisados e considerados quando da
projeção e implementação de programas governamentais.

O governo brasileiro começou, no final de década de 1990, a


construção de uma política social focalizada no combate à pobreza.
Ainda não se tem como medir os impactos reais dessas políticas no
cotidiano as pessoas. A própria concepção de família nos programas
precisa ser revista – esquecendo os limites do domicílio (Fonseca, 2001).
A atuação do técnico que atende a essa população precisa estar atenta
para o que esta verbaliza: é comum a fala entre assistentes sociais
e estagiários sobre a ineficácia do PBF. Ao ouvi-las, pode-se permanecer
na certeza de que essas pessoas estão alienadas e se está ali para dizer o
certo, mostrando a “verdade”. Mas se pode- se partir do pressuposto
de que essas pessoas são também sujeitos que tem saber,
interesses e perspectivas que precisam ser respeitadas. Tratar o outro
como sujeito respeitando sua alteridade não é tarefa fácil.

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Por outro lado, têm-se relatos de profissionais questionando a


estreiteza dos benefícios, mas contraditoriamente esses mesmos
profissionais querem dizer aos usuários como devem gastar seu
dinheiro. Nós podemos consumir bastante – e não sermos alienados- mas
as classes trabalhadoras não podem ter a mesma autonomia...
Contudo, as estratégias continuam sendo implementadas como
fortalecimento das redes de parentesco e a circulação de crianças. Esse
conjunto de questões demanda um esforço de atualização e a
construção de uma agenda de investigação dentro do Serviço
Social, essencial ao desenvolvimento de uma prática teórico-
metodológica e politicamente consistente nesse domínio.

Texto 3 Apresenta reflexões acerca da atuação do serviço


social no Juizado de Menores do Rio de Janeiro (antigo
Distrito Federal) no período de 1938- 1950)

O Serviço Social e a atuação junto à Infância, Juventude


e Família Pobre no Juizado de Menores do Rio de Janeiro:
Reflexão acerca da atuação profissional

Sabrina Celestino

Introdução

No presente trabalho objetiva-se construir uma reflexão acerca da


atuação do Serviço Social no então Juizado de Menores do Distrito
Federal (Rio de Janeiro).

A partir da construção histórica do Serviço Social, entende-se ser possível


traçar uma análise acerca da atuação profissional junto à Infância,
Juventude e a Família (pobre) e refleti-la, buscando conhecer os
valores morais, éticos e políticos que orientavam os profissionais
presentes nessa instituição.

O campo sociojurídico, em especial o judiciário, se constitui em uma área


desafiadora para a prática do assistente social.

Tal desafio dá-se devido ao fato de a instituição judiciária ser


predominantemente ocupada por profissionais do Direito e, embora o
serviço social a integre, há mais de 70 anos, ainda luta por espaço,
respeito e reconhecimento perante aqueles cuja tradição já legitimou.

A tímida produção bibliográfica nesse campo, sobretudo no que se refere à


história do serviço social na instituição, dificulta o conhecimento desta
e da atuação profissional, fato que contribui para dificultar o

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entendimento da definição quanto ao papel do assistente social nesse


espaço.

No Poder Judiciário como espaço onde os indivíduos se inserem


para serem julgados, a atuação do assistente social junto à infância,
juventude e a família, no início de sua inserção nesse espaço, esteve
dirigida à culpabilização dos indivíduos pobres, e ao ajustamento
destes aos padrões socialmente aceitáveis a partir de um ponto de vista
conservador.

Utilizou-se para realizar este trabalho a pesquisa bibliográfica e a pesquisa


documental.

1 – Inserção e atuação do serviço social junto à infância,


juventude e família pobre no antigo Juizado de Menores

São poucos os estudos que tratam da prática do assistente social


no judiciário, sobretudo no que se refere ao Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro (Distrito Federal)

Resgatar a história de como o serviço social se insere no interior


do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro se constitui de extrema
importância, pois conhecer a gênese e o desenvolvimento da profissão
nesse espaço possibilita a desconstrução da idéia de que esse campo se
constitui em área nova para a atuação profissional.

Aproximar dessa história também possibilita aprender sobre a


prática profissional no interior do Poder Judiciário, relacionando-a
com a gênese do serviço social no cenário nacional e mundial e,
assim, apreender seus fundamentos. Tal história permite pensar qual
ideologia esteve presente no momento de inserção do assistente social
nesse espaço, conferindo aos profissionais funções e identidades que
os acompanharam.

O serviço social se insere no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de


Janeiro, requisitado a lidar com a “problemática” da infância, juventude e
da família “desajustadas”. Esse tipo de atuação, que tinha como finalidade
o ajustamento dos indivíduos ao meio, parte de uma concepção
positivista, que tem como princípio que a sociedade é um todo orgânico
em que todos os indivíduos tem funções e devem conviver em harmonia
para que a estrutura social funcione. Nesse sentido, a questão social que
se apresentava para os “menores” e para suas famílias era entendida
como problemas individuais que necessitavam ser tratados de maneira
que esses indivíduos pudessem conviver sem se apresentarem como risco
para a sociedade como um todo.

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No Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o serviço social se


inseriu através do então Juizado de Menores do Distrito Federal. Tal
instituição se encontrava responsável tanto por executar quanto por
regular as ações de assistencia e punição aos “menores abandonados e
delinqüentes”. A ação dessa instituição se encontrava personificada na
atuação da autoridade judiciária, cujas funções estavam estabelecidas
no artigo 38 do Código de Menores:

I - processar e julgar o abandono de menores, nos termos


deste regulamento, e os crimes ou contravenções por eles
perpetrada;
II - inquirir e examinar o estado psíquico, mental e moral dos
menores que comparecerem a juízo e, ao mesmo tempo, a situação
social, moral e econômica dos pais, tutores e responsáveis por sua
guarda.
III - ordenar as medidas concernentes ao tratamento,
colocação, guarda, vigilancia e educação dos menores
abandonados ou delinqüentes;
IV - decretar a suspensão ou a perda do pátrio poder ou a
destituição da tutela e nomear tutores;
V - praticar todos os atos de jurisdição voluntária, tendentes à
proteção e assistência aos menores;
VI - impor e executar as multas e que se refere este regulamento;
VII - fiscalizar os estabelecimentos de preservação e de reforma, e
quaisquer outros em que se achem menores sob sua jurisdição,
tomando as providencias que lhe parecerem necessárias;
VIII - cumprir e fazer cumprir as disposições deste
regulamento, aplicando nos casos omissos as disposições de
outras leis que forem aplicáveis às causas cíveis e criminais da sua
competência;
IX - organizar uma estatística anual e um relatório documentado do
movimento do juiz, que remeterá ao Ministério da Justiça. (Código
de Menores 1923).
a)os exames médico-legais dos menores b) orientação e
seleção profissional; c) responder às consultas feitas pelos
estabelecimentos oficiais de educação ou por
estabelecimentos e pessoas particulares, a critério do juiz
de menores; d) realizar estudos e pesquisas de caráter
científico relacionados com a especialidade; e) lavrar
pareceres sobre assuntos médico-pedagógicos referentes à
infância; f) organizar anualmente cursos do Serviço Social do
Juizado de Menores. (Pinheiro, 1985ª, p. 53).

A partir de Silva (2003), pode-se verificar que o Laboratório criado


a partir do artigo 131 do Código de Menores e pelo artigo 3 da
Lei n: 65, de 13 de junho de 1936, a fim de desenvolver suas
funções, passou por duas fases. Na primeira (1935 a 1937) desenvolvia

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sua atuação voltada para a identificação legal e médico/psicológica dos


menores”.

O serviço Social se insere no interior do Tribunal de Justiça do


Distrito Federal e no então Juizado de Menores, via Laboratório de
Biologia Infantil, instalado neste Juizado.

Diante disso, pode-se perceber a direção criminológica que se encontrava


presente nesse serviço, que tinha como função principal identificar o
perfil dos “ menores abandonados e delinqüentes”a partir de uma prática
da Medicina Legal de Identificação.

As ações do Laboratório de Biologia Infantil estavam direcionadas a


buscar nas ações dos “menores” causas de cunho biológico para que
fosse estabelecida uma forma de tratamento que permitisse a
reintegração destes na sociedade. Essa busca por uma “patologia social”
não estabelecia conexões entre as ações dos “menores” e a estrutura
social. Essas ações representavam uma “doença”individual que deveria
ser tratada de maneira que permitisse a formação deste como um adulto
de bem que não trouxesse riscos para a harmonia social.

Verifica-se que a intervenção desenvolvida apenas numa metodologia


diagnóstica, que visava o estudo de cunho biológico, não dava conta de
“constatar”as causas dos “crimes dos menores delinqüentes”, sendo
assim, como afirma Silva (2003);

A principal intenção dos idealizadores do laboratório era promover a


profilaxia criminal, por meio da identificação das crianças que
apresentariam propensão à delinqüência. No entanto, a partir
dos resultados dos primeiros exames feitos, médicos e
magistrados tiveram que repensar a própria questão da
delinqüência infantil. Nesse novo contexto, passaram a se
realizar com maior freqüência no LBI cursos e seminários que
tinham como tema a assistencia social. Assim, o ambiente
familiar e o meio social em que se encontravam grande parte
dos menores internados nos ISS ganharam importância nas
pesquisas desenvolvidas no laboratório (Op. Cit.)

É na segunda fase do Laboratório de Biologia Infantil (1938 -1939)


que o Serviço Social irá ser percebido como uma profissão
necessária para o funcionamento institucional. A referida instituição
passa a realizar a investigação médico/psicológica e a ser
responsável pelo encaminhamento profissional dos “menores”.

Interligadas às ações desenvolvidas pelo então Juizado de Menores do


Distrito Federal e do Laboratório de Biologia Infantil, estavam as
instituições responsáveis por receber os menores internados pelo
Juizado.

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2 – A contribuição do Juizado de Menores para a formação dos


primeiros quadros profissionais A instituição judiciária do
Distrito Federal (Rio de Janeiro) se configurou como uma
das que contribuiu para a formação dos primeiros quadros
profissionais.

Algumas iniciativas começaram a serem tomadas para a formação


de profissionais que pudessem intervir sobre a expressão da questão
social no que se refere à infância e juventude que, por meio de
intervenção do Estado, tomava forma de política pública. Verificamos em
1936, por meio do Juizado de Menores do Distrito Federal sua inserção
nessas ações.

Foi desenvolvida a construção e o desenvolvimento de curso de


formação para assistentes sociais destinadas a lidar com a temática d
“menor”, conferida a duas assistentes sociais oriundas da Escola de
Serviço Social de São Paulo (Maria Keel e Albertina Ramos). Ambas
formadas pela Universidade de Serviço Social de Bruxelas, na Bélgica.

Aquelas profissionais foram convidadas a prestar orientação técnica e


estruturar o curso nos moldes da Escola de São Paulo, à qual as
assistentes sociais pertenciam.

O curso esteve estruturado em duas partes: técnica e prática. A


parte prática era ministrada pelas assistentes sociais paulistas que
desenvolviam atividades que “contavam de aulas práticas, visitas, de
observação a obras sociais, pesquisas, relatórioa, fichas e provas
(Pinheiro, 1985, p. 52). Apesar do curso não ser regulamentado como
de nível superior, às profissionais que se formavam era conferido o título
de assistente social.

Após o término do curso, uma das assistentes sociais por ele


formada ( Maria Isolina Pinheiro) foi indicada para atuar como
assistente técnica do Laboratório de Biologia Infantil e como assistente
social do Juizado de Menores do Distrito Federal.

Ao concluir o curso no Juizado de Menores, Maria Isolina iniciou suas


atividades na área social, por meio do Serviço de Obras Sociais do Rio
de Janeiro (SOS), com crianças da localidade Ponta do Cajú,
ocupando um cargo de Assistente Social e se tornando funcionária
do Ministério da Justiça do Brasil (Pinheiro, 1985).

Em 1938, Maria Isolina, por meio de funções no Laboratório de


Biologia Infantil, passa a “formar profissionais técnicos de serviço social”

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em parceria com a SOS, estruturando um curso intensivo de serviço


social.

Mesmo direcionado para uma prática de ajustamento funcional à


estrutura, que buscava garantir a harmonia social e contribuía para
o modelo de modernização conservadora, as profissionais referidas
passaram para a história do serviço social, obtendo uma série de
conquistas para a categoria e possibilitando que a profissão ganhasse,
em seus primórdios, legitimidade social e política.

Observamos que a profissão se insere no Juizado de Menores do Distrito


Federal para lidar com os ditos “desajustamentos sociais”, numa
perspectiva biológica dos “menores” e suas famílias.

A profissão ainda não tinha referencia ética própria, visto que o primeiro
Código de Ética Profissional foi formulado em 1947. A atuação do Serviço
Social baseava-se em valores morais católicos, nos valores sociais e
religiosos dominantes na sociedade da época. A perspectiva
conservadora visava a uma investigação das causas biológicas para os
“desajustamentos dos menores” e famílias. Estabelecia-se um tratamento
por meio da institucionalização, da educação moral e cívica e da
profissionalização com vistas ao idealizado progresso da nação.

Próximo capítulo abordará, por meio dos estudos dos pareceres


sociais de 1938 a 1950, como se desenvolvia a intervenção
profissional na área da infância e juventude pobre e suas famílias,
a fim de apontar elementos para um debate acerca da forma como os
princípios e valores que direcionavam a ação profissional vão contribuir e
ganhar expressão no Código de ética da profissão.

3-Considerações a partir da pesquisa

Foram consultados 460 processos que se estenderam entre 1938 e 1950


no Juizado de Menores do Distrito Federal (Rio de Janeiro), dos quais foi
possível retirar algumas informações essenciais para fundamentar a
análise.

No período analisado no Juizado de Menores e na intervenção do


Serviço Social, verificou-se que prevalecia uma moral que convergia
com a cultura católica da época. A tendência da intervenção
profissional desse momento histórico era de reproduzir a visão
conservadora da instituição e da sociedade.

A partir da obra de Pimentel (1945) verificamos quanto ao Juizado de


Menores junto a seu público alvo: exerce uma função tutelar, assistindo
aqueles a quem se faltou a proteção dos que lhe deram o ser. Vê-se
portanto, quanto é valiosa e nobre a sua ação. Representa a

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sociedade assegurando medidas de proteção, assistindo a infância


desvalida e regenerando a infância pervertida. Daí a sua dupla função:
jurídico-social. Jurídico enquanto cumpre as leis especializadas e
salvaguarda os direitos dos menores; social, enquanto amparar e educar
o menor, transformando-o no cidadão que vai exercer papel digno e
humano na sociedade (Op. Cit., p. 18).

3.1 - Uma análise da atuação profissional junto a infância, a


juventude e a família pobre

Ao analisamos os processos, verificamos que nas situações com fins


de internação, era utilizada uma ficha, espécie de questionário
socioeconômico, nos quais. Às vezes, tinha a assinatura de um comissário
de vigilancia. Além deste, havia em todos os processos uma entrevista
realizada com os pais e/ou responsáveis, mas não eram assinadas por
um profissional de Serviço Social.

Diante das entrevistas verificamos que sua estrutura e linguagem


se apresentam como típicas de pareceres sociais atuais. No entanto,
apresentavam uma descric’~ao de situação familiar ea partir de uma visão
moral, higiênica e conservadora do “problema”das famílias e das crianças.

Mesmo estando descritas nas pesquisas bibliográficas e em documentos


históricos, através deste estudo não foi confirmada a presença e
participação de profissionais de serviço social na construção de
pareceres sociais. Desse modo, só se pode comprovar a presença
desses profissionais na instituição judiciária a partir de 1942, via
pareceres sociais do Serviço de Assistencia ao Menor (SAM). Verifica-se
que o serviço social realizava uma análise biopsicossocial dos “menores”.
Isto porque o Laboratório de Biologia Infantil ainda era responsável
por essa ação, pelo encaminhamento dos “menores” às instituições
de internação, e pelo “acompanhamento”das internações subseqüentes.
Assim, pode-se constatar que: O Serviço de Assistencia ao Menor
(SAM) já está plenamente implantado em 1942. (Batista, 2003).

Ao tratar do histórico da política de proteção à infância e


juventude no Brasil, o SAM foi um modelo criado com a finalidade de
centralizar as ações destinadas aos “menores”, de maneira que pudesse
se desenvolver controle mais eficaz dos mesmos, tendo a ameaça
comunista como uma contratransferência do desenvolvimento de
uma política de “educação para o trabalho”, na perspectiva positivista do
progresso da nação.

O Serviço Social compreendia o processo de cumprimento desse ideal de


nação. Não desenvolvia uma prática que refletisse as causas das situações
apresentadas pelas crianças e pelas famílias. Ademais, a profissão ainda
não havia realizado um debate sobre a ética profissional que

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permitisse um aprofundamento dos princípios que direcionavam a


atuação.

A partir desta pesquisa foi possível notar que os pareceres sociais


manifestavam uma atuação profissional reprodutora de valores,
realizando um movimento de individualização dos problemas, por
meio da culpabilização, como se nota a seguir:

Sindicância 1 – Solicitação de Internação Menino 10 anos


As informações foram prestadas pela irmã do Sr. A., pai do
menor, a requerente de sua internação. Residem em prédio
próprio e de acordo com o que pude observar, sou de parecer que o
menino não precisa ser internado em estabelecimentos mantidos
pelo governo, e que se destinam a receber crianças pobres, sem
recursos para se educarem e se manterem. Se o pai do referido
menor quer interná-lo para corrigir a sua vadiagem deve
interná-lo em colégio particular, pois possui para isso recursos
necessários. A vaga que esse menor irá ocupar no SAM,
provavelmente seria em prejuízo de algum outro que a
merece e dela necessite. (Processo do Juizado de Menores do
Distrito Federal, 1942).

Nota-se que não se parte de uma noção de cidadão de direito,


nem que a internação, seguida da profissionalização dos jovens,
tivesse um caráter universal. Aliado a isso, o profissional faz uma
sugestão para que o direito não fosse concedido, ou seja: havia o
entendimento de que esse serviço deveria destinar-se apenas à
população pobre, o que contribuía para reforçar a tese de que era esta a
população que necessitava ser corrigida.

Verifica-se neste estudo que a atuação profissional visava seguir as


exigências da instituição e não as demandas das famílias que
recorriam aos serviços. Não se percebeu nenhum trabalho ou
encaminhamento que permitisse entender as questões que levaram a
família a recorrer ao Juizado, nem as questões que trazia ou como
elas poderiam ser “resolvidas”. A atuação foi de julgamento e não de
investigação das causas e dos direitos desses usuários.

Outro exemplo:

Sindicância 2 – Solicitação de Internação irmãos de 14 e 11


anos.
Investigando o processo em situação de verdadeira miséria.
Contudo, declarou-nos ter desistido da internação por não
querer separar-se dos filhos. (Processo do Juizado de Menores
do Distrito Federal, 1942). Procuramos convencê-la do mal que

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estava praticando em sacrificar os filhos pelo amor materno


egoísta, porém ela continuou firme em seu propósito.

Atuação baseada num juízo de valores sobre os sentimentos de


mãe. Nenhum movimento contribuía para que os filhos permanecessem
na família.

Assim, diante dessa situação que ilustra apenas uma gama de


entendimentos preconceituosos – moralizantes, culpabilizadores e
punitivos, que o modelo de sociedade burguesa impunha às famílias
pobres – pode-se compreender que a profissão esteve mergulhada
nesses padrões de sociedade, reforçando-os em sua própria visão
inconsciente dos direitos da infância, da juventude e da família.

Sindicância 3 – Solicitação de Internação – menino 14 anos


A requerente, saindo para trabalhar, deixa os quatro filhos sozinhos.
O mais velho, vendo-se sem governo, passa todo o tempo em
más companhias, não obedecendo a pessoa alguma, tendo
mesmo abandonado a escola em que se achava matriculado. Pela
falta de assistência moral em que se encontra o menor, e sendo o
mesmo filhos de um alcoólatra, julgamos tratar-se de um caso de
internação urgente. (Processo do Juizado de Menores do Distrito
Federal, 1942).

Situação expressa um juízo de valor à medida que a questão da


assistencia moral é julgada pelo fato da criança ser filho de um
“alcoólatra”. Percebe-se como a profissional busca na família e não
na sociedade as causas da situação apresentada. Coloca-se o fato da mãe
ter necessidade de trabalhar como uma questão que possibilita o
abandono dos filhos, mas não há questionamentos sobre as
necessidades da família e o direito da mulher de defender seu próprio
sustento.

No que se refere à atuação o junto às famílias, as situações observadas


nos processos explicitam como essa prática se desenvolvia. Como afirma
Iamamoto:

Buscava-se na história familiar os elementos explicativos de


comportamentos individuais “anômalos”ou “desviantes” de um
padrão tido como normal”. A família, como grupo social básico, é
erigida como núcleo do trabalho profissional e como referência
para a apreensão da vida em sociedade em contrapartida às
classes sociais. (2004, p.29)

Diante desse contexto, percebemos que a atuação profissional era de


enquadramento das famílias, ao que a sociedade e o Estado entendiam
como comportamento “ajustado”e “normal”. A reflexão sobre as condições

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de vida desses indivíduos recebia forte influência da ação católica e da


perspectiva higienista.

Outras considerações a partir dos Arquivos do Tribunal de Justiça.


Primeiro: a análise dos processos de 1949 permitiu verificar a presença da
Agência de Serviço Social do Juizado de Menores com o objetivo de
enfrentar o problema do “desajustamento social” entre os “menores” de
um modo mais prático e coerente com a moderna técnica da
assistência social. (Borges; Nascimento, 2001).

A atuação profissional nesse órgão do Juizado de Menores já expressava


maior sistematização da ação profissional, fato que pode ser
demonstrado na forma de organização das “entrevistas e/ou
inquéritos/sindicâncias”. Se no período anterior esses documentos
eram construídos como meros relatos, corridos e carregados de
valores morais, evocando concepções religiosas, no momento em
questão verifica-se a preocupação com a sistematização dos dados
observados nas entrevistas individuais e em grupo, visita domiciliar, etc.

No entanto, mesmo constatando que a atuação caminhava para a


sistematização da prática, os valores morais encontravam presentes nos
pareceres, disfarçados em uma redação mais “neutra”, com forte presença
da moralização das famílias e seus filhos.

Avalia-se que a atuação desenvolvida pelo profissional de serviço


social no então Juizado de Menores era fruto da sociedade da época e
se encontrava imersa em limites profissionais, graças a ausência de uma
produção do conhecimento e uma direção mais crítica da sociedade e da
profissão. Tais limites são identificados como um momento da história da
profissionalização do serviço social numa sociedade que se moderniza nos
molde conservadores.

Considerações Finais

A intenção na construção deste trabalho é a possibilidade de uma análise


histórica da profissão, buscar entender como se deu a inserção das
primeiras profissionais no Juizado de Menores do Distrito Federal e refletir
sobre a atuação profissional, a fim de verificar quais os princípios que
seguia essa ação.

Tendo realizado uma análise acerca da sociedade brasileira e dos ideais


que a cercavam, como aqueles de harmonia social alimentados pelo
positivismo, verifica -se que os princípios do “bem comum”e da “justiça
social” apregoados pela Igreja Católica partiam da Encíclica de Leão XIII e
da Teoria Neotomista. Foi possível entender como esses ideais
influenciaram o nascimento e desenvolvimento da profissão.

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Passamos a analisar a atuação das profissionais do Tribunal de


Justiça do Distrito Federal no então Juizado de Menores e no
Laboratório d Biologia Infantil, órgãos pelos quais se deu a inserção
profissional, em 1938, no Poder Judiciário.

A análise dos processos no período histórico situado entre 1938 e


1950 denota ser a atuação profissional fundamentada no pensamento
conservador de origem positivista, aliado à concepção higienista e a
uma moral religiosa de influência católica. Esse arcabouço tendia à
culpabilização dos indivíduos por suas mazelas, por meio do diagnóstico
da “patologia social”, derivando daí a intervenção voltada para o
ajustamento e a regeneração social, os quais contribuiriam para a
construção do projeto de nação, determinado pelo Estado brasileiro,
pautado na harmonia social.

Podemos reafirmar que os princípios a valores da Igreja Católica


tiveram forte influência nos primeiros espaços profissionais do serviço
social, assim como nas primeiras agências de formação profissional.

O pensamento tomista ou neotomista fundamentou os princípios


“éticos” da profissão e exerceu influência, tornando-se central no
primeiro Código de Ética do Assistente Social. O Serviço Social é
resultado do contexto histórico-social e expressão da organização da
sociedade e de suas formas de consciência, no enfrentamento da
questão social no marco das relações das classes sociais entre si e
com o Estado.

A contribuição deste trabalho situa-se na possibilidade de trazer à tona os


princípios ético-políticos que direcionavam o trabalho profissional em
um âmbito institucional, com forte expressão na história da
profissão, como é o caso do Poder Judiciário.

Texto 4 – Trata-se de um esforço de sistematização teórica em


torno de ptáticas sociais desenvolvidas a partir dos dispositivos
jurídicos e políticos com foco no poder tutelar sobre as famílias no
Brasil.

A construção do Direito da Infância e Juventude e a


atuação jurisdicional junto às famílias

Ana Lúcia Gomes de Alcântara

O interesse nesta temática veio da inserção da autora como assistente


social no Poder Judiciário do Rio de Janeiro, na Vara da Infância e da

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Juventude de Nova Iguaçu, onde atua em casos envolvendo


crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social. Esses
caso chegam até a Justiça por meio de denúncias ou de procura
espontânea, tendo por pressuposto a ameaça ou violação de algum
direito daquela criança ou adolescente, necessitando assim de uma
intervenção do Estado que garanta o exercício de seu direito legal, como
cidadãos de direitos.

Muitas vezes, a criança e o adolescente atendidos na Vara da


Infância e Juventude pertencem às camadas mais empobrecidas da
população e advêm de famílias cujos direitos também não foram
respeitados ou garantidos pelo Estado, uma vez que não tem
condições de suprir o mínimo para sua subsistência ou capacidade de
enfrentamento para os problemas do cotidiano.

São inúmeras as situações de risco pessoal, social e familiar a que


as crianças e adolescentes estão expostos: violência doméstica (física e
sexual e psicológica), negligência, abandono material , afetivo e
intelectual.

Recentemente, tem-se percebido a abertura de procedimentos por


parte do Ministério Público ou propostos pelos Conselhos Tutelares,
com o título de “responsabilização por infração administrativa” que
chegam ao setor com a solicitação de estudos sociais. No processo
de elaboração destes estudos, algumas questões pertinentes à
natureza desse procedimento tem chamado a atenção,
principalmente aqueles que visam “penalizar”pais e responsáveis pelo
descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar.

Temos nos indagado sobre os motivos que levaram e/ou


justificaram a abertura de processos dessa natureza e quais as
implicações jurídicas e a repercussão desses processos na vida dos
sujeitos representados e na dinâmica de suas respectivas famílias. Isso
porque temos observado uma demanda crescente de processos dessa
natureza, requisitando do assistente social a intermediação entre os
propósitos institucionais e a realidade das famílias assistidas, no sentido
de não reproduzir os valores de controle e penalização sob a ótica do
Poder Judiciário.

O Poder Judiciário, historicamente, assumiu a função de dirimir conflitos e


estabelecer o controle sobre a vida dos indivíduos e de suas famílias.
Além de exercer o poder de julgar e penalizar, ainda exerce “poder
de polícia”por meio da aplicação de penalidades ditas administrativas.

Será que o Judiciário, após a publicação do Eca, vem exercendo efetivo


controle e repressão sobre as famílias, ou por meio da mediação com
outros profissionais, abandona a prática do “poder tutelar sobre os filhos

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dos pobres”e caminha na perspectiva da construção de direitos e


mudanças de mentalidade na convivência familiar e do exercício cotidiano
do poder familiar?

Para responder a esta questão, o estudo apresentado volta-se para a


reconstrução histórica da atuação jurisdicional junto às famílias, a
partir das leis direcionadas ao público infanto-juvenil, com foco nos
Códigos de Menores elaborados em 1924, 197 e no Estatuto da Criança e
Adolescente (ECA) 1989.

1 – A abordagem sobre as famílias nos Códigos de Menores e


no Estatuto da Criança e do Adolescente

Apenas no início do século XX surge na sociedade uma cobrança


direcionada ao Estado para gerencias a política de assistencia à infância e
a criação de leis.

Em 1923, foi instalado o primeiro Juízo de Menores do país. No Rio de


Janeiro, então capital federal. O Código de Menores, idealizado por
Mello Mattos, foi promulgado em 1927. Este modelo institucional -
político permaneceu até meados da década de 1980, funcionando como
órgão do atendimento oficial do “menor”, podendo este ser recolhido nas
ruas ou levado pela própria família.

O juízo de menores tinha diversas funções, mas chamava a


atenção a internação de menores abandonados e delinqüentes: prática
popularizada entre as classes pobres como alternativa de cuidados e
educação. Com a instauração da justiça de menores, foi incorporado na
assistencia o espírito científico da época, transcrito na prática jurídica pelo
inquérito médico-psicológico e social do menor.

Costa(1989) compara a intervenção do Estado Moderno nas famílias


como semelhante ao tratamento dado à loucura: sem que ferisse os
princípios do liberalismo e da liberdade individual, mas mantendo o
comportamento transgressor sob controle, por meio da tutela psiquiátrica
(dispositivo médico).

Segundo o autor, a primeira delas, por meio da medicina doméstica


que objetivava a conservação e educação das crianças, reorganizando a
dinâmica das famílias mais abastadas (da burguesia) para que cuidassem
de seus filhos (estes eram deixados sob cuidados de terceiros). A
segunda intervenção era dirigida às famílias pobres por meio de
“campanhas de moralização e higiene da coletividade”.

A partir da categoria de menor abandonado, definida pela ausência


dos pais e pela incapacidade da família de oferecer condições

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apropriadas de vida a sua prole, foram criadas várias subcategorias.


Trata-se da presença do Estado no planejamento e na implementação das
políticas de atendimento ao menor.

Para machado (2003), tal mecanismo é ideológico e transforma a


infância desvalida em infância delinqüente.

Foi no contexto de expressa preocupação com o suposto aumento


da criminalidade juvenil que se construiu a confusão conceitual
criança/carente – criança/delinqüente, que no Brasil de hoje
...ainda continua a produzir seus efeitos. É que historicamente
e num processo de cunho ideológico, construiu-se uma identificação
entre a infância socialmente desvalida e a infância delinqüente.
(Machado, 2003, p.32).

Marques (1976) ressalta que apenas na Constituição de 1934 surge a


preocupação com o problema dos “menores no Brasil”, por meio de leis
que visavam a sua proteção e da família (cap. “Ordem Econômica e Social
e a Família, Educação e Cultura). O autor cita o artigo do Código Mello
Mattos que em sua opinião visa ao amparo e à proteção do que a punição:
“O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinqüente, que tiver
menos de 18 anos de idade será submetido pela autoridade
competente às medidas de assistencia e proteção contidas nesse
código”(p. 65).

O texto pode transparecer proteção, pois obedece às decisões de


eventos internacionais. No entanto, evidencia a característica de
punição implícita na proposta de institucionalização que transformou
numa política pública o encarceramento de crianças e jovens pobres
brasileiros.

O Código de Menor Mello Mattos se coloca como instrumento de


proteção e vigilância da infância e adolescência vítimas da família
em seus direitos básicos. A família era concebida como a principal
e única violadora dos direitos de suas crianças. O juiz era a única
autoridade pública capaz de exercer a autoridade e vigilancia sobre o
menor abandonado ou delinqüente.

Percebemos que as iniciativas educacionais eram entrelaçadas com


os objetivos de assistência e controle social de uma população que,
junto com o crescimento e reordenamento das cidades e a
constituição de um Estado Nacional, torna-se representada como
perigosa. Os menores passam a ser alvo específico da intervenção
formadora e reformadora do Estado, assim como as instituições religiosas
e filantrópicas.

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Denzelot nos fala acerca do controle exercido pelo Estado sobre as


famílias:

O Estado diz às famílias: mantende vossa gente nas regras


da obediência às nossas exigências, com o que podereis fazer
deles o uso que vos convier, e se eles transgredirem vossas
injunções, nos vos forneceremos o apoio necessário para
chamá-los à ordem. (1985, p 51).

No período republicano, são criadas leis que transferem da família para os


representantes dos poderes públicos o poder de decidir sobre o
destino do menor, levando à culpabilização da família e à
desautorização do poder parental. A intervenção sobre as famílias
pobres, promovida pelo Estado, desautorizava os pais em seu papel
parental, acusando-os de incapazes. Assim, os assistentes sociais
justificavam a institucionalização de crianças.

O protagonismo da área jurídica nos assuntos relativos à infância e


juventude era notório até a década de 1940, sendo responsável pelo
destino e pela aplicação de medidas “aos pobres e delinqüentes”.

O Código de Menores de 1979 (Lei n: 6.697 de 10/10/ de 1979)


refletia a fidelidade dos juízes de menores à lei de Mello Mattos.
Colocou-se como instrumento de controle social da infância e da
adolescência vítimas da negligencia, omissão e violação de seus direitos
pela sociedade e pela família.

A criança e o adolescente considerados em situação irregular eram


objeto de medidas judiciais. O Código de 1979, como o anterior,
não abria espaço à participação de outros setores da sociedade,
limitando os poderes da autoridade policial, judiciária e administrativa. A
fiscalização da lei cabia só ao juiz e seus auxiliares. A referida lei
dispõe sobre a assistência, proteção e vigilância àqueles que
estivessem em perigo moral, com desvio de conduta em virtude de
grave inadaptação familiar ou comunitária, autor de infração penal (
menor em situação irregular). →As crianças e os adolescentes
considerados hoje em situação de risco pessoal e familiar, alvo de
proteção segundo o ECA, seriam considerados alvos privilegiados de
vigilância da autoridade judiciária.

A medidas aplicáveis às crianças e adolescentes se confundiam no


mesmo artigo das medidas socioeducativas e protetivas.

A Constituição de 1988 (art. 227) abriu caminho para a


promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente que subverte
a compreensão da ordem social, da garantia de direitos e da
atuação do judiciário, imputando à família novo papel. A família, antes

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objeto de intervenção do judiciário, passou a ser coresponsável, junto


com o Estado e a sociedade, pelo dever de assegurar direitos
fundamentais.

Para Machado (2003), o contexto social de ampla mobilização


popular formou uma grande “Frente Parlamentar suprapartidária” em
defesa dos direitos de crianças e adolescentes.

Eventos de caráter internacional também influenciaram a Constituição e a


elaboração do ECA. Este se coloca como instrumento legal de defesa dos
direitos e indicação de deveres voltados para o conjunto da população
infanto-juvenil e não apenas para aqueles considerados em risco social e
pessoal, os “pobres” ou “delinqüentes”, com nova denominação de
adolescentes em conflito com a lei”.

O ECA trouxe a possibilidade de participação de outros órgãos da


organização da sociedade civil (Conselhos de Direito, Conselhos
Tutelares e organizações de defesa jurisdicional) de caráter
governamental e não-governamental dirigidas ao público infanto-juvenil.
Ações no âmbito da família são possíveis pelo Conselho Tutelar que
pode acompanhar e atuar de modo preventivo na aplicação de
medidas protetivas.

Outra diferença está na concepção de municipalização e rede de


atendimento à criança e ao adolescente no acesso e na defesa dos
direitos fundamentais, retirando da Justiça o protagonismo na área
da infância e juventude, para então compor a rede como parceiro “igual”.
Assim, o poder instituído por lei pode contradizer o viés do autoritarismo e
ser porta-voz do que for decidido coletivamente.

Percebemos reflexos dessa nova postura na atuação da equipe


interdisciplinar quando busca parceria e discussão conjunta com outras
instituições, interferindo na decisão judicial.

2 – Responsabilização das famílias e tutela sobre os filhos dos


pobres

Nem sempre, historicamente, a infância foi uma situação com que


a família tinha que se preocupar e alvo da intervenção do Estado,
como tutor. O Código Mello Mattos foi um instrumento de tutela do
Estado sobre os filhos dos pobres e desprovidos de informação, durante
décadas, colocando nas mãos do Juiz de Menores a centralidade das
decisões sobre as crianças e os adolescentes, enquadrados na categoria
de carentes e/ou delinqüente.

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O Código de 1927 (Mello Mattos), no artigo 25, menciona pena de prisão e


multa para quem encontrar recém-nascido ou menor de sete anos
abandonado e não apresentá-lo à autoridade judiciária ou não avisar
do seu achado; ou entregar a terceiros criança sem a devida
autorização judicial. O Código de 1979 considera como responsável
“aquele que não sendo pai ou mãe”, exerce, a qualquer título, vigilância,
direção ou educação de menor, ou voluntariamente o traz em seu
poder ou companhia, independentemente de ato judicial.

O Eca relaciona o abandono nos artigos que falam sobre os


direitos fundamentais e a convivência familiar, determinando que os
casos de abandono devam ser notificados. A colocação em família
substituta via medida judicial, também é prevista.

Percebemos no cotidiano do trabalho muitas crianças “repassadas” de


família em família sem a devida notificação; “adoção à brasileira” (sem o
devido processo legal) que, em algumas situações, acarreta a devolução
da criança, quando o cuidado se torna mais complexo, do ponto de vista
educativo e material.

O Código de 1927 dedica artigos a menores ditos mendigos, vadios


(aqueles que vagam pelas ruas) e libertinos (aqueles que na rua
perseguem ou convidam pessoas para a prática de atos obscenos), alvos
de medidas de proteção, encaminhados para a institucionalização
→libertinos seriam identificados, hoje, como as crianças e adolescentes
vítimas de exploração sexual, abuso sexual, etc.).

Desde 1927, a suspensão ou perda do pátrio poder devido a maus


tratos, comportamento inadequado com os filhos, castigos excessivos,
abandono material ou intelectual, fazem parte do Código.

Seu artigo 9 chama a atenção por destacar a organização familiar


desde o quantitativo de membros num determinado espaço físico, a
condição de higiene e o comportamento dos indivíduos. Nos dias de hoje,
não haveria instituições que comportassem o número de crianças que
vivem em famílias com tais características.

No capítulo de crimes e contravenções praticados pelos pais, o


Código fala em multas: em relação a qualquer deles que colaborar
para situação de negligencia ou delinqüência do filho (art. 60); omissão
por se descuidarem da educação dos filhos (art. 75), negar alimentos,
desobedecendo a ordem judicial ( art. 137), etc.

O Código de 1979 segue na mesma linha conservadora, adotando,


porém, a categoria de menor em situação irregular, com viés mais
assistencialista. Seu artigo 39 coloca as medidas que podem ser
aplicadas aos pais: advertência, obrigação de submeter o menor a

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tratamento...; perda ou suspensão do pátrio poder; destituição da tutela e


perda da guarda.

O Juiz poderia decretar a perda do pátrio poder aos pais que “por
negligência ou má conduta, desassistirem o menor quanto às suas
necessidades básicas ou descumprirem, sem justa causa, as
obrigações fixadas em juízo”. Não identificamos nesse Código item
relativo à penalidade imposta aos pais no capítulo das infrações
cometidas contra a assistencia, proteção e vigilancia a menores, em
relação ao descumprimento de deveres com os filhos. Refere-se à
família como desestruturada e desajustada, responsável pelo
comportamento anti-social de seus tutelados. O Código fala em multa na
mesma forma do anterior.

Essa modalidade de penalidade administrativa reaparecerá no ECA,


restando –nos entender os motivos legais e doutrinários que levaram à
inclusão da família como objeto de aplicação de penalidades de
cunho pecuniário.

Quanto à responsabilização da família, como o Eca contribui neste


aspecto? A partir de trabalho comparativo entre o Código de 1924 e o
Eca – aponta-se que este último não foi uma ruptura e que o Estatuto
tem ainda vários aspectos conservadores e que permitem a
responsabilização das famílias, por meio da sua “ penalização”: no caso
de pais que violam direitos das crianças e dos adolescentes, além da
perda do poder familiar, eles podem ser penalizados criminalmente,
com aplicação de multa pecuniária (art. 249).

Observa-se que o ECA não permite a perda/suspensão do poder familiar


pela falta de recursos materiais dos pais (art. 23). No entanto,
percebemos que tal condição aliada ao uso excessivo de álcool e drogas,
comportamento agressivo e inadequado à convivência com crianças
e adolescentes, distúrbios psiquiátricos (sem tratamento) podem
contribuir sim para a perda/suspensão do poder familiar e a
responsabilização por meio da instauração de processos de ordem
penal e administrativo ( os RIAS), disponibilizando a criança para
adoção.

Nos Códigos de Menores anteriores ao ECA, a falta de recursos materiais


poderia caracterizar situação irregular à crianças e adolescentes,
passíveis de medidas judiciais, sendo avaliado como “abandono material”.
Os pais seriam punidos com a entrega do filho para adoção ou
institucionalização.

No artigo 129 do ECA é referenciada medida que pode ser aplicada aos
pais e responsáveis em caso de desrespeito aos direitos de crianças e
adolescentes. No caso de agressões graves, o artigo 130 prevê, inclusive,

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o afastamento do agressor da moradia comum com a criança e o


adolescente – vítima, preservando os vínculos familiares dela.

Caso essas medidas, indicadas pelos conselheiros, não sejam


cumpridas, cabe ao Conselho Tutelas apresentar representação ao
Ministério Público contra os pais ou responsáveis.

Para alguns autores, a infração se destina a casos de menor


gravidade, visando garantir direitos fundamentais. Casos de extrema
gravidade (agressões físicas severas, etc) e abuso sexual, deveriam
ter registro de ocorrência nas delegacias de polícia, tornando-se crimes
cometidos contra a criança e o adolescente, respondidos de forma
processual em outras varas (criminais e juizado especial criminal),
onde o agressor pode ser punido com pena de privação de librdade..

Ramos (2006) afirma que alguns autores da área de Direito


consideram que o uso de infração administrativa, por parte do
Judiciário, configura-se como poder de polícia exercido pelo Poder Público,
isto é, simboliza a interferência do Estado na vida do indivíduo (
do interesse particular e privado), preservando o interesse público e
limitando interesses desses indivíduos.

As infrações administrativas são procedimentos opostos aos princípios


normativos de uma determinada organização social e que pressupõe a
interferência do Estado na vida do indivíduo ou de pessoa jurídica, com o
objetivo de proteger “interesses tutelados pela sociedade, com sanções de
cunho administrativo, ou seja, restritivas de direitos, mas não restritivas
da liberdade, geralmente importando num pagamento de uma multa
pecuniária, suspensão do programa ou da atividade, fechamento de
estabelecimento, apreensão de material ou simples advertência” (Ramos,
2006, p. 420).

De acordo ainda com esse autor, no artigo 249 do Estatuto (objeto de


estudo desta pesquisa), o Estado se faz presente para coibir e
reprimir abusos no exercício das funções de assistência e proteção
de crianças e adolescentes no âmbito familiar. No entanto, durante
séculos a família foi autônoma na criação e educação dos filhos; a
infância não tinha visibilidade como infância e como questão que
exigisse a intervenção do Estado. Há menos de um século, a infância e a
família vêm sendo tuteladas pelo Estado e reguladas a partir de normas
que estabelecem procedimentos a serem seguidos, sob pena de
interferência do poder público.

Considerações Finais

Nosso interesse neste estudo foi um esforço para desvendar as


contradições vividas no exercício profissional do assistente social, na

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Justiça da Infância e da Juventude, ao elaborar estudos sociais


demandados pelos procedimentos de responsabilização por infração
administrativa, no que cabe ao suprimento dos deveres inerentes ao
poder familiar. O profissional de Serviço Social tem uma função
relevante na análise das demandas sociais, nas ações do poder
judiciário na área da Infância e Juventude, com ênfase em vários
artigos do Eca.

No entanto, identificamos dificuldades na elaboração dos pareceres


sociais: a inexistência de um estudo ou suporte teórico e metodológico
que contribua para a compreensão do contexto socioeconômico-
cultural vivenciado pelas “famílias–alvo” da ação da Justiça. A
construção desse suporte teórico-metodológico deve ser pautada
num referencial crítico dialético coadunado com o projeto ético-
político da profissão.

Contudo, há um contraponto que nos preocupa. Ele se refere ao fato de


como, historicamente, o Poder Judiciário vem atuando frente às demandas
sociais no contexto de pauperização e desigualdade social, entendendo ser
necessário um estudo preliminar sobre a nossa contribuição como
assistentes sociais e interlocutores na dinâmica institucional, para uma
atuação jurídica mais democrática e voltada para a defesa dos
0direitos dessa camada da população.

Pensar esse fazer profissional significa compreendê-lo, ser capaz de


propor as mudanças para a qualificação da atuação profissional. Se
nos propomos compreender os fenômenos com que lidamos, numa
perspectiva de totalidade, temos de entender a relação com outros fatores
sociais, econômicos e políticos que estão correlacionados a essa realidade.

O debate cotidiano e o pensar sobre a prática profissional levam a


acreditar que nossas inquietações podem ser comuns a outros
profissionais do universo sóciojuridico, principalmente por não
conseguirmos clarificar a essência de nosso papel profissional sem nos
confundirmos com os propósitos institucionais historicamente construídos,
“tão somente voltados para ações disciplinadoras e de controle social,
no âmbito da regulação caso a caso” (Fávero, 2003, p. 11).

Em seus estudos, Fávero (2003) analisa o Poder Judiciário como


um Poder de Estado, que tem sido historicamente responsável pela
aplicação das leis e pela distribuição da Justiça, sendo visto pela
população como se estivesse num nível superior ou à parte dos
demais poderes. Muitas vezes, este poder se coloca contrário aos
legítimos interesses e direitos conquistados pela sociedade brasileira.
A Justiça, na maioria dos casos, é alcançada só por aqueles que têm maior
poder financeiro e maior grau de informação.

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Quanto às famílias atendidas na Justiça da Infância e Juventude, o


profissional de Serviço Social estará comprometido com a defesa de seus
direitos, no sentido de facilitar o acesso à informação, às políticas
públicas, possibilitando a reflexão do seu papel como sujeito ou
reforçará o caráter disciplinador e punitivo da instituição judiciária?

Parte II

FAMÍLIA, CUIDADO E DEMANDAS SOCIAIS:

Perspectivas Críticas

Eixo articulador: a temática do cuidado que vem sendo debatido de


forma crítica no contexto das políticas sociais.

Texto 1 - Problematiza o conceito de cuidado articulado à análise


da política pública de saúde mental na atualidade, enfocando a
questão dos cuidadores e da produção do cuidado no cenário
familiar e nos serviços públicos de saúde mental junto aos
portadores de transtorno mental.

Loucura e Família: (Re) Pensando o Ethos da Produção


do Cuidado

Marco José de Oliveira Duarte

Introdução

Texto apresenta reflexões do autor a partir de pesquisa iniciada nos anos


1990 nas suas atividades de extensão e supervisão junto aos servidores
públicos de saúde mental no Rio de Janeiro. Problematiza a produção do
cuidado pelo conjunto dos trabalhadores na relação com os usuários dos
serviços de saúde mental e suas famílias. Os sujeitos da pesquisa

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foram técnicos e familiares que cuidam das pessoas portadoras de


transtorno mental, seja nos serviços de saúde mental ou no espaço da
família.

Não se enfoca os aspectos conceituais da temática da família, mas


sinaliza-se que as abordagens já feitas apontam para a perspectiva
do pensamento social crítico. Tem-se como preocupação analítica
como as conseqüências da reforma psiquiátrica refletem sobre as
famílias dos doentes mentais, principalmente sobre as pessoas
responsáveis pelos cuidados com eles no espaço doméstico e a
relação com os serviços de saúde mental. Essa família ora é vista como
suporte, recurso, provedora de cuidados, ora vista de forma negativa,
incomoda e culpabilizada pelos técnicos nos serviços públicos de saúde
mental. Na contramão dessa tendência aparecem na cena política e
institucional associações de usuários e familiares que se colocam como
sujeitos de direitos e protagonistas nos espaços públicos dos serviços de
saúde mental, construindo a esfera pública e o controle social no referido
campo.

Notas sobre a temática do cuidado

Sentido etimológico do termo cuidado: filosofia→ palavra de origem latina,


derivada do verbo cogitare, mas com referência no vocabulário latino,
curare. O verbo cogitare origina-se do vocábulo co-agitare,
significando agitação de pensamento, revolver o espírito ou tornar a
pensar em alguma coisa, em suma: supor e imaginar. curare, era usada
em contexto de relação de amor e de amizade, implicando em tratar,
curar, de pôr cuidado.

Neste pressuposto, entende-se que cuidado implica em cuidar do outro


em toda sua dimensão humana, subjetiva e objetiva, no campo do
pensamento, da emoção e da ação. Em sentido amplo, o termo
cuidado não se restringe a uma delimitação assistencial no interior dos
serviços de saúde em geral.

Descuido e descaso são o oposto de cuidado. Logo, cuidar é mais


que um ato, é uma atitude ética e política de responsabilidade, é
mais que um ato reduzido a uma operação técnico – interventiva,
só surge quando a existência de alguém tem importância. Dedica-se
à pessoa, dispõe-se a participar de seu destino, de suas buscas, de
seus sofrimentos e sucessos, de sua vida. Cuidar pode provocar
preocupações, inquietação e sentido de responsabilidade. Por sua
natureza, inclui duas significações básicas: de solicitude e atenção para
com o outro; e de preocupação e inquietação porque a pessoa se sente
envolvida e afetivamente ligada ao outro.

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Cuidar abrange mais que um momento de atenção, de zelo e de


desvelo. Representa uma atitude de ocupação, de preocupação, de
responsabilização e de desenvolvimento afetivo; uma postura ético
– estética para com o outro com quem se lida no espaço
institucional e na complexidade da vida social, seja ele usuário,
portador de transtorno mental; o familiar, o colega de profissão ou
outro agente profissional da organização de saúde.

O cuidado não institucionalizado é uma prática socialmente assumida por


uma ótica de gênero, inclusive aos portadores de transtorno mental.
Geralmente, recai sobre as mulheres (mães, irmãs, filhas esposas,
companheiras) por exporem essa vocação socialmente construída pelo e
para o gênero feminino.

...estudiosos tornaram conhecida a ética do cuidado. (...) diz respeito às


implicações morais do cuidado a partir das formas locais (...) dos
conjuntos institucionais, sociais e políticos do cuidado na era moderna, e
a partir de atitudes de interesse aos comportamentos de cuidar e
suas práticas. A matriz da ética do cuidado foi adotada para ser
utilizada por sociólogos, assistentes sociais, advogados, psicólogos,
geógrafos antropólogos, cientistas políticos, teóricos da política e
em disciplinas como comunicação, estudos literários, bioética, estudos
urbanos, teologia e engenharia. (...) A compreensão do tema
originou-se, sobretudo, da visão feminista sobre cuidado. Quando se
considera que o cuidado é, freqüentemente, atribuído aos tipos de
trabalhos e preocupações que são relegados às mulheres. Não é de
surpreender que as feministas tenham se destacado nesta área. Isto
posto, não há consenso sobre o significado de cuidado ( Tronto, 2007, p.
285 – 286).

O trabalho do cuidado na esfera doméstica não tem importância por não


portar valor econômico, por ser marcado pela invisibilidade na lógica da
produção de valores posta pelo capital nos ditames do mercado e de um
Estado que não reconhece esse investimento. No entanto, é nesse âmago
que a economia e a
política devem entrar, pois é nesse cenário que se produzem e
reproduzem comportamentos socialmente construídos, uma arena de
conflitos, disputas, cooptações, refúgio de um mundo sem corações,
uma oficina das relações sociais.

Por outro lado, tomando como referência a extensão do cuidado de


forma institucionalizada da vida social, as demais profissões,
principalmente aquelas que o campo da saúde e da seguridade social, são
operadoras dessa constituição do processo de trabalho nas organizações
sociais em que o cuidado se faz público (Merhy, 2002). Isso se dá ao
lidar com o doente, a criança e o adolescente, a velhice, os
portadores de necessidades especiais, os desvalidos e vulneráveis de

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outra ordem. Essas intervenções profissionais e o conjunto de práticas


de cuidado são cada vez mais presentes no cotidiano das
instituições públicas e, no caso da saúde mental, ampliando suas
preocupações para uma base territorial – comunitária, politizando e
articulando redes sociais de forma a garantir a integralidade da
atenção, a intersetorialidade das políticas públicas e suas abordagens
(Vasconcelos, 2009).

A política de saúde mental e as novas formas de produção de


cuidados

Considerando, historicamente, o aspecto jurídico-legal no campo da


política de saúde mental, o modelo técnico- assistencial predominante
no Brasil, até finais do século XX, propunha a hospitalização e o
asilamento do doente mental, visando atender à segurança da
ordem e da moral públicas (Amarante, 1998). Embora dominante, este
modelo hospitalocêntrico - manicomial tinha por princípio ético-político a
exclusão, a reclusão e o isolamento social por toda uma vida (Foucault,
2006). O tratamento psiquiátrico tinha como característica as
internações longas – institucionalização- e o conseqüente
afastamento e corte dos laços sociais do doente no seu ambiente social,
familiar e de trabalho, caso houvesse.

A partir da década de 1960 em outros países e da década de


1980 no Brasil, essa forma de atendimento começou a ser discutida
sob o ponto de vista ético – político e institucional entre os
trabalhadores de saúde mental. Gradualmente, a idéia de
desinstitucionalização da loucura (Amarante, 1996) e do doente
mental foi permeando as discussões e o trabalho de produção do
cuidado dos trabalhadores da saúde mental, de familiares e da
sociedade em geral no sentido de (re)envolver a família no
tratamento, atendê-la e apoiá-la em suas dificuldades frente ao
sofrimento do ente familiar.

Essa perspectiva ocorreu por se acreditar que a família do doente


mental também sofre com ele e ambos precisam de apoio, suporte e
cuidado, já que o peso deste vai sobrecarregar um dos familiares,
sobressaindo as mulheres. Assim, a família torna-se usuária do
serviço e aliada no processo de produção de cuidado.

O enfoque da loucura como doença e da psiquiatria como especialidade


médica é recente na história da humanidade (200 anos). A loucura
sempre existiu, bem como lugares para se cuidar dos loucos
(templos, domicílios e instituições), mas a instituição psiquiátrica
propriamente dita, é uma construção social do século XVIII. A partir
daí estabeleceu-se o “diferente”, aquele que não segue o padrão de

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comportamento que a sociedade define. O doente mental é excluído


do convívio dos iguais, dos “normais” (Foucault, 2001), afastado dos
donos da razão, dos produtivos e dos que não ameaçavam a sociedade.
Foram seqüestrados do interior de suas famílias, pela ordem e pelo poder
psiquiátricos, para os manicômios (Foucault, 1988), porque para a
psiquiatria, as famílias não sabiam lidar com seus diferentes. Dessa
forma, negou-se o tratamento moral, os direitos, os desejos e a história
dos portadores de transtorno mental. Havia uma particularidade nesse
modelo de tratamento: ao mesmo tempo em que os loucos eram
separados da sociedade, os médicos (alienistas) viviam com seus
pacientes diuturnamente e protagonizaram mudanças e inovações para a
gênese de uma história da loucura.

Nesses dois séculos de enclausuramento da loucura por via da


internação, o interno, devido a esse sentido de cuidado médico –
psiquiátrico, perdeu e lhe foi negado os vínculos sociais e afetivos.
Essa prática institucionalizada de controle não se restringiu ao
tratamento dos loucos, tendo atingido outros tipos de segmentos
sociais ditos vulneráveis: orfanatos para os ditos menores; asilos
para os velhos; colônias para os leprosos, etc.

Na atualidade, encontram-se grandes desafios a partir da trajetória


das reformas psiquiátricas que trouxeram a desinstitucionalização do
doente mental e sua relação com a família. De um lado a cultura
institucional do cuidado que diz que lugar de louco é no hospício e por isso
a defesa da internação como único modo de responder à crise; por
outro as tentativas dos trabalhadores da saúde mental na
(re)habilitação desses sujeitos a partir de serviços abertos e comunitários
à sua família, ao seu território e à sociedade.

É evidente que não será de imediato que as mentalidades mudarão


frente a lida com a loucura e os loucos. Isso contempla a “indústria
da loucura”, as agências formadoras de opinião e os órgãos de formação
profissional com modelos de ensino- aprendizagem que se baseiam
na neutralidade, no tecnicismo, nos especialismos e numa leitura da
doença centrada no corpo doente, sem levar em consideração as
determinações sociais do processo saúde-doença-cuidado (Amarante,
2007).

O ponto de partida desta análise centra-se no espaço que a


loucura e a política de saúde mental, na atualidade, ocupam na
constituição da sociedade moderna. A loucura tem sido associada à
articulação de um ethos próprio, ocupando a esfera da privacidade na sua
forma de enclausuramento da diferença e, por outro lado, na construção
de respostas pelo poder público, por meio dos novos serviços públicos de
saúde mental em coexistência com a velha ordem manicomial. A
loucura tem começado a ganhar força na esfera pública, articulando

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discursos políticos referentes aos direitos de seus usuários. Desse


modo, a relação entre Estado e loucura se coloca no debate sobre novas
identidades e noções de sujeito presentes na contenda pelos direitos
sociais, civis e políticos.

No contexto brasileiro, se faz necessário pontuar o aparecimento da


temática da loucura em todos os veículos da mídia, sobre
particularmente três eventos.

1) enunciação política e coletiva em forma de denúncias de


maus-tratos, morte e violência institucional no interior das
instituições psiquiátricas demarcadas pelo modelo assistencial
hegemônico caracterizado pelo aparato manicomial e
hospitalocêntrico. Essas denúncias vinham acompanhadas de
uma proposta de atenção e cuidado em sintonia com as
experiências de reformas psiquiátricas internacionais, a
construção de um modelo substitutivo ao manicômio, aos
moldes da reforma italiana.
2) Refere-se à polêmica nos debates legislativos em torno do
estabelecimento da Lei Federal n: 10. 216 de 2001 – Lei da Saúde
Mental, que coloca a questão da proteção e dos direitos das
pessoas portadoras de transtorno mental, direciona o modelo
assistencial e define os tipos de internação (voluntária, involuntária
e compulsória) e suas formas de proceder. Estabelece que a
internação, em qualquer modalidade, só será indicada quando
os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. Inclui a
proibição de novos leitos psiquiátricos e hospitais do gênero. Coloca
como fundamental o envolvimento e a importância da família como
partícipe da produção do cuidado. Seu artigo 3 diz,
É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da
política de saúde mental, a assistência e a promoção de
ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a
devida participação da sociedade e da família, a qual será
prestada em estabelecimento de saúde mental, assim
entendidas as instituições ou unidades que ofereçam
assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais.
O texto demonstra uma mudança de paradigma que diz respeito ao
rompimento com a identificação do louco como doente mental
(mesmo que a concepção de doença mental ainda prevaleça),
usando a expressão “sofrimento psíquico”, instituindo um novo
lugar social para os assim identificados. A redação oficial rompeu
com o historicamente instituído: a loucura como doença mental.
3) O terceiro fato analisado foi a retomada da loucura e a atual
política nacional de saúde mental a partir da Lei de Reforma
Psiquiátrica consolidada. Conseqüência, por um lado, da abordagem
de temas sobre a loucura na mídia (novelas) e de reportagens
escritas de crítica à atual política do setor.

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Neste contexto pós-reforma psiquiátrica, com avanços no campo


legislativo e na ampliação da rede de serviços substitutivos ao manicômio,
o preconceito ainda é presente para com os ditos loucos.

Mudanças culturais e políticas fazem com que esse grupo de


pessoas, cujos comportamentos são objeto de controle e
disciplinamento por divergirem do que se convencionou chamar
normalidade, busque de forma organizada o seu reconhecimento e
sua legitimidade, reivindicando direitos e cidadania.

Procuraremos retratar os modos em que se estruturaram essas


ambigüidades entre ser um elemento excluído na história das
racionalidades e, agora, incluído na gestão e na constituição de um
discurso mais solidário para com esses sujeitos, no campo da promoção
do cuidado e da atenção psicossocial.

Loucura e família: Questões micropolíticas do cuidado

As ações de cuidado em saúde mental, para serem participativas,


dialógicas e pactuadas devem contemplar uma multiplicidade de
olhares sobre as avaliações e as decisões: olhar do gestor, do
planejador, do usuário, do familiar e do técnico. Assim, propõe-se
um corte na análise que se segue, frente à variedade de
perspectivas, considerando as diversidades políticas, teóricas e
conceituais presentes nos grupos de usuários, familiares e
profissionais. Traçaremos apontamentos políticos na construção desse
campo específico de saúde mental.

A Lei da Reforma Psiquiátrica, em seu artigo 2, coloca um novo estatuto


de cidadania dos portadores de transtorno mental. Diz em seu parágrafo
único,
I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde,
consentâneo às suas necessidades;
II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse
exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua
recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;
III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;
IV- ter garantia de sigilo nas informações prestadas;
V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para
esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização
involuntária;
VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;
VII - receber o maior número de informações a respeito de sua
doença e de seu tratamento;

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VII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos


invasivos possíveis;
IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários da
saúde mental”.

A política assistencial da reforma psiquiátrica não é simplesmente uma


transferência do usuário para fora dos muros do hospital, “confinando-o”à
vida em casa, aos cuidados de quem puder assisti-lo ou entregue a
própria sorte. Esse tem sido o discurso dos setores conservadores.

Alguns profissionais esforçam-se na tentativa de construção da


autonomia, da recuperação e da reabilitação do sujeito portador de
transtorno mental à família e à sociedade. Alguns autores referem-se à
família para aludir ao fato da crescente intolerância e preconceito
para com os portadores de transtorno mental., conseqüência de uma
mudança de atitude ético-estética das pessoas e da sociedade. Essas
mudanças constituem-se em um processo social e complexo que
refletirá no âmbito individual, familiar e institucional. As instituições
e a sociedade estão cada vez mais chamadas a lidar com o
“desviante”, o diferente e excluído, mais pela imposição de um
estatuto das cidadanias conquistado por esses segmentos sociais, do que
por suas capacidades técnico-interventivas.

Na literatura brasileira sobre saúde mental e família, os autores se


referem à necessidade de cuidado à família dos portadores de transtorno
mental como parte do projeto terapêutico ou estratégia do cuidado.
Observa-se que não são freqüentes as discussões e os trabalhos
que demonstram um conhecimento contextualizado de como e por
quem esses usuários são cuidados fora dos serviços de saúde mental, ou
seja, na família.

A relação loucura e família na questão do cuidado, observa-se três tipos


de sobrecarga: a financeira, o desenvolvimento ou quebra das rotinas
familiares e as manifestações de doença física e emocional.

Nesse sentido, a inclusão das familiares – cuidadoras nos novos modelos


técnico - assistenciais, como os Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS), torna-se um desafio às equipes . Por um lado, a família
não está fora nem imune ao contexto geral da sociedade: aponta a
internação prolongada como resposta a sua angústia, impotência,
desespero, exaustão e alívio na sobrecarga do cuidado e por
arcarem sozinhas com os custos desse cuidado no espaço doméstico.

Outra questão é o não entendimento pela família e pela sociedade da


mudança do modelo de cuidado de base territorial e comunitária.

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Por outro lado, os profissionais acabam por naturalizar ou banalizar, não


dando importância às queixas dos referidos casos que chegam aos
serviços, demonstrando um ato de não acolhimento e não cuidado para
com o sujeito portador de transtorno mental e sua família (Duarte,
1999).

Percebemos que há um modelo idealizado de família impregnado nos


profissionais do campo, pautado no nuclear burguês. Com isso, esses
técnicos vitimizam os usuários em detrimento de suas famílias, sem
entender e contextualizar esses sofrimentos pela ótica do ethos do
cuidado que chegam aos equipamentos desse mesmo cuidado.

Vários estudiosos têm chamado a atenção sobre a sobrecarga que


a família enfrenta na convivência com o portador de transtorno
mental, desencadeando atitudes de incompreensão familiar e
rejeição, culpa e vergonha, motivadoras de reinternações sucessivas ou
permanentes.

Frente ao transtorno mental, segundo especialistas, as famílias tentam


resolver a questão internamente, depois na rede de parentesco e nas
redes sociais e religiosas. Só por último procuram os serviços
públicos de saúde mental. No trabalho cotidiano do cuidado, o
grupo dificilmente está disponível e/ou disposto a trabalhar a dimensão
subjetiva e objetiva do cuidado. É comum profissionais exigirem que a
família aceite a doença sem oferecer-lhes suporte, orientação e direitos.

Às vezes a família não se mostra favorável a respeito da


desinstitucionalização do doente mental, exercendo pressão para que os
serviços continuem a manter a custódia e a tutela dos usuários porque o
encargo pesado não é aceito passivamente e não encontram ecos para
suas demandas.

Os diferentes percursos da reforma psiquiátrica brasileira têm


evidenciado a fragilidade do sistema de saúde para oferecer outro tipo
de cuidado que não a internação pelas instituições conveniadas, mesmo
de forma complementar. A necessidade de outro tipo de abordagem
com as famílias cuidadoras se localiza em um cotidiano de tensão,
de conflitos, de angústias, além delas se encontrarem, na maioria
das vezes, desorganizadas, envergonhadas, estigmatizadas e sem
estarem prontas politicamente para se colocar como agentes das
reivindicações de direitos. Ao contrário, encontram-se fragilizadas e
vulneráveis para resolver a problemática da vida cotidiana, acrescida
das dificuldades geradas pela convivência familiar, pela manutenção
e pelo cuidado com seu portador de transtorno mental; mesmo que
haja políticas públicas que garantam direitos e benefícios para
manutenção dos gastos financeiros com os doentes.

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Outra situação penosa para as famílias administrarem e aceitarem é


a improdutividade dos seus doentes mentais, cuja manutenção pesa
no orçamento.

O lidar com o cuidado cotidiano na família é carregado de vergonha e, às


vezes, demonstra realidades ignoradas pelos serviços ( Ex.:
agressividade) e revelam situações que não podem prescindir de suporte
de cuidado.

O momento de uma reincidência ou do agravamento do estado mental de


um usuário dos serviços torna-se perturbador para as famílias e,
especialmente, para as cuidadoras, frente as dificuldades para
compreender e para evitar um desfecho desastroso da crise.

O discurso das familiares – cuidadoras analisado revelou a


multiplicidade de problemas, ansiedades, medos, vergonhas e
tristezas que elas vivem durante as crises de seus entes em
sofrimento. A percepção delas quanto ao tratamento dispensado aos
doentes é condizente com o que mais acontece: tratamento
medicamentoso para contenção e tornar o paciente mais adaptado
ao seu contexto social, acreditando na cura.

A idéia de reabilitação psicossocial não deve ser entendida como


adaptação ou ajustamento do louco a um padrão de normalidade, mas
como reintegrar-se e recuperar-se e à rede intersubjetiva, possibilitando
ao sujeito o sentimento de estar no mundo com sua diferença.

Observa-se que a emancipação do sujeito e o emergir da capacidade de


gerenciar sua própria vida se dá em graus diferentes para alguns e
não acontece para todos. Através do trabalho de campo,
observamos que as cuidadoras mais pobres e que têm seus
doentes agressivos, violentos ou intolerantes aos familiares, tem maior
grau de rejeição e querem que o familiar doente fique internado de forma
permanente. Entretanto, quando há possibilidade de acesso, de
acolhimento, de uma escuta, essas cuidadoras manifestaram que a
internação é o último recurso, quando seus entes estão em crise, do qual
não podem prescindir.

O rompimento com a continuidade instituída pela representação


social da loucura e dos doentes mentais; a superação das contradições
presentes no imaginário social e no mundo concreto das famílias,
cuidadoras ou não, sobre as concepções acerca do que vem a ser
a doença, o tratamento, a reabilitação, a cura, a internação e os
serviços de saúde mental, significa um processo pedagógico de
revisão e reconstrução do conceito de loucura e dos portadores de
transtorno mental no lidar com a existência-sofrimento.

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Está se vendo surgir ações coletivas de usuários presentes na cultura, na


política e nos serviços. Isso denota a real possibilidade de revisão e
desconstrução dos conceitos que implicam em mudança de postura
ética, estética e política por parte desses sujeitos, no sentido de ir
implicando-se para toda a sociedade, inventando e recriando novas
formas de cuidar e de exercer a cidadania desses sujeitos no cotidiano da
família, dos serviços, do território e da vida.

Considerações Finais

Um dos objetivos dos CAPS é incentivar que as famílias participem,


da melhor forma possível, do cotidiano dos serviços. Os familiares
são, muitas vezes, o elo mais próximo que os usuários têm com o
mundo e por isso são pessoas muito importantes para o trabalho
de CAPS, não somente incentivando o usuário a se envolver no
projeto terapêutico, mas também participando diretamente das
atividades do serviço. Os familiares são considerados pelos CAPS
como parceiros no tratamento. (Brasil, 2004, p. 29)

A reforma psiquiátrica brasileira, tendo como desafio a


desinstitucionalização da loucura, pela construção de novos modelos de
assistencia (CPAS), coloca em foco a relação de parceria com a família,
tendo em vista que em ambos os territórios há um ethos de produção de
cuidados, na intenção de possibilitar uma ova forma de ser destes
serviços, na concretização de uma tensão psicossocial.

São vários os atores desta cena: técnicos, familiares e os usuários,


todos imbuídos de uma ética do cuidado, apesar dos limites e riscos.

Os novos serviços não se limitam à substituição do hospital por


um aparato externo envolvendo questões de caráter técnico-
administrativo e assistencial. Envolve questões do campo jurídico –
político e sociocultural. Exige que haja um deslocamento das
práticas de integralidade do cuidado em saúde mental, antes
centradas nos leitos psiquiátricos e nos procedimentos médicos para
práticas de cuidado realizadas no território com base comunitária, com
participação e controle social.

A questão principal é buscar outro lugar social para a loucura na nossa


cultura. Isso coloca em debate o outro pólo da questão: a cidadania dos
portadores de transtorno mental e sua relação com os serviços, assunto
debatido na esfera pública e de controle social no campo da saúde
mental (nas conferências nacionais de saúde mental).

A reforma psiquiátrica vem se desenvolvendo no Brasil há vários anos ,


oriunda de um movimento social de cunho sindical,e apontou as
inconveniências do modelo oficial vindos da psiquiatria clássica que

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propiciava a exclusão e a cronicidade dos doentes mentais em todo o país.

Apesar do pouco tempo, o novo modelo vem sendo edificado a partir das
tentativas e contribuições de vários segmentos da sociedade, se
implicando com a desconstrução do modelo hegemônico-dominante.

A agenda pública da saúde mental aponta as diretrizes do


processo de reforma psiquiátrica brasileira, sendo que a construção da
política vem se dando timidamente:

a) a desistitucionalização e substituição do modelo de cuidado (


redução de leitos e cuidado extra-hospitalar e comunitário);
b) implantação e consolidação da rede de atenção psicossocial,
incluindo atenção básica (base comunitária, territorialização,
parcerias em perspectiva intersetorial)
c) política de álcool e drogas no campo da saúde pública na
perspectiva de redução de danos;
d) inclusão social da pessoa com transtorno mental pela via da
economia solidária;
e) formação permanente de recursos humanos ;
f) construção de novos referenciais para a loucura e o cidadão.

São vários os desafios na construção dos novos modelos técnico-


assistencial dos serviços públicos de saúde mental, tendo por referencia o
ethos do cuidado por parte de todos para a concretização de um espaço
aberto e de base territorial – comunitária. A necessidade de
avaliação constante, de vigilancia atenta para que não sejam
reproduzidas práticas da velha ordem manicomial.

Texto 2 – Tematiza as relações entre trabalho, família e políticas


sociais a partir do recorte de gênero.

“Entre o trabalho e a família” – Contradições das


respostas públicas às reconfigurações da divisão sexual
do trabalho

Andréa de Sousa Gama

Introdução

Estados de Bem – Estar social contemporâneos surgido em diferentes


momentos e diferentes formas, a partir da Segundo Guerra Mundial
passam a partilhar similitudes.O núcleo central das reformas é a
provisão da proteção social pelo Estado, às pessoas cuja pobreza
resultava das dificuldades de se sustentarem por meio do trabalho

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assalariado devido a acidesntes de trabalho, doença, desemprego e


velhice. Gozavam de um direito social, reconhecido como tarefa do
Estado, e relacionado a uma concepção de cidadania. Mas a relação
entre trabalho e cidadania pode ser vista de forma diferente. Como
pensar os direitos sociais da mulher? De que forma as mulheres
são cidadãs? A cidadania da mulher passa pelo trabalho assalariado?
O trabalho não remunerado pode ser inscrito no âmbito da
cidadania?

A divisão sexual do trabalho e a ideologia de gênero que a


acompanham vem sendo incorporada aos processos de reforma dos
Estados de Bem –Estar Social, inspirada na visão maternalista e nos
ideais feministas igualitaristas. A partir da década de 1970, feministas
desenvolvem críticas ao sistema de bem-estar social. A Conferência
Internacional da Mulher (1975) reconhece a relevância do Estado
para a solução do problema da dependência feminina em relação
aos homens, promoção da igualdade de oportunidade no trabalho,
na educação, igualdade salarial, creches, aborto e contracepção,
medidas relacionadas à autonomia feminina. Ao mesmo tempo, as
relações entre o Estado e a família foram postas em evidência,
principalmente a forma pela qual o Estado estruturou a provisão de
bem estar social por meio do trabalho “invisível”da mulher. Desde então,
as críticas às políticas sociais tem se ampliado e sustentado. Por um
lado, o Estado constrói e reconstrói no âmbito político, provisão das
desigualdades de gênero; por outro lado, o reconhecimento de que as
mulheres necessitam de proteção social pública.

Este texto enfatiza o vínculo entre trabalho, família e políticas


sociais, destacando que essas relações são diferenciadas por gênero. A
autora apresenta experiências internacionais que mostram a importância
de políticas governamentais que respondem aos conflitos atuais
entre trabalho e família e como diferentes modelos de reforma dos
sistemas de proteção social têm efeitos distintos para a promoção da
igualdade de gênero.

A possibilidade de redução das desigualdades (inclusive as de gênero)


passa pela proteção social que pode afetar positivamente a inserção
produtiva feminina, reduzindo as vulnerabilidades decorrentes da
divisão social e sexual do trabalho; promovendo incentivos que
alavanquem a autonomia financeira, familiar e profissional –
ocupacional da mulher. É tarefa essencial integrar a cidadania
feminina no sistema de proteção social, de forma a superar os impasses
vindos do conflito trabalho – família.

Este trabalho pretende refletir sobre a relação entre o trabalho não


remunerado no seio da família e o trabalho remunerado no mercado
de trabalho, de forma a melhor articular proteção social e gênero.

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Interpretações das (novas) configurações da divisão sexual do


trabalho

Os primeiros movimentos de mulheres tiveram um papel decisivo


na criação e nas reformas dos sistemas de proteção social
contemporâneos. As reivindicações feministas dirigiam-se à
maternidade (feminismo maternalista).

Naquele contexto, os movimentos das mulheres lutaram por um tipo de


Estado -providência e cidadania que reconhecesse os direitos e as
necessidades relacionadas com os riscos dos assalariados masculinos
e das mães assalariadas ou não. Eles inspiraram e modelaram
legislação sobre proteção social em diversos países: licença e subsídios
de maternidade, abono ou salário família, etc. Contribuía para a
proliferação dessa legislação o declínio das taxas de fecundidade. A
pobreza das famílias e a questão populacional eram as causas mais
importantes para a manipulação das medidas públicas de proteção
social à maternidade.

Questão crucial no debate feminista; a atividade que as mulheres realizam


como mães e que pode ser considerada pertencente ao domínio do
trabalho→ feministas maternalistas (início do século XX):lutavam
pela dignidade da maternidade, pelo seu reconhecimento como
trabalho e pela remuneração total ou parcial pelo Estado; a
sociedade devia o reconhecimento social, político e econômico do
trabalho doméstico; a maternidade deveria ser reconhecida como trabalho
e remunerada com um salário (subvencionada pelo Estado), veículo para
independência “financeira” das mães e para uma mudança nas relações
entre os sexos.

Inicia-se a gestação do conceito de divisão sexual do trabalho que, além


de denunciar as desigualdades entre homens e mulheres repensava o
próprio “trabalho”. A ancoragem era a idéia de que o trabalho
doméstico era um “trabalho” e que, a definição deste deve
obrigatoriamente incluir aquele.

Durante e após a Segunda Guerra Mundial: passagem dos


benefícios à maternidade para os abonos centrados na família→
intuito de manter a capacidade de consumo do trabalhador com
filhos (derrota para os objetivos originais do feminismo maternalista).
Diversos grupos feministas opunham-se às políticas centradas na
maternidade e lutavam pela igualdade entre homens e mulheres. O
crescimento da economia industrial, a ampliação do emprego e das
condições de trabalho fez com que as mulheres considerassem mais fácil
conseguir a emancipação pelo trabalho assalariado e pela

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redistribuição de responsabilidades entre o casal do que por meio de


reconhecimento público da maternidade como uma função social.

Durante os anos 1960 -70, a participação feminina no mercado de


trabalho levou ao abandono às premissas maternalistas. Entretanto, os
movimentos das mulheres não abandonaram a necessidade da provisão
estatal, Novos contornos se estabelecem para a questão da
maternidade, notadamente para sua conjugação com o trabalho
remunerado.

Uma questão básica para o bem- estar é como alocar a sua produção, a
partir da interdependência dos seus três pilares: família, mercado e
Estado. Apesar da inexistência de uma concepção unívoca de direitos
sociais quanto aos papéis atribuídos a cada um desses pilares, a
crítica feminista vai incidir sobre o papel das mulheres na provisão
do bem – estar, por meio do trabalho doméstico não remunerado e
do cuidado exercido na esfera da produção social.

Carole Pateman (2000) observa que o direito ao trabalho não pode


ser compreendido sem a devida atenção às conexões existentes
entre o mundo público do trabalho e da cidadania e o mundo
privado das relações familiares. Destaca que o salário é o traço
característico da cidadania moderna, pois garante a autonomia, o
que significa que as mulheres correm o risco de serem cidadãs de
segunda classe quando permanecem na inatividade para cuidar dos
filhos, dos idosos e dos doentes. A construção do trabalhador
masculino como provedor e da sua esposa como dependente foi
oficialmente consagrada por legislações que conformam o Estado de
Bem – Estar Social. Logo, este se estrutura sobre uma divisão do
trabalho por gênero que estrutura a provisão do bem - estar.

A ideologia de gênero dificulta a percepção da relevância do trabalho


doméstico das mulheres, deixando a impressão de que elas são
dependentes dos maridos, embora a organização do trabalho deles
e a mais- valia do seu empregador também se beneficiem desse trabalho
feminino “invisível”.

Mcintosh (2000) desenvolve crítica ao assalariamento e ao sistema de


bem – estar social que ocultam a separação “patriarcal”entre a produção e
a reprodução social. A característica específica da opressão feminina
estaria relacionada à articulação entre o sistema salarial e o sistema
familiar e a divisão sexual do trabalho. Historicamente, com a
separação do âmbito da produção e da reprodução social, com a
emergência da família nuclear burguesa e da sociedade de mercado,
o trabalho remunerado das mulheres foi assentando de forma
subalterna, ao mesmo tempo em que o trabalho não remunerado ficou
invisível.

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Em geral, as análises feministas que buscam a integração do


trabalho não remunerado às teorias e tipologias do Estado de Bem –
Estar Social denunciam que este trabalho não remunerado não poderia ter
sido negligenciado. O desenvolvimento do Estado de Bem- Estar
Social está assentado no pressuposto de que certos aspectos do bem
– estar podem e devem continuar a ser promovidos pelas mulheres em
casa, como parte de sua responsabilidade na esfera privada e não
por meio de previsão pública. Um exemplo atual é o processo de
assistencialização e filantopização das políticas sociais, assentado no
corolário de que as mulheres usam de forma mais eficiente os recursos
escassos. Uma escolha que revela contradições muitas vezes
incontornáveis da autonomia feminina.

A relação das mulheres com o Estado moderno é mais complexa que a dos
homens, pois elas são ao mesmo tempo clientes, trabalhadoras
remuneradas e trabalhadoras não remuneradas. Pode-se considerar
que o trabalho remunerado exerceu papel determinante na redução
da dependência das mulheres em relação aos homens, reforçando seu
poder de negociação no interior da família e abrindo novas possibilidades
fora do casamento. Os mercados de trabalho modificaram-se. O
processo de reestruturação produtiva fomentou uma “flexibilização”
considerável. As mulheres que sempre tiveram tendência a ocupar
empregos “”precários” viram o número destes empregos aumentar. Nos
anos 1990, a retração dos Estados de Bem – Estar Social teve importância
particular para as mulheres, na medida em que estas dependem de uma
“renda social “ sob a forma do usufruto de serviços públicos.

A literatura internacional sugere que as tentativas de reformar os


sistemas de seguridade social, por meio da “individualização” dos
benefícios e da eliminação dos direitos de acesso das mulheres como
esposas, foram negativas para muitas delas. Muitas passaram a não
ser elegíveis para benefícios previdenciários e se tornaram dependentes
de programas assistenciais. O conflito entre os objetivos da independência
das mulheres, dos seus direitos de beneficiárias como esposa e as
garantias de provisão de benefícios próprios adequados à fase idosa
parecem longe de definição. A principal debilidade deste tipo de resposta
pública de não considerar a interação entre a divisão sexual do
trabalho e a provisão social dos benefícios é causa da diferenciação de
gênero em termos do direito de acesso a benefícios por parte de homens
e mulheres.

Em um crescente número de países, a participação e a escolaridade


das mulheres no mercado de trabalho tem se assemelhado a dos
homens. Observa-se a erosão do curso de vida masculino em face da
instabilidade do emprego e do desemprego. Isso vem provocando
tendência de maior aproximação nas características de inserção no

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trabalho entre homens e mulheres. Entretanto, as tensões da


igualdade de gêneros permanecem porque as forças que impedem a
convergência também criam e aprofundam desigualdades:
relacionadas com segregação e discriminação de gênero no mercado
de trabalho; condições precárias no trabalho e a divisão desigual do
trabalho doméstico.

Esping- Andersen (2002): -propõe quatro arenas políticas fundamentais


para a reconstrução do modelo de bem – estar: crianças e famílias,
relações de gênero, vida de trabalho e aposentadoria. Tais áreas
representam o alicerce das chances de vida dos cidadãos. O autor
defende que as mulheres podem ocupar o centro da sociedade pós-
industrial; que ascensão do emprego feminino esteve assentada na
emergência da economia de serviços que foi alavancada pela
entrada da mulher no mercado de trabalho. A economia de serviços
como resultado de novas tecnologias e de mudanças nas relações
financeiras e de produção, também é decorrente da mudança no
comportamento das famílias pelo quase desaparecimento do modelo da
mulher do lar e das empregadas domésticas; e pela ampliação do
emprego de mãe e esposas. O aumento da participação feminina no
mercado de trabalho implicou numa dupla dimensão do emprego, visível
no âmbito do consumo de massa e na capacidade aquisitiva das
famílias → autor peca por refuncionalizar o papel das mulheres no
contexto das reformas atuais dos Estados de Bem - Estar Social;
não aprofundar as relações entre as transformações do trabalho, as
novas formas de produção e emprego e as novas configurações da
divisão sexual do trabalho. Subavaliar o caráter e a dimensão
dessas mudanças para homens e mulheres significa naturalizar a
inserção desigual das mulheres no mercado de trabalho atual.

Em segundo lugar, ao propor políticas de famílias orientadas nas


condições econômicas e sociais da infância, tende a minimização das
reivindicações das mulheres assentada na efetividade do emprego
das mães para a prevenção da pobreza das crianças. Nessa
direção, as políticas de igualdade de gênero serão conformadas por
meio da “ conciliação” maternidade e emprego, em que o trabalho
feminino será fundamental para manter as famílias acima do nível
de pobreza, para contribuir para o financiamento da Previdência Social
e para ser uma das peças- chave de equilíbrio da economia pós –
industrial.

A demanda atual por essa “conciliação” oculta as novas modalidades da


divisão sexual do trabalho resultante do processo de flexibilização e
precarização do trabalho. Ao mesmo tempo em que a força de trabalho se
feminilizou, constata-se que a flexibilização pode reforçar as formas mais
estereotipadas das relações de gênero, por meio das novas formas
de gestão do tempo e do espaço do trabalho, segmentado por

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sexo. Outra manifestação desse processo está relacionada ao


fenômeno das desigualdades entre as mulheres não mais medidas pelos
homens, mas pelas relações de trabalho. Ao mesmo tempo em que
aumenta o número de mulheres em profissões de nível superior,
cresce o de mulheres em situação precária

Terceiro: reorganização do trabalho no campo doméstico remete a


externalização ou delegação deste à enorme reserva de mulheres em
situação precária, migrantes, negras, pauperizadas.

Refletindo sobre o significado desta mudança histórica, em termos


da concepção do Estado de Bem-Estar Social sobre as mulheres, têm-
se as políticas amigáveis às mulheres. Na União Européia, a política da
“conciliação” entre trabalho- vida familiar passou a ser prioridade do
governo. Entretanto, na essência desta política há um paradoxo: o
objetivo de se chegar a igualdade pela promoção da “conciliação”. Essa é
ima política fortemente sexuada porque consagra o status quo,
segundo o qual homens e mulheres não são iguais perante o trabalho
profissional.

Stratigaki (2004) mostra que a concepção da “conciliação” trabalho-


vida familiar introduzida para encorajar a igualdade de gênero no
mercado de trabalho foi gradualmente sendo substituída por um
objetivo mercado – orientado (encorajando formas flexíveis de
emprego). A autora caracteriza este processo como cooptação das
concepções de gênero por políticas públicas que modificaram o sentido
dos objetivos originais pela prevalência de prioridades econômicas.
Esse processo consolidou as responsabilidades e os papéis das mulheres
como prestadoras primárias do trabalho de assistencia.

Contradições da proposição da conciliação trabalho – família em


perspectiva comparada

A “compatibilidade” trabalho- vida familiar está contingenciada pela


natureza do suporte institucional. Estudos que analisam a problemática
da “conciliação” entre trabalho remunerado e responsabilidades
familiares tem operado análises a partir das mudanças na estrutura
das famílias e no mercado de trabalho. Em geral, buscam analisar as
desigualdades de gênero no mercado de trabalho, no interior da família e
as variações das políticas sociais e de mercado de trabalho quanto
ao nível de suporte oferecido aos pais e no quanto incentivam as
divisões dos “cuidados”e do trabalho remunerado com base na igualdade
de gênero. Procuram mensurar os efeitos da maternidade e da
paternidade sobre as condições e perspectivas de trabalho de homens e
mulheres, o papel e a eficácia das políticas públicas de apoio ao modelo
onde ambos os cônjuges trabalham.

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O trabalho de Crompton e Lyonette (2007) observa que conjugar


trabalho e família está eivado de pressões e tensões e que os níveis
desse conflito variam com as circunstancias nacionais, individuais e
familiares. Ao desenvolver um estudo comparativo sobre os níveis de
conflito trabalho – vida familiar de famílias com duplo rendimento,
concluem que os índices de tais conflitos são menores quando há
um forte apoio dos governos para as famílias com dois provedores de
rendimento.

Outras pesquisas mostraram os efeitos diferenciados da paternidade


e da maternidade sobre a participação no trabalho. Ocorre uma
ampliação da inserção no mercado de trabalho e o aumento do
número de horas trabalhado resultante das pressões economicas
com o aumento da família, para homens, as mulheresveem sua
remuneração diminuir, veeem aumentat os anos de afastamento do
mercado de trabalho, o trabalho em tempo parcial e a inatividade,
principalmente quando as crianças são pequenas.

Gornick e Meyers (20070) apresentam as variações das políticas


sociais e de mercado de trabalho na Europa e nos EUA quanto ao
nível de suporte oferecido aos pais e quanto incentivam as divisões dos
“cuidados”e do trabalho remunerado com base na igualdade de genero. As
autoras destacam os países social – democratas como os mais bem
sucedidos na promoção da igualdade de genero que valoriza tanto o
trabalho remjnerado quanto o bem-eestar infantil.

Orloff (s/sd) ao analisar a trajetória político-institucional das políticas


que envolvem o “adeus ao maternalismo”a partir do modelo sueco e
do americano, desmistifica-os destacando que ambos apresentam
lacunas no objetivo da igualdade de gênero nas esferas do trabalho e do
“cuidado”. Na Suécia políticas viabilizam a conciliação entre trabalho e
família, na qual as mulheres são as maiores beneficiárias. A social-
democracia tem papel importante nesse cenário: visa a promover a
igualdade de genero por meio de emprego feminino e da criação de
serviços públicos. A lógica : se a igualdade entre homens e mulheres deve
ser conquistada, o trabalho remunerado deve ser atraente para as
mulheres; compatibilização entre a maternidade e aparticipação no
mercado de trabalho foi a estratégia desenvolvida. As mulheres
contam com uma ampla rede de serviços públicos voltados para o
“ciodado”, o que tem contribuído para a ‘desfamiliarização‘ do “cuidado”.
Faria (2002) apresenta dados que mostram que os benefícios
relacionados à licença para os pais não conseguem fazer com que
os homens passem a assumir um papel significativo no ambito doméstico
da criação dos filhos.

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Segundo Orloff (s/d), o modelo sueco é “generoso”, propiciando licenças


longas, flexíveis e destinadas a suprir necessidades diversas, oferecendo
compensações pelas perdas salariais, parece plausível afirmar que a
ênfase do sistema recai mais sobre a possibilidade de se “compatibilizar”a
maternidade com o trabalho remunerado do que sobre o declarado
objetivo de induzir a criação de uma simetria entre os papéis
designados os pais e mães.

O modelo americano do “trabalho para todos” desenvolve políticas de


gênero orientadas pelo mercado. A diversificação do mercado de trabalho
entre homens e mulheres tem raízes no feminismo liberal norte-
americano, fundamentado nas noções de justiça e direitos individuais e da
adoção de políticas de ação afirmativa. Entretanto, o Estado não
intervém no trabalho de assistência, pois é entendido como um
assunto privado, de escolha individual. Apesar dos altos níveis de
empregabilidade feminina e com menor taxa de emprego de tempo
parcial, existe um gap nas taxas de emprego de mães de crianças
pequenas que, pela compreensão do “cuidado” restrita ao lócus privado e
a sua mercantilização, enseja desigualdades sociais entre mulheres e
as famílias. Após a reforma do sistema de proteção social
americano, em 1996, o objeto das políticas se restringe as mulheres
pobres e às chefes de família. Há incentivos à provisão do setor privado
de “cuidados”. O aumento das desigualdades entre as mulheres está
relacionado com os custos do “cuidado”. Expressam essas
desigualdades as maiores taxas de desemprego e de trabalho em
tempo parcial entre mulheres pobres com filhos pequenos. O dilema
americano reside na necessidade de se promover um “suporte neutro de
gênero” para as trabalhadoras com responsabilidades familiares.

A autora enfatiza que a liberalização da economia traz como prioridade a


empregabilidade e as políticas direcionadas ao “cuidado” vão sendo
erodidas. Isso tende a aumentar a participação feminina no mercado
de trabalho e a reprivatizar o “cuidado” na família por meio de
subsídios em renda para crianças ou mesmo por meio do mercado.
Sugere como alternativa o modelo de “cuidador universal” para homens e
mulheres e a transversalização da política do “cuidado” entre Estado,
família e mercado. Pondera que esse deve ser valorizado como uma
atividade humana, como parte intrínseca da vida social e na qual todas as
instâncias devem ser envolvidas.

Jane Lewis (2001) reconhece a relação entre trabalho remunerado, não


remunerado e bem-estar social e sugere a construção de modelos de
Estado de Bem-Estar Social a partir de uma tipologia alternativa: países
em que o padrão homem-provedor é forte, modificado ou fraco.
Para pensar os diferentes regimes de Estado de Bem-Estar social
ela elege as variáveis a seguir:

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a) os Estados de Bem-Estar social estão fundados no padrão


homem-provedor e mulher dependente do homem trabalhador
pelas pensões e outros benefícios;
b) deve-se colocar no centro da análise as relações de
gênero em associação com a relação capital x trabalho;
c) trazer a família e o trabalho não remunerado como parte do
regime de proteção social;
d) nas análises comparativas dos Estado de Bem-Estar social,
considerar a participação feminina no mercado de trabalho e o
nível de empregabilidade das mulheres como um indicador do
nível de bem-estar.;
e) deve-se analisar a cobertura dos Estados de Bem-Estar Social
para o trabalho de assistência, por meio dos serviços e das
provisões gerados pelo Estado, família e mercado para aqueles que
necessitam de cuidados.

A autora propõe a passagem do modelo do homem-provedor para o


modelo adulto trabalhador e diz que existem seis possibilidades de
transição para este modelo, em que a posição de homens e mulheres no
mercado de trabalho organiza a gestão dos cuidados entre família,
Estado e mercado. Destaca as ambigüidades presentes no atual modelo
de políticas públicas:

1-O modelo do adulto-trabalhador abarca um homem e uma


mulher provedores, porém com status diversos porque o trabalho
não remunerado ainda carece da devida relevância pública;
2-as mudanças da família foram mais acentuadas, em termos das
mudanças de gênero, do que aquelas no mercado de trabalho,
pela maior individualização e pela descomplementaridade dos
papéis de homens e mulheres. Apesar da mudança da
participação feminina no mercado de trabalho, ela ainda ocorre
em situação desfavorável para as mulheres, pois a
permanência delas no trabalho não remunerado impacta
desfavoravelmente a sua inserção produtiva e corrobora o atributo
do “cuidado” às mulheres. Como promover outra posição da mulher
no mercado de trabalho? Por meio da promoção do trabalho em
tempo integral ou complementando a renda daquelas que não
conseguem sair do trabalho parcial, bem como de políticas
relacionadas ao trabalho não remunerado.

Lewis (2003) prioriza a evolução das políticas em matéria de


trabalho de assistência não remunerado, que constitui elemento
importante na posição das mulheres no mercado de trabalho. Em muitos
países europeus são vários os mecanismos institucionais
desenvolvidos que procuram repassar para as famílias, para o
mercado e/ou para o setor beneficente o trabalho de assistência às
pessoas idosas, crianças e outros dependentes, por meio da diminuição

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da oferta pública de assistência, da pulverização e precarização do


emprego de serviços de proximidade, da transferência de benefícios em
serviço para benefícios em dinheiro, etc.

Jenson (1997) defende a introdução do “cuidado” como central na


definição dos modelos de Estado de Bem-Estar Social, subordinando o
trabalho nesta definição.Ele pergunta: Quais as conseqüências de um
regime de “cuidado”(care) para a equidade de gênero? Esses aspectos
são obscurecidos pela ausência de um diagnóstico dos custos
diferenciados do cuidado dos dependentes para as famílias, o Estado e o
mercado? Por exemplo, as análises econômicas avaliam como altos os
custos despendidos pelo Estado com a assistencia a idosos, mas não
consideram os custos que as famílias tem quando dispensam esta
atenção. Isso se deve à suposição de que as famílias,
especialmente as mulheres, provêm serviços sociais gratuitos.

Para as feministas sempre houveram duas questões a propósito do


trabalho não remunerado das mulheres: como avaliá-lo e como
dividi-lo equitativamente com os homens. Nenhum país conseguiu
avaliar estes aspectos. Toda a história do feminismo mostra que não é
possível preconizar políticas que objetivem reconhecer a “diferença”
feminina em relação à carga de trabalho não remunerado e opô-las às
políticas que visam realizar a igualdade entre homens e mulheres na
esfera do trabalho remunerado.

Lewis ( 2003) fornece um exemplo da dificuldade de “conciliar”


trabalho remunerado e trabalho não remunerado, quando analisa
dilemas de mães sozinhas em relação aos diferentes âmbitos do trabalho
em associação com a natureza dos sistemas de proteção social na Europa.

As diversas concepções sobre as mães sozinhas determinam as variadas


formas com que os Estados respondem a essas demandas. Na Grã-
Bretanha, mães sozinhas querem trabalhar, mas a ausência de estrutura
acessível para o cuidado das crianças as impede. Na Suécia elas tem suas
necessidades de cuidados com as crianças atendidas como um benefício
social universal. Muitas feministas destacaram o imperativo que
representa para as mulheres a questão do trabalho do cuidado.
Trata-se de um imperativo de ordem moral que pode justificar
uma lógica diferente diante do estímulo de um trabalho remunerado.

Nos EUA, o auxílio público em relação às mães sozinhas é


estigmatizado e representa um montante irrisório. Na Alemanha, as
mães sozinhas devem se contentar com benefícios de assistência
de segunda categoria. A taxa de participação das mães sozinhas no
mercado de trabalho alemão é mais elevada do que a das mulheres
casadas. No Reino Unido as mães sozinhas são tratadas mais como
trabalhadoras do que mães.

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É difícil saber como conceber a melhor as políticas que trata da


complexa questão da relação entre trabalho remunerado e não
remunerado porque o problema é cheio de desigualdades entre os
sexos. MaLaughlin e Glendinning, citados por Lewis (2003),
sugeriram pensar na “desfamilização”em vez da desmercantilização
no sentido das condições nas quais os indivíduos se comprometem com a
vida em família. Essa noção implicaria em questionar até onde é
necessário ajudar os homens e as mulheres a “conciliar” trabalho
remunerado e não remunerado e a idéia de que há um direito de
não responsabilização pelo trabalho de assistência e o direito contrário de
optar por exercê-lo. Isso significa que uma ética do cuidado deve ser
exercida voluntariamente. O objetivo da política social deve ser
oferecer a possibilidade de uma escolha. O problema vem da
relação complexa que as mulheres mantêm com o trabalho remunerado
ou não remunerado e com o sistema de direitos sociais.

As discussões recentes têm apontado que a noção de “desfamilização”


reproduz a dicotomia entre a esfera pública e privada e a
desvalorização do cuidado/reprodução social frente à esfera do mercado.
O cuidado tem uma dimensão de pessoalidade, de relação e a sua
mercantilização ou publicização não resolve totalmente essa questão.
Atualmente, já se pensa na redução da jornada de trabalho não só
como medida de enfrentamento do desemprego e da exploração do
trabalho, mas introduzindo a utilização do tempo da vida, abrindo
caminho para a valorização da esfera da reprodução social e para a
partilha do cuidado entre homens e mulheres.

Texto 3 – O texto traz reflexões em torno do fenômeno da


maternidade e da paternidade adolescente e sobre a importância
das políticas sociais voltadas para o cuidado com esses
grupos, em virtude da prerrogativa legal de proteção que eles
possuem, e pelo impacto que esses cuidados geram para os
filhos desses adolescentes.

Famílias com adolescentes genitores: entre o Direito ai


cuidado e a responsabilidade de cuidar

Aline de Carvalho Martins


Rozânia Bicego Xavier

Introdução

O fenômeno da maternidade e da paternidade adolescente não é novidade


no cenário brasileiro, pois já no Brasil colônia as pessoas casavam-se
muito jovens e, ainda adolescentes, eram pais.

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A alteração dessa prática teve início com o advento da industrialização e a


conseqüente separação das esferas pública e privada da vida humana.
Nesse contexto, a infância e a adolescência começaram a formação
para o mundo do trabalho, observando-se o aumento da idade em que
ocorria o matrimônio.

No pós-guerra, observa-se a entrada da mulher no mercado de


trabalho, o que implicou significativas mudanças sociais, incluindo
nestas o controle da fertilidade. Esta circunstância deu à mulher a
possibilidade de redefinir sua participação social para além da esfera
privada. Hoje, projetos profissionais constituem um dos motivos para a
maternidade tardia.

Nesse quadro, a gravidez na adolescência tem, atualmente, um caráter de


classe, com a maternidade e paternidade adolescentes sendo
experiências que vêm ocorrendo nos setores mais empobrecidos das
classes trabalhadoras.

Este texto pretende refletir sobre o desejo de reprodução dos


adolescentes, sua articulação com a realidade socioeconômica de
suas famílias e sobre a importância de políticas sociais voltadas
para o cuidado com esses grupos, em virtude da prerrogativa legal que
eles possuem e pelo impacto que esses cuidados geram para os filhos
desses adolescentes.

Adolescente: afinal, do que estamos falando?

O conceito de adolescência surge com o advento da modernidade.


Considera-se que esta fase tem início com as mudanças físicas no
desenvolvimento, que ocorrem a partir da puberdade. É um fenômeno que
pressupõe um período de transição psicossocial para a vida adulta
e se articula ao ambiente sociocultural do indivíduo, de modo que será
influenciado pela condição de classe → fenômeno cultural e social,
permeado por transformações físicas, biológicas e psicológicas (
transição para a fase adulta), influenciadas pelo momento histórico e
pelas características individuais.

Somente em alguns segmentos da sociedade é possível que a passagem


para o mundo adulto seja feita progressivamente. Pobreza e desigualdade
(como no Brasil) fazem com que muitas crianças já tenham
responsabilidades do mundo adulto, sem que haja qualquer transição.

No Brasil, muitos adolescentes (e crianças) exercem papéis


maternos - paternos em relação a seus irmãos ou outras crianças
menores. A provisão e o cuidado, diante da ausência do Estado, passam a
ser assumidos exclusivamente pelas famílias, com ônus para crianças

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e adolescentes, que têm violado o seu direito ao cuidado e ao


desenvolvimento em detrimento da necessidade de cuidar de outros
membros de suas famílias.

Pretende-se nesse artigo refletir sobra a questão de maternidade –


paternidade na adolescência no contexto social das classes
trabalhadoras urbanas pobres.

Maternidade adolescente: entre as esferas do desejo e do risco

A escolarização e a condição socioeconômica da mãe implicam


diretamente na qualidade de tempo e na relação que esta terá com o seu
bebê, nas condições e no acesso aos serviços de saúde e nos riscos de
mortalidade de seu filho.

A centralidade materna e a primazia da responsabilidade da mãe frente


aos filhos vem sendo reforçadas nos direitos sociais brasileiros que
primam por uma hierarquia de gênero e reafirmam a
responsabilização feminina nos cuidados com a criança, contribuindo
para com as desigualdades existentes na sociedade. O UNICEF
atenta para o fato de que a garantia dos direitos das mulheres e
ações de equidade de gênero são fundamentais para uma melhora nos
direitos da criança. Sociedades mais igualitárias em suas relações de
gênero conseguem garantir melhores cuidados também para as
crianças.

Entretanto, se a condição materna irá impactar a situação da criança, o


contrário também é verdadeiro. A gravidez precoce pode ser obstáculo
ao progresso educacional, econômico e social da mulher, pode
prejudicar a sua condição de vida futura, bem como de seus filhos. Santos
(2006) afirma que só 23% das mulheres brasileiras que tiveram um filho
com menos de 20 anos terminaram a antiga oitava série.

A vivência da gravidez na adolescência é distinta em diferentes


grupos e mais acentuada em adolescentes que não tiveram a escola
como prioridade na infância. Em contextos sociais marcados por falta de
apoio ou de materialização de direitos, ausência de aparatos sociais
(creche, pré-escola) para seus filhos, contribuirá para essa decisão por
parte das adolescentes.

A percepção da adolescente de uma entrada subordinada na esfera


pública, devido ao extrato social que ocupa e da ausência de apoio público
para a superação da condição de pobreza, pode contribuir para a
construção de projetos voltados para a esfera privada, como o
exercício da maternidade. Com baixa escolaridade, ausência de
projetos de vida voltados para o âmbito profissional e com
dificuldade de efetivar ações com vistas a algum desejo, a maternidade

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na adolescência aparece como um sucesso em um âmbito da vida,


estabelecido pelas adolescentes. Diante de oportunidades restritivas,
a gravidez pode constituir importante elemento identitário e apresentar-
se como uma conquista positiva para muitas adolescentes.

Ganhos com a gravidez adolescente: afirmação da fertilidade, desejo de


ter alguém para amar e cuidar, possibilidade de por fim a uma relação
abusiva com a família de origem, um compromisso, um elemento de
aliança entre um homem e uma mulher.

A transição positiva tende a ser potencializada se a adolescente


passa a constituir, com seu companheiro, uma nova família,
firmando independência em relação a sua família de origem. A
adolescente alcança um status social positivo de independência social, o
que facilita a sua identidade e amadurecimento.

Em relação às adolescentes mães, as principais dificuldades são comuns a


todas: falta de dinheiro, difícil retorno a escola, falta de creche e de
emprego. Estas dificuldades se apresentaram com tal intensidade a
algumas que estas cogitam o retorno a suas famílias de origem para
atender as suas necessidades e de seus filhos: principal forma acessada
pelas famílias pobres.

A proteção dos direitos das adolescentes torna-se mais necessária


quando estas são mães, devido ao seu potencial multiplicativo.

É de fundamental importância ressaltar as necessidades de ações de


cuidado e proteção direcionadas para essa adolescente como sujeito, uma
vez que sua identidade materna tende a ganhar no imaginário público um
reconhecimento maior do que de adolescente. Por isso, em muitos
serviços públicos, observa-se a negação de suas histórias de vida ou
de suas necessidades peculiares, limitando-se a atenção a suas
necessidades físicas.

Duas prerrogativas que as mães adolescentes têm para uma inserção


privilegiada nas políticas sociais: sua condição de adolescente e de
mãe, que necessita ser cuidada e também instrumentalizada no
cuidado, a partir de uma abordagem integralizada, capaz de gerar
um cuidado humanizado e de qualidade.

O impacto da gravidez na adolescência apresenta repercussões em


nível de classe, de idade e de gênero. Esse fenômeno de genitores
adolescentes apresenta características e questões distintas em relação
àqueles que se tornam pais e àquelas que se tornam mães.

Paternidade adolescente: desafios da participação e do cuidado O


exercício da paternidade não se apresenta de modo uniforme nas

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diversas sociedades ou entre os homens de um mesmo grupo.


Trata-se de uma construção cultural, firmada a partir dos valores
adquiridos ao longo da vida, da experiência relativa à sexualidade,
permeada pela subjetividade dos indivíduos nela envolvidos.

Mesmo considerando diferentes especificidades para o exercício da


paternidade, é importante destacar que o envolvimento afetivo e
efetivo do homem com a criança implicará em vantagem para
ambos. A qualidade da relação do homem com o seu filho tem impacto na
qualidade de vida deste, inclusive nos indicadores de saúde. O
envolvimento paterno repercute na aceitação da gestação e no
número de consultas de pré-natal realizadas pela mulher.

Pesquisas demonstram que os cuidados dos homens junto a seus


filhos fazem com que eles desenvolvam o autocuidado e competências
como emoções, receptividade, empatia e compaixão. Tais sentimentos
possibilitariam às crianças os benefícios de uma relação afetiva mais
próxima; a construção da auto-estima infantil; uma maior satisfação
com a situação conjugal que sobrepõe a questão do provedor ou do
disciplinador, historicamente firmada. A participação do pai na vida das
crianças as torna fisicamente mais saudáveis, emocionalmente mais
seguras e mentalmente mais perspicazes, com melhor desempenho
em testes de inteligência e a manutenção do sentimento de solidariedade
humana, pertencimento social e igualdade, essenciais ao seu bem-estar.
Os elos estabelecidos por uma criança ao longo de sua vida irão lhe
proporcionar desenvolvimento físico, capacidade para relacionamentos
e desenvoltura, contribuindo com sua capacidade de interação e
associação, de construção de novos elos.

Apesar da importância em relação à saúde e ao desenvolvimento


sócio-afetivo e emocional das crianças, a atenção dos pais (homens)
teve reconhecimento internacional só recentemente. No Brasil, as políticas
sociais, muitas vezes, deixam de incentivar o exercício da
paternidade. A proteção à paternidade se expressa de maneira frágil
no reconhecimento público, por meio de políticas sociais referentes à
pequena licença-paternidade e na garantia de afastamento do
trabalho dos servidores públicos para acompanhamento de filhos
doentes.

Este é uma realidade que atravessa diferentes políticas públicas: a área


da saúde pode ser ilustrativa. A maioria dos serviços públicos de pré-natal
e maternidade na América Latina e no Brasil não considera os homens em
suas práticas. Dessa forma, reforça o afastamento deles dos
cuidados com os filhos, ignorando as transformações sociais relativas
à paternidade em voga e contribuindo para uma sobrecarga feminina.
É possível identificar uma retórica que valorize a presença do homem;
entretanto, não existem práticas que efetivamente o incluam nesse

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processo. Os pais ainda são tidos como visitas nas unidades de saúde.
Sua experiência, suas dúvidas e seus temores são desconhecidos e
por isso não são considerados como demandas e nem são atendidos
pelos serviços.

Essas dificuldades são maiores quando os pais são adolescentes,


uma vez que a paternidade está associada ao despertar de
sentimentos de responsabilidade. Sem serem capazes de congregar
dois pilares fundamentais para o exercício da paternidade - provisão
e responsabilidade – essa experiência pode se tornar socialmente
recriminada e/ou renegada pela família uma vez que, nas classes
populares contribui para agravar condições de pobreza, diferenças sociais,
dificultando inclusive acesso a bens de consumo.

A paternidade na adolescência pode aparecer como elemento que


contribua para uma transição abrupta para o universo adulto, com a
entrada precoce no mercado de trabalho, evasão escolar, redefinição de
sonhos, planos de abdicação de vivencias típicas da adolescência, em
função do sustento familiar e da dedicação à família. A contradição dessa
experiência se dá com base na exaltação de sua virilidade. O adolescente
passa a ser considerado verdadeiramente homem, devido a sua
capacidade reprodutiva adquire o status de “macho”, importante
elemento de afirmação de sua identidade de gênero.

Outra dimensão da identidade de gênero na relação do homem


com a mãe de seu filho: participação dele na vida das crianças,
ainda se constitue em um cuidado complementar ao cuidado
materno.
Homens intencionam uma maior participação na vida de seus filhos
seletiva e orientada pelas atividades de que eles gostam, e não pelas
necessidades reais de seus filhos. As novas formas de participação
masculina ainda procuram preservar os privilégios das relações
hierárquicas de gênero construídas em nossa sociedade, e os
adolescentes tendem a incorporar essas contradições vivenciadas por
homens adultos.

Há que destacar, nesse processo, que os homens não parecem ter como
referencial de masculinidade o cuidado consigo mesmo ou com outrem. O
envolvimento ativo no cuidado e a responsabilidade com as crianças
parecem ainda estar fora do imaginário social de muitos, sendo
identificados por eles como uma função materna. Com freqüência, o ele
acredita não ser capaz de cuidar de seu filho e, considera a mãe a figura
mais adequada para exercer esse papel.

As próprias experiências pessoais contribuem para esses


entendimentos. Muitos homens relatam uma relação ruim ou distante
com seu próprio pai durante a infância. De fato, parece difícil

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implantar uma rotina de cuidados que eles próprios não conseguiram


receber. Tampouco, as imagens sociais vêm difundindo uma relação
positiva entre pai e filho.

A participação do adolescente na vida dos filhos pode ser


estimulada com políticas públicas que promovam e incentivem esse
cuidado e com práticas cotidianas que possam agregar valor nesse
sentido.

O Brasil: compromissos e contradições nos cuidados com os


adolescentes e suas famílias

A adolescência e a infância são concebidas como períodos de especial


proteção no âmbito jurídico-legal brasileiro. O Estado brasileiro, a partir
da década de 1980, reafirmou o compromisso com a proteção, o estímulo
e cuidados como fatores relevantes ao desenvolvimento das crianças e
dos adolescentes desse país, seja por meio de assinaturas de
documentos internacionais ou da implementação de leis que
valorizam esse compromisso, a partir das perspectivas da
universalidade e da igualdade. Os documentos tratam da superação de
conceitos de infância, do qual o Código de Menores foi o principal ícone,
com a figura do “menor” que se opunha ao conceito de “criança”.

Entretanto, crianças e adolescentes das classes trabalhadoras não


vem efetivamente se constituindo como prioridade para as políticas
sociais do Brasil, por três motivos: pela pouca importância que a mão de
obra não qualificada tem no capitalismo atua,; por sua pouca
capacidade de consumo, e por uma ausência da ideologia da
proteção. Embora os pressupostos políticos apresentados firmem que
adolescentes que são pais e mães deveriam ser alvo duplo de proteção –
esses compromissos políticos Não vêem se traduzindo em políticas
sociais suficientes, em que o Estado se responsabilize pelo
oferecimento direto de serviços públicos às crianças ou proteção e amparo
das famílias para que essas possam se constituir em agentes de
cuidados. Pelo contrário, parte-se do princípio de que a família
constitui um lócus importante nos processos de cuidados, educação
e proteção de crianças, com seu “desejo espontâneo de cuidar e a
predisposição para proteger, educar e até fazer sacrifício”(Pereira,
2004,p.36). Nessa realidade, as famílias se constituem sua principal
possibilidade de reprodução.

Com a ausência de um Estado de Bem-Estar Social consolidado, associado


a falta de políticas públicas que expressem o apoio efetivo do
Estado, a proteção social passa a ser tratado como uma questão
individual ou mesmo como uma incapacidade da família em gerar um
padrão de cuidado, especialmente para as crianças. A condição de

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ausência de apoio público e a pobreza irão implicar, muitas vezes, na


necessidade da inserção precoce de seus filhos nas responsabilidades
próprias do universo do adulto.

O exercício das responsabilidades de adulto – associado a pouca


expectativa de ascensão social por meio da inserção profissional
qualificada, torna desejado o reconhecimento social por meio do exercício
da maternidade e da paternidade para os adolescentes. A repercussão da
ausência pública junto a esse segmento é clara: penaliza ainda
mais os adolescentes pobres e restringe as suas potencialidades de
desenvolvimento e as de sua prole.

Famílias apoiadas conseguem oferecer um cuidado mais satisfatório


e de maior qualidade às suas crianças e seus adolescentes.

PARTE III

FAMÍLIA, TRABALHO E DIREITOS SOCIAIS:


CENAS CONTEMPORÂNEAS

Texto 1: reflete sobre as possibilidades de, no Brasil, a


família cumprir sua funções no âmbito da reprodução social,
diante da realidade contemporânea, marcada pela crise do
trabalho assalariado e regressão do Estado no campo dos direitos
sociais.

Família, trabalho e Reprodução Social: Limites da


realidade brasileira

Monica Maria Torres de Alencar

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Introdução

A família vem sendo tida como referência central dos programas


sociais, fato que reforça seu papel como referência da política
social. Torna-se hegemônica a proposição de que, através de
programas com foco na família, potencializam-se ações efetivas de
combate à pobreza e miséria.

A revalorização da família como espaço de proteção social tem se dado a


partir de várias legislações e programas a ela destinados (LOAS, ECA,
Estatuto do Idoso, Programa de Saúde da Família, Programas de Renda
Mínima, Fome Zero).

Com a criação do SUAS, observa-se a perspectiva da “matricialidade


sócio-familiar” com destaque na PNAS, tornando a família locus
privilegiado das ações de enfrentamento da pobreza no país.

Há uma tendência mundial de criação de programas sociais para a família,


sendo que em alguns países observa-se um viés conservador,
representando uma reação às conquistas femininas. Exempol: medidas e
instrumentos que objetivam intervir no modelo de família para lograr
certo modelo ideal de família.

Quais os processos histórico- sociais que se situam na base desse


movimento no Brasil e que passaram a conferir uma nova centralidade da
família na proteção social e quais as reais possibilidades dela operar como
fator de proteção social?

Na realidade atual, aumenta a responsabilidade da família, reatualizando-


a nas relações sociais como espaço para reinventar a vida na
dimensão material e moral.Pensar família é remetê-la a processos
sociais contemporâneos, pois ela é uma realidade histórica.

Propõe-se, no texto tomá-la como:

Unidade social que realiza concretamente dentro de uma situação de


classe onde, do ponto de vista de seus membros, a organização e
ação da família está voltada para a busca das condições de
sobrevivencia e, de um ponto de vista mais amplo, sua ação está
voltada para a reprodução da força de trabalho em seus
aspectos materiais e ideológicos. (Fausto Neto, 1982, p. 10)

Família e reprodução social: abordagens históricas e teóricas No espaço


privado das famílias, as classes trabalhadoras viabilizam sua sobrevivência
cotidiana em um esforço coletivo para acionar estratégias para lidar
com as adversidades do “mundo do trabalho”. No Brasil, a reprodução da
força de trabalho depende “tanto do montante do salário real, ou seja,

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da quantidade e qualidade dos valores de uso adquiridos no


mercado, quanto dos bens e serviços domésticos e estatais de que
o trabalhador e sua família podem dispor em cada momento: (
Singer, 1979, p. 120).

A família como realidade histórica, cujas funções e papéis se


relacionam a processos sociais, econômicos e culturais, ocupa papel
central na reprodução social. Ela participa da reprodução da força de
trabalho do ponto de vista material e ideológico. Cumpre papéis de
socialização e educação das crianças e funciona como anteparo
assistencial a doenças, velhice e em circunstâncias adversas
relacionadas ao trabalho. A forma de inserção no mercado de trabalho
define as suas condições de vida e demarcam as suas fronteiras de
inserção social.

Com a generalização do trabalho assalariado, faz-se a distinção


entre a vida pública e a privada, separando os espaços: locais de
trabalho e da vida doméstica. Há um retraimento do trabalho no
universo doméstico. A vida doméstica se liberta do trabalho até então ali
realizado e a família perde seu lugar como unidade econômica, reforçando
a sua função educativa e assistencial.

A família é responsável por manter em condições compatíveis a força de


trabalho adulta para sua venda no mercado de trabalho e prepara os
futuros trabalhadores ao garantir a socialização e manutenção de crianças
e jovens. Garante que os custos sociais desse empreendimento não
sejam repassados à sociedade e ao Estado. É, pois, a esfera
privada responsável pela organização do processo de administração
do trabalho doméstico, operando tarefas na produção de valores de uso
na esfera privada. Esse conjunto de atividades se constitui em
trabalho não pago, ou seja, tem relações direta com a exploração
da força de trabalho e tende a ser naturalizado e tido como próprio do
universo feminino.

A família constitui-se ainda como unidade de renda e consumo, onde se


articulam as possibilidades de auferir renda, definem-se as formas de
trabalho e as possibilidades de consumo.

Para Fausto Neto (1982), a família como unidade de renda,


compartilha recursos econômicos gerados pelos esforços de trabalho
de todos. . O processo de geração de renda diz respeito ao
trabalho assalariado e pressupõe a relação formal empregatícia.

Nessa sociedade, são muitas as exigências sobre a família, sendo


que o nível dessas exigências depende do padrão de regulação social
em contextos históricos específicos. No Brasil, a importância da família na

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reprodução social tornou-se mais forte em razão das condições


econômicas, sociais, das determinações ideológicas e culturais.

Telles( 1992) diz que a família se constituiu, no Brasil, como valor moral e
medida de uma ordem legítima de vida, a partir da qual se tornou
possível articular valores, normas e identidades capazes de moldar
relações sociais. Ela se constitui em garantia ética, moral e
material. Na sociedade brasileira, caracterizada pela lógica da
destituição e privação de direitos, as necessidades sociais são
tratadas como dramas da vida privada, de forma despolitizada, quando na
verdade se trata de questões de ordem pública, afetas à sociedade e em
particular ao Estado.

Numa sociedade que não abre lugar para o indivíduo e o cidadão, na


qual, portanto, a insegurança, a violência e a incivilidade são a
regra da vida social, é no espaço privado da família que as
classes trabalhadoras constroem uma medida de plausabilidade
para suas vidas; é espaço que viabiliza a sobrevivência
cotidiana através do esforço coletivo de todos os seus
membros; é o espaço no qual se constroem os sinais de uma
respeitabilidade que neutraliza ao estigma da pobreza; é o espaço
ainda onde elaboram um sentido de dignidade que compensa
moralmente as adversidades impostas pelo salário baixo, pelo
trabalho instável, pelo desemprego periódico e pela moradia
precária. ( Telles, 1992, p. 137).

Essa autora lembra como a centralidade da família no Brasil, como núcleo


da vida social, deita raiz na hegemonia da tradição familista e
privativista da sociedade, onde as identidades são construídas com
base nas relações privadas. O familismo brasileiro tende a persistir
na contemporaneidade, como paradigma de moralidade ao refundar a
matriz patriarcal da família estruturada nas relações hierárquicas entre
homens e mulheres, pais e filhos na família nuclear moderna.

A atenção sobre as classes trabalhadoras e suas famílias situa-se


no marco de um projeto político-ideológico de consolidação do ethos
burguês fundado na valorização do trabalho e em um padrão de
moralidade que erigia a família como fundamento da nação.
Entendia-se que por meio dela o Estado chegava ao homem e este ao
Estado (Gomes, 1982) e, então, uma vida familiar ordenada e disciplinada
passou a ser o alvo de práticas sociais diversas (médicos, juristas,
filantropos, Estado brasileiro).

Desde o final do século XIX, as famílias das classes trabalhadoras


se tornaram objeto de práticas disciplinares e moralizantes que
pretendiam delimitar formas de sociabilidade, valores, hábitos e
condutas. Essas práticas se constituíam em estratégias que,
penetrando no cotidiano das classes trabalhadoras, objetivavam

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operar a sua domesticação, redefinindo seu modo de vida, tendo


como parâmetro o universo dos valores burgueses e urbanos.
Médicos higienistas, reformadores sociais, filantropos, instauravam
práticas disciplinares, interessados em novas mentalidades e novos
comportamentos. Essa intervenção nas classes populares tinham
como preocupação as condutas consideradas “antisociais”, a indisciplina
de qualquer tipo ( do trabalho, do lazer, do sexo).

Essas práticas realizaram-se em um período de transformações


sociais, econômicas, políticas e culturais, demarcando uma nova forma
de organização da produção e do trabalho.

O processo de constituição do capitalismo no Brasil foi cheio de


contradições, pois preservou elementos da ordem anterior. Assim, a
constituição da sociedade urbana e industrial, as práticas sociais e
políticas, foram se fazendo na tentativa de moldar a nação
emergente. No bojo deste processo se situaram os mecanismos de
normalização da vida social brasileira.

Nesse contexto tornou-se importante a figura do trabalhador dócil e


disciplinado para o trabalho na indústria emergente. Adquirem
relevos as estratégias de disciplinamento das classes populares no
trabalho, no lazer, no lar.

No bojo desse processo, a família nuclear burguesa foi considerada


instancia privilegiada de atuação para a reprodução de papéis e
funções sociais; tornou-se parâmetro social e político, modelo de
comportamento em oposição à decadência e degeneração moral
que, segundo os especialistas, caracterizavam as famílias das classes
populares. Intervém-se no modo de vida das classes trabalhadoras
urbanas para redefinição de hábitos e costumes e na tentativa de definir
novos valores e concepções de mundo. Adquiria forma uma moral
familiar calcada numa rígida atribuição de papéis: homem provedor
e chefe de família; mulhe:mãe, esposa e dona da casa. A
organização da produção material exigia a socialização do trabalhador e
de sua família por meio da internalização de um modo de vida fundado
numa nova ética das relações afetivas, do trabalho, do lazer.

Por meio de padrões de controle político e social, tentava-se


constituir no Brasil a família moderna de acordo com as modalidades
do modo de vida burguês.

Colbari (1995) fala do processo de propagação ideológica do familiarismo


na passagem do século, pelo pensamento católico e positivista para
primar a moral familiar. Associado, articulava-se o discurso de
valorização do trabalho identificado aos ideais de “ordem”, “progresso,”
“civilidade”, e “moralidade”, em oposição ao “ócio”, “à marginalidade”, e

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ao “vício”. A família seria o fundamento da moral e da ordem social, na


qual a figura do pai é o elemento principal na preservação do
equilíbrio. No Brasil, o familiarismo e a valorização do trabalho
forneceram insumos para a articulação de uma política de
normatização e disciplinamento das classes trabalhadoras urbanas,
cujo conteúdo se expressava na disciplinarização do espaço urbano, no
controle das unidades habitacionais, na regulação dos corpos e dos afetos.

A família tornou-se fundamental para a interiorização de um modo


de vida que requeria valores e atitudes afinados com a
racionalidade da ordem social emergente. A cruzada moralizadora
sobre as famílias das camadas populares pretendia a transformação
de uma massa formada por “malandros”, “bêbados”, e “criminosos”, em
trabalhadores cônscios do dever e da disciplina do trabalho.

Essas práticas multiplicavam-se à medida que crescia a consciência


do fundamento da família na construção da ordem social emergente.
A família das classes trabalhadoras, uma vez atestada a sua
incapacidade no desempenho do papel que lhe era conferido, tornou-se
passível de intervenção.

A ação do Estado tornou-se mais representativa à medida que a


institucionalização da assistencia social acionou uma estrutura material
voltada para o atendimento às classes trabalhadoras urbanas.
Destacam-se as políticas assistenciais para os segmentos subalternos
associadas à intervenção de cunho doutrinário. A política voltada
para a família foi influenciada, durante o Estado Novo, pelos
princípios da eugenia da família sadia e regular, de clara inspiração nazi-
fascista (Neder, 1994).

Desse período histórico marca, no Brasil, a consolidação do


capitalismo de base urbano – industrial, a partir de um projeto
econômico e político-ideológico que reformulou a ação do Estado e da
economia do país, estabelecendo novas formas de relação entre o Estado
e as classes sociais emergentes. O estado brasileiro articulou medidas
de legislação trabalhista e social, configurando a regulamentação do
mercado de trabalho, passando a assumir os processos relativos à
reprodução da força de trabalho. O reconhecimento político da “questão
social” foi sendo explicitado, dava conteúdo e forma a uma estrutura
jurídica e institucional responsável por regulamentar e gerir os
conflitos e as relações de trabalho. Institucionalizou-se o conflito
capital/trabalho, com o Estado passando a ser o grande mediador.

A centralidade da família na sociedade brasileira se tece numa


sociabilidade fundada na precariedade da vida social. As economias
periféricas, como é o caso brasileiro, reproduzem as contradições
econômicas e sociais inerentes ao capitalismo. A sociedade brasileira

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é subalterna e dependente economicamente dos países hegemônicos


do capitalismo central. Internamente, reproduz processos sociais
excludentes, expressos na concentração de renda, no excedente de mão
de obra, nas relações de trabalho informais.

No Brasil, os direitos sociais e trabalhistas não se generalizaram ao


conjunto dos trabalhadores. Foi o critério de inserção no mercado de
trabalho que operou como mecanismo básico de definição de direitos
sociais (cidadania regulada), predominando um sistema de proteção
social de caráter contributivo e compulsório. O Estado não propiciou
as condições de reprodução social da totalidade da força de trabalho
e não promoveu o Welfare State liberal democrático.

Em vês do Estado de Bem- Estar, o que temos é uma


combinação permanente e alternada de paternalismo e
repressão. O que se bem não impede que toda a população
tenda a estar imersa no mercado capitalista, o faça como
consumidora marginal dos seus produtos materiais e culturais,
incluída aí a aspiração ao bem-estar e ao conforto, próprios
de um capitalismo desenvolvido. Mas nunca na condição de
população trabalhadora, com todas as suas implicações
socioeconômicas, nem na condição de cidadã, com todas as
suas implicações político-ideológicas ( Fiori, 1995, p. 42)

Nas condições acima descritas, a mobilização da família tornou-se


imprescindível para a sobrevivencia. Como unidade de relações sociais, de
experiências afetivas, de reciprocidade e apoio mútuo entre seus
membros, ela assume obrigações afetas à reprodução social Na
sociedade brasileira, essas relações internas tendem a ser
naturalizadas e potencializadas, podendo levar ao aprisionamento da
família em torno dessas funções. As limitações ao pleno
desenvolvimento da vida social de seus membros, principalmente das
mulheres, tornam-se permanentes. As aspirações individuais são
constrangidas pelo cotidiano da vida doméstica, aprisionando as
potencialidades individuais.

A realidade brasileira, a crise do trabalho e os limites da família

O Estado como responsável pela proteção social, passou a ser


definido mais como gestor do que interventor, operando-se o
esvaziamento da política social como direito social e aumentando a
possibilidade de privatização das responsabilidades públicas e a
conseqüente quebra da garantia de direitos. Tornou-se hegemônica a
perspectiva ideológica e política que propõe a divisão das
responsabilidades entre o Estado e sociedade na oferta da proteção
social. Foi neste contexto que houve a ”redescoberta da família como

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importante substituto privado do Estado na provisão de bens e serviços


sociais básicos, bem como os perigos e falácias dessa redescoberta”
(Pereira, 2004, p. 25).

A família tem sido apontada como um elemento fundamental de


proteção social de seus membro, assumindo importância como suporte
material e afetivo. Esse reconhecimento adensa as propostas de
programas sociais tendo-a por centralidade e referência.

Para Pereira (2001), o governo brasileiro, em momentos históricos


distintos, sempre utilizou da família na provisão do bem-estar dos seus
membros e os imperativos neoliberais recentes tornam mais forte
essa perspectiva, colocando a família numa relação de coresponsabilidade
com o Estado no campo da proteção social.

Vem sendo cada vez mais difundida a idéia da responsabilidade


familiar no sucesso ou fracasso dos seus membros, o que repõe a
idéia do papel quase natural da família como referência na provisão
de bens e serviços. Este proposição tem como cenário o aumento
da pobreza a partir do aumento do desemprego e da diminuição
dos recursos do Estado e da desmontagem do sistema de proteção
e garantia vinculada ao emprego.

Pergunta-se em que medida a família tem condições de suprir as


funções em relação à reprodução social, em si considerando a
realidade brasileira atual, marcada pela crise no trabalho assalariado e
pela regressão do Estado no campo dos direitos sociais? Quais os
limites das condições de vida e de trabalho das classes trabalhadoras
urbanas pobres no Brasil de hoje que fragilizam as famílias ao fazer face à
precariedade do trabalho, do emprego, aos baixos salários?

São muitas as limitações para a família cumprir a função de


reprodução social. Em um contexto que minimiza a responsabilidade
do Estado neste sentido, ou seja: ao mesmo tempo em que se
aponta a centralidade da família há o esvaziamento de importantes
políticas setoriais ( saúde, educação) e tem-se o predomínio de políticas
assistenciais residuais e focalizadas nos setores mais pobres.

Acrescenta-se que tem predominado no país a ausência de políticas


de emprego em um contexto de desconstrução do trabalho
assalariado e dos direitos a ele associados. Essa centralidade traz,
contraditoriamente, a possibilidade de tornar a família cativa no conjunto
de responsabilidades que são privatizadas.

Além disso, ter a família como referência central no âmbito da proteção


social pode ser estratégico em um contexto histórico regressivo, com ela
assumindo papel decisivo nos esquemas de proteção social, sendo

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importante como fonte de suporte material e afetivo. Essa


centralidade não pode significar transferência de responsabilidades e
nem a possibilidade de despolitização da vida social.

Desse modo, é importante considerar esses aspectos no âmbito dos


programas sociais que têm a centralidade da família como fator de
proteção social, desenvolvendo ações em um contexto de contenção
de investimentos do Estado em relação às políticas sociais e de
crise do padrão de sociabilidade fundado no trabalho assalariado.

Essa centralidade não pode significar a penalização da família,


devolvendo-lhe o peso de arcar com a esfera da produção social.
Torna-se então questão central, atentar para as transformações em curso
na sociedade brasileira, considerando o cenário no qual se movem as
famílias das classes trabalhadoras, conhecendo-se assim os seus limites
quanto às funções historicamente construídas.

Em uma sociedade fundada no trabalho assalariado e na família


como eixos organizadores da vida social, o processo de desigualdade
social, ancorado na precarização do trabalho e no deslocamento do
trabalho protegido assalariado tem uma repercussão ruim para a família e
seus membros.

Em um cenário de desemprego, emprego precário, baixos salários


sem cobertura social, atingindo a cidadania, o cuidado com a família
por meio as políticas sociais sob responsabilidade do Estado continua
sendo a única saída.

É pertinente considerar, nos programas sociais, um profundo


conhecimento da realidade de vida e trabalho das famílias e de
suas necessidades sociais. É preciso saber de que família se está
falando, recuperando suas necessidades sociais numa dimensão de
classe para se abrir condições para a efetivação dos direitos sociais
por meio da politização de dimensões da vida social, especialmente
quanto à reprodução social das famílias das classes trabalhadoras pobres.
A família, no Brasil, sempre cumpriu papel de amortecedora do
impacto das crises econômicas. Hoje, porém, ela tem dificuldades
nessa direção em função das condições de vida e de trabalho das classes
trabalhadoras que lhe impõem limitações materiais e morais neste
sentido. As mudanças no “mundo do trabalho” fragilizam estratégias de
sobrevivência das classes trabalhadoras urbanas pobres. A força de
trabalho feminina aparece como um dos poucos recursos disponíveis para
a sobrevivencia de muitas famílias.

A referência da família como elemento importante de proteção


social pressupõe a institucionalidade hegemônica da família nuclear,
pautada na chefia masculina, pressupondo sólida inserção no mercado de

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trabalho e salários condizentes para prover as necessidades de seus


membros. Com a crise do trabalho e do emprego assalariado, a
capacidade do homem ,atuar como provedor diminuiu. A “ética do
provedor” como valor representativo para as classes trabalhadoras
pobres não encontra correspondência na realidade social.

No Brasil, as últimas décadas foram influenciadas por um contexto de


recessão econômica, com ajuste estrutural da economia aliada à
mudança do papel do Estado. Este contexto tendeu a produzir
problemas estruturais quanto à absorção da força de trabalho,
baixos salários e informalidade. A inserção subalterna e passiva do país
na economia mundial trouxe agravamento à questão social, com aumento
do desemprego e precarização do trabalho assalariado com crescente
“desassalariamento” de parcela da População Economicamente Ativa,
com conseqüente desestruturação do mercado de trabalho.

Está em curso um processo de deslegitimação ideológica do


trabalho assalariado e dos valores a ele associados, conduzindo à
fragmentação social, ao esvaziamento do poder sindical e
organizativo dos trabalhadores, a uma lógica societária que pretende se
desvencilhar do aparato político e institucional da chamada sociedade
salarial. Funda-se uma sociabilidade fundada nos interesses
individuais em detrimento dos interesses coletivos, nega o “direito ao
trabalho” e as conquistas do trabalho assalariado com contratos e
proteção social.

Está sob ataque uma “sociedade na qual a maioria dos sujeitos sociais
tem sua inserção social relacionada ao lugar que ocupam no salariado,
ou seja, não só na renda, mas também seu status, sua proteção, sua
identidade”(Castel, 1998, p. 169).

A flexibilização das relações de trabalho se relaciona às exigências de


racionalização produtiva, sendo também expressão das mudanças no
sentido do redesenho do Estado e seu papel na economia e na
sociedade (abandono do papel de promotor e articulador de
desenvolvimento social e econômico e na regulação social). No
discurso oficial, porém, esta flexibilização aparece como “modernização”
da sociedade e da economia brasileira, da necessidade de uma
inserção competitiva. Entretanto, representa a interrupção de um
processo de regulação social, sendo expressão do processo de
desregulamentação econômica e social , sob a lógica do mercado.

Do ponto de vista das relações entre Estado e Sociedade, passou-


se a questionar o papel do Estado brasileiro no processo de
desenvolvimento econômico e social, preconizando seu enxugamento por
meio de reformas estruturais, dirigindo o país para as privatizações,

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desregulamentação e flexibilização das relações de trabalho, supressão


dos direitos sociais e trabalhistas.

Para Castel, foi de uma situação de trabalho sem proteção que emergiu na
sociedade moderna o novo status do trabalho fundado em u tipo de
proteção e de regulação, tornando-se uma forte referencia à medida
que instaura a possibilidade de controlar o futuro porque o presente é
estável.

A sociedade salarial foi tributária do crescimento econômico e do


desenvolvimento do Estado social, via a instauração da seguridade social
que proporcionava a garantia de uma proteção mais generalizada, a
manutenção dos grandes equilíbrios e condução da economia na
busca de um compromisso entre os diferentes parceiros.

No Brasil, ainda que não se tenha experimentado uma sociedade


salarial, nem por isso a norma do emprego assalariado deixou de ser
uma referência estruturante na dinâmica social e política brasileira.

Década de 1980: retorna a perspectiva da cidadania salarial como pauta


de discussão, num contexto de pressão democrática, de
empobrecimento dos trabalhadores e suas famílias, de avanço da
universalização da proteção social, da redução das desigualdades
internas aos sistemas e da maior efetividade social do gasto.
Priorizava-se a reforma das estruturas institucionais pela
descentralização, transparência dos processos decisórios e participação
da sociedade civil. A Constituição de 1988, ao definir o sistema de
seguridade social ( saúde, assistencia social e previdência social)
estabelece a cidadania como direito universal, independentemente do
vínculo com o mercado formal de trabalho.

Os efeitos da crise econômica não deram condições de se viabilizar


ampla reforma institucional nos sistemas de proteção social. O
contexto neoliberal, com a redução dos gastos públicos, conduziu à
reorientação dos gastos sociais, subordinando-os aos objetivos
macroeconômicos e do privilégio aos programas focalizados, dos fundos
sociais de emergência e programas sociais compensatórios voltados para
atendimento dos grupos pobres e vulneráveis.

Amplia-se programas sociais de corte assistencial, mas aprofunda-se as


tendências de privatização nas áreas de saúde, educação e previdência
que, hoje, convivem com as novas formas de gestão pública das
políticas sociais que, através da descentralização e municipalização
das ações, têm conduzido ao desmonte dos programas, tornando mais
grave o quadro de miséria e pobreza do país.

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Década de 1990: hegemonia da negação do trabalho assalariado,


forte ataque aos parcos avanços assinalados na Constituição Federal
de 1988, com a ideologia neoliberal incidindo sobre os direitos
sociais e sobre o padrão de regulação das relações de trabalho. A
limitação da família em operar como fator de proteção social reside
nas mudanças na dinâmica e organização familiar no Brasil,
decorrentes dos modos de vida, dos costumes e valores, expressos nas
novas formas de convivência e padrões de conjugalidade. Rupturas
e recomposições dos relacionamentos, florescimento de posturas
individualistas podem redesenhar a interação entre os membros da
família, fragilizando expectativas de apoio e de reciprocidade. As
possibilidades de se contar com a família, predominantemente, tornam-
se limitadas à medida que se passa a ter dificuldades em acionar o
provimento e o cuidado informal da família.

O caráter histórico da família reproduz novas condições para o


estabelecimento das relações entre seus membros no que se refere à
divisão do trabalho doméstico, às relações de gênero e entre gerações,
nos mecanismos de ajuda mútua e solidariedade em face das
adversidades.

Principais mudanças na família: diminuição do seu tamanho, diversificação


dos arranjos domésticos que não passam, necessariamente, pelo
modelo tradicional, com a mulher assumindo papel central no
sustento familiar; dissolução de laços familiares e a possibilidade de
recasamentos; opção tardia para o casamento ante a possibilidade de
investimento profissional; adiamento da maternidade/paternidade;
famílias monoparentais; casais sem filhos; casais do mesmo sexo.

Pensar a família como central nos esquemas de proteção social é


referir-se ao papel desempenhado pelas mulheres na esfera
doméstica, para as quais sempre coube o cuidado para com as
crianças, idosos, doentes, ainda que estejam envolvidas em atividades
para prover o sustento da família.

As mudanças nos padrões de relacionamento familiar poderiam gerir


transformações nos papéis socialmente definidos para homens e
mulheres, mas as práticas apontam para traços de permanências no
padrão tradicional, existindo o desequilíbrio na distribuição do
trabalho doméstico e na dinâmica da organização doméstica. Há a
persistência de conflitos e tensões em torno da divisão sexual do trabalho
doméstico e à forma de conciliação das mulheres entre a vida familiar e o
trabalho. A situação se agrava no caso de mulheres com cônjuge, filhos,
envolvida com cuidados dos seus membros e decisões na vida familiar.

Imputar às famílias a responsabilidade central quanto ao cuidado e à


proteção dos seus membros pode significar o retrocesso de conquistas na

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luta pela igualdade dos sexos. A entrada da mulher no mercado de


trabalho ainda precisa de uma redefinição dos padrões de hierarquia e
sociabilidade, principalmente quanto à readequação do desempenho
das tarefas domésticas e cuidado com os filhos, idosos e
dependentes .

Não houve mudanças na divisão sexual do trabalho doméstico e


coloca-se o desafio, no âmbito das políticas sociais, à articulação de
programas sociais, com recorte de gênero e voltados para o mercado de
trabalho, de forma a atenuar a condição feminina marcada pela
subalternidade na família e no trabalho.

O que vem se delineando no país, desde a década de 1990 e o


“enterro”dos pressupostos do Estado nacional desenvolvimentista,
substituindo-o por uma estratégia liberal de desenvolvimento, que
questiona as funções reguladoras do Estado e tem forte impacto no
nível do emprego. A estratégia econômica tem sido privilegiar a
esfera financeira ante as atividades produtivas e comerciais por meio
das políticas de juros altos e câmbio sobrevalorizado.

Em nome da crise fiscal do Estado, passou-se à crítica dos seus padrões


de intervenção, colocando-se em xeque o seu papel central na
redistribuição dos ganhos de produtividade do trabalho, na fixação e
garantia de mecanismos institucionais e políticos que regulam a
economia. Assim, operou-se o esvaziamento do Estado, admitindo-o
forte em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos, no
controle do dinheiro, mas parco nos gastos sociais. Ele passa a ter um
papel mais de gestor do que de interventor, configurando uma nova forma
de intervenção sobre a questão social, reduzindo a sua ação no terreno
do bem estar social, privatizando o financiamento e a produção de
serviços, cortando gastos sociais com a eliminação de programas e
benefícios, canalizando gastos para os grupos carentes e
descentralizando no âmbito local.

Dissemina-se uma sociabilidade possível no contexto da atual crise


do capital que trouxe ampla ofensiva deste na produção e contra o
trabalho.

A sociedade e o Estado desobrigam-se da responsabilidade da


incorporação dos trabalhadores no processo de trabalho e pela
reprodução da força de trabalho, cabendo ao trabalhador
desenvolver a autoresponsabilidade com sua inserção no trabalho e as
necessidades para reproduzir-se como força de trabalho.

Esse processo tenta alterar a sociabilidade construída em torno do


trabalho assalariado esgarçando as relações sociais construídas no seu
entorno.

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O trabalho assalariado já foi a principal forma assumida pelo


trabalho na sociedade capitalista e o assalariamento se converteu
em princípio fundamental, tornando-se a porte de entrada e o
acesso à cidadania. Todavia, na sociedade contemporânea o direito ao
trabalho é negado.

Texto 2 –reflexões sobre ao implementação do Programa


BoSA Família (PBF) em Niterói – RJ, fundamentada em
pesquisa sobre a questão.

Retratos de Famílias: Perfil e Trajetórias dos Benefícios


do Programa Bolsa Família

Rosimary Gonçalves de Souza


Giselle Lavinas Monnerat

Introdução

Artigo discute parte dos resultados da pesquisa “Programa Bolsa


Família: Percepções e Trajetórias de inserção das famílias
beneficiárias”, solicitada pela Coordenação do Núcleo de Benefício e
Renda de Cidadania (NBRC) da Secretaria de Assistencia Social de Niterói
– RJ, realizada em 2008 pela equipe de professores e pesquisadores da
Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), para qualificar a implementação do PBF no
Município, oferecendo o conhecimento do perfil e das necessidades das
famílias beneficiadas.

Procurou-se traçar o perfil social, econômico e demográfico das


famílias atendidas, buscando compreender suas perspectivas de
inserção social e profissional, contribuindo para o incremento da
qualificação da gestão local do PBF.

Niterói é um município que conta com bom desempenho em termos de


indicadores sociais. Implantou o PBF em 2003. Após seis anos, a pesquisa
visa identificar a repercussão do Programa sobre as famílias beneficiárias,
as principais dificuldades em relação ao acesso ao circuito de
cidadania e aos serviços sociais e mercado de trabalho.

Bolsa Família: objetivo do programa e focalização na família

O programa Bolsa Família, criado pelo governo federal em 2003, tem por
objetivo instituir um programa nacional de transferência de renda as
famílias pobres, pautado na gestão descentralizada e intersetorial.

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Conforme a tendência dos programas de transferência de renda


implantados a partir de 1990, o PBF exige das famílias o cumprimento
de condicionalidades que se traduzem na obrigatoriedade de inserção de
crianças, adolescentes, gestantes e nutrizes em determinados programas
de saúde e de crianças e adolescentes na escola. O não
cumprimento de tais exigências há o desligamento do Programa. De
acordo com os objetivos oficiais do PBF, a exigência de contrapartida seria
uma estratégia para associar o benefício monetário a ações que possam
afetar as condições estruturais da pobreza .

Há um reconhecimento pelo governo, formulador e coordenador do


Programa no âmbito nacional, através do Ministério de
Desenvolvimento Social (MDS), de que só a transferência monetária
não é capaz de tirar as famílias beneficiárias da situação de
vulnerabilidade social em que se encontram. Considera o caráter
multidimensional e estrutural da pobreza no Brasil, cujas raízes e
manifestações vão além da insufuciencia de renda , englobando outras
dimensões de vulnerabilidade da população: saúde, educação,
saneamento e acesso a bens e serviços.

O foco prioritário do PBF é a família em situação de pobreza ou


extrema pobreza. A definição desse perfil é feita pelo
estabelecimento de uma linha de pobreza baseada na renda familiar
per capita, cujo valor de referência vem sofrendo alterações com o passar
do tempo. A população –alvo do programa se divide em dois grupos:
famílias pobres e extremamente pobres, cuja transferência de renda
se dá baseada em valores monetários diversos, que também variaram
ao longo do processo de implantação do Programa.

Deste modo, os critérios usados na pesquisa foram os vigentes em


2008, cujos valores, a partir de então, variam de acordo com a
renda mensal por pessoa da família e o número de crianças e
adolescentes até 17 anos. Nesse período, o Programa passa a ter três
tipos de benefícios: o Básico, o Variável e o Variável Vinculado ao
Adolescente.
O Benefício Básico: passou de R$50,00 para R$ 62,00 e é pago às
famílias consideradas extremamente pobres, ou seja: aquelas com
renda mensal de até R$60,00 por pessoa (pago mesmo que as
família
mesmo que elas não tenham crianças, adolescentes ou jovens).
O Benefício Variável: (R$20,00) pago às famílias pobres, com
renda mensal de até R$120,00 por pessoa, desde que tenham criança
e adolescentes de até 15 anos. Cada família pode receber até três
benefícios variáveis (até R$ 60,00).
O Benefício Variável Vinculado ao Adolescente: valor R% 30,00, é
pago a todas as famílias do PBF que tenham adolescentes de 16 e 17

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anos freqüentando escola. Cada família pode receber até dois


benefícios. (R$ 60,00).

A formulação de programas sociais com foco na família e não só no


indivíduo faz parte do debate sobre a reforma das políticas sociais
desenvolvida desde 1980, mudando a perspectiva antes adotada que
tinha nas políticas uma atuação disciplinadora (Ex. programas de
controle de natalidade da década de 70). Hoje, considera-se a família
como sujeito relevante no processo de proteção social.

Entretanto, tratando-se de famílias pobres, a literatura a respeito é


unânime em afirmar que elas, por si só, não dispõem do básico para
promover a inserção social e o desenvolvimento pessoal de seus
membros, demandando a ação do Estado para permitir-lhes o acesso a
patamares básicos de cidadania.

Marsiglia ( 2001) , estudiosa do tema , salienta a relevância de


estudo afins para a definição de instrumentos de trabalho mais
eficazes por parte de autoridades e técnicos que pretendem favorecer o
acesso efetivo dessas famílias a serviços básicos no conjunto das políticas
sociais.

A abordagem focada na família exige um esforço teórico/ prático de


concebê-la como paar de uma complexa rede de relações que
articulam diferentes estratégias de sobrevivencia nas esferas
econômicas, social, política e cultural.

Essa tendência de priorizar a família como unidade de intervenção


da política social se amplia na formulação do PBF, em 2003, e na
definição do SUAS em 2004. Os idealizadores do PBF tomaram um
conceito mais amplo de família rompendo com a idéia tradicional de
núcleo familiar: “unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros
indivíduos que com ela tenham laços de parentesco ou afinidade,
que forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e que se
mantém pela contribuição de seus membros” (art, 2 da lei de criação do
PBF, Brasil, 2004).

O Bolsa Famíli amplia seu escopo de atendimento ao permitir o acesso de


famílias sem filhos, gestantes e nutrizes, diferentemente dos
programas de transferência de renda anteriores. Entretanto, ainda
resguarda uma perspectiva restritiva, pois só as famílias sem filhos
em situação de “extrema pobreza”são atendidas.

Draibe (1998) ao tratar dos programas de transferência de renda


implementados nos anos 1990, ressalta que o foco na família foi a forma
encontrada pelos formuladores para aingir seu principal público – alvo –

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crianças e adolescentes - e incluí-los em outras políticas, sobretudo


educação, tornando pais e responsáveis meros intermediários nesse
processo. Outro aspecto obaervado pela autora é que a
contrapartida das famílias ( freqüência escolar, vacinação ações
relativas à saúde da mulher) só são presvistas para os grupos já
tradicionalmente priorizados na política social (gestantes, nutrizes,
crianças e adolescentes).

A atual priorização da família na formulação do PBF só representará


avanço nos programas sociais se forem desenvolvidas ações de
acompanhamento social das famílias beneficiárias, mas sem que
este seja confundido com controle e fiscalização das contrapartidas
por dizer respeito a um processo abrangente de intervenção
profissional, com vistas à garantia de direitos traduzida na
inserção dos beneficiários em ampla rede de proteção social.

A pesquisa: metodologia e características do universo


pesquisado

Adotou-se as metodologias quantitativas e qualitativa. Foram


realizadas entrevistas semiestruturadas com 358 titulares do PPBF e
pesquisa no Cadastro Único de Programas Sociais (onde se
registram diversos dados das famílias pobres e especialmente as
vinculadas ao Programa).

Fez-se um recorte especial na região norte do município de Niterói,


composta por 12 bairros, pelo fato do local concentrar quase metade
do número de famílias beneficiárias do Programa. Outra opção
metodológica foi a definição de um tempo mínimo de seis meses de
inserção no PBF. Levou-se também em conta o padrão de focalização do
programa que classifica , com base na renda per capita, as famílias em
pobre e extremamente pobres para se captar os variados graus de
vulnerabilidade social dos beneficiários do Bolsa Família.

A metodologia abordou os seguintes eixos de análise: Tipo de


chefia familiar; tipo de família; grau de escolaridade dos titulares;
número de filhos e outros dependentes; faixa etária, grau de
escolaridade e relação idade/série dos dependentes; condições de
empregabilidade dos titulares; inserção na rede de proteção social
existente no município; conhecimento e percepção sobre o PBF; tipo de
consumo com os recursos do programa; cumprimento ou não das
condicionalidades e dificuldades encontradas para tanto; diferentes
expectativas e necessidades sociais das famílias beneficiárias.

Perfil dos titulares e suas famílias

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Sexo: Mulheres 92,2% dos beneficiários e homens 2,8%: comprova


o objetivo de ter a mulher como titular preferencial do programa,
ancorando-se na concepção de que elas teriam maiores condições de
maximizar o benefício recebido, além de aumentar a chance de
cumprimento da agenda de compromissos. Soma-se o fato de um
percentual significativo de famílias brasileiras ser monoparental
feminina.

Idade

-87,16% dos titulares tem entre 18 e 50 anos


-25, % tem entre 18 e 30 anos
-38,8% tem entre 30 e 40 anos
-22,6% está entre 41 a 50 anos
-12,6% está acima de 51 anos

Estado Civil: casados ou amasiados 43,3%; solteiros (as) 39,1%; viúvos


4,2% e divorciados 13,1%.

Linha de Pobreza: 75,4% extremamente pobres; 24,6% pobres.

Tipos de famílias: 56,42% monoparentais ( em geral com chefia


feminina) e encontradas na linha de pobreza dos extremamente
pobres; → dado demarca um conjunto de famílias em situação de extrema
vulnerabilidade marcada pela insuficiência de renda e a presença de
apenas um dos pais no contexto familiar. 43,57% das famílias são
biparentais.

Número de pessoas no domicílio: 56,43% tem entre três e quatro


pessoas.

Padrão de escolaridade: 32,68% tem de 5 a 8 série fundamental


incompleta; 15,64 % ensino médio completo; 15,36% tem 4 série
do ensino fundamental ou ensino médio incompleto; os outros índices se
dividem entre analfabetos (1,68%); alfabetizado (1,40%), superior
incompleto ( 1,12%); superior completo (1,2%).

Resultado da pesquisa aponta os titulares com baixa escolaridade:


Considerando que 97,93% dos titulares são mulheres, pode-se inferir
que questões de atividades relacionadas aos cuidados com os filhos
e a casa constituem alguns dos fatores que interferem
negativamente no processo de escolariza’’cão das totulares do PBF.
Panorama agravado pelas dificuldades de acesso a creches e escolas em
tempo integralefertadas pelo poder público.

A perspectiva de atuar sobre as deficiências educacionais dos titulares,


além de representar importante intervenção sobre as iniqüidades sociais

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prevalentes no município, inscreve-se na inserção produtiva das famílias


beneficiadas. O sucesso do programa depende das formas como os
governos locais vão dar a atenção à idéia de articular a transferência
direta de renda com ações estruturantes vistas como ponto de partida
para romper com o círculo vicioso da pobreza.

Do ponto de vista da formulação de políticas públicas, o objetivo


de aumentar a escolaridade dos titulares do PBF e da família deve
comparecer como prioridade na agenda do poder público local.

Situação ocupacional e condições de inserção no mercado de


trabalho

Baixo percentual de beneficiados inseridos no mercado formal de trabalho:


77,99% dos titulares não tem seguridade social, estando desprotegidos
em situações de doença, invalidez e morte, aspectos da proteção
social tradicionalmente incorporados à previdência social →dado revela o
grau de precariedade das condições de trabalho e a carência de empregos
para esse grupo. 22,63% estão desempregados e 13,67% não trabalham.
Dentre os 77,99% sem previdência social, 5,92% são assalariados sem
carteira de trabalho; 6,70% são autônomos e 28,77% fazem bico. Só
10,% tem seguridade social (assalariados com carteira assinada;
autônomo com previdência social e aposentado/pensionista)

Com relação aos companheiros (as) dos titulares: entre 148


pessoas 38,5% são segurados da previdência social (dado amplia o
percentual de famílias com seguridade social para 38,5%).. Outras
questões se colocam: os homens, em geral, são mais formalizados no
mercado de trabalho do que as mulheres; por serem famílias beneficiárias
do PBF mostra que a renda do trabalho formal é baixa.

A dificuldade de inserção no mercado de trabalho é o dado que


mais chama a atenção na pesquisa e revela que o PBF está bem
focalizado.

Renda familiar: - 10,06% dos titulares entrevistados declararam


renda familiar igual a zero.; 64,80% declararam renda de até um
salário-mínimo; 20,67% percebem entre 01 e 02 salários mínimos; 3,35%
estão na faixa de 02 a 03 salários-mínimos; 0,56 recebem acima de três
salários-mínimos.

Perspectivas de futuro apontadas pelos beneficiários

Pergunta: o que beneficiário acha que deveria ser feito para


melhorar a renda da sua família? Dentre 208 entrevistados, 58,1%

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mencionaram o trabalho como meio de melhorar a condição de renda


própria e de sua família; 57 beneficiários responderam que seria
conseguir um emprego com carteira assinada para si ou algum
membro da família; 67 pessoas fizeram menção a um trabalho fixo;
84 disseram que seria um trabalho para si, para membro da família ou
conseguir um trabalho melhor; uma pessoa disse que a solução seria fazer
biscates.

Diante desses dados pontua-se: o trabalho com carteira assinada ou


trabalho fixo são vistos como forma de sair da condição de
vulnerabilidade social; no imaginário desse segmento social, o
caminho para uma condição de vida adequada passa pelo viés do
trabalho e não peloa condição de beneficiários de programa de
transferência de renda.; a visão de alguns de que a melhoria na
escolaridade tende a permitir uma inserção mais consistente no mundo
do trabalho → a maioria dos entrevistados valorizam o trabalho como
possibilidade de superação da condição de pobreza.

Somente 8,3% dos entrevistados disseram não saber como fazer para
aumentar a renda da familiar → dado evidencia que há entre os
beneficiários do PBF pessoas que não antevêem perspectiva de futuro em
condições de vida mais satisfatória.

Considerações Finais

Pode-se identificar baixa expectativa de melhoria futura das


condições de vida entre a população pesquisada→ fato contraria
objetivo traçado pelo PBF que é o de, a partir da inserção da
família no Programa por um tempo, ela possa ter condições de
construir alternativas para sair da condição de pobreza.

Outro dado apurado é a concepção dos beneficiários de que a saída para


sua condição de pobreza está na esfera do trabalho. Concepção
contrasta com o perfil atual do mundo do trabalho, onde para uma
inserção consistente exige-se do trabalhador tempo de formação e
treinamento, além de investimento na escolaridade formal, contexto cujos
cursos profissionalizantes estão em xeque neste sentido.

A necessidade de intervenção sobre a contradição entre a saída da


pobreza x baixa escolarização e requisições do mercado de trabalho
atual foi incorporada ao desenho do PBF por meio da exigência da
condicionalidade da educação. No Brasil e em outros países da
America Latina, a discussão teórica e política acerca dos programas de
transferência condicionada de renda teve início com a proposição de
combinar o benefício monetário com a exigência de freqüência

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escolar como estratégia de romper o ciclo de reprodução geracional da


pobreza.

Finalmente, por trás de um único problema se esconde uma diversidade


empírica do mesmo fenômeno e é essa diversidade que os planejadores e
executores dos programas devem estar atentos, sob pena de
comprometer a eficácia da ação social pública.

Texto 3 – Problematiza as diversas configurações familiares


na contemporaneidade, tendo como enfoque as famílias
homoafetivas.

Família e Homossexualidade: Uma reflexão acerca das


configurações da família na contemporaneidade e os
Direitos Sociais

Sabrina Silva Zacaron

Introdução

Objetivo: analisar a temática referente às diversas configurações


familiares na atualidade, tendo por enfoque as famílias homoafetivas,
bem como avaliar os reflexos jurídicos-legais dessa questão, ou seja,
compreender como a legislação e os legisladores vem trabalhado a
questão da relação conjugal entre homossexuais no contexto brasileiro.

Família: grupo de pessoas portadoras de particularidades que se


relacionam cotidianamente, traçam complexa rede de relações e
emoções que não são necessariamente homogêneas e interativas,
podendo assumir caráter conflitivo ou mesmo fugir do modelo tradicional
de família nuclear.

É preciso desconstruir o entendimento da família como instituição natural,


relacionada só à procriação, pois ela é “uma construção histórica
mutável”(Bruschini, 1993,p.50), podendo ter configurações diversas em
relação a outras sociedades ou diferentes momentos históricos. Apesar da
cultura da família nuclear ser ainda muito forte, não se pode
desconsiderar as novas representações familiares: famílias
monoparentais; com idosos sendo seu arrimo; constituídas após
outros casamentos; uniões estáveis hetero e homoafetivas.

Com relação à famílias homoafetivas, no Brasil não há legislação


específica que a reconheça e a proteja, não obstante a existência de
alguns projetos de lei que implicitamente tratam algumas das
questões relacionadas aos direitos dos homossexuais. Dessa forma, a

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situação de pessoas do esmo sexo que resolvem constituir família


acaba por se configurar como uma situação que existe de fato, mas
não de direito.

Os direitos humanos e sociais dos homossexuais vem sendo


negligenciados pelo judiciário ante à união estável, constituição familiar,
os direitos sociais e previdenciários que são negados nessas
situações, visto que a união entre pessoas do mesmo sexo não é
considerada legítima perante a lei. Assim, não são compreendidos
como uma formação familiar e não podem desfrutar de direitos que são
garantidos às famílias constituídas por casais heterossexuais.

A família na contemporaneidade

Conforme Scott (2011), no contexto atual de globalização, a família


continua a sofrer processos de transformações advindos das
mudanças demográficas, no mundo do trabalho, relações de gênero
e intensificação do processo de industrialização e psicologização da
compreensão da vida social.

Para traçar uma discussão sobre este processo, utilizaremos como


aporte teórico o trabalho desenvolvido por Uziel (2002) que pensa a
família como uma instituição que se mantém como organizadora da
sociedade ocidental. Utiliza como norteadores para seu estudo a
definição de famílias segundo o número de pessoas que compõem os
laços parentais com a criança ((monoparentais ou pluriparentais), a
forma de composição da família (recomposta, por adoção) e
reflexões sobre a orientação sexual dos pais ( homoparentais).

Em virtude da representatividade das famílias chefiadas por apenas


um dos sexos, consideramos pertinente a discussão sobre
monoparentalidade, visto que grande parte das famílias
contemporâneas têm esta configuração.

Segundo Uriel (2002), o termo monoparental foi cunhado do inglês


e introduzido por sociólogas faministas para valorizar os Lars
chefiados por mulheres, concedendo-lhes o mesmo statuto entre as
famílias clássicas.

Lefaucheur (1999) definiu na frança família monoparental como aquela


composta por uma pessoa sem companheiro(a), vivendo em companhia
de , pelo menos, uma criança de menos de 25 anos, solteira,
reforçando a idéia que é preciso haver uma criança para que se constitua
família.

A definição de família monoparental remete à existência de criança


no lar, onde quase sempre a mãe detém a guarda. Homens

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solteiros, separados ou viúvos não são incluídos na configuração


familiar, sendo considerados naturalmente incapazes no trato com a
casa, as crianças e a vida familiar. Essa situação se agrava quando o
homem é ainda homossexual.

A família monoparental se expressa basicamente por dois aspectos


que conjugam a sobrecarga sobre um dos integrantes do casal e a
dessimetria entre as funções maternas e paternas da família nuclear.

Conforme Lebovici ( apude Uziel, 2002), a monoparentalidade


advém de três situações: separação, abandono durante a gravidez e
decisão da mulher em ter filho sozinha →análise reducionista por
desconsiderar o papel do homem na formação familiar.

Entre os juristas, o ideal de família é a biparental: pai e mãe com papéis


bem definidos, e os filhos sendo educados por ambos → idéia expressa na
Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989 e que ignora a
pluralidade dos modelos familiares.

Novos arranjos familiares incluem a idéia da pluriparentalidade (Uziel,


2002), na lógica da soma e não da subtração, desafiando a lógica da
primazia do biológico sobre o social, servindo de alternativas àqueles que
não podem ter filhos. Tal debate surgiu na França, ante ao uso de
tecnologias reprodutivas com doador anônimo e adoção por
homossexuais. Tal conceito ( pluripaternidade) significaria reconhecer os
limites da biologia e valorizar laços construídos com a convivência a partir
do desejo → em vez de ser uma visão mais ampla de família, sem as
amarras da família nuclear burguesa, seria uma forma de controle
dos que fogem às regras que outorgam o direito ao exercício das relações
parentais, surgindo como alternativa a suposta anormalidade seja devido
à infertilidade ou à orientação social.

Pluriparentalidade (uziel, 2002) : famílias recompostas ( ou


restituídas) que se configuram pela reorgazação e a fragilização dos
laços conjugais em decorrência das uniões livres e das práticas de
coabitação.

As famílias recompostas carecem de normas sobretudo jurídicas, o que


talvez se dê pela dificuldade que as sociedades ocidentais têm em pensar
a família fora das categorias clássicas de parentesco e aliança. Elas
trazem indagações acerca do significado do “familiar”, visto que os papéis
parentais, os deveres e as obrigações se multiplicam e se diferenciam.
Nessa abordagem de família está implícita a idéia de rede.

A diferenciação entre “os meus, os seus e os nossos”, referentes aos


vínculos afetivos com as pessoas que compõem o ambiente familiar,
criada pelos divórcios e recasamentos, fica secundária, pois as

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crianças passam a ter várias referencias parentais (o marido da mãe; a


esposa do pai; o pai ou a mãe da irmã, etc.), sem termos genéricos
que os identifiquem, demonstrando que a sacralidade da família
nuclear vem cedendo espaço para a pluralidade de laços (
pluriparentalidade).

A pluriparentalidade se coloca em relação à constituição da família


homoparental, cujo enfoque analítico é voltado para a orientação
sexual dos pais. São vários os discursos contra a parentalidade
homossexual que associa a identidade sexual à negação da natureza.
Além disso, a escolha de parceria do mesmo sexo vai contra o ideal de
família nuclear.

Um dos problemas acerca da homoparentalidade refere-se à possível


influencia que os pais homossexuais exerceriam na orientação sexual
de seus filhos, ou seja, estes tomariam o modelo de identidade
sexual de seus pais. Segundo pesquisa ( Sullivam, 1995, apud Uziel,
20020), tal consideração não se verifica, a partir de estudo
comparativo de crianças filhos de heteros e homossexuais que não
evidenciam diferenças significativas na escolha do objeto sexual dos
filhos. Deve-se considerar que pais heterossexuais tem filhos
homossexuais e o contrário também se dá, fato que vem negar as
teorias psicanalíticas que defendem que a reprodução do modelo
homossexual para os filhos seria inevitável.

A deficiência de profissionais responsáveis por serviços de adoção é


flagrante acercada temática gênero e sexualidade, principalmente em
relação ao homossexual masculino. Enquadram a família
monoparental numa dupla deficiência: “desvio” ante a sexualidade e a
falta de uma pessoa para compor o que seria ideal de casal.

Este trabalho parte do pressuposto de que a homossexualidade refere-se


ao exercício da sexualidade e que as funções parentais não se ligam
necessariamente, de forma simples e direta, ao exercício da
sexualidade da criança. Os comportamentos humanos são diversos e
assumem posições de acordo com o entendimento de cada época. Em
dado momento da historio, determinou-se que as relações sexuais entre
iguais era algo negativo, doentio e anormal, enquanto em outras
épocas foi concebível e irrelevante, tratando-se em ambos os casos de
construção social dos homens. Hoje, ainda se percebe, ao tratar a questão
da família e da homossexualidade, que conceitos estabelecidos em dado
momento histórico ( casal, conjugalidade, casamento) permanecem
presentes no discurso e na legislação.

O assistente social deve acompanhar a dinâmica da vida, as novas


configurações da família brasileira e trazer para a discussão a família
composta por pessoas do mesmo sexo.

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O movimento homossexual mundial tem obtido adesão e respaldo da


sociedade civil e de autoridades oficiais, configurando novas leis que
têm promovido o debate acerca das questões concernentes à
cidadania e equiparação de direitos.

Homossexualidade e Justiça: reflexões sobre o tema

A homossexualidade é um fenômeno social, portanto, de relevância


jurídica. No Brasil, a discussão sobre a parceria civil entre casais do
mesmo sexo ainda é polemica, ao contrário de alguns países da
Europa que já avançaram nesta discussão e a legislação assegura aos
homossexuais direitos plenos de cidadania.

É importante assinalar na França a discussão do Pacto Civil de


Solidariedade (PACS), visto que ele influenciou a criação do projeto
apresentado por Roberto Jefferson, em 1999, disciplinando o pacto
de solidariedade entre pessoas sem fazer referencia à orientação sexual.

O pacto civil de solidariedade caracteriza-se pelo contrato entre


duas pessoas físicas, maiores, de mesmo sexo ou de sexos
diferentes, a fim de organizarem uma vida em comum, coabitarem
e se ajudarem mútua e economicamente, sem alteração do estado civil.
O projeto proíbe a contratação entre parentes diretos e colaterais até a
terceira geração, para evitar o incesto. Não há exigência formal de
comprovação ou intenção de uma relação conjugal como condição par
assinar o pacto.

Em relação aos bens, os parceiros decidem sobre a propriedade e


sua eventual partilha em caso de ruptura do contrato. No que se
refere à assistencia, o PACS modificou o código da seguridade
social, passando o parceiro ao estatuto de cônjuge, não havendo limite
para pactos sucessivos assinados por uma mesma pessoa, desde que não
concomitantes.

Não é objetivo do PACS criar uma entidade familiar alternativa,


tanto que não trata dos direitos de filiação e de questões
concernentes aos direitos das crianças. Não compromete o casamento
tradicional que deve permanecer como opção para o cidadão.

Na França, a polêmica em relação ao PACS se dá em função da


perda da conquista da unicidade do casamento civil, criado em 1972
como laicização da sociedade, conforme a declaração dos direitos do
homem e em decorrência da igualdade dos cidadãos perante a lei.
No entanto, o casamento exclui os homossexuais e o Pacs viria
reverter essa exclusão. Em termos legais, ele se aproxima do casamento

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por ser registrado e do concubinato por não ter tantas regras e


obrigações.

O processo de aprovação do PACS na França foi controverso, em


clima de intolerância, trazendo-lhe diversas alterações. O Projeto
despertou politicamente, várias opiniões e tendências com relação
ao assunto. Foi ressaltada a sua importância contra o movimento da
homofobia e um dos maiores argumentos a seu favor repousa sobre
a questão da solidariedade, pois ele cria um laço social. Entretanto,
os de opinião contrária argumentam que o PACS está mais voltado
para a sexualidade do que para a solidariedade, sendo avanço para
os homossexuais e perigo para a família em função da indefinição
da lei, colocando a possibilidade de destruição da família tradicional.

A proposta do PACS não visa interferir no direito da família, não adota


direitos concernentes à filiação, adoção e reprodução assistida. Não
dispõe sobre deveres de fidelidade, coabitação formal e não há
vínculos entre as famílias contratantes, não gerando estatuto
familiar. No projeto, a criança não é objetivo central como ocorre no
casamento, sendo, no máximo, conseqüência.

No Brasil, o que se observa são leis orgânicas municipais e


constituições estaduais que penalizam a discriminação em função da
orientação sexual. Apesar de atitudes vanguardistas em alguns
destes municípios sobre a questão, não existe lei brasileira que considere
o relacionamento homossexual como união estável.

Em 1995, Marta Syplicy, na condição de deputada, apresentou


projeto de emenda constitucional que visava incluir a liberdade de
orientação sexual nos objetivos fundamentais da República.

O Projeto de Lei n: 1.151/95 que, de certa forma regula a parceria civil


entre pessoas do mesmo sexo, gerou polêmica no Congresso Nacional,
com representantes da Igreja Católica e Evangélica e de segmentos
conservadores da sociedade se posicionando.

A defesa do projeto se baseia na idéia de justiça social, de direito de


cidadania e respeito à diferença. Pela Constituição de 1998 são
asseguradas: a liberdade e igualdade sem distinção de qualquer
natureza; a dignidade da pessoa humana; a busca de uma
sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da marginalidade dos
indivíduos e a promoção do bem-estar sem preconceitos de origem,
raça, sexo ou idade, quaisquer outras formas de discriminação; além da
inviolabilidade da intimidade da vida privada. Com base nesses
argumentos, encontra-se o suporte jurídico da construção do direito
à orientação sexual como direito personalíssimo, atributo inerente e
inegável de toda a pessoa humana.

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O projeto popõe direitos à propriedade, herança, sucessão, alimentos,


previdência social, seguro-saúde, direito à nacionalidade em casos de
estrangeiros que tenham perceiro)a) cidadão (a) brasileiro(a),
declaração conjunta de imposto de renda e renda conjunta para
comprar imóvel. No entanto, não contempla a criação de um núcleo
familiar, vedando a adoção, tutela ou guarda de crianças/adolescente em
conjunto, mesmo sendo filho de um dos parceiros. A parceria seria
formalizada por um contrato em cartório, que deve tratar sobre
patrimônio, deveres, impedimentos e obrigações mútuas, sem alterar
o estado civil nem o direito usar o sobrenome do outro, visto que o status
de casado não é proposto.

Em princípio, o projeto não tem a intenção exclusiva de regularizar só


relações estáveis de pessoas do mesmo sexo; qualquer pessoa poderia
registrar outra como sua dependente/parceira, podendo tratar de amigos
parentes e afins, sem necessariamente configurar uma relação
amorosa. Assim, os homossexuais poderiam registrar sua parceria de
forma que a outra parte tivesse direitos em relação a seus bens e
questões previdenciárias. Seria uma forma de regularizar a situação
dos casais homossexuais perante a sociedade.

A questão central de discussão é a diferença entre casamento


(instituição secular vinculada à relação homem e mulher) e a proposta
do projeto que repercute no que se entende por casal e por
família. Alguns deputados defenderam a questão ( Roberto Jefferson,
Laura Carneiro), entendendo que o Estado deveria regular direitos e
obrigações de um conjunto novo de pessoas.

Foi criada uma Comissão Especial pelo presidente da Câmara, composta


por deputa dos e especialistas e o texto sofreu alterações passando a
disciplinar a parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo (
em substituição do termo união ).

Uziel (2002) analisou as discussões ocorridas nos trabalhos da


comissão. Foram adotados vários posicionamentos contra e a favor.
Deputados contráros valeram-se de argumentos religiosos,
entendendo que a união entre pessoas do meso sexo poderia ameaçar a
família, ferir a honra e a moral da Nação Católica e contribuir para a
extinção da espécie humana pela falta de procria’’cão. Deputados
favoráveis apostam na defesa dos direitos e garantias individuais a
favor da liberdade ou pela necessidade de se regular uma situação
de fato, reforçando a idéia de que o projeto ser uma possibilidade
de transformação da sociedade brasileira em sintonia com a história
social. Trata-se de estender uma condição humana para um direito
social e civil, uma vez que a humanidade é plural e a relação social
se coloca no foro íntimo de cada indivíduo.

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Mesmo as propostas mais progressistas não abarcam a discussão


sobre a constituição do núcleo familiar homossexual. Assim as
pessoas do mesmo sexo que vivem uma união estável dependem
do entendimento de juízes (conservadores) para decidir as questões
referentes à constituição familiar ou direitos
privedenciários/sucessórios.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem proferido decisões mais


progressistas sobre a questão, havendo Desembargadores arbitrando
em favor da partilha de bens entre homossexuais ser discutida em
Vara de Família, considerando que o afeto envolvido entre homossexuais é
semelhante ao existente numa união estável heterossexual.

Esse e outros exemplos na jurisprudência parecem orientar no


sentido de reconhecer a sociedade de fato entre homossexuais. A Juza
do Rio Grande do Sil, Maria Berenice Dias, coloca: (...) É difícil aceitar o
diferente sobretudo quando o que é tido como normal ou convencional diz
respeito à sexualidade e as relações interpessoais, o índice de
repulsa e de dificuldade de aceitar se eleva de tal forma e com
força expressiva que passa a ser preconceito, um tabu. (...) A omissão do
legislador em regulamentar situações que não gozam de plana
aceitação social certamente se deve ao receio de desagradar o
eleitorado. Mas isso constitui um verdadeiro abuso do poder de legislar.
Tentar eliminar situações que uma minoria, levada pela indiferença ou
pelo fanatismo, não quer ver e insistir em rebater, é uma técnica cruel.
(...) O resultado de tais ações não pode ser mais nefasto: a inexistência
de legislação faz com que os juízes se sintam estimulados a
reconhecer relações sociais que reclamam proteção jurídica. Deste
modo, seja pelo silencio da lei ou por medo dos juízes se constrói uma
legião de marginalizados, oprimidos e desvalidos pelo simples fato de
viverem relações que alguns não aceitam como “verdadeiras” e legítimas
e que por isso necessitam de referencias, regulamentação legal ( Dias,
2003).

Os conceitos sobre casal, união estável, parceria civil e família são plurais
e divergentes, atravessando questões no campo cultural, moral e
cognitivo.

Apesar dos esforços relativos à legislação que trata a regulação civil entre
pessoas do mesmo sexo, não se observa o reconhecimento dos
núcleos compostos por homossexuais, com crianças ou não, como
entidades familiares, pois o entendimento da família passa pela
procriação. Essa discussão passa por um processo de construção e
desconsrução de culturas, pelo que se entende de família.

Considerações Finais
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Discutir família é algo fascinante em função da diversidade de


arranjos e expressões. Por isso, ao se escolher o tema deste
trabalho, destacou-se a família composta por pessoas do meso
sexo, entendeo que para muitos assistentes sociais esse tema ainda
é tabu. O assunto é pouco discutido no Serviço Social e há pouca
bibliografia a respeito A instituição familiar e todas as representações que
a cercam são socialmente construídos, passíveis das mais variadas
mutações por inscrever-se no contexto sócio-histórico. É uma construção
dinâmica e cultural.

O modelo de família composto por casal heterossexual foi construído a


partir da idéia do casamento para fins de procriação, de perpetuação da
espécie. Essa perspectiva guarda princípios de fundo econômico, religioso
em que o sexo é concebível apenas para a procriação e a família para ser
considerada supõe a existência de crianças.

Na contemporaneidade a formação da família passa mais pela


constituição de laços afetivos. Logo, todos os arranjos familiares são
válidos, pois a família não poder ser reduzida a um único modelo, vista
que é composta por seres humanos, com vivencias e experiências
distintas, valores singulares, diferentes subjetividades e em constante
transformação.

A justificativa para a negação da entidade familiar para casais do


mesmo sexo repousa na própria definição de casal. Este deve ser
composto por homem e mulher, garantindo a perpetuação da espécie
humana. Ora, regulara situação dessas pessoas não significa banir o
casamento ou ameaçar a existência da espécie humana e sim
agrupar mais um modelo familiar que se configura em nossos
tempos.

NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com


Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia
www.cicloceap.com.br

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