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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

ALEX BARREIRO

LEGISLADORES DO DESEJO:
UMA ETNOGRAFIA DAS DIFERENÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL A
PARTIR DOS DEBATES DA IDEOLOGIA DE GÊNERO

Campinas/SP
2019
ALEX BARREIRO

LEGISLADORES DO DESEJO:
UMA ETNOGRAFIA DAS DIFERENÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL A
PARTIR DOS DEBATES DA IDEOLOGIA DE GÊNERO

Tese de doutorado apresentada ao programa de Pós-


Graduação em Educação da Faculdade de Educação
da Universidade Estadual de Campinas para
obtenção do título de Doutor em Educação na área
de concentração em Educação.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ana Lucia Goulart de Faria

Este trabalho corresponde à versão final da tese defendida por


Alex Barreiro e orientada pela Prof.ª Dr.ª Ana Lucia Goulart de
Faria

Campinas/SP
2019
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca da Faculdade de Educação
Rosemary Passos - CRB 8/5751

Barreiro, Alex, 1986-


B274L
Legisladores do Desejo: uma etnografia das diferenças na educação
infantil a partir dos debates da ideologia de gênero / Alex Barreiro. –
Campinas, SP: [s.n.], 2019.

Orientador: Ana Lucia Goulart de Faria.


Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de
Educação.

1. Gênero. 2. Sexualidade. 3. Educação infantil. 4. Ideologia de gênero.


5. Cultura Infantil I. Faria, Ana Lucia Goulart de, 1951-. II. Universidade
Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Lawmakers of Desire: an ethnography of differences in early


childhood education from the debates of gender ideology
Palavras-chave em inglês:
Gender
Sexuality
Early childhood education
Gender ideology
Peer Culture
Área de concentração: Educação
Titulação: Doutor em Educação
Banca examinadora:
Ana Lucia Goulart de Faria [Orientadora]
Claudia Pereira Vianna
Daniela Finco
Elina Elias de Macedo
Helena Altmann
Solange Estanislau dos Santos
Data de defesa: 22-04-2019
Programa de Pós-Graduação: Educação

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)


– ORCID do autor: 0000-0001-8684-0497
– Currículo Lattes do autor: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visu
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

LEGISLADORES DO DESEJO:
UMA ETNOGRAFIA DAS DIFERENÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL A
PARTIR DOS DEBATES DA IDEOLOGIA DE GÊNERO

Autor: Alex Barreiro

COMISSÃO JULGADORA:

Ana Lucia Goulart de Faria [Orientadora]


Claudia Pereira Vianna
Daniela Finco
Elina Elias de Macedo
Helena Altmann
Solange Estanislau dos Santos

A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de


Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

2019
A Rosa Vermelha desapareceu.
Para onde foi, é um mistério.
Porque ao lado dos pobres combateu
Os ricos a expulsaram do seu império.
Bertold Brecht

A Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff


Agradecimentos

Agradeço à minha orientadora Ana Lúcia Goulart de Faria, pela amizade, disposição,
paciência, sobretudo pela dedicação e carinho com este texto de doutorado. Obrigado por nossas
reuniões e também pelas orientações por skype, e-mails e whatsapp durante todos esses anos,
sempre atenta às leituras e indicações bibliográficas necessárias para o desenvolvimento desta tese.
Uma pessoa autêntica e, sem dúvida, de grande generosidade.
Aos membros do grupo de pesquisa GEPEDISC – Culturas Infantis, em especial, à Solange,
Flávio, Artur, Léia e Vanderlete pelas leituras atenciosas e pelos questionamentos realizados.
Aos membros da banca de qualificação e defesa deste trabalho que dedicaram seu precioso
tempo, atenção e disponibilidade para contribuir com esta pesquisa: Helena Altmann, Solange
Estanislau, Daniela Finco e Claudia Vianna.
Aos meus pais, Aparecido (Kiko), Lusimar (Lu) e à minha irmã Maria Vitória por
acreditarem e investirem no meu desejo pelo conhecimento e nas minhas lutas travadas pela
conquista de uma sociedade mais justa e menos violenta no que se refere à igualdade de gênero e
reconhecimento das pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros.
Aos meus amigos e companheiros de trabalho, Filipe Noé Silva, Samantha Lodi e Marcelo
Rocha Campos, excelentes profissionais com os quais aprendi muito durante esses anos de trabalho,
contribuindo diretamente para o desenvolvimento desta tese.
Agradeço aos membros e participantes da ACP (Associação Campinense de Psicanálise),
associação da qual sou membro desde 2016, em especial, ao meu amigo Francisco Capoulade, com
quem aprendi a ler Lacan desconfiando das verdades “lacanianas” interpretadas por aqueles e aquelas
que valem de seus textos como escritos inquestionáveis. Também agradeço ao meu analista Terrence
Edward Hill, popularmente conhecido por “Terencio”, possibilitando-me convocar o sujeito do
inconsciente e ensinando-me a importância de uma escuta atenta às angústias e ao sofrimento do outro.
Aos meus amigos e amigas, Elen Giovana, Fernanda, Leandro, Raphael e Rodrigo, pelos
momentos de diversão e dificuldades que passamos juntos, sempre regados a bons vinhos e boas
conversas.
Obrigado ao meu marido Felipe Gomes que sempre abriu mão de muitos projetos pessoais,
para vivermos projetos comuns. Por ter me acompanhado todos esses anos, mudando-se de cidade
quando era preciso, sem medir esforços em deixar seus empregos. Lhe agradeço pela amizade, pelo
carinho e pelas palavras, afinal, palavras são gestos de amor tecido no simbólico.
Esta tese também é sua.
RESUMO

Este texto de doutoramento busca, a partir da pedagogia da educação infantil, dos estudos de
gênero e sexualidade e de contribuições da filosofia pós-estruturalista, problematizar como as
crianças de uma pré-escola, localizada no interior do Estado de São Paulo (região metropolitana
de Campinas), vivenciam e experimentam diferentes papéis e performances de gênero, e como
manifestam a sexualidade. Analisou-se como as professoras interpretam essas manifestações,
relacionando com o contexto político municipal e suas medidas (i)legais para conter ações
educativas para a equidade das relações de gênero e sexualidade, denominada pelos setores
conservadores por “ideologia de gênero”. Neste estudo, recorreu-se à etnografia como parte dos
procedimentos metodológicos, registrando as experiências, falas, conversas, entre outras
observações constatadas no diário de campo. Também se recorreu a um questionário gravado
com as professoras da educação infantil, selecionando fragmentos das narrativas concedidas
para a realização de análises que permitissem uma articulação com os problemas de pesquisa
evidenciados e com a atual conjuntura política da cidade, cujos debates sucedidos na sessão
ordinária da Câmara Municipal foram transcritos e arquivados. Esta pesquisa, como parte de
seus resultados, apresenta uma multiplicidade de gêneros existentes e possíveis diante dos
corpos que são, todavia, cortados, prescritos e assinalados em uma estrutura dicotômica e
binária a partir do sistema heteronormativo; e também evidencia, no trabalho das professoras,
concepções pedagógicas que resistem às bravatas educacionais apresentadas pelos legisladores
e setores conservadores locais, tornando a pré-escola e a educação infantil um território político
de intensas disputas, as quais, muitas vezes, relegam o papel da criança como produtora de
culturas e subjetividades.

Palavras-chave: Gênero. Sexualidade. Educação infantil. Ideologia de gênero. Culturas


infantis.
ABSTRACT

This doctoral text research, based on the early childhood education´s pedagogy, of the studies
of gender and sexuality and contributions of the post-structuralist philosophy seeks to
problematize how children in a pre-school in São Paulo State (Campinas metropolitan region)
live and experience different roles and gender performances and how they express the sexuality.
We analyzed how teachers interpret these manifestations, relating them to the municipal
political context and its (i)legal measures taken in order to restrain educational acts towards the
equality of both gender and sexuality relationship, denominated by the conservative sectors as
“gender ideology”. In this study, we turned to ethnography as part of methodological
procedures, registering the experiences, talks, conversations, among other observations
reported on the field journal. We also used a questionnaire recorded with the pre-school
teachers, selecting fragments of the collected narratives in order to conduct analysis that
allowed a connection with the revealed research problems and also with the current political
conjuncture in the city, whose debates took place in the ordinary session of the city council and
were transcribed and archived. As part of its results, this research presents a multiplicity of
existing and possible genders in face of the bodies that are still sliced, prescribed, and marked
in a dichotomous and binary structure based in a heteronormative system. The research also
shows that, in the teachers’ work, there are pedagogical conceptions that resist to educational
bravados presented by the legislators and local conservative sectors, turning the pre-school and
the childhood education into a political territory of intense disputes, which, many times, relegate
the children’s role as a producer of cultures and subjectivities.

Key words: Gender. Sexuality. Early childhood education. Gender ideology. Peer culture.
LISTA DE SIGLAS

ANPED Associação Nacional de Pesquisadores em Educação


ANPOCS Associação Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais
ANPUH Associação Nacional de História
CEI Centro de Educação Infantil
EMEI Escola Municipal de Educação Infantil
GEPEDISC Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e Diferença Sociocultural
IFCH Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
PME Plano Municipal de Educação
ONU Organização das Nações Unidas
RCNEI Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil
SBHE Sociedade Brasileira de História e Educação
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Proibição do Kit para combate à homofobia .......................................................... 24


Figura 2 - A formatação das famílias ...................................................................................... 25
Figura 3 - Os perigos da ideologia de gênero .......................................................................... 26
Figura 4 - Você já ouviu falar sobre ideologia de gênero?...................................................... 27
Figura 5 - O inimigo da família dentro das escolas ................................................................. 28
Figura 6 - Entre poderes, brinquedos e fantasias ..................................................................... 30
Figura 7 - Capa do livro Quando eu sinto medo, de Trace Moroney ...................................... 46
Figura 8 - A imersão entre as crianças .................................................................................... 53
Figura 9 - As fadas .................................................................................................................. 56
Figura 10 - Felipe: a musa de cabelos roxo ............................................................................. 57
Figura 11 - A mulher Hulk ...................................................................................................... 65
Figura 12 - Conversando sobre o que é ser menina................................................................. 74
Figura 13 - A perereca de Ceci ................................................................................................ 77
Figura 14 - Colorindo e vestindo o boneco ............................................................................. 78
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 12
1 Ideologia de gênero: um breve histórico .............................................................................. 19
1.1 As tensões sobre os projetos de gênero e sexualidade na educação brasileira: ressonâncias
municipais................................................................................................................................. 22
2 Poderes, brinquedos e fantasias: a entrada em campo no Centro de Educação Infantil ....... 30
2.1 Do outro lado do muro: as conexões entre arquitetura e gênero na Escola Municipal de
Educação Infantil ...................................................................................................................... 37
2.2 Transgressões e resistência simbólica às masculinidades hegemônicas ............................ 42
3 Eu sou a musa: um passeio etnográfico pelas múltiplas experiências de gênero ................. 53
3.1 Da mulher Hulk aos xingamentos: disputas e duelos em torno do feminino ..................... 66
3.2 Para ser mulher você tem que se fantasiar! Performance e sexualidade infantil ................ 75
4 Diálogos sobre identidades na educação infantil .................................................................. 80
4.1 Tecendo sujeitos: emaranhando gêneros e sexualidades .................................................... 81
4.2 Gênero e organização do trabalho pedagógico ................................................................... 88
CONSIDERAÇÕES FINAIS: .................................................................................................. 96
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 103
ANEXO A ............................................................................................................................. 112
ANEXO B………………………………………………………………………………….............................115
12

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa de doutorado começa a desenhar-se a partir das reflexões e leituras


realizadas durante o mestrado na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de
Campinas, sob a orientação do professor Joaquim Brasil Fontes, das contribuições teóricas
do grupo de pesquisa GEPEDISC (Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e Diferença
Sociocultural) ‒ linha Culturas Infantis ‒, do qual faço parte desde 2012 e, em especial, das
provocações levantadas pela orientadora deste trabalho, a professora Dra. Ana Lúcia
Goulart de Faria.
Desde pesquisas anteriores, busco compreender a rede de saberes que se formou no
Brasil sobre a sexualidade infantil, particularmente a partir dos textos de psicanálise do início
do século XX, entre os anos 1920-1940, publicados por um dos precursores da psicanálise
brasileira, o médico psiquiatra Júlio Pires Porto-Carrero. Esses estudos permitiram refletir como
um conjunto de práticas discursivas e de saberes sobre a sexualidade das crianças ainda
permanecem em circulação nos espaços institucionais, como a educação infantil, possibilitando
uma compreensão eugenista e higienista da sexualidade humana.
As discussões sobre a sexualidade das crianças e as interpretações freudianas dos textos
psicanalíticos por médicos no Brasil apresentavam relações entre as categorias gênero e
sexualidade – o denominado sistema sexo-gênero1 (RUBIN, 1975). Todavia, é importante
lembrar, para não cair em anacronismo, que tanto a utilização da palavra “gênero” nas teorias
feministas, quanto os estudos nesse segmento, são posteriores à década de 1940 (MILLOT, 1992).
As reflexões do mestrado moveram fluxos em direção aos estudos de gênero e sexualidade
na infância, temas, sem dúvida, de extrema relevância, e que encontraram junto aos estudos do
Gepedisc-Culturas Infantis a oportunidade de aprofundamento desses temas e também de
imersão, com as professoras e as crianças de 5 anos na pré-escola.
Assim, alguns rabiscos passaram a desenhar as primeiras intenções e contornos desta
pesquisa: os temas gênero e sexualidade; a imersão na educação infantil; e alguns propósitos
metodológicos, como a pesquisa de abordagem qualitativa, por meio de questionários e também
da etnografia.
Durante os anos de 2015 e 2016, em meio às leituras inquietantes para se pensar este
texto, ganham projeção no cenário político nacional, estadual e municipal brasileiro as

1
O sistema sexo/gênero é um conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade
biológica em produtos da atividade humana, nos quais essas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas.
13

discussões sobre a inserção ou não dos projetos de gênero e sexualidade na educação,


fomentando um forte embate entre grupos favoráveis e contrários às propostas. Nesse contexto,
eu cursava a disciplina Teoria de Gênero no departamento de sociologia do Instituto da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH), conduzida pelas professoras
doutoras Isadora Lins França e Carolina Branco de Castro Ferreira. A polêmica nacional
permeou os debates durante as aulas desse curso, cuja bibliografia contemplava não apenas os
estudos de gênero, como também de sexualidade e a intersecção com a categoria “raça”. Porém,
o curso foi interrompido em decorrência da greve na universidade, mobilizando alunos e alunas
a construírem atividades diferenciadas, resultando na edição de um vídeo sobre a defesa dessas
temáticas na educação, e a posicionarem-se contrários à ruptura democrática ocasionada pela
admissibilidade do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Toda a agitação em relação à denominada “Ideologia de gênero” e suas ressonâncias no
município onde foi desenvolvida esta pesquisa, e às reações dos setores conservadores e
religiosos que proclamavam uma cruzada contra estes estudos, pressionou a Câmara dos
Vereadores a votar pela retirada das questões de gênero do PME (Plano Municipal de Educação)
da rede2. Optei pela não identificação da rede municipal para preservar a identidade de todas as
pessoas envolvidas neste trabalho científico, garantindo anonimato e segurança.
A reação dos vereadores me levou a duas importantes decisões: a escolha da imersão no
campo da educação infantil na rede pública de um município3, e a reflexão sobre a preocupação
desses grupos para com as propostas de discussão de gênero na infância. Além disso, outras
perguntas passaram a me incomodar, como: O gênero pode ser corrompido por uma ideologia,
como acusam os vereadores? Que lugar ocupa o processo de subjetividade das crianças na
educação infantil? Que ameaça uma educação para as relações de gênero e sexualidade oferecia
para as crianças ou para a família? Qual o papel da instituição de educação infantil na produção
das subjetividades das crianças? Como as diferenças e as identidades eram produzidas? Nesse
sentido, as discussões e as polêmicas levantadas no munícipio sobre as problemáticas da
educação para as relações de gênero aparecem como parte do contexto da realização desta
pesquisa, não podendo serem relegadas.
Todos esses questionamentos foram aparecendo no delineamento desta pesquisa e
também nos encontros virtuais com minha orientadora e o grupo Gepedisc, que passaram a me
indicar leituras que contemplassem as discussões. A retomada de algumas dessas obras, cujo

2
Os vereadores votaram por unanimidade pela retirada das discussões e projetos de gênero do Plano Municipal de
Educação.
3
Cidade localizada no interior do Estado de São Paulo, próximo à região metropolitana de Campinas.
14

contato havia sido feito na graduação, há 10 anos, foi de suma relevância para fomentar não
apenas questões, como também possibilidades de interpretação sobre as intenções e a
preocupação da inserção dos projetos de gênero e sexualidade na educação infantil.
Após a elaboração de um projeto de pesquisa, submeti ao Comitê de Ética da Unicamp
e também à Secretaria da Educação Municipal, solicitando minha entrada em campo. Atendido,
pude ir a campo na educação infantil: em um CEI (Centro de Educação Infantil - 0 a 3 anos) e
em uma EMEI (Escola Municipal de Educação Infantil - 4 a 5 anos e 11 meses) ‒ esta última,
onde foi realizada a pesquisa.
É importante ressaltar que esta será a primeira tese de doutorado realizada na educação
infantil desse município, abrindo espaço para que outros/as pesquisadores/as da cidade e/ou
região possam dialogar, contribuindo para novos olhares e propostas educacionais.
Em fevereiro de 2017, junto às coordenadoras das unidades, sugeri um encontro inicial
com as professoras/es e monitoras/as para que eu pudesse me apresentar e apresentar as ideias
preliminares da pesquisa, destacando a possibilidade de mudanças e alterações no decorrer da
imersão em campo. O encontro com todas as profissionais ‒ citação no feminino, por não haver
nenhum professor ou auxiliar homem nas unidades ‒, foi de grande importância para diminuir
a sensação de desconfiança de um “estranho” naquele território. Estranho por duas razões: por
ser um homem em um espaço composto hegemonicamente por mulheres e por ser alguém que
não vinha da educação infantil. Desta forma, o universo da educação infantil, seu cotidiano e
as discussões que envolvem suas políticas e debates educacionais eram novos para o jovem
pesquisador com percurso em outra formação acadêmica e experiência profissional com alunos
de outro ciclo e idades. Adentrar os portões da creche e pré-escola me trouxeram uma miríade
de lembranças pessoais dos tempos em que era criança.
A entrada em campo permitiu novos traços no desenho deste trabalho, em particular
com relação aos objetivos, podendo ser elencados em alguns pontos: a) identificar como as
crianças manifestavam culturalmente seu gênero, observando a relação dessas diferenças; b)
verificar como as professoras trabalhavam com as questões de gênero e sexualidade na
educação infantil; c) analisar se as práticas pedagógicas das professoras contribuíam para a
normatização dos gêneros; d) compreender o processo de constituição e negociação das
subjetividades das crianças no espaço institucional e se havia resistências ante algumas práticas
pedagógicas; e) analisar se os debates políticos municipais ocorridos na Câmara dos Vereadores
e no Brasil, de forma geral interferiam no trabalho pedagógico das professoras. Os objetivos
descritos acima foram possíveis por meio de algumas escolhas de caráter metodológico, como
a etnografia e o uso de um questionário com as professoras.
15

Com relação às características do questionário, a metodologia consistiu na elaboração


de um roteiro de perguntas previamente elaboradas, sendo algumas delas fechadas, ou seja, não
permitindo dissertar sobre assuntos que não aquele proposto pela questão, e também questões
abertas, permitindo que a entrevistada discorresse sobre outros assuntos relacionados.
O planejamento de coleta de informações levou em consideração uma série de fatores,
como a elaboração de perguntas que estivessem relacionadas aos objetivos delineados da
pesquisa, e a adequação sequencial das perguntas e da linguagem. Para evitar a interferência
durante a coleta de dados e informações das entrevistadas, como apontou Blanchet (1988) e
Dias (1997), optei, inicialmente pela entrevista individualmente. Entretanto, mediante o pedido
das professoras para responderem o questionário juntas, sob a alegação de que pudessem falar
com maior “tranquilidade”, gerando um clima de menor desconforto, cedeu-se às solicitações4.
Acerca desta etapa, os autores Britto Júnior e Feres Júnior (2011) atentam o/a
pesquisador/a de que é necessário mais que uma pauta completa possuindo um bom roteiro,
pois é importante saber registrar e interpretar o material coletado. Para isso, os autores
mencionam duas técnicas: o registro das informações em um formulário ou suporte específico
para esta atividade e a gravação completa. Gil (1999) considera que a gravação é a técnica mais
segura de colher os dados, dizendo:

O único modo de reproduzir com precisão as respostas é registrá-las durante a


entrevista, mediante anotações ou com o uso de gravador. A anotação posterior à
entrevista apresenta dois inconvenientes: os limites da memória humana que não
possibilitam a retenção da totalidade da informação e a distorção decorrente dos
elementos subjetivos que se projetam na reprodução da entrevista. (GIL, 1999, p. 120)

A gravação das respostas das professoras assegurou maior autenticidade das falas
durante o processo de transcrição e, consequentemente, do arquivamento das informações,
permitindo, conforme Ribeiro (2008), que, caso ocorresse a necessidade de maiores
esclarecimentos durante a análise do material coletado, o/a pesquisador/a retornasse para outras
informações.
Já os registros do caderno de campo produzidos por meio do contato com as crianças
e as professoras, contendo a observação entre as crianças nos espaços internos (salas) e
externos (pátio, parquinho e refeitório) e também entre as professoras e as crianças, foram o
material requerido para análise e interlocução com as respostas coletadas. Esse processo de

4
A mudança ocorrida no formato da entrevista foi discutida junto ao grupo de pesquisa Gepedisc, optando pela
realização em dupla, uma vez que as turmas de ambas foram acompanhadas durante o trabalho de campo, no ano
de 2017.
16

imersão e vivência exigiu deslocamentos, ou seja, tentativas de me despir da roupagem de


adulto, para integrar-me com as crianças e participar de suas brincadeiras e sociabilidades,
mesmo sabendo das impossibilidades e dificuldades que isso exigia, como nos lembra o
Corsaro (2005).
A etnografia, pensada a partir de seus teóricos e dos procedimentos metodológicos (a
imersão em campo), possibilitou o contato e a vivência com as crianças pequenas, permitindo
estranhar o familiar nas relações cotidianas da pré-escola, mas também familiarizar-se com o
estranho. Uma vez que

A etnografia estuda preponderantemente os padrões mais previsíveis das percepções


e comportamento manifestos em sua rotina diária dos sujeitos estudados. Estuda ainda
os fatos e eventos menos previsíveis ou manifestados particularmente em determinado
contexto interativo entre as pessoas ou grupos (MATTOS, 2011, p. 53).

É importante destacar que a experiência de imersão etnográfica requer um longo período


de vivência junto as comunidades e grupos estudados, permitindo uma detalhada observação,
como empreendida por Geertz (1989), Lévi Strauss (1988), Woods (1986), Willis (1977), entre
outros/as.
O tempo participante do pesquisador etnógrafo é importante para que ele de validade e
sentidos as ações dos membros da comunidade envolvida. Assim, o objeto da etnografia é “esse
conjunto de significantes em termos dos quais os eventos, fatos, ações, e contextos, são
produzidos, percebidos e interpretados, e sem os quais não existem como categoria cultural”
(MATTOS, 2011, p. 54).
Muitos desafios foram encontrados durante a participação etnográfica com crianças,
afinal, como escutá-las? Como interagir e participar das relações de interatividade junto das
crianças? Tais questões nos remetem as contribuições de autores e autoras que se dedicaram
aos estudos das culturas infantis, compreendendo as crianças não apenas como produtos das
relações culturais, mas também como produtoras de culturas, quais, ao apropriar-se das
referenciais produzidas pelo mundo adulto, reinventam, transformam e ressignificam seus
sentidos, formas, usos e operações. “O etnógrafo “inscreve” o discurso social: ele o anota. Ao
fazê-lo, ele o transforma de acontecimento passado, que existe apenas em seu próprio momento
de ocorrência, em um relato, que existe em sua inscrição e que pode ser consultado novamente”
(GEERTZ, 1989, p. 29).
O sociólogo da infância, Corsaro em seu artigo “Entrada no campo, aceitação e natureza
da participação nos estudos etnográficos com crianças pequenas” (2005) descreve desde seu
primeiro dia na entrada em campo, as dificuldades enfrentadas para ser acolhido entre as
17

crianças, e problematiza alguns marcadores, talvez, insuperáveis na construção da relação entre


os pares, como as características físicas (tamanho) e a idade. Corsaro, interroga se esses
marcadores inicialmente já oferecem resistências no contato com as crianças, pois as relações
de poder estabelecidas presumem o adulto como aquele que age sobre a criança buscando o
controle, a implementação das regras, as sanções punitivas em ocasiões de desobediência, entre
outros aspectos.
Portanto, nossa entrada em campo exigiu desnudarmos de uma perspectiva
adultocêntrica, ou seja, desta prática social que estabelece o poder aos adultos deixando as
crianças com menos liberdade devido a hierarquização cultural para que pudéssemos observar
as culturas infantis.
Nesta tese, além das abordagens metodológicas acima descritas, outras formas de
abordagem foram consideradas: documentações, como as transcrições das atas do debate sobre
a inserção dos projetos de gênero no Plano Municipal de Educação, folhetos, matérias de jornais
e imagens confeccionadas e divulgadas por sites e instituições religiosas de denominação
católica e evangélica, no Brasil e no município avaliado; também ilustrações de livros, charges
e algumas aquarelas produzidas a partir das leituras dos fragmentos etnográficos usados do
diário de campo, feitas pelo meu amigo e artista plástico Dirceu Villa Verde ‒ que não é
pesquisador da área educacional e da infância, mas que carinhosamente ousou interpretar as
interações e produções entre as crianças, presenteando esta tese com seus desenhos pintados
em tinta aquarela, dando vida e cor às palavras que aqui se tecem, componentes marcantes do
mundo infantil.
Esta tese está dividida em quatro capítulos. No primeiro capítulo “Ideologia de gênero:
um breve histórico” busca-se construir, de forma cronológica, o surgimento desta expressão
(ideologia de gênero) e sua chegada no Brasil, assim, como os autores responsáveis pela difusão
na América Latina e suas articulações com os segmentos religiosos que passaram a combater
as políticas para a equidade das relações de gênero e sexualidades com base em suas
interpretações fundamentalistas. Ainda neste capítulo, é realizada uma contextualização dos
debates de gênero e sexualidade na Câmara Municipal, por meio das transcrições da ata
ordinária da sessão5, levantando questionamentos acerca das ressonâncias advindas do pânico
moral provocado, sobretudo através da esfera legislativa, na pré-escola do município, e no
trabalho e planejamento pedagógico das professoras.

5
A cópia da transcrição das Atas Ordinárias da Câmara Municipal foram conseguidas nos arquivos da própria
Câmara.
18

No segundo capítulo “Poderes, brinquedos e fantasias: a entrada em campo no Centro


de Educação Infantil”, são relatadas, com base na experiência etnográfica e nos registros do
diário de campo, as dificuldades enfrentadas no processo de imersão no Centro de Educação
Infantil e em seguida na Escola Municipal de Educação Infantil ‒ este último, território em que
se desenvolveu esta tese ‒, buscando, na mesma direção das pesquisas do Gepedisc-Culturas
Infantis, analisar as produções das culturas infantis entre as próprias crianças e também entre
crianças e adultos, atento às negociações realizadas acerca das relações de gênero e dos papéis
sociais desempenhados. Este capítulo convida o/a leitor/a a repensar as categorias binárias
[masculino e feminino] e as resistências simbólicas das crianças com relação à cultura e às
ordens prescritivas que visam constituir identidades normatizadas.
O terceiro capítulo “Eu sou a musa: um passeio etnográfico pelas múltiplas experiências
de gênero”, destaca as múltiplas possibilidades de masculinidades e feminilidades para além
dos modelos usuais, ou seja, como as culturas infantis produzem outros sentidos e
ressignificações sobre a utilização de objetos, adereços, brinquedos, roupas, cores, etc.
possibilitando uma experiência da infância menos restritiva e coercitiva. O capítulo traz
fragmentos dos discursos e debates dos legisladores na Câmara Municipal que passam a
demonizar outras expressões de gênero e sexualidades desarticuladas do modelo tradicional e
binário herdado do processo colonizador e heterossexual.
No subtítulo “Da mulher Hulk aos xingamentos: disputas e duelos em torno do
feminino”, foi problematizado o lugar da feminilidade e sua dimensão com a anatomia sexual,
levando as crianças a recorrerem a significantes e imagens do masculino ‒ para caracterizarem
comportamentos ‒, e a condutas das meninas ‒ transformando a feminilidade em um território
de disputa e despertando a questão: o que é ser mulher?
Em “Para ser mulher você tem que se fantasiar: performances e sexualidade infantil” é
destacado o diálogo entre as crianças que passam a problematizar a mulher – enquanto categoria
biológica –, mas também a mulher na sua dimensão performativa, levando em consideração os
referenciais de feminilidade da cultura ocidental, como adornos, roupas, movimentos,
vestimentas, entre outros. Recorreu-se ao conceito da filósofa Butler sobre “performatividade”
para analisar o diálogo entre as meninas. Outra preocupação diz respeito à sexualidade infantil
e suas manifestações na escola, assim como a implicação desta na constituição subjetiva.
O último capítulo, denominado “Diálogos sobre identidade na Educação Infantil”, trata
do questionário aplicado com as professoras da pré-escola em que se desenvolveu o trabalho
etnográfico. Os dados coletados permitiram fazer uma análise da articulação vista no contexto
19

político, ou seja, no modo como o Brasil e o município, em particular, vivenciam os debates


acerca da ideologia de gênero, como das ressonâncias nas práticas pedagógicas na pré-escola.
Nas considerações finais busco, a partir dos resultados obtidos, análises sobre o processo
de constituição subjetiva das crianças, levando em consideração a produção das culturas
infantis, suas resistências às leis e ao desejo dos adultos sobre elas, e também a ressonância das
manifestações dos vereadores que buscam deslegitimar e demonizar os estudos de gênero e
sexualidade na educação, percebida pelas professoras como uma verdadeira “tempestade em
copo d´água”.
É importante destacar que o contexto de produção dessa etnografia realizada no ano de
2017, se difere da conjuntura política governamental atual. Com a chegada dos grupos de
extrema direita ao poder e suas ocupações em cargos estratégicos da República Federativa, o
Brasil assistiu à institucionalização de ideias e à legitimidade de discursos que desconsideram
as produções acadêmicas e científicas sobre os estudos de gênero no país, assim como as
estatísticas de violência em decorrência da cultura nacional que está assentada sob o machismo
e o legado do patriarcado colonizador. Recentemente, a ministra da família Damares Alves sob
os holofotes da imprensa afirmou que uma nova Era começa no Brasil, em que “meninos vestem
azul e meninas vestem rosa6”, uma alusão normativa que ironiza outras possibilidades de se
constituir homem ou mulher sem as referências que muitos grupos conservadores consideram
emanadas de uma suposta natureza divina. Portanto, desde 2017, novas ofensivas passaram a
coibir, perseguir e responsabilizar as professoras e professores que resistissem a uma concepção
de mundo pré-iluminista.

6
Fonte:<https://oglobo.globo.com/sociedade/menino-veste-azul-menina-veste-rosa-diz-damares-alves-em-
video-23343024>. Acesso em: 4 fev. 2019.
20

1 Ideologia de gênero: um breve histórico7

As discussões sobre a ideologia de gênero aparece no interior da Igreja Católica e do


movimento nacional e internacional denominado Pró-Vida e Pró-Família8 após duas
conferências internacionais de grande relevância: a Conferência das Populações 9 realizada em
1994 no Cairo (Egito) e a 4ª Conferência Mundial sobre as Mulheres10 realizada em Pequim
(China) em 1995, como lembram os autores Cornejo-Valle e Pichardo (2017). A partir desses
eventos, Dale O´Leary ̶ delegada do Pró vida e Pró-Família ‒, elabora um documento intitulado
“The Gender Agenda”11 com a intenção de resistir às mudanças e às transformações políticas
relacionadas às questões de gênero que têm ocorrido no mundo em vários campos, como na
saúde e na educação. Mas é somente no ano de 1998 que o termo “ideologia de gênero” será
empregado em uma conferência, denominada “Ideologia de gênero: sus peligros y alcances”12,
ocorrida em Lima, no Peru.
Para essas instituições cristãs, as políticas de gênero adotadas por vários países
caminham em direção a um movimento contra a vida, por favorecer as demandas de
movimentos sociais, tais como os feministas e LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,
Transexuais e Transgêneros) e questionar a natureza da reprodução humana. Nesse sentido,
as demandas desses ativismos, como o direito legal ao aborto e a constituição de famílias
homoafetivas representam uma ameaça para a tradição da família cristã, uma vez que o
conceito de gênero possibilita redimensionar e ampliar a noção de identidade humana,
afrontando as barreiras entre masculino e feminino e do que é ser homem ou mulher
socialmente.
Sobre o emprego terminológico “ideologia de gênero” e suas políticas conservadoras,
expressam os autores Cornejo-Valle e Pichardo (2017, p. 6):

7
A concepção histórica do aparecimento e uso da expressão “ideologia de gênero” foi discutida em palestras e
vídeos pela professora e pesquisadora Jimena Furlani, da Universidade do Estado de Santa Catarina. Em contato
com a pesquisadora, ela destacou não ter publicado a pesquisa, contudo, disponibilizou-me vídeos e textos com as
obras utilizadas. Posteriormente, realizei um levantamento da leitura bibliográfica para averiguar e confrontar as
informações. O texto resultado deste movimento encontra-se acima, com o subtítulo “Ideologia de gênero: breve
origem do termo”.
8
<http://www.providafamilia.org.br/site/index.php.html>. Acesso em: 19 mar. 2017.
9
<http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf>. Acesso em: 19 mar. 2017.
10
<http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2014/02/declaracao_pequim.pdf>. Acesso em: 19 mar.
2017.
11
O´LEARY, Dale. The Gender Agenda: redefining Equality, Lafayette, 1997.
12
<https://xlavida.files.wordpress.com/2006/09/ideologia-de-genero.pdf>. Acesso em: 19 mar. 2017.
21

En el caso particular del catolicismo, se opta por usar la expresión “ideología” en su


sentido marxista como una estrategia consciente de la influencia del lenguaje en la
formación de la opinión pública (López-Trujillo, 2006:8), a fin de denunciar el
carácter ilusorio del término “género”, en cuanto construcción social. En este sentido,
a la perspectiva de género, renombrada como “ideología de género”, se le atribuye la
perversión interpretativa de promover los derechos humanos como herramientas para
las reivindicaciones de las mujeres y de las minorías sexuales jugando a la confusión
terminológica.

Tendo em vista que as políticas para a equidade das relações de gênero atualmente
permeiam a jurisdição de vários países, estendendo direitos a pessoas trans, integrantes do
movimento Pró Vida e Pró-família passaram a afirmar que as organizações internacionais, como
a ONU (Organização das Nações Unidas) e a União Europeia, são responsáveis pela incitação da
construção de políticas públicas e de uma visão de mundo nesse sentido. A insatisfação de grupos
conservadores e ligados aos movimentos religiosos encontra-se publicada, sob o título: Contra o
cristianismo: a ONU e a União Europeia como nova ideologia (ROCCELLA; SCAFFIA, 2014)
e discorre sobre a ameaça que essas instituições representam para o futuro da família cristã.
Outra importante referência para entender a apropriação, utilização e os deslocamentos
conceituais contrários às políticas de gênero é o livro do argentino Jorge Scala13, traduzido para
o português em 2015, com o título Ideologia de gênero: o neototalitarismo e a morte da família
(SCALLA, 2015). Neste livro, o advogado Scala, conhecido por suas posições ortodoxas contra
o direito reprodutivo das mulheres, desenvolve argumentos para conter a aprovação de leis que
ampare e promova a equidade nas relações de gênero, afirmando caminharmos para uma política
da morte.
O autor ressalta que a ONU desenvolveu uma “agência do gênero” e que esta agência
dedica-se a controlar que todos os organismos e programas da ONU incluam o gênero em suas
agendas. Conforme o autor, a União Europeia e o Banco Mundial condicionam os empréstimos
para o desenvolvimento dos países pobres, por cláusulas da difusão de gênero (SCALA, 2015).

A mal chamada […] “perspectiva” […] de gênero, é, na verdade, uma ideologia.


Provavelmente a ideologia mais radical da história, posto que – ao impor-se –,
destruiria o ser humano em seu núcleo mais íntimo e, simultaneamente, acabaria com
a sociedade. (SCALA, 2010, p.7)

13
Na América Latina, o livro de Scala teve influência importante, sendo o combate contra o que denomina como
“ideologia”, o que justificou manifestações que vão desde movimentos a favor da família tradicional até
manifestações contra políticas de governos de esquerda. Iniciada na Argentina e no Brasil, a disseminação da
gramática político-moral da noção de ideologia de gênero já alcançou, em 2016, países como o México e a
Colômbia, contribuindo, no caso do primeiro para a luta contra a aprovação do “matrimonio sin discriminación”
e, no último, para a vitória do não à paz no plebiscito que visava referendar o acordo com as Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia (FARC). (MISKOLCI; CAMPANA, 2017, p. 726).
22

No Brasil, as tensões sobre os debates para se discutir gênero e sexualidade nas escolas
emergiram a partir de 2011:

A hegemonia da noção de “ideologia de gênero” se estabelece no Brasil a partir de


2011, ano em que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que a união entre
pessoas do mesmo sexo tinha o mesmo status do casamento heterossexual. No mesmo
mês da decisão do Supremo, ganhou notoriedade nacional a polêmica sobre o material
didático do programa “Escola sem homofobia”, apelidado pelos conservadores de “kit
gay”, que seria distribuído em seis mil escolas públicas, mas que, depois de forte
oposição, foi vetado pela presidente Dilma Rousseff. Christina Vital e Paulo Victor
Leite Lopes (2013) analisaram em detalhe a atuação de parlamentares evangélicos
neste caso, desde fins de 2010, mostrando como a Frente Parlamentar Evangélica
volta-se fortemente contra o material seis dias após a aprovação pelo STF da união
entre pessoas do mesmo sexo. (MISKOLCI; CAMPANA, 2017, p. 738)

A partir de 2014, com a abertura das câmaras municipais e estaduais de todo o país para
as sessões legislativas de aprovação dos Planos Municipais e Estaduais de Educação, como nos
lembram Nascimento (2015) e Barreiro et al. (2017, p. 3), os debates se acaloraram:

A polêmica se desenrola desde 2014 com a aprovação do Plano Nacional de Educação


(PNE) na Câmara dos Deputados que alterou a redação aprovada em 2012, suprimindo
do texto sobre as desigualdades educacionais a “ênfase na promoção da igualdade
racial, regional, de gênero e de orientação sexual” (2014:22), substituída
genericamente por “ênfase na promoção da cidadania e erradicação de todas as formas
de discriminação” (2014:12). A partir de então, a pauta seguiu para os municípios e o
debate nas Câmaras dos Vereadores em todo o país tem sido marcado por preconceitos
e homofobia no combate ao que se rotulou de “ideologia de gênero”.

É importante, sem dúvida, resgatar parte do contexto histórico que permitiu a construção
de uma arena de batalha nacional em torno do tema e quais as suas ressonâncias no munícipio
em que esta pesquisa é realizada.

1.1 As tensões sobre os projetos de gênero e sexualidade na educação brasileira:


ressonâncias municipais

O crescente número de pesquisas e estudos que vinham se desenvolvendo, a partir dos


anos 1980, acerca das questões de gênero e sexualidade, particularmente nos Estados Unidos,
Canadá e países europeus, adquiriu notoriedade no Brasil a partir dos anos 1990, estimulando
o interesse de pesquisadores/as e professores/as com relação a essas temáticas que passaram a
dar maior atenção às demandas que emergiam desses segmentos sociais, vistos como
minoritários em direitos. O autor Miskolci, afirma em seu livro Teoria Queer: um aprendizado
pelas diferenças (2012) que os estudos Queer no Brasil, diferentemente dos outros países,
23

chegaram aqui pelo campo da educação14, tendo em vista seu caráter disciplinar e suas
dimensões de violência contra outras expressões da sexualidade humana e das identidades que
escapavam aos regimes de normalização.

[...] A acolhida brasileira da Teoria Queer na área da educação pode estar ligada a
uma compreensível sensibilidade crítica de nossas educadoras e educadores com
relação às forças sociais que impõe, desde muito cedo, modelos de comportamento,
padrões de identidade e gramáticas morais aos estudantes, sobretudo crianças e
jovens. Trata-se, portanto, de uma acolhida positiva e louvável, pois é bom saber que
o público da área de educação tem interesse e está fazendo algo que, em outros países,
permanece como uma especulação desvinculada da prática e, por isso mesmo, menos
apta a interferir e impulsionar a mudança social. (MISKOLCI, 2012, p. 36)

Assim, ao longo das últimas décadas no país, passaram a se formar em diversas e


diferentes faculdades e institutos universitários, grupos de pesquisas e estudos tendo como
objeto de atenção as desigualdades assinaladas entre homens e mulheres, e também de sujeitos
que não gozavam de seus direitos básicos, como educação, saúde e segurança, por razões
relacionadas à constituição subjetiva de sua sexualidade e de sua identidade de gênero.
Os autores(as) Andrade; Macedo e Oliveira, no artigo “A produção científica em gênero
no Brasil” (2014) ‒ resultado de uma pesquisa científica em que expõem levantamentos e dados
estatísticos ‒, apresentam com gráficos o crescente aumento dos grupos de pesquisa nesse
segmento, tendo como foco a área administrativa.
Não apenas na área administrativa, como nas ciências humanas e na educação, em geral,
os estudos de gênero e conjuntamente de sexualidade passaram a expandir-se e consolidar-se
no país a partir da metade dos anos 1990, como apontou Zirbel em sua dissertação de mestrado
“Estudos feministas e estudos de gênero no Brasil: um debate” (2007). Esse crescimento, em
especial, no campo da educação foi destacado no site da Anped (Associação Nacional de
Pesquisadores em Educação), como argumento da preposição de passagem do GE 23 para GT
23 em 2005:

Por um lado, observamos um número cada vez maior de teses de doutorado e


dissertações de mestrado que assumem gênero e sexualidade como seu foco central
ou, pelo menos, como dimensões indispensáveis para a constituição de seus objetos
de estudo, bem como teses e dissertações que analisam ou propõem projetos de
educação sexual nas escolas brasileiras; registramos também um aumento de
publicações na área (livros, artigos e mesmo algumas revistas de projeção
internacional, como a Revista de Estudos Feministas e a Pagu) e, por outro lado,
continuam os nossos cursos de formação e qualificação de docentes beneficiando-se
muito pouco de toda essa produção.

14
Guacira Lopes Louro é considerada uma das expoentes nos estudos Queer no Brasil. Dentre seus livros
destacam-se: Ensaio sobre sexualidade e Teoria Queer e Gênero, Sexualidade e Educação. Citamos também o
artigo “Teoria Queer: uma política pós-identitária para a educação”
28

Figura 5 - O inimigo da família dentro das escolas

Folhetos das palestras sobre “Ideologia de gênero” divulgadas em sites e panfletos pela cidade.
Fonte: Arquivo pessoal do autor.

Nos anos 2015 e 2016, como pode-se verificar nos títulos dos cartazes, as palestras e a
abordagem dos conteúdos ilustrados estão em consonância com aqueles desenvolvidos em
instâncias federativas por militantes contrários às propostas de gênero nas escolas, podendo,
dentre eles, serem destacados o senador e pastor Magno Malta, o pastor Marco Feliciano e o
deputado Jair Bolsonaro. Além desses nomes, cuja visibilidade é nacional, é importante
mencionar os membros ligados ao movimento da Igreja Católica e também do movimento Pró-
vida e Pró-família, tais como o padre Paulo Ricardo de Azevedo Junior, o professor Felipe
Nery, o padre José Eduardo de Oliveira e Silva e a professora Fernanda Takitani. No segmento
evangélico incluem-se o pastor Silas Malafaia, a professora Damares Alves20 e a “ministra
evangélica” formada em psicologia Marisa Lobo. Todos esses nomes estão reunidos no
Observatório Interamericano de Biopolítica21, instituição que se dedicou em agrupar essas

20
Ao longo dos anos em que esta tese vem sendo escrita, os grupos de extrema direita liderados por Jair Bolsonaro
disputaram as eleições presidenciais, assumindo a Presidência da República em janeiro de 2019, nomeando
Damares Alves como ministra da mulher, da família e dos Direitos Humanos.
21
“O Observatório Interamericano de Biopolítica é uma organização de cidadãos livres, conscientes e ativos
dedicada à defesa da dignidade e dos direitos da pessoa humana. Reconhece que existem iniciativas parlamentares,
em diversos países, que agridem e desvalorizam a vida humana inocente e procuram debilitar a proteção para
mulheres e crianças. Reconhece ainda que os legisladores sofrem pressões para legalizar o aborto em nome dos
direitos humanos, saúde reprodutiva ou equidade para as mulheres. Pretende, diante deste quadro, contribuir para
o fortalecimento de condutas parlamentares comprometidas com a vida, família, educação e liberdade”. Texto
extraído do site da organização: <http://biopolitica.com.br/>. Acesso em: 28 ago. 2017.
29

narrativas e promover debates para conduzir a sociedade à compreensão e aceitação de seus


argumentos, inviabilizando outras propostas educativas.
Portanto, ocorre uma discussão em nível nacional, contra as propostas educacionais de
gênero e sexualidade, chamando a atenção para o impacto que essa compreensão de mundo,
modulada nas conformidades de uma respectiva interpretação religiosa pode provocar nas
propostas pedagógicas e educacionais, em especial da educação infantil. Esses discursos
afetaram o cotidiano da educação infantil? Se sim, como? O “medo” e o “pânico” levantado
pelos vereadores faz sentido?
A conjuntura política nacional e municipal se tornaram o contexto, ou o chamado “pano
de fundo” desta pesquisa, portanto, desconsiderá-lo seria ocultar as tensões e os debates que
permeiam os espaços da educação.
31

e identidades. “Em suma, toda máquina é corte de fluxo em relação àquela com que está
conectada, mas ela própria é fluxo ou produção de fluxo em relação àquela que lhe é conectada.
É esta a lei de produção de produção” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 55).
O pé de um dos garotos que antes servia para andar, agora batendo no chão de areia
provocava tremores, desestabilizando as construções, derrubando casas e prédios, mobilizando
os colegas a se abrigarem. Quando um deles se agachava e uma de suas pernas girava em torno
de seu corpo, não espalhava simplesmente a areia do parque em seus amigos, mas espirrava ‒
como ele ressaltou ‒, um “pó perigoso” que poderia provocar a cegueira de seus adversários,
caso não se protegessem. Da palma da mão emanavam raios e poderes suficientemente capazes
de derrubar pessoas e transformá-las em animais. Um dos companheiros de batalha, por
descuido, atingido por um raio, tornou-se uma zebra (animal da história contada pela professora
naquele dia). Contudo, o barulho emitido pela zebra era diferente de qualquer outro equino.
As meninas se agrupavam com o intuito de lutar contra aquelas criaturas, super-heróis
ou seriam monstros? Não há certeza do que se tratava, do que eram, uma vez que se
metamorfoseavam constantemente. Nunca permaneciam a mesma coisa. Ali o corpo não
obedecia aos movimentos pelos quais foram educados. As mãos que antes seguravam as
canetinhas, o copo para beber água ou o talher no refeitório, tornavam-se instrumentos de
guerra, aparelhos fantasiosamente poderosos. Os joelhos, quando agachados, projetavam uma
cápsula protetora do corpo, uma espécie de “domo de vidro” sobre ele, inquebrável. Os pés que
serviam para levá-los ao banheiro e caminhar em fileiras já não correspondiam a este propósito,
eram pés mutantes. Corpos sem órgãos, como colocou Deleuze e Guattari (2010).
Em grupo, as quatro garotas que desafiavam as criaturas e seus comparsas, gritavam,
como se um ataque sonoro pudesse derrotá-los. Os braços de uma delas movimentavam-se
constantemente, como uma corda ao ser chacoalhada, enquanto suas amigas, rindo, imitavam
os gestos braçais indo ao encontro dos meninos. Entre risadas e empurra-empurra, gritos e mais
gritos ecoavam no parque, ou seria uma arena de batalha? Uma cidade? Tratava-se de um
espaço “desterritorializado”, em que o balanço deixava de ser apenas um pedaço de madeira
com correntes, em que o gira-gira, o trepa-trepa e os demais brinquedos transformavam-se, a
partir de cada uma das crianças, em um singular imaginário povoado pela fantasia. Fantasias
compartilhadas. As mentes operavam como máquinas desejantes, produzindo suas próprias
referências, linguagens e relações culturais.
Nesse momento, uma voz vinda do fundo do parque ordenava para que algumas crianças
parassem de gritar, exclamando haver outras em salas, e que todo aquele barulho poderia
32

atrapalhá-los. Os corpos aquietaram-se. Era a professora de uma das turmas do Centro de


Educação Infantil (CEI) que se aproximava.
Ao meu lado, ela inicia uma conversa, perguntando se eu realizava estágio na educação
infantil. Respondi que não, pois tratava-se de um trabalho de campo com as crianças e com as
professoras – uma pesquisa de doutorado – me possibilitando aprender e contribuir com a
experiência. Questionado sobre o meu objeto de estudo, respondi que o olhar da pesquisa
voltava-se para as questões relacionadas à produção de identidades, em especial, abordando
temas como: gênero e sexualidade na infância.
Se mostrando interessada pelos temas, a professora responde que estava ali há apenas
duas semanas naquele ano (2017), em caráter de substituição, em decorrência da ausência da
docente responsável pela turma, mas que no ano anterior (2016) havia permanecido por alguns
meses no CEI, tendo a oportunidade de conhecer um garoto “nada convencional”, chamado
Felipe23 (5 anos) que atualmente encontrava-se na EMEI ao lado. Então, me perguntou:

- Você chegou a conhecer o Felipe?


Respondi que não, questionando quem era.
- O Felipe, atualmente, está no prédio ao lado, aqui no “prézinho”. Os pais são
“testemunhas de Jeová”, muito religiosos, e não sabem como lidar com a situação.
- Que situação? Perguntei. (Fragmento do diário de campo, fevereiro de 2017)

Nesse momento, a professora olhou para os lados, observando se havia alguém por perto
e baixando o tom de voz, como se fosse contar-me um segredo, disse:

O Felipe é um aluno que só brinca com as meninas, fala mole e é cheio dos
“trejeitos”. Ele quase nunca está com os meninos, a não ser quando na brincadeira
estão todos, quando brincam com o baldinho na areia. Além de brincar só com elas,
ele gosta de brinquedos de meninas, como: boneca, lacinho de cabelo, pulseiras, tudo
que é do universo feminino. Você acha que isso já é um indício? Você sabe, né... será
que ele vai ser gay? (Fragmento do diário de campo, fevereiro de 2017)

Pedi para que ela contasse um pouco mais sobre o Felipe, então comentou:

O ano passado (2016) na hora dos cantinhos, o Felipe estava brincando. Ele havia
colocado uma tiara, segurava uma bolsa nas mãos, estava com um tecido no ombro.
Eu observava, sem me intrometer, porém, meu celular apitou, eu havia recebido uma
mensagem. Quando peguei o celular para visualizar, ele me olhou e achou que eu
estava tirando uma foto dele. Coitado! Ele veio correndo dizer para não tirar foto!
Estava desesperado, achando que eu tinha fotografado. Eu respondi que só estava
vendo uma mensagem.
Os pais dele não sabem como lidar com tudo isso. O pai não aceita, porém a mãe acabou
comprando uma boneca pra ele. Deve ter sido escondido do pai. Acho que esses conflitos
aparecem por conta da religião, ainda mais agora com esses assuntos de gênero.

23
Nenhum dos nomes descritos se refere ao “nome de registro” das crianças ou professoras mencionadas.
33

Hoje em dia tem mais crianças assim do que antigamente, você não acha?
(Fragmento do diário de campo, fevereiro de 2017)

A professora buscava respostas para compreender as razões que levavam Felipe a


brincar com artefatos tidos do gênero feminino, acreditando que poderia levá-lo a uma
identificação com a feminilidade, e consequentemente à homossexualidade. A fala da
professora permite interrogarmos como a normatividade dos gêneros interditam experiências,
uma vez que estão condicionadas a sexualidade, e esta vigiada e rigorosamente controlada.
Dessa forma, é possível perceber como as noções de gênero encontram-se, ainda, muito
imbricadas ao sexo e à orientação sexual. O dispositivo heteronormativo, como nos alertou
Butler (2010), produziu um sistema inteligível e compulsório sobre as categorias sexo, gênero
e desejo, como se as dimensões imaginárias de um respectivo sexo se desenvolvessem
naturalmente em decorrência de um “corte simbólico”, e que o desejo devesse inclinar-se pelo
sexo oposto.
Gênero e sexo, para a pesquisadora, são efeitos e não fundamentos da sexualidade.
Assim, o gênero resulta de atos performativos24, tanto de nomeação, quanto de comportamentos
auxiliando a estabilizar de maneira provisória a identificação com um respectivo sexo,
produzindo a ilusória ideia de unidade e estabilização entre o corpo enquanto matéria, a
sexualidade e as práticas sexuais.
Nessa investida, a heterossexualidade é entendida não apenas como “natural”, mas,
sobretudo, como uma norma regulatória. Norma, não simplesmente por se tratar em termos
numéricos, em proporção, mas, como um modelo comparativo que regula e estabelece as regras
de funcionamento, produzindo “gêneros inteligíveis” (BUTLER, 2010).

Gêneros “inteligíveis” são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantém,


relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo. Em
outras palavras, os espectros de descontinuidade e incoerência, ele próprios só
concebíveis em relação a normas existentes de continuidade e coerência, são
constantemente proibidos e produzidos pelas próprias leis que buscam estabelecer
linhas causais ou expressivas de ligação entre o sexo biológico, o gênero
culturalmente constituído e a “expressão” ou “efeito” de ambos na manifestação do
desejo sexual por meio da prática sexual. (BUTLER, 2010, p. 38)

A professora continua a discorrer sobre Felipe, dizendo:

Quem sou eu pra dizer para a criança que ela não pode brincar com isso ou com
aquilo? Que mal há em brincar? É brinquedo, não oferece perigo. Às vezes, eu penso
que essas questões são biológicas, sei lá, talvez hoje existam mais casos em

24
Incessantes repetições que a cultura e as instituições sociais produzem por meio das relações de poder sobre
corpo e que passam a naturalizar-se.
34

decorrência da alimentação. Não pode ser? Quantidade de hormônios nos alimentos?


O fato é que o preconceito ainda é muito grande. As pessoas precisam saber que basta
respeitar o outro. É só isso: respeito! (Fragmento do diário de campo, março de 2017)

As questões colocadas pela professora possibilitam interrogar como as diferenças


tornam-se objeto de atenção e investigação, ao passo que a norma não é interrogada na sua
dimensão constitutiva. A diferença não é pensada como um conjunto de características
singulares, produzidas dinamicamente pelos processos de subjetivação e experiências de cada
criança, ela é, antes de tudo, um sintoma de anormalidade, desencadeado por um desiquilíbrio,
como escreveu Paoliello (2013) e Cecarelli (2013), ao referirem-se a despatologização da
homossexualidade, podendo ser ele: alimentar, biológico ou de outra natureza. Fundamentos
como esses foram, e ainda são, muito utilizados como base explicativa da sexualidade e das
produções das identidades de gênero, como destacou Finco (2010) no primeiro capítulo de sua
tese de doutorado “Educação infantil, espaços de confrontos e convívio com as diferenças:
análise das interações entre professoras e meninas e meninos que transgridem as fronteiras de
gênero” ao retomar a literatura produzida para discorrer sobre a dicotomia “natureza x cultura”.

Ainda hoje, pesquisadores e pesquisadoras sustentam que, para além das diferenças
anatômicas entre os sexos, os cérebros de meninos e meninas processam de modos
distintos a linguagem, as informações, as emoções, o conhecimento e tantas outras
características tidas como naturais. Frequentemente lemos ou escutamos diferentes
relações sociais explicadas pelas características biológicas, como, por exemplo,
“meninos dominariam com mais facilidade conceitos das ciências extas e noções
geográficas”, e “meninas teriam mais desenvoltura nas áreas de expressão, como
linguagem e artes”.
Mas será, de fato, possível afirmar que as preferências, as competências e os atributos
de personalidade são originalmente configurados conforme cada sexo? Será verdade
o que aprendemos sobre as justificativas biológicas para as diferentes habilidades de
meninas e meninos? (FINCO, 2010, p. 20)

Pensar sobre os fundamentos acerca dessas afirmações biologizantes no âmbito da


educação, e particularmente da educação infantil, exige interrogar suas origens, refletindo o
peso do caráter biológico na construção das diferenças. Isso pressupõe, conforme Vianna e
Finco (2009, p. 268) “indagar a respeito da interferência e do papel da cultura nos processos de
socialização e de formação de meninas e meninos desde suas primeiras experiências de vida na
instituição escolar”.
A fala da professora no CEI apresenta uma preocupação com a violência que as crianças,
cuja identidade de gênero não encontra-se customizada sobre os pressupostos determinados
social e culturalmente para um respectivo sexo biológico, podem sofrer. Por isso, ela afirma:
“As pessoas precisam saber que basta respeitar o outro. É só isso: respeito!”.
35

Os questionamentos sobre respeitar as diferenças, sobretudo da vulnerabilidade à


violência que essas crianças estão suscetíveis, me recorda o texto-manifesto de Preciado,
intitulado “Quem defende a criança Queer?” (2014). Manifesto escrito no momento em que as
famílias conservadoras saem às ruas na França contra a adoção de crianças por casais
homoafetivos, alegando prejuízos psíquicos a elas pela ausência das figuras que constituem a
interpretação tradicional da cena edípica. Nele a autora diz:

A criança que Frigide Barjot pretende proteger não existe. Os defensores da infância
e da família apelam para a figura política de uma criança que eles constroem, uma
criança pressupostamente heterossexual e com o gênero normatizado. Uma criança
que privamos de qualquer força de resistência, de qualquer possibilidade de fazer um
uso livre e coletivo de seu corpo, de seus órgãos e de seus fluidos sexuais. Essa
infância que eles pretendem proteger exige o terror, a opressão e a morte.
(PRECIADO, 2014, p. 2)

Finalizando seu manifesto, Preciado (2014, p. 8) escreve:

Os manifestantes de 13 de janeiro não defenderam o direito das crianças. Eles


defendem o poder de educar as crianças na norma sexual e de gênero, como se fossem
presumidamente heterossexuais. Eles desfilam para manter o direito de discriminar,
punir e corrigir qualquer forma de dissidência ou desvio, mas também para lembrar
aos pais das crianças não heterossexuais que é dever deles se envergonhar disso,
rejeitá-los, corrigi-los. Nós defendemos o direito das crianças de não serem educadas
exclusivamente como força de trabalho e de reprodução. Nós defendemos o direito
das crianças de não serem consideradas como futuros produtores de esperma e futuros
úteros. Nós defendemos o direito das crianças de serem subjetividades políticas
irredutíveis a uma identidade de gênero, de sexo ou de raça.

Nesse sentido, “Quem defende a criança Queer” é um texto libertário que, com base em
inúmeros casos (por todo o mundo), tal como o caso de Felipe, busca compreender que a criança
enquanto sujeito participa na produção de sua identidade, que em interlocução com a cultura e
a sociedade vigente não apenas reproduz os referenciais culturais aprendidos, como também
resiste, negocia, transgride e produz valores culturais entre seus pares. A identidade das crianças
é também a identidade cultural, ou seja, a capacidade que as crianças possuem para construírem
culturas não redutíveis totalmente às culturas dos adultos.
Assim como nas brincadeiras descritas, em que suas ações e interações desconstruíam a
territorialidade local onde se encontravam, elas podem romper com estruturas binárias de gênero,
potencializando a capacidade de produzir novas identidades sem a determinação adulta que recorre
a um modelo cultural de sociedade, que também é político, para interditá-las de um movimento em
busca da autonomia. Por isso, controlar as produções de gênero, pela via sexo-anatômica, também
36

se refere a executar a manutenção de suas funções sociais e seus lugares de ocupação na economia.
Sobre essa questão, escreveu Chaui (1982, p. 64):

Com efeito, à medida que uma forma determinada da divisão social do trabalho se
estabiliza, se fixa e se repete, cada indivíduo passa a ter uma atividade determinada e
exclusiva que lhe é atribuída pelo conjunto das relações sociais, pelo estágio das forças
produtivas, e evidentemente, pela forma da propriedade. Cada um não pode escapar
da atividade que lhe é socialmente imposta. A partir desse momento todo o conjunto
das relações sociais aparece nas ideias como se fossem coisas em si, existentes por si
mesmas e não como consequências das ações humanas.

Para a autora Saffiotti (1992, p. 193) “As relações de gênero, evidentemente, refletem
concepções de gênero internalizadas por homens e mulheres”, por isso o machismo não se torna
apenas privilegio de homens, sendo muitas das mulheres também suas portadoras.
As análises incorridas nesse sentido, permitem compreender o gênero como atributos
construídos para sua função social. Contudo, Butler vai além ao afirmar que não devemos apenas
limitar o gênero como inscrição cultural de significados e funções sobre o sexo. Gênero se refere
a um aparelho de produção, o dispositivo de caráter discursivo por meio da qual o sexo é
produzido e estabelecido enquanto pré-discursivos.
Felipe, neste caso, ao afrontar as convenções de gênero e desafiar o estatuto da
masculinidade, pode ser visto por muitos grupos como uma ameaça, por isso a ideia da
necessidade de corrigi-lo, tanto na esfera corporal, envolvendo as gesticulações, o timbre de voz
e a conjuntura de movimentos corpóreos, quanto nas suas escolhas pessoais, diretamente
relacionadas às brincadeiras, brinquedos, acessórios e até, futuramente, profissionais.

Através de muitos processos, de cuidados físicos, exercícios, roupas, aromas, adornos,


inscrevemos nos corpos marcas de identidade e, consequentemente, de diferenciação.
Treinamos nossos sentidos para perceber e decodificar essas marcas e aprendemos
corporalmente, pelos comportamentos e gestos que empregam e pelas várias formas
com que se expressam. (LOURO, 2010, p. 15)

Mas chamo a atenção para um dado importante, no momento da conversa em que a


professora destaca: “ainda mais agora com esses assuntos de gênero”. Sua fala vem acompanhada
do baixo tom de voz e de seu olhar de preocupação, verificando se alguém estava ao lado. Receio
decorrente de sua cumplicidade com o aluno, ao permitir a experiência de Felipe com o uso dos
adereços do gênero feminino, já que o município passa por um delicado momento em torno das
questões de gênero e sexualidade na educação. A inquietude despertada pela fala da professora,
me trouxe a curiosidade enquanto pesquisador em visitar a sala do “infantil”, na EMEI ao lado,
na pretensão de observar a turma em que Felipe se encontrava e sua relação com a professora e
37

as outras crianças. Contudo, o deslocamento da unidade não incorreu unicamente em razão da


presença de Felipe, mas também pela divisão etária. Enquanto na CEI, encontravam-se bebês e
crianças pequenininhas em sua maioria, na EMEI estavam as crianças maiores (4 a 5 anos e 11
meses). Tendo em vista que a tese não objetivava-se nas observações das linguagens dos bebês,
mas nas produções culturais e sociabilidades entre as crianças maiores, a EMEI se apresentava
enquanto espaço de frequente diálogo com as problematização levantadas inicialmente pela
pesquisa. Dessa forma, me dirigi ao prédio ao lado.

2.1 Do outro lado do muro: as conexões entre arquitetura e gênero na Escola Municipal
de Educação Infantil25

Tijolos, concretos, grades e muros interligados, configuram, em suas conexões, os


metros quadrados que abrigam, delimitam e circunscrevem o trânsito das crianças: trata-se da
pré-escola. Da grade do portão de entrada é possível observar o pátio e o refeitório com suas
mesas e cadeiras para realizarem as refeições. O olhar externo permite observar os fluídos de
energia que percorrem todo espaço, dinamizado pelas conversas, gritos, gargalhadas, choros e
correrias das crianças. Nas paredes, os pregos fixados em madeiras sustentam as mochilas e
bolsas com itens de higiene pessoal. Rosas, lilás e brancas com os desenhos de princesas e
personagens da Disney, mas também floridas e decoradas com lantejoulas, brilhos e
penduricalhos caracterizam os acessórios das meninas, ao passo que as mochilas dos garotos
prevalecem os super-heróis e animações como “Transformes”, “Ben 10”, “Homem Aranha”
entre outros, tingidas nas cores verde, vermelho e azul em sua maior parte. São gêneros
pendurados, afixados na sólida estrutura que permite deixá-las suspensa do solo, pouco acima
da altura das crianças. A merendeira e também as professoras, quando precisam, acessam as
bolsas para procurar, guardar ou verificar algo. Gêneros supervisionados, vigiados. As cores e
as ilustrações servem para nos lembrar qual gênero devemos ou não devemos ser, quais cores,
personagens e adornos nos pertencem e são capazes de representar uma identidade socialmente,
convencionalmente prescrita e articulada a uma genitália. “Pipi”: carrinhos, heróis; “Perereca”:
rosinha, bonecas, flores. Um enxame de palavras e representações de gênero em cores,
personagens e objetos passam a se relacionar em cadeia, articulando-se e estruturando as

25
Este capítulo não possui como parte de seus objetivos um estudo aprofundado da relação entre arquitetura e as
teorias de gênero. Busca-se apresentar aos/às leitores/as uma série de observações registradas acerca do espaço
físico e seus sentidos interpretados à luz dos estudos de gênero aplicados à educação, desnaturalizando as
finalidades das construções físicas e seus arranjos espaciais.
38

compreensões de uma identidade marcada e naturalizada pelos adultos. A imersão das crianças
nessa territorialidade de sentidos não implicará, necessariamente, que as identidades forjadas
se codifiquem sem resistências, reinterpretações ou mesmo atribuições de sentidos diversos em
decorrência de cada experiência infantil.
Ao lado direito do pátio está o corredor, permitindo o acesso às quatro salas. Afixado
nas paredes, está o mural da chamada, maneira ilustrativa para contabilizar os corpos que ali se
encontram. Os desenhos de um menino e uma menina dividem o quadro em dois, permitindo a
contabilização dos corpos em sua dimensão cindida (perspectiva dual baseada na exclusão de
outras possibilidades), organizada por práticas sexo-políticas26. As mesinhas amarelas também
indicam o limite de possibilidades interativas, são quatro, nenhuma mais! Quatro crianças em
cada mesa, admitindo o deslocamento para outras, mas não o excedente à regra: oito pernas se
balançando em seus vãos. Ao centro está a mesa da professora, lhe assegurando pela posição a
capacidade de enxergar como em um Panóptipo (FOUCAULT, 1987) todos os grupos, suas
condutas e, em caso de infração das regras, anunciar as sanções. Sanções normalizadoras.

Na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno mecanismo


penal. É beneficiado por uma espécie de privilégio de justiça, com suas leis próprias,
seus delitos especificados, suas formas particulares de sanção, suas instâncias de
julgamento. As disciplinas estabelecem uma “infra-penalidade”, quadriculam um
espaço deixado vazio pelas leis; qualificam e reprimem um conjunto de
comportamentos que escapava aos grandes sistemas de castigo por sua relativa
indiferença. (FOUCAULT, 1987, p. 149)

As caixas que deveriam guardar os brinquedos, armazenam gêneros. Separadas em


bonecas, carrinhos, peças de montar e acessórios, a categorização dos itens recorre a um critério
rudimentar e pouco estilizado para diferenciá-los. Armazenamento binário, mas desconstruído
quando lançados ao chão pelas crianças que passam a reinventar seus usos e significados. São
caixas de gêneros exclusivamente para adultos, requintes de suas tecnologias heterocentradas,
como também observou Finco (2004, p.97) em seu trabalho de mestrado:

A transgressão em relação à utilização dos brinquedos considerados “certos” e


“errados” para cada sexo foi observado por mim em vários momentos de brincadeira.
Os meninos e meninas brincam de tudo que lhes dê prazer: com bola, boneca, empinar
pipa, carrinho, casinha, panelinhas, espada. Ao brincar com todos os brinquedos que
desejavam, não deixavam que ideias, costumes e hábitos limitassem suas formas de
conhecer e vivenciar o mundo, determinando o que devem ser, o que deveriam pensar
e que espaços deveriam ocupar.

26
Práticas que organizam as funções de gênero através de características biológicas dos corpos.
39

Do lado esquerdo do pátio estão os banheiros, lugar em que as fezes, a urina, entre outras
necessidades fisiológicas deveriam ser o objeto de preocupação, mas que tornaram-se cápsulas
de armazenamento de gêneros, conforme Preciado (2018, p.01) ao analisar banheiros adultos:

Na porta de cada banheiro há um único sinal, uma interpelação de gênero: masculino


ou feminino, damas ou cavalheiros, chapéu masculino ou chapéu feminino, bigode ou
florzinha, como se a ação de entrar no banheiro fosse mais para refazer o gênero do
que para se desfazer da urina e da merda. Ninguém nos pergunta se vamos cagar ou
mijar, se temos ou não diarreia, ninguém se interessa pela cor nem pelo tamanho da
merda. O único que importa é o gênero

Assim que trancada a porta, nos deparamos com uma privada branca, com poucos
centímetros de altura, uma espécie de banco de cerâmica perfurado, mas que conecta o nosso
corpo defecante a uma invisível cloaca universal (na qual se misturam os resíduos de mulheres
e homens). Para Preciado (2018, p.01):

O vaso sanitário feminino reúne assim duas funções diferenciadas tanto pela sua
consistência (sólido/líquido), como pelo seu ponto anatômico de evacuação (duto
urinário/ânus), sob uma mesma postura e um mesmo gesto: feminino=sentado. Ao sair
da cabine reservada à excreção, o espelho, reverberação do olhar público, convida ao
retoque da imagem feminina sob o olhar regulador de outras mulheres. Atravessemos o
corredor para nos dirigir agora ao banheiro masculino. Fixados na parede, a uma altura
entre 80 e 90 centímetros do chão, um ou vários mictórios agrupam-se em um espaço,
geralmente também destinado às pias, acessível ao olhar público.

O banheiro masculino adulto expressa a produção eficaz da denominada “masculinidade


heterossexual”, separando a genitalidade da analidade, ou seja, os mictórios dos vasos
sanitários. A arquitetura nesta investida constitui barreiras quase naturais, respondendo a uma
diferença essencial de funções entre homens e mulheres. “Na verdade, a arquitetura funciona
como uma verdadeira prótese de gênero que produz e fixa as diferenças entre as mencionadas
funções biológicas” (PRECIADO, 2018, p.01).

O mictório, como uma protuberância arquitetônica que cresce desde a parede e se


ajusta ao corpo, atua como uma prótese da masculinidade, facilitando a postura
vertical para mijar sem respingar. Mijar de pé publicamente é uma das performances
constitutivas da masculinidade heterossexual moderna. Dessa forma, o discreto
mictório não é somente um instrumento de higiene, mas uma tecnologia de gênero
que participa na produção da masculinidade no espaço público. Por isso, os mictórios
não estão trancados em cabines opacas, mas em espaços abertos ao olhar coletivo,
sendo mijar-de-pé-entre-homens uma atividade cultural que gera vínculos de
sociabilidade compartilhados por todos aqueles que, ao fazer isso publicamente, são
reconhecidos como homens.

Os banheiros espelham-se no modelo público da era burguesa da França do século XIX,


proliferando-se pelos espaços urbanos e institucionais, transformando a arquitetura em uma
40

estrutura anatomo-política, em suma, mecanismo das tecnologias de gênero


(LAURETIS,1989).
Nas creches e pré-escola os banheiros não precisam necessariamente encontrar-se
separados, contudo, muitas vezes (como na EMEI pesquisada) isso ocorre em decorrência da
força dos hábitos culturais que se refletem na arquitetura institucional, como lembrou Silva e
Lisboa (2018) ao retomarem Escolano (2001):

[...] a arquitetura escolar se configura como um programa discursivo que institui, na


sua materialidade, um sistema de valores, concepções morais, estratégias de
vigilância, ordem e controle, marcos para uma aprendizagem sensorial e para a
afirmação de uma semiologia que se fundamenta em diferentes símbolos estéticos e
ideológicos. O espaço-escola, nessa linha de análise, caracteriza-se como um
construto sócio-histórico que, para além da sua estrutura física e por meio dela,
funciona como um vetor propagador de discursos e, como tal, um mediador cultural.
(ESCOLANO, 2001, apud SILVA e LISBOA, 2018, p. 127)

Os espaços institucionais desde a pré-escola possuem diferentes finalidades, como a de


organização e controle sobre os movimentos, as interações entre as pessoas e seus
deslocamentos, transformando a espacialidade em um local de poder, uma vez que as relações
institucionais e humanas podem tornar inteligíveis o poder político e suas manifestações
espaciais, segundo Raffestin (1993).
Silva e Lisboa (2018) sobre a pesquisa relacionada aos espaços da pré-escola, dentre
eles o banheiro, observam que os banheiros são espaços para além do fazer “xixi” e “cocô”, e
também não obedecem a lógica adulta de seus usos. Portanto, o banheiro das crianças na
educação infantil é desconstruído de seu conjunto de intenções arquitetadas para suas
finalidades, e eles concluem que:

Ao analisarmos a reinterpretação dos significados e normas atribuídas ao uso dos


banheiros pelas crianças foi possível verificar como a dimensão da curiosidade e da
brincadeira esteve presente na interação das crianças nesses espaços. A lógica dos/as
adultos/as, manifesta pela segregação espacial entre meninas e meninos, é
interpelada pela lógica das crianças, curiosas quanto à sexualidade do outro. O
cotidiano da pesquisa de campo evidenciou, contudo, que esta é apenas uma forma
de sociabilidade e apropriação dos/nos banheiros, já que as crianças se valem de
outras motivações, além da curiosidade pelo corpo, tais como brincar com água,
conhecer o banheiro oposto ao que lhes é permitido, conversar com o amigo/a da
outra sala ou apenas brincar, livremente. (SILVA e LISBOA, p. 137)

No fundo do pátio está o parquinho com seus brinquedos afixados, árvores e areia
espalhadas pelo chão. Ao centro, duas cadeiras em que permanecem as professoras durante as
atividades de recreação, supervisionando as crianças e observando suas interações. Meninos e
41

meninas se misturam no território do brincar, apagando as marcas delimitadas pela cultura


adulta através do povoado imaginário fantasioso e coletivo de seus pares que passam a
desterritorializar o lugar que se encontram.
A relação entre gênero, arquitetura e produção do espaço, discutidas em muitos obras, tais
como as de Ambrogi (2011), Bufalo (1997), Cruz (2011), Escolano (2001), Faria (2007), Silva
(2015), Teixeira e Raposo (2015), Zarankin (2002)), parecem articuladas, muitas vezes tornando-
se despercebidas aos naturalizados e distraídos olhares que transitam pelas cidades, hospitais,
escolas, ambientes domésticos, entre outros, sem que se atente aos eficientes mecanismos de suas
funções. Retomemos a obra de Foucault Vigiar e Punir (1987), em que o filósofo discorre acerca
da disciplina como tecnologia de poder, capaz de fabricar indivíduos ao usar como plano uma
anatomia política do corpo (seja ele individual ou social). As repartições e distribuições dos
corpos em respectivos espaços delimitados produzem seu assujeitamento e docilidade, corpos
úteis e conectados com suas funções, capazes de produzir subjetividades docilizadas.
Sobre a imbricada relação entre a produção de corpos disciplinares e o espaço
arquitetônico, mencionou o autor Candiotto (2012, p. 20) a partir de Foucault:

A disciplina se vale da vigilância como um de seus mecanismos mais eficazes.


Foucault mostra que efeitos de poder, tais como o autocontrole dos gestos e atitudes,
são produzidos não somente pela violência e pela força, mas sobremaneira pela
sensação de estar sendo vigiado. Engana-se quem pensa ser a sociedade disciplinar
aquela na qual todos se vigiam, como se houvesse um acréscimo de guardas e
disciplinadores. Pelo contrário, nas instituições de vigilância precisou-se cada vez
menos desses personagens. O poder disciplinar é econômico. Ele se vale de espaços
arquiteturais organizados de modo a incrementar e facilitar a sensação de vigilância
múltipla, detalhada e minuciosa de cada indivíduo que compõe seus interiores. Assim
é que hospitais, fábricas e escolas funcionam como microscópios do comportamento
humano, ao possibilitarem a um único olhar tudo ver, permanentemente. Mas esse
único olhar não necessariamente é de uma pessoa, já que o importante deixa de ser
que alguém, de fato, esteja vendo. O olho anônimo do poder e sua estruturação
arquitetural é que impelem o indivíduo a se autodisciplinar.

A tese defendida por Foucault consiste na ideia de que nas sociedades modernas, a norma
possui um alcance maior que a lei, prevalecendo como efeito estilizado das relações de poder
estabelecidas. A lei é externa ao indivíduo e funciona por ocasião da violação do que é previsto
como proibido, já a norma está envolvida na conjuntura da existência humana, presente nas
relações do cotidiano e alcançando sua assimilação e interioridade mediante as distribuições
espaciais, arquitetônicas e do controle de condutas, segregação e representação que produzem.
Enquanto a lei pode ser encarada como direta e também teatral, a norma, como escreveu
Candiotto (2012, p. 21) “é difusa e indireta; ela funciona como padrão culturalmente construído
a partir do qual uma multiplicidade de indivíduos é cindida por dentro, entre normais e anormais”.
42

Guattari (1977) em Revolução molecular: pulsações políticas do desejo nos alerta sobre os
perigos que a creche e também a pré-escola podem oferecer quando o modelo educacional e
pedagógico consiste na produção de subjetividades normatizadas a serviço da utilização do capital:

Não se enviam as crianças, pelo menos na França, para as manufaturas, na idade de 6


ou 8 anos, além do que se tem a impressão de ter humanizado a escola e as relações
familiares. Mas simplesmente trocou-se a roupa da velha crueldade da iniciação que
consiste em extirpar da criança, o mais cedo possível, sua capacidade específica de
expressão e em adaptá-la, o mais cedo possível, aos valores, significações e
comportamentos dominantes. (GUATTARI, 1977, p. 53)

Assim, a pré-escola como instituição arquitetada de produção e normalização dos


corpos, permite pensar a categoria gênero enquanto efeitos de poder naturalizados que podem,
na medida em que interrogadas, desconstruídos e reconstruídos, possibilitando romper e
deslocar com as formas binárias engendradas por uma pedagogia/arquitetura do corpo.

2.2 Transgressões e resistência simbólica às masculinidades hegemônicas

Em um certo dia, pela manhã, cheguei com antecedência na unidade da EMEI, por volta
das 7h00min, meia hora antes da entrada das crianças. Conversei com a professora da turma (Rose)
sobre a minha pesquisa e perguntei sobre as crianças, mencionando que realizava um trabalho
etnográfico que tinha um dos focos nas manifestações de gênero e sexualidade. Ela alertou que ali
havia crianças muito interessantes para serem observadas. Em seguida, a conversa foi interrompida,
para que Rose pudesse ir até o pátio da escola receber as crianças que estavam chegando.
Permaneci sentado no canto da sala, em uma pequena cadeira e fiquei em silêncio para
não prejudicar a dinâmica e a organização. Observava cada um deles entrarem e seus olhares
de desconfiança, como que se perguntassem: ‒ quem é esse homem aqui?
Em seguida, uma das crianças (um menino) caminhava com os passos leves em direção à
sala, o que tornava seu andar mais delicado e os movimentos do corpo menos bruscos. O garoto
sentou-se à minha frente, cruzando as pernas por debaixo da mesa e colocando a mão no queixo
enquanto aguardava a professora entrar. Ali, ele iniciou uma conversa com a colega que estava
ao lado. Nesse momento tento escutá-lo, e percebo que sua voz parecia acompanhar seus
movimentos, ou seja, era marcada por uma delicadeza atribuída socialmente a uma feminilidade.
Rose, ao entrar, pediu para que todos ficassem em roda ‒ era a hora da chamada. Então
me sentei ao lado do garoto e perguntei seu nome, e ele me respondeu, dizendo se chamar
Raphael (5 anos).
43

Naquele dia, Raphael estava vestido com a camisa do Corinthians, uma calça de
moletom e uma sandália. A camisa do time de futebol me chamou a atenção, uma vez que ele
era o único com aquela vestimenta ‒ pouco convencional entre as crianças –, que parecia uma
“casca”, uma tentativa de ocultar ou cobrir os movimentos que seu corpo produzia. Contudo,
ainda era cedo para buscar uma aproximação com as crianças ou levantar qualquer hipótese,
então esperei iniciarem as atividades para me integrar junto deles/delas. Rose me chamou a
atenção para observar duas delas (Raphael e Fernanda), dizendo:

O Raphael, a gente percebe, ele tem um jeito muito diferente dos outros meninos,
repara. Agora, a Fernanda, é uma outra situação. Durante as atividades ela se
esfrega na cadeira, fricciona os órgãos no canto da cadeira. Chega a transpirar, me
dá até nervoso!
Em seguida perguntei: ‒ Você já conversou com os pais sobre isso?
‒ Já sim, ela respondeu. Porém, falei para a mãe prestar atenção se ela não estava
com infecção de urina, porque assuntos assim a gente não fala de cara, tem que
contornar para dizer. Mas a mãe disse que não era, e que ela fazia aquilo em casa
também. (Fragmento do diário de campo, março de 2017)

Possivelmente, Fernanda, aos 5 anos, estava conhecendo o próprio corpo e descobrindo


que a região genital é prazerosa quando estimulada e era distinta da que os garotos possuem. O
que na psicanálise foi denominada por período “fálico”, momento em que o prazer é obtido por
meio do próprio corpo.
Emergia naquela pequena sala um universo de gêneros, desejos e sexualidades
flutuantes, tudo explodindo diante dos olhos de um jovem pesquisador que retornava para um
ambiente deixado para trás nos primeiros anos de sua vida: a educação infantil.
Foi durante as atividades dos “cantinhos” e também no “parque” que comecei a me
aproximar das crianças, com o intuito de conversar. Me lembrei da experiência do
antropólogo Corsaro, descrita em seu texto “Entrada no campo, aceitação e natureza da
participação nos estudos etnográficos com crianças pequenas”, em que o adulto sempre
sentia-se insatisfeito com as respostas das crianças, além de parecerem controladores sobre
suas ações.

Vendo como os adultos eram ativos e controladores em sua interação com as


crianças na pré-escola, decidi adotar uma estratégia de entrada “reativa”. Na
minha primeira semana na escola, fiquei continuadamente em áreas dominadas
pelas crianças e esperei que elas reagissem à minha presença. ( CORSARO,
2005, p. 448)

Então, permiti que elas chegassem até mim. E assim como Corsaro (2005), nas primeiras
semanas em campo as crianças passaram a se comunicar comigo, mostrando suas atividades
44

produzidas (desenhos e pinturas), pedindo para que eu ajudasse amarrar o tênis e também
fazendo comida com as massinhas de modelar.
O fato da professora me inserir na comunicação com as crianças facilitou com que elas
me reconhecessem como um sujeito integrado àquele espaço. Desta forma, passaram a me
chamar de “professor”, tratamento que aponta um distanciamento produzido entre nós, uma vez
que poderiam me chamar por Alex, ou outro nome qualquer, mas optaram por me tratar como
alguém que exerce sobre elas uma relação de poder desigual.
Uma situação marcante ocorreu quando, observando o grupo em que Raphael se
encontrava durante uma atividade para desenhar e colorir a capa bimestral da pasta de
atividades, ele desenhava um quadrado com alguns rabiscos que pareciam animais. Então
perguntei:

- O que você está desenhando?


- Ele respondeu: Eu to desenhando uma televisão.
- E isso aqui ao lado? São vacas? Eu disse.
- Não! São cachorros da “patrulha canina”.
- Patrulha canina? O que é isso?
- É um desenho!
- E a patrulha canina é toda verde?
- Não, mas eu gosto do verde. Verde é a minha cor preferida.
(Fragmento do diário de campo, abril de 2017)

Elogiei o desenho, caminhei pelos outros cantinhos conversando com as crianças e em


seguida voltei para o grupo em que Raphael estava. Então, novamente começamos a dialogar,
falamos sobre temas de festas de aniversário, das brincadeiras e desenhos favoritos e também
sobre times de futebol, uma vez que a imagem dele usando a camiseta do Corinthians ainda
estava presente.

- Você torce para qual time, Raphael?


- Corinthians.
- Quem mais é corintiano na sua casa?
- O meu pai. E se eu falo que não gosto do Corinthians, ele fica muito bravo.
Ele diz: “vai curintia”!!!
- Mas se você quisesse torcer para outro time, para qual você torceria?
- Ele me respondeu: não sei, pro Palmeiras.
- Palmeiras? Justo o Palmeiras que é o maior rival do Corinthians. Por quê?
Perguntei.
- Por que ele é verde!
- Dei risada e questionei se o pai ficava bravo com ele quando fazia bagunça.
E para a minha surpresa e da professora que se encontrava ao lado,
respondeu:
- Quando eu falo igual menina! (Fragmento do diário de campo, março de
2017)
45

Nesse momento a professora me olhou, dizendo: “Meu Deus!”.


A cor que Raphael mais gostava estava associada à do time de futebol, popularmente
conhecido por sua rivalidade ao Corinthians: o Palmeiras. Aqui, me parece interessante
perceber como a resistência de Raphael emerge na sua dimensão simbólica, pois, aquilo que o
pai não gosta aparece na cor e no time da oposição. Quando faço a última pergunta,
questionando se o pai ficava bravo quando Raphael fazia bagunça e ele diz: “quando falo igual
menina”, nos dá indício da presença do machismo e da homofobia na educação da infância,
permitindo pensar a constituição da identidade na infância também como relações de resistência
às ordens e aos discursos. As identificações também se produzem na relação com a alteridade.
Enquanto o pai de Raphael, ao forçá-lo por diferentes formas (como vestir a camiseta
do seu time de futebol ou questionar sua ondulação vocálica) tenta impor um protótipo de
masculinidade ao filho, marcando seu corpo com um significante, “Corinthians”, o sentido
que o significante Corinthians ocupava para Raphael era distinto daquele desejado pelo pai,
ou seja, as atribuições que revestem essa palavra e o conjunto de associações decorrentes
dela eram outros. Para o pai, Corinthians remetia e se encadeava com outros significantes 27:
masculino, homem, virilidade, macho, etc. Já para o filho, a cadeia de encadeamentos
parecia produzir outros registros, ou seja, Corinthians se relacionava ao medo, pressão,
desejo do pai, etc. As tentativas para se controlar ou acreditar ser possível tecer uma
identidade podem ser equívocas, uma vez que o estabelecimento com cada significante é de
caráter individual, diretamente ligado a experiências psíquicas singulares que cada sujeit o
registra.
Outra análise, nesse aspecto, a partir das contribuições de Corsaro (1997, p. 96) é
compreender as transgressões que irrompem as fronteiras de gênero como “manifestações de
resistências”, que “surgem desenvolvendo-se como resultado das tentativas das crianças para
fazer sentido, e até certo ponto para resistir ao mundo adulto”.
As identidades das crianças, como destacaram Faria e Finco (2011, p. 6) também são
processos intensos de negociações:

A construção social das identidades infantis nesse contexto pode ser vista como um
processo de negociação constante por aquilo que constitui o social e a maneira como
as identidades são construídas dentro de uma cultura eminentemente em movimento
e em confronto. Assim, rejeitar as narrativas tradicionais de certeza, controle e
domínio significa rejeitar a arrogância da certeza teórica. Porque, segundo Bhabha
(2007), “as identidades, como a própria cultura, são formadas de maneira performática
nessa encruzilhada, fissuras e negociações”.

27
A compreensão sobre os significantes foi buscada a partir das contribuições do psicanalista Jacques Lacan.
47

psicológica. Schulman (2010, p.76) sobre a questão relembra que muitas vezes, ninguém no
interior da família se identifica com as pessoas LGBT, tampouco e as que se encontram externo
ao laço familiar.
Como destacou Magalhães e Ribeiro (2015, p. 1565) “essa (re)produção constante do/a
homossexual como anormal, um desvio a ser identificado, acaba por gerar preconceitos,
maneiras de definir e perceber esses sujeitos como objetos a serem corrigidos”. Esses corpos
são tratados na sua dimensão abjeta. A abjeção se situa na zona inóspita, inabitável da vida,
restrita aqueles que não usufruem o estatuto de sujeito, como lembrou Butler (2016).
Porto (2016, p. 162), a partir de Butler, destaca:

O abjeto se situará precisamente naquelas zonas inóspitas e inabitáveis da vida social,


que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de
sujeito, mas cujo habitar sob o signo do inabitável é necessário para que o domínio do
sujeito e de suas fronteiras seja circunscrito. Portanto, não é tanto a ausência de
limpeza ou a saúde que torna um corpo abjeto, mas sim aquilo que ele pode perturbar
em uma identidade, em um sistema ou uma determinada ordem. Aquilo que o abjeto,
pela sua mera existência, provoca ao não respeitar os limites e as regras

Ao retornar da pré-escola, muitas questões passaram a me incomodar e eu não pude


desassociar a conduta do pai ao cenário político que o munícipio enfrenta com relação à
implementação dos projetos e discussões de gênero e sexualidade nas escolas. Com o intuito
de proibir qualquer discussão ou pedagogia que vise uma educação para as relações de
gênero desde a infância, os vereadores têm fomentado nos munícipes uma posição de
inflexibilidade contra os docentes e as políticas que buscam desenvolver pedagogias nesse
aspecto.
Denominando por “ideologia de gênero”, os vereadores passaram a demonizar as teorias
e as propostas dessa natureza, relacionando-as ao mal, à pedofilia e a tudo que de acordo com
eles poderia comprometer o desenvolvimento e a sexualidade das crianças.
Durante a sessão ordinária para discussão do Plano Municipal de Educação, realizada
na Câmara Municipal da cidade, o vereador Jair disse:

[...] graças a Deus [o município], através dos seus representantes, Câmara dos
Vereadores, Prefeito Municipal, irá enterrar este artigo, essa emenda que fala sobre a
ideologia de gênero, fazendo assim, Senhor Presidente, uma ampla demonstração de
valorização e proteção das crianças desta cidade para que o pai e a mãe tenham
certeza que o seu filho sai de casa para ir à escola, ele vai lá buscar o conhecimento,
enriquecer o seu conhecimento, e deixar para a família a sua orientação.
Infelizmente, nós estamos vendo, ao longo do Brasil, cidades que não terão essa
felicidade de tirar a ideologia de gênero, cidades que estão discutindo cartilha de
orientação sexual para a criança de seis anos, e às vezes orientação homossexual.
48

Senhor Presidente, é essa a questão que eu quero demonstrar, essa questão que nós
devemos deixar para a maior instituição brasileira, a instituição chamada família. 28

As falas dos vereadores foram reiteradamente marcadas por leituras de fragmentos


bíblicos e de orações como o “Pai Nosso”, enfatizando que naquela sessão era importante
ampliar a proteção pelas famílias, em decorrência do projeto em debate: “Senhor Presidente,
segundo orientação do vereador, Cunha, proponho nesta data importante, se Vossa Excelência
entender necessário, se estiver no regimento, que ao término desta sessão nós rezássemos aí um
Pai Nosso”29 e acrescenta destacando: “fica aí o pedido porque eu acho de suma importância,
porque hoje é a proteção da família que está sendo discutido nessa casa, a proteção dos filhos
desta cidade, e isso nós nunca iremos permitir que seja mexido”30.
Conforme os registros da Ata, a sessão encontrava-se lotada, com a presença de
inúmeras lideranças religiosas dos setores evangélicos e católicos da cidade. Portanto, era
importante discursar publicamente recorrendo a fundamentos bíblicos para embasar as
posições políticas e os votos na sessão ordinária. Referências às teorias biológicas, que do
ponto de vista científico poderiam tecer questionamentos aos estudos das relações de gênero
e sexualidade, foram relegados, abrindo possibilidades para que uma oratória religiosa
provocasse o fervor daqueles que assistiam, estimulando manifestações de aplausos, como
descrito no documento.
A Câmara Municipal havia se tornado um território político de nomeação das
artimanhas do “inimigo”31 ‒ a ideologia de gênero ‒ sinalizando a necessidade de destruir o
mal que buscava permear a educação infantil, como discursou o pastor e vereador João
Campos: “Agora, você pega aí crianças de zero a três anos, nós implantarmos nas CEIs 32 o
sistema de ideologia de gênero, querer já ensinar nossas crianças como é, como deve ser”.
Se os estudos de gênero, denominado “ideologia de gênero”, apareciam como o projeto
ligado ao mal, e que naquela noite seria derrotado, quem eram os grupos que estavam sendo
usados pelo “inimigo” para colocá-lo em prática? O vereador Cunha comenta em sessão:

[...] eu quero aproveitar e dizer que isso já foi retirado, a ideologia de gênero, já foi
retirado do plano nacional, e a associação LGBT, de uma forma estratégica, sabendo
que havia sido derrotada em Brasília, Senhor Presidente, eles vieram para as regiões

28
Ata da 21ª Sessão Ordinária, da 3ª Sessão Legislativa, da l6ª Legislatura, realizada no dia 22 de junho de 2015,
p. 5.
29
Ibid, p. 7.
30
Ibid, p. 7.
31
Palavra utilizada com frequência por segmentos evangélicos para referir-se ao demônio.
32
Ata da 21ª Sessão Ordinária, da 3ª Sessão Legislativa, da l6ª Legislatura, realizada no dia 22 de junho de 2015,
p. 13 (grifo nosso)
49

estaduais e municipais, mais de cinco mil municípios, talvez algumas Câmaras não
preparadas, como nós sabemos que infelizmente em algumas Câmaras foi aprovada,
mas graças a Deus na maioria não porque houve Pastores, Padres, Parlamentares,
defensores das famílias evangélicas e católicas, alertando.
Esta casa recebeu e-mails. Esta casa tem notícia que foi colocado em rede social, em
Twitter, Facebook, com relação a alertar o perigo da ideologia de gênero. 33

Ideais como “proteção da família”, “proteção das nossas crianças” aparecem com
frequência nas falas dos legisladores, sempre relacionadas aos perigos oferecidos pelas mídias
por tornarem pública a afetividade de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
transgêneros. Para os vereadores, a identidade de gênero e a heterossexualidade eram
biológicas, contudo, a cultura corrompia esta natureza conduzindo crianças a outros
comportamentos de gênero e sexuais, como destacou o pastor e vereador João Campos: “Então,
Senhor Presidente, a ideologia de gênero é uma tentativa de afirmar para todas as pessoas que
não existe identidade biológica”34.
A preocupação dos legisladores ‒ caso em 2016, ou posteriormente, não fossem
reeleitos para os cargos35 ‒, para defender a família impulsionou a elaboração de uma Emenda
de Lei Orgânica, com o intuito não apenas de retirar as discussões de gênero e sexualidade do
Plano Municipal de Educação, como o de proibir que qualquer debate nessa instância ocorresse
nas pré-escolas e escolas municipais.

Eu fiz uma Emenda à Lei Orgânica, porque nós vamos aprovar aqui hoje um
substitutivo do Plano Municipal de Educação, mas eu fiz uma Emenda à lei orgânica
que diz o seguinte, Senhor Presidente, que altera o Artigo 31 da Lei Orgânica do
Município, que não será objeto de deliberação qualquer proposição legislativa que
tenha por objeto a regulamentação de políticas de ensino, currículo escolar,
disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma complementar ou facultativa, que
tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo gênero ou orientação sexual. Com
isso aqui vai ficar garantido, mesmo que amanhã venha outro plano municipal de
Educação, Senhor Presidente, não vai poder contemplar a ideologia de gênero,
porque essa lei, se for aprovada por esta Câmara, vai proibir e coibir isso”. 36

Para os autores Reis e Eggertt (2017, p. 20):

Criou-se uma falácia apelidada de “ideologia de gênero”, que induziria à


destruição da família “tradicional”, à legalização da pedofilia, ao fim da “ordem
natural” e das relações entre os gêneros, e que nega a existência da discriminação

33
Ibid, p. 11
34
Ibid, p. 13
35
Todos foram reeleitos para os cargos legislativos (2017-2020), com exceção do vereador Everaldo (PRB) que
concorreu a disputa pelo majoritário (executivo), perdendo para o prefeito que tentava a reeleição.
36
Ata da 21ª Sessão Ordinária, da 3ª Sessão Legislativa, da l6ª Legislatura, realizada no dia 22 de junho de 2015
(p. 11).
50

e violência contra mulheres e pessoas LGBT comprovadas com dados oficiais e


estudos científicos.
[...] Utilizou-se também de uma espécie de terrorismo moral, atribuindo o status de
demônio às pessoas favoráveis ao respeito à igualdade de gênero e diversidade sexual
na educação, além de intimidar profissionais de educação com notificações
extrajudiciais com ameaça de processo contra quem ousasse abordar esses assuntos
na sala de aula. Criou-se um movimento para “apagar” o assunto gênero do currículo
escolar.

Diferentemente do que proliferam, os estudos de gênero – e não ideologia de


gênero –, se trata de um conjunto de teorias oriundas de diversas áreas das ciências
humanas, como as ciências sociais, a história e a educação e que buscam estudar, analisar
e compreender os fenômenos da constituição das identidades, das suas relações, portanto,
das diferenças, abrindo possibilidades para interpretar a sociedade e as desigualdades
assinaladas pela discriminação e pelas normas de imposições sociais, auxiliando na
construção de políticas públicas para que os sujeitos à margem dessa estrutura possam
gozar do direito à cidadania.
Os estigmas inscritos sobre o conceito “gênero”, o violento debate que se construiu
sobre suas dimensões, e a suspeita alimentada por aqueles contrários às propostas educacionais
desses projetos, dizendo que poderiam desorientar a sexualidade das crianças, induzindo-as à
homossexualidade, bissexualidade ou à transgressão da identidade (travesti e transexuais),
produziu em muitos professores e professoras o medo de debater casos que cotidianamente
envolvem insultos de conotação machista, homofóbica e transfóbica, dificultando, ainda mais,
um trabalho que busque a conscientização pelo respeito às diferenças e pelo exercício da
cidadania.
Raphael e Felipe, provavelmente, não são os únicos garotos da rede municipal que têm
medo do pai e que têm receio de serem fotografados ou ameaçados em razão de sua relação
com atributos do gênero designados feminino. Ou seria uma outra face de uma masculinidade
interdita? Se o gênero é potencialmente criação, por que não falarmos em outras
masculinidades? Em novas possibilidades de negociação com a dimensão imaginária de um
sexo pré-discursivo? Estas provocações me levaram ao texto “Pequena infância, educação e
gênero: subsídios para um estado da arte” em que um garoto (Toninho) almejando pintar as
unhas de vermelho é interrogado pela professora que vê em sua atitude um gesto feminino, e
ao questionar a razão pela qual optou pelo esmalte vermelho, ele responde que se trata da cor
do Schumacher.

- Você já pintou as unhas antes? Seu pai pinta as unhas?


E ele respondeu prontamente
51

- Ah, eu nunca pintei antes. Meu pai não pinta também.


Bela resposta pensou, e eu, o que faço? Pergunto mais alguma coisa, quem sabe ele
muda de ideia:
- De que cor você quer pintar?
E decidido Toninho responde
- VER-ME-LHO.
E agora? Lá se foi meu emprego... Bom, mais uma pergunta, e quem sabe tudo se
resolve:
- Mas porque vermelho?
E Toninho responde todo feliz
- É a cor do Schumacher!
(FARIA, 2006, p. 281)

Para a criança, a cor vermelha estava associada ao piloto de Fórmula 1, Schumacher.


Enquanto para a professora a cor encontrava-se resguardada por uma ação relacionada ao
mundo da feminilidade: pintar as unhas. Para Toninho, a cor vermelha se encadeava a uma
multidão de novos significantes, como: Schumacher, Fórmula 1, corrida, carros, campeonato,
entre outros, ao passo que o esmalte como objeto utilizado por mulheres não estava em operação
no jogo associativo, como pensava a professora.
Dessa forma, percebe-se que a transgressão de gênero se tratava de um outro lugar da
sua masculinidade. Seríamos todos nós, de alguma forma, transexuados?
Deleuze e Guattari nos provocam a pensar esta questão:

E assim, no nível das combinações elementares, é preciso fazer a multiplicidade na


qual se estabelecem comunicações transversais, conexões de objetos parciais e de
fluxos: a parte masculina de um homem pode comunicar com a parte feminina de uma
mulher, mas também com a parte masculina de uma mulher, ou com a parte feminina
de um outro homem, ou ainda com a parte masculina de um outro homem, etc. E aí
cessa toda culpabilidade, porque ela não pode agarrar-se a essas flores. À alternativa
das exclusões “ou/ou” opõe-se o “ou” das combinações e permutações nas quais as
diferenças vêm a dar no mesmo sem deixarem de ser diferenças.
Somos heterossexuais estatisticamente ou molarmente, mas homossexuais
pessoalmente, quer o saibamos ou não, e, por fim, transexuados elementarmente,
molecularmente. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 97)37

Portanto, a cidade, ao negar as propostas que buscam a construção de políticas públicas


e educacionais visando o combate à violência de gênero, desconsidera os saberes, as pesquisas
e demais produções publicadas sobre a temática, corroborando para tornar a escola um território
marcado pela violência física e psicológica, como nos lembrou a professora Rose ao se referir
a Raphael durante uma das conversas:

37
As provocações de Deleuze e Guattari em O anti-Édipo buscam questionar a noção de desejo como falta,
interrogando a triangulação edípica que produz as identidades sexuais e as relações de identificação de gênero,
tendo em vista que ambos propõem compreender o desejo como produtor, como máquina. Desta forma, nosso
inconsciente máquina estabelece diferentes formas de conexões com ambos os sexos e gêneros, rompendo a
dimensão binária estrutural que produz identidades inteligíveis. Por isso, sermos transexuados elementarmente.
52

Enquanto ele está aqui no infantil, não tem problema. As crianças nem ligam, não
entendem direito. O problema é depois, lá no fundamental. Se não tiver uma
professora que enfrente junto com ele, pode esquecer, vai ser motivo de chacota. Isso
quando não agridem. (Fragmento do diário de campo, abril de 2017)

Rose chama a atenção para uma importante questão: os professores e professoras da


educação básica no Brasil possuem formação e instruções para lidar com as adversidades e
conflitos em decorrência do preconceito de gênero e sexualidade em sala de aula? Ou a
naturalização da homofobia nos espaços da escola operam sem obstáculos a tornando um
ambiente hostil, provocando a evasão desses estudantes? Para Junqueira (2009, p.15) a escola
configura-se um lugar de opressão, discriminação e preconceitos, no qual existe um
preocupante quadro de violência a que estão submetidos milhões de jovens e adultos LGBT –
“muitos/as dos/as quais vivem, de maneiras distintas, situações delicadas e vulneradoras de
internalização da homofobia, negação, autoculpabilização, autoaversão. E isso se faz com a
participação ou a omissão da família, da comunidade escolar, da sociedade e do Estado”
(JUNQUEIRA, 2009, p.15).
54

Em uma manhã de terça-feira, a professora solicitou que as crianças ficassem em roda


para a realização da chamada, e me pediu que sentasse junto delas, o que acabou por provocar
risos e comentários diversos entre todos/as, como: “Você também é criança?”; “Não tem seu
nome aqui!”; “Ele tem barba, não é criança!”. Ofélia, escutando os gracejos, respondeu que se
tratava de uma criança “grandona” e que participaria junto com todos/todas nas atividades do
dia (Fragmento do diário de campo, abril de 2017).
Meninas e meninos gargalhavam, pareciam não acreditar que a professora havia feito
uma afirmação daquelas, uma vez que minhas características físicas eram de um homem adulto.
Porém, as crianças decidiram, após aquele dia, testar-me, verificando se de fato eu era um deles.
Minutos após a chamada, as crianças se dirigiram para o refeitório, localizado no pátio
da pré-escola e lá se sentaram para tomar o café da manhã (leite com achocolatado e bolachas).
Naquele momento, me desloquei para o canto do pátio para observá-las, quando escutei
algumas meninas me chamarem a atenção e perguntar: ‒ você não vai tomar leite com a gente?
Percebi que era importante participar do café da manhã, contudo, ao sentar-me nos
pequenos bancos, minhas pernas não cabiam debaixo da mesa, me obrigando a inclinar o corpo
colocando-as para o lado de fora. Quando perceberam que eu não conseguia sentar como
eles/elas, uma das garotas rindo para as colegas, disse: “ele não cabe na mesa, é grande”. Em
seguida um alvoroço começa durante o desjejum, e os meninos que prestavam atenção na cena,
acrescentam: ‒ “ele não é criança, nada!”, “ele sabe ler e escrever”, ao me observarem com o
caderno de campo e a caneta em mãos (Fragmento do diário de campo, abril de 2017).
Desconfortado, comi apenas uma bolacha e me retirei em seguida, pois havia pouco tempo para
terminarem a refeição e minha presença na mesa provocava reações diversas, atrapalhando.
No retorno para a sala, me sento junto de mais três crianças em uma mesa de grupo,
onde havia duas meninas e um garoto (Felipe, 5 anos), já mencionado por uma das professoras
e destacado anteriormente. Buscando integrar-me, utilizo um tom de voz “infantilizado” e início
uma conversa. Umas das meninas, ao me escutar, olha para as outras crianças, arqueando uma
das sobrancelhas, dizendo: ‒ “ele é uma criança idiota!”.
Espantado, considerei a afirmação surpreendente, afinal, ser criança não era encenar um
personagem ou usar outro timbre de voz para forçar uma comunicação. Ao ser associado a um
idiota, me dei conta da difícil tarefa que tinha pela frente para participar de suas produções
culturais, pois como destacou Mauss (2010, p. 243) “em um meio de crianças, surgem
constantemente novas formas de linguagem, que se perdem, que se difundem em maior ou
menor grau”.
55

Recordei-me de Fernandes (2004, p. 236) ao escrever sobre a importância da recreação


para a constituição e formação dos grupos infantis, ou seja, um espaço importante para estreitar
laços e fazer amizades.

Inicialmente, as crianças podem reunir-se só para brincar. Depois, pouco a pouco, os


contatos vão criando um ambiente de compreensão comum e de amizade recíproca,
manifestando-se a consciência grupal pela intolerância para com os estranhos ao
grupo. Nessa fase inicial da formação do grupo tem particular importância os jogos e
as rodas infantis. À medida em que os contatos se estreitam e se desenvolve a unidade
do grupo, as atividades tomam outra direção.

Buscando aproximar-me, perguntei do que brincaríamos na hora do parque e Felipe


prontamente respondeu dizendo que brincaríamos de “Winks”. Mas, o que era “Winks”? Ao
interrogá-los do que se tratava essa brincadeira, as meninas (Larissa e Bianca) disseram ser um
desenho sobre poderosas fadas que possuíam magias, como o “raio reluzente”, acrescentou
Felipe.
Aceitei participar da brincadeira, entretanto precisava de mais referências da animação,
por isso, questionei quem eram os/as personagens. Após algumas explicações por parte das
crianças, Felipe, enfático, ressalta que seria “Musa”, a Winks de cabelo roxo.

- Eu sou a Musa! Ele afirmou.


- A Musa? Por quê? Interroguei.
- Porque ela tem o cabelo roxo e gosta de música!
- Então, respondi: mas, essa ai é uma personagem mulher, não é?
(Fragmento do diário de campo, abril de 2017)

Bianca, de imediato interveio: mas ele é uma winks homem! Sem prolongar a discussão
optei por escutar as crianças conversando enquanto realizavam uma atividade de desenho livre.
O desenho das “Winks” permanecia sendo debatido, e nomes de outros personagens apareciam,
como: Tecna, Flora e Stella, até surgir o nome de personagens homens, como Brandon e Sky.
Curioso, perguntei ao Felipe:

- O que acha de ser o Brandon, Felipe?


- Eu não quero ser o Brandon! Ele é chato. Não tem cabelo grande e nem roxo, nem
os poderes da Musa. Eu sou a Musa.
(Fragmento do diário de campo, abril de 2017)
58

A partir desta cena, pode-se retomar a concepção de gênero proposta por Butler,
concebendo-a como uma ação performativa de nomeação, e que faz existir a diferença
anatômica e a possibilidade de relações entre os seres, portanto, a categoria homem ou mulher
não se trata de uma instância biológica natural e atemporal, mas antes, nomeações que passam
a estabelecer um critério de organização nas relações sociais.
Na medida em que participava das atividades, as crianças interagiam comigo com maior
frequência, contando fatos relativos à vida familiar, alguns pensamentos e opiniões. Nesse caso,
em especial, me refiro à opinião da figura de Stela, a merendeira.
Durante os horários de café da manhã e almoço, a merendeira “fiscalizava” quem estava
ou não comendo toda a comida. Como as crianças se serviam e eram orientadas a pegarem
apenas a quantidade que conseguiriam comer, ficava sob a responsabilidade delas não
desperdiçar os alimentos e, para verificar, Stela passava observando os pratos. Quando havia
sobras, algumas crianças com medo aguardavam Stela entrar na cozinha para despejarem no
recipiente que ficava em cima de uma mesa no pátio. Porém, com o passar das semanas, as
crianças perceberam que a merendeira – chamada de Bruxa por alguns ‒, não esboçava
nenhuma reação quando eu depositava as sobras, e passaram, desde então, sabendo que se
tratava de um adulto imerso entre elas, a solicitar que eu jogasse para elas o restante da comida,
evitando qualquer reação que as constrangesse, caso fossem pegos despejando. Assim, as
crianças encontraram maneiras para burlar as regras, um ato de enfrentamento e resistência às
ordens do mundo adulto, às suas tentativas de governamento.

Enfim, governa-se a infância com o objetivo de conduzi-la para determinados


“lugares” numa cultura, para determinadas posições numa sociedade e para
determinadas formas de vida já partilhadas por aqueles que já estavam aí. Assim, o
que se coloca em questão e é da maior importância não é apenas sabermos como isso
está sendo feito, ou seja, de que maneira que se governa hoje a infância, mas sim para
onde essas formas de governamento a estão levando. Conhecer os modos pelos quais
as crianças estão sendo governadas tem tudo a ver com o tipo de sociedade futura que
está hoje a ser gestada nas famílias, nas escolas e nos espaços sociais mais abertos.
(VEIGA-NETO, 2015, p. 56)

No horário de brincar no parque, algumas negociações se repetiam. Cientes de que não


poderiam permanecer em um determinado espaço da pré-escola, devido ao acúmulo de galhos
e entulhos que ali se encontrava, as crianças passaram a me convidar para participar das
brincadeiras que ocorriam no “canto proibido”, uma vez que a professora não chamaria a
atenção do grupo por estarem acompanhados de um adulto. No término do horário do parque,
Ofélia os chamava para lavar as mãos e entrarem para a sala, no entanto, eles combinavam
fingir não escutá-la, prolongando o tempo das brincadeiras.
59

Em uma dessas situações presenciei dissimularem não escutar os chamados. Então


perguntei:
‒ Vocês ouviram a professora chamar40?
Sem responder à pergunta, uma das garotas disse: ‒ Alex, vamos lá na árvore também?
E em seguida, ela e suas amigas correram em direção a árvore no canto do parque, fingindo não
ouvir a professora. As crianças queriam prolongar o tempo cronológico em que podiam
movimentar-se, expressar-se corporalmente, expandindo os limites do corpo impostos pela
realização das atividades programadas que ocorriam dentro das salas. O parque não era apenas
um território das brincadeiras, mas também um espaço para deseducar movimentos, ideias e
produzir culturas infantis.
Ante essas circunstâncias, percebi que as crianças, entre si, me usavam para atender seus
interesses, afinal, eu deveria corroborar com as intenções, uma vez que me esforçava para
participar de suas produções culturais e havia, pela professora, sido apresentado como uma
“criança grande”.
O envolvimento e a proximidade com o passar das semanas em campo, fez com que
Felipe se aproximasse, falando sobre a sua vida, demonstrando confiança. Felipe raramente
tomava café ou almoçava na escola, pois vomitava com frequência, e a pedido da mãe, evitava
comer para não causar transtornos. Assim, aguardava sentado no banco, ao meu lado, os/as
colegas terminarem as refeições, e em uma de nossas conversas ele revelou que seu pai ficava
“bêbado”, e quando embriagado falava palavrões, “palavras feias”, chegando “bater as portas
de casa”, fazendo muito barulho.
Isso o deixava muito triste, uma vez que “não gostava de ver o pai bêbado”, pois as
reações lhe provocavam medo, levando-o a “ficar junto” da mãe que o “protegia”. Contudo, o
descontentamento de Felipe não inviabilizava manifestações de afetividade com o pai. Em suas
palavras, o pai também aparecia investido por uma linguagem carinhosa, além de demonstrar
ternura ao falar sobre ele.
Durante nossas conversas, havia me recordado do diálogo com a professora ocorrido
semanas antes, no prédio ao lado, da creche, em que ela me dizia que a mãe havia comprado
uma boneca para ele. Então, perguntei se ele tinha bonecos e bonecas em casa, e a resposta foi
positiva, dizendo: “Eu tenho a Jéssie, mas eu também quero a mulher elástico”.

- Além da Jéssie, você tem outros bonecos ou bonecas? Perguntei.

40
Ao questionar as crianças para que prestassem atenção nos chamados da professora, percebi que havia agido
como um adulto convencional. Posição esta que buscava me distanciar quando estava interagindo entre eles.
60

- Eu tenho alguns super heróis, ele respondeu.


(Fragmento do diário de campo, maio de 2017)

Ele também ressaltou que gostava das personagens Elsa e Anna do desenho Frozen.
Felipe possuía admiração pelos atributos da feminilidade e as personagens com quem
se identificava eram mulheres belas, delicadas, vaidosas e poderosas que enfrentavam as
dificuldades e resistiam aos obstáculos que apareciam ao longo da trama nos desenhos. Talvez,
como sua mãe, ao enfrentar situações de dificuldade no dia a dia?
Felipe possuía atributos de comportamentos de gênero socialmente designados
femininos41 pela cultura e sociedade adulta brasileira, mas isso não provocava em seus/suas
companheiros/as de sala nenhuma manifestação de estranhamento, repúdio ou discriminação.
Talvez por considerarem irrelevante entre eles/elas, ou não notarem. A tendência hegemônica
entre as crianças era em executar tarefas de gênero normatizadas, levando meninas a brincarem
com bonecas e louças e os meninos com carrinhos e super-heróis, porém as transgressões destas
fronteiras não evidenciavam nenhum problema entre seus colegas quando ocorriam.
Me recordo uma cena em que, sentado, brincando com algumas crianças de cozinha, um
garoto me perguntou:

- Por que sua orelha é furada?


- Eu usava brincos, respondi.
- Brincos é coisa de mulher, afirmou.
- “Homem também usa, meu pai tem” disse outra criança que junto de nós escutava
a conversa e brincava com as panelas.
(Fragmento do diário de campo, maio de 2017)

A pré-escola, neste caso, não emergia como espaço de discriminação, mas como um dos
dispositivos de controle que produz, ao longo do tempo, comportamentos que acabam
naturalizando-se, como a utilização de cores, adereços, maneiras de sentar-se, brinquedos, uso
de banheiros, etc. Práticas que marcam o corpo, definindo identidades, segundo Eribon (2004),
Louro (2014), Weeks (2010); governando a infância, como observou Veiga-Neto (2015, p. 55):
“governar a infância significa educar as crianças, moldando-lhes a alma que é, ao mesmo
tempo, efeito e instrumento de uma anatomopolítica dos e sobre os corpo infantis” e, para isso,
submeter seus sujeitos (nesse caso, as crianças) às disciplinas, um princípio de controle da

41
Como destacado anteriormente, Felipe brincava exclusivamente com as meninas, preferia as bonecas aos
carrinhos, interessava-se pelas personagens mulheres nas animações, manifestava interesse em representá-las
durante as brincadeiras, além da delicadeza e sensibilidade nas gesticulações dos movimentos corpóreos.
Significados socialmente atribuídos à feminilidade em nossa cultural.
61

produção do discurso. “Ela fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma
ritualização permanente das regras” (FOUCAULT, 1996, p. 36).
A partir das colaborações de Butler (2008), pode-se analisar nesta cena com Felipe a
necessidade de processos identificatórios (masculino ou feminino) que são reiteradamente
reforçados por condutas e formas de representação que afirmam uma identidade de gênero.
Como o gênero – conforme Butler - se trata de um efeito performativo e de repetição estilizada,
ele passa a definir o sexo, não havendo a necessidade, nem adequação entre identidade subjetiva
e anatomia, por isso, o gênero não é substância, mas efeito performativamente produzido.
As observações e interações promovidas junto de Felipe ao longo dos meses, permitem
observar que ele não ocupava em seus enunciados a posição de mulher42 nos discursos e na
linguagem43. Tratava-se de um garoto que promovia interações e interlocuções com elementos
culturais da feminilidade, nada relacional a qualquer determinismo biológico.

Se ser menina e ser menino fossem apenas construções biológicas, não seria
necessário tanto empenho para defini-los rotineira e reiteradamente como tal. É
perceptível que existem intensos esforços para que as crianças desenvolvam uma
identidade de gênero feminina ou masculina – existe uma busca pelo desenvolvimento
“normal” da masculinidade e da feminilidade. (FINCO, 2013, p. 173)

Esses dados permitem inferir uma importante análise. Felipe ocupa a posição de um
homem, posição evidente na sua linguagem, na maneira de relacionar-se e atender as demandas
dos amigos/as, professores/as, entre outros. Porém, a dimensão imaginária que ele faz deste
lugar que também é simbólico (homem) não está hegemonicamente caracterizada como
masculina, uma vez que Felipe passeia pelas experiências de gênero que são múltiplas, ora
masculina, ora feminina, masculina-feminina, feminina-masculina, entre outras inomináveis,
mediante a dicotomia das questões de gênero que nos são colocadas.
O gênero, muitas vezes, é produzido como uma dimensão imaginária do sexo, portanto,
de uma respectiva anatomia, e reconhecer-se homem para muitos exige um gênero inteligível
ao sexo, mas Felipe diz – por meio de seus gestos, atos e criações –, que esta dimensão

42
Esta afirmação consiste em um conjunto de observações realizadas durante alguns meses na pré-escola, a partir
das relações entre Felipe e as outras crianças e também entre os adultos. Felipe utilizava o banheiro masculino.
Levantava-se ao escutar os pedidos da professora para que “os meninos” lavassem as mãos primeiro ou
“escovassem os dentes”. Durante as brincadeiras, mesmo imaginariamente fantasiando ser uma personagem
mulher, Felipe era tratado por pronomes masculinos. Ele representava, durante as brincadeiras de massinha ou
cozinha, o papel de um homem na execução de tarefas prescritas como femininas no campo sociocultural.
43
O discurso pode ser compreendido como a forma da linguagem posta em execução/ação, ou seja, a língua
assumida pelo sujeito falante. Enquanto a linguagem é entendida como a capacidade de comunicação através de
uma estrutura, por elementos vocais (a língua), requerendo técnicas complexas que necessitam de funções e
interpretações simbólicas.
62

imaginária pode ser desconstruída, negociada, reinventada, e isso não provoca fendas, fissuras
e abalos no registro de pertencimento sexual, uma vez que reconhecer-se homem não está mais
necessariamente interligado a um gênero binário, inteligível, libertando o homem (e também a
mulher) de um registro de gênero compulsório a uma instância biológica. Felipe leva a
pensarmos o gênero como uma possibilidade anárquica, livre do sistema oposicionista, como
disse Louro (2014, p. 38):

A concepção dos gêneros como se produzindo dentro de uma lógica dicotômica


implica um polo que se contrapõe a outro (portanto uma ideia singular de
masculinidade e de feminilidade), e isso supõe ignorar ou negar todos os sujeitos
sociais que não se “enquadram” em uma dessas formas. Romper a dicotomia poderá
abalar o enraizado caráter heterossexual que estaria na visão de muitos/as, presente
no conceito gênero.

Por isso, o gênero não pode ser compreendido como uma expressão ou resultante de
uma leitura biológica, como destacou Scott (1988), tampouco resultante das pressões
ambientais e da civilização, mas sim da constituição subjetiva do indivíduo na cultura.

O gênero e o sexo são, portanto, efeitos, e não os fundamentos da sexualidade. O


sujeito e seu gênero é o resultado dos atos performáticos tanto de nomeação (“sou
homem, sou mulher”) como de comportamentos (“um homem age dessa maneira, uma
mulher age de outra maneira”) que ajudam a estabilizar provisoriamente a
identificação com um ou outro sexo, criando uma ilusão de unidade e estabilidade
entre corpo, desejo, sexualidade, orientação sexual e práticas sexuadas (TILIO, 2014,
p. 139).

Pensado nessa instância, o gênero se torna subversivo e do ponto de vista cultural um


“efeito revolucionário”, provocando entre os mais conservadores posturas radicais para evitar
que pedagogias possibilitem uma nova compreensão do humano. Por isso, a necessidade de
medidas políticas orquestradas produzindo sobre o tecido social discursos alarmantes que
convoquem a população a salvaguardar algumas tradições, estas relacionadas a um modelo
organizacional de família. Mas, se trataria de salvaguardar qual família? Ou seria proteger os
dispositivos de produção de sexos, gêneros e sexualidades que constituem identidades e papéis
sociais delimitados? Chauí, ainda nos anos 1980 (1982, p. 88) sobre o assunto escreveu:

[...] na ideologia burguesa, a família não é entendida como uma relação social que
assume formas, funções e sentidos diferentes tanto em decorrência das condições
históricas quanto em decorrência da situação de cada classe social na sociedade. Pelo
contrário, a família é representada como sendo sempre a mesma (no tempo e para
todas as classes) e, portanto, como uma realidade natural (biológica), sagrada
(desejada e abençoada por Deus), eterna (sempre existiu e sempre existirá), moral (a
vida boa, pura, normal, respeitada) e pedagógica (nela se aprendem as regras da
verdadeira convivência entre os homens, com o amor dos pais pelos filhos, com o
63

respeito e temor dos filhos pelos pais, com o amor fraterno). Estamos, pois, diante da
ideia da família e não diante da realidade histórico-social da família.

Para os vereadores, proteger a família burguesa seria proteger um modelo divino, a-


histórico, e por isso a importância em buscar na Bíblia e suas interpretações os fundamentos de
suas perspectivas. Como mencionou o vereador Everaldo:

Senhor Presidente, neste momento quero pegar a bíblia e fazer uma leitura de um
versículo bíblico, porque é aquilo que o cristão conhece, é aquilo que o cristão
acredita, livro de Gênesis, capítulo 1, versículo 27, a palavra de Deus diz o seguinte:
E criou Deus o homem à sua imagem, a imagem de Deus o criou macho e fêmea, os
criou, e Deus os abençoou, e Deus disse, frutificai-vos, enchei a terra.
Agora eu digo para vocês, Presidente, público presente, Nobres Pares, Deus criou o
homem e a mulher, e disse mais ainda, que era para povoar a terra. Agora, como que
um homem com homem vai gerar filhos, ou mulher com mulher vai gerar filhos 44.

Conforme os vereadores proferiam seus discursos, evidenciava-se o caráter homofóbico


e transfóbico das intenções por trás dos projetos. Em nenhum momento, fora discutido na
Câmara temas como: a vulnerabilidade da população LGBT´s e das mulheres com relação à
violência física e psicológica; o número de evasão das pessoas transgêneros das escolas; ou
cursos de formação docente para redução da homofobia em sala de aula. Pelo contrário, o
discurso do pastor e vereador João Campos está na contramão da busca pela equidade de
direitos e do gozo do exercício da cidadania pelas diferenças.

Eles começaram, no princípio lá atrás, em 2000, fazendo o Big Brother Brasil, só


entrava moço e moça, e veja a infiltração que veio depois. Os primeiros beijos gays.
De onde saiu o primeiro beijo gay? Dá uma olhadinha em uma matéria que eles
fizeram pouco tempo no Fantástico, que eles pegavam atores colocavam nos
shoppings, daqui a pouco aquelas pessoas começavam a se acariciar desrespeitando
a população, beijando publicamente, e quando alguém vinha intervir, falavam para
parar. Mas é meio capcioso eles começarem introduzir na mente de nossas crianças
que isso não tem problema.
Então, a rede Globo também é um instrumento satânico para destruir as famílias
(grifo nosso)45

O vereador prossegue mencionando outro caso em que casais homossexuais são


retratados em público, reiterando a ideia de que a Globo está a serviço do mal, simbolizada
na figura de Satanás e que, portanto, deve ser combatida. Qual o efeito que discursos e
associações como essas produzem no imaginário social? Quais formas de combate e luta

44
Ata da 21ª Sessão Ordinária, da 3ª Sessão Legislativa, da l6ª Legislatura, realizada no dia 22 de junho de 2015,
p. 8.
45
Ata da 21ª Sessão Ordinária, da 3ª Sessão Legislativa, da l6ª Legislatura, realizada no dia 22 de junho de 2015,
p. 12.
64

seriam empreendidas para destruir a homoafetividade entre outras manifestações de afeto


não heterossexuais?
A fala do pastor João Campos permite a incitação da violência contra aqueles e aquelas
que não se submetem a uma política heteronormativa. E quando diz adiante: “É a Globo,
bandida, querendo destruir o seio da família”, se entende por “bandido” quem pratica atividades
criminosas, sendo as atividades a defesa pela legitimidade da expressão afetiva por alguém do
mesmo sexo ou cuja identidade de gênero não contempla as prescrições normativas que
decorrem da anatomia.
O autor Borrillo (2010, p. 17), convida o leitor a pensar as dimensões da homofobia e
destaca:

A homofobia é o medo de que a valorização dessas identidades seja reconhecida; ela


se manifesta, entre outros aspectos, pela angústia de ver desaparecer a fronteira e a
hierarquia da ordem heterossexual. Ela exprime, na vida cotidiana, por injúrias e por
insultos, mas aparece também nos textos de professores e de especialistas e no
decorrer de debates públicos.

A pretensão dos vereadores (que negam uma postura homofóbica ou preconceituosa


contra as pessoas que expressam afetividade e desejos por alguém do mesmo sexo ou quando
uma identidade de gênero distinta daquela preconizada para sua anatomia sexual) é a aprovação
do Plano Municipal de Educação sem as discussões de gênero e sexualidade, corroborando para
a consolidação de uma política de regulação das identidades. Para o vereador Cunha:

[...] a ideologia de gênero não é macho e fêmea. Estou falando de gay, de lésbica,
transexual, travesti e por aí vai, bissexual, e por aí vai, criaria só a questão de sexo,
porque necessidade então de colocar ideologia de gênero, ideologia é uma proposta
e gênero é uma espécie46.

As palavras confusas enunciadas por Cunha denotam a preocupação com uma educação
capaz de respeitar as diferenças, combatendo as desigualdades de gênero, uma vez que
ameaçariam um modelo de masculinidade hegemônica, que busca se sobrepor em termos de
gênero à condição feminina, ao lugar social da mulher, além de irromper ‒ por meio de
pedagogias desconstrucionistas ‒, o tabu da homossexualidade, concedendo às crianças a
possibilidade de acesso às representações de outros arranjos familiares e afetos. Por isso, a
preocupação entre os vereadores não apenas em retirar as palavras “gênero” e “sexualidade”
dos planos municipais de educação, mas ainda fiscalizar livros didáticos, solicitando a remoção

46
Ata da 21ª Sessão Ordinária, da 3ª Sessão Legislativa, da l6ª Legislatura, realizada no dia 22 de junho de 2015,
p. 10.
65

de materiais que através de imagens e textos apresentam casais homossexuais ou identidades


trans, como também de propostas de leis que obriguem as escolas a comemorar o dia das mães
e dos pais47, e não da “família”, tendo em vista a polivalência que a palavra família pode
carregar para cada criança.
Em nome da moral burguesa e da defesa das crianças (tratadas como um vir a ser), são
criadas leis e propostas educacionais para que a experiência da infância ocorra em um ambiente de
controle e vigilância. Controle de seus movimentos, de suas expressões afetivas, de seus gêneros,
vigilando as fronteiras imaginárias que o poder de inventividade e criação das crianças produzem,
vigilando as representações, as diferenças, a multiplicidade. Um ato fascista à vida, à arte.

47
Lei n. 5.035 de 15 de março de 2017.
67

novas funções e características, até mesmo dos objetos que se supõem indisponíveis para
interação, como as pernas das mesas.
Ali, onde o acesso ao vocabulário ou à linguagem adulta poderia limitar a comunicação
entre as crianças, outras variáveis de comunicação se produzem, estas levando em consideração
o deslocamento corporal que através dos dedos apontam, da boca que grita, dos braços que
giram, dos dentes que mordem, ou de palavras inventadas entre eles/elas para referirem-se a
coisas ou objetos. O corpo como uma máquina que produz.

Às máquinas-órgãos, o corpo sem órgãos opõe sua superfície deslizante, opaca e


tensa. Aos fluxos ligados, conectados e recortados, opõe seu fluido amorfo
indiferenciado. Às palavras fonéticas, ele opõe sopros e gritos, que são outros tantos
blocos inarticulados. Acreditamos ser este o sentido do recalcamento dito originário:
não um “contrainvestimento”, mas essa repulsão das máquinas desejantes pelos
corpos sem órgãos. (DELEUZE& GUATTARI, 2014, p. 21)

Esse contrainvestimento que interdita os fluxos, impossibilitando a máquina da frenética


produção, se faz por meio dos dispositivos do capitalismo, dos cortes, entrecortes e normativas
de regulação da vida a serviço dos interesses do capital globalizador, que torna homogênea e
cessa as múltiplas possibilidades de existir, de subjetivar-se.
Enquanto a professora Rose se concentrava na organização das atividades do dia
(cortes de fluxos) separando folhas de sulfite, um repentino barulho no meio da sala ecoava.
As mãos de dois garotos sentados na cadeira erguiam a mesa e em seguida a soltavam,
repetidamente. Nos pés da mesa estavam pedaços da massinha de modelar de cor branca. Me
aproximei e perguntei o que faziam, e um deles me respondeu amassar pães. As pernas das
mesas eram máquinas de amassá-las antes de colocá-los no forno. Fariam pães para todo
mundo, como um deles mencionou.
Durante o horário de almoço as brincadeiras permaneciam, e por mais que as
exclamações pronunciadas pelas professoras e pela cozinheira pedindo para que se
“aquietassem” na hora de almoçar, eles resistiam às ordens. Os corpos inquietantes, marcados
por discretos sorrisos no canto das bocas demonstravam que algo ali ocorria. Debaixo de um
dos bancos, o chão encontrava-se cheio de arroz. Inicialmente, acreditei tratar-se de uma cena
comum, tendo em vista que derrubavam a comida ao levar o talher à boca, mas, conforme
alguns deles apontavam os dedos um para o outro, deduzi que faziam propositalmente. Mas,
por quê? Me aproximei para observar com mais atenção o que estava acontecendo, e percebi
quando uma das garotas ao apontar o menino, disse: ‒ “ele não é mais nosso amigo!”.
68

As crianças haviam feito uma convenção, e nela definiram uma espécie de “ritual” de
fidelidade para comprovar quem eram os verdadeiros “amigos”. O desafio consistia em jogar
comida no chão com a colher sem que a professora visse! A confirmação da combinação veio
à tona quando um dos colegas desaprovados se reportou a mim, que estava próximo, entregando
os amigos que haviam feito, dizendo:

- Ela quer que eu também taque comida no chão para ser amigo deles.
Respondi com outra pergunta: - Depois brincamos todos juntos de outra coisa, poder
ser?
- Pode, mas não chame ela (apontando para a garota que o havia desconsiderado
como amigo).
- Ela também é legal, não é?
- Ela é a mulher Hulck, ele respondeu.
(Fragmento do diário de campo, junho de 2017)

O personagem “Hulk” está associado à força e ao poder, características atribuídas à


masculinidade, compulsoriamente ao homem, aquele que a exerce, ou deveria exercer, na
cultura ocidental. Nesse aspecto, a referência da garota ao personagem consiste na ausência de
representações de mulheres “brutas”, ou que exerçam posição de comando e liderança, o que
lhe conduziu a buscar na imagem de Hulk um significante para nominar sua conduta diante do
grupo, e seu poder de decisão ao apontá-lo dizendo “ele não é mais nosso amigo”.
Observar as crianças, a relação delas com os brinquedos e também suas brincadeiras
trouxe-me os pensamentos do filósofo Walter Benjamin, em especial de seu texto “História
cultural do brinquedo” ao afirmar que as crianças não constituem nenhuma comunidade isolada,
mas sim uma parte do povo e da classe de que provém, pois “... Da mesma forma, seus
brinquedos não dão testemunho de uma vida autônoma e especial; são, isso sim, um mudo
diálogo simbólico entre ela e o povo. Um diálogo simbólico, para cuja decifração a presente
obra oferece um seguro fundamento” (BENJAMIN, 1984, p. 70).
Portanto, o brinquedo deixa de ser compreendido apenas como um mero objeto
manuseável, podendo tornar-se expressão de um mundo imaginário, de experiências e
possibilidades de aventurar-se e manifestar-se. Como escreveu Kishimoto (2011, p. 21): “O
brinquedo propõe um mundo imaginário da criança e do adulto, criador do objeto lúdico”.
Entretanto, não se pode esquecer que a produção industrial dos brinquedos é realizada
por adultos48, cuja intenção está centrada no mercado capital, ou seja, na obtenção do lucro.

48
“O fabricante ou o sujeito que constrói brinquedos neles introduz imagens que variam de acordo com a sua
cultura. Cada cultura tem maneiras de ver a criança, de tratar e educar. Entre as antigas concepções, a criança, vista
como homem em miniatura, revela uma visão negativa: a criança é um ser inacabado, sem nada específico e
original, sem valor positivo”. (KISHIMOTO, 2011, p. 21)
69

“Há portanto um grande equívoco na suposição de que as próprias crianças movidas pelas suas
necessidades, determinam todos os brinquedos” (BENJAMIN, 1984, p. 72).
Na pré-escola, é possível observar as marcas de classe social e gênero nas brincadeiras
realizadas entre as crianças.
A disposição dos brinquedos nas salas das professoras Rose e Ofélia não encontravam-
se segregadas por gênero, assim, meninos e meninas podiam transitar entre as brincadeiras,
desde que em cada cantinho não possuísse um número maior que quatro crianças. Número
delimitado pelas professoras em decorrência da quantidade de cadeiras em cada mesa. Vez ou
outra, escutava-se Rose chamando a atenção das crianças quando elas começavam a aglomerar-
se em torno de uma única mesa. Rose exclamava: são só 4 em cada brincadeira!
Essa restrição era determinada pelas professoras sob a intenção de organizar o
espaço, vindo a produzir um disciplinando dos corpos, tornando-os obedientes a uma
dinâmica institucional, sujeitos a supostas “punições” ou “ameaças 49”, caso infringissem as
sanções normalizadoras que nelas produziam comportamentos servis, como em um setor de
produção fabril.
Observei, em uma certa manhã, enquanto as crianças aglomeravam-se em torno de uma
das pequenas mesas, composta com quatro cadeiras, meninas e meninos rodeando-a, falavam
alto e se movimentavam, mexendo mãos e pés, dialogando uns com os outros e segurando peças
de encaixe. Tentei me aproximar, com o intuito de analisar o que ocorria, uma vez que se
juntavam cada vez mais. Porém, antes de chegar até elas, Rose batendo as mãos solicitou para
que se dispersassem, indo cada um para uma brincadeira, reiterando a regra de quatro por vez,
regra provisoriamente desacatada.

Na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno mecanismo


penal. É beneficiado por uma espécie de privilégio de justiça, com suas leis próprias,
seus delitos especificados, suas formas particulares de sansão, suas instâncias de
julgamento. As disciplinas estabelecem uma “infrapenalidade”; quadriculam um
espaço deixado vazio pelas leis; qualificam e reprimem um conjunto de
comportamentos que escapam aos grandes sistemas de castigo por sua relativa
indiferença. (FOUCAULT, 1987, p. 149)

A observação centrou-se nas crianças que brincavam de “secretária”. A brincadeira, na


ocasião, fazia referência ao agendamento de uma consulta médica para a filha. Uma das
meninas, ao ligar no consultório e ser atendida pelo próprio médico, relatou que naquele dia
não poderia comparecer à consulta, uma vez que “estava cheia de coisas pra fazer”, como limpar

O que denominei por punições ou ameaças podem ser destacadas em frases, como: “Se desobedecerem não vão
49

mais brincar” ou “Vão ficar de castigo”.


70

a casa. Ela questionou a possibilidade de levá-la em outra data, no período noturno, e o médico
reagendou a consulta. Em seguida, ela se levantou, limpou a casa e segurou na mão da filha,
avisando ser a hora da consulta. Posteriormente um dos meninos acenou, dando tchau para a
esposa que levava a filha até o médico.
Esta cena chamou a atenção por três importantes destaques, sendo eles: os brinquedos,
a classe social e os papéis de gênero. Nota-se que os brinquedos disponíveis eram: telefones,
celulares, teclados de computadores e mouses, ou seja, objetos de trabalho. Tais objetos
poderiam ser apropriados e ressignificados de suas funções pelas crianças ‒ como muitas vezes
foram –, mas naquela circunstância cumpriam suas utilidades e finalidades profissionais do
mundo adulto.

Admite-se que o brinquedo represente certas realidades. Uma representação é algo


presente no lugar de algo. Representar é corresponder a alguma coisa e permitir sua
evocação, mesmo em sua ausência. O brinquedo coloca a criança na presença de
reproduções: tudo que existe no cotidiano, a natureza e as construções humanas. Pode-
se dizer que um dos objetivos do brinquedo é dar à criança um substituto dos objetos
reais, para que possa manipulá-los. (KISHIMOTO, 2011, p. 20-21)

A encenação entre as crianças representava uma realidade econômica e social entre os/as
envolvidos/as, uma vez que a mãe impossibilitada de levar a filha ao médico, diante as tarefas
domésticas, pediu para que a consulta fosse adiada, remarcada para outro dia, no período
noturno, possivelmente horário em que o pai estaria em casa. A cena em que o menino (marido)
acena “tchau” para a esposa e para a filha que se deslocavam para a consulta, possibilita inferir
que a obrigação dos cuidados com a criança recaía sobre a mulher, logo, sobre a maternidade,
cabendo a ela esta tarefa e responsabilidade.
O médico atende a criança e pede, inclusive, que ela abra a boca e em seguida prescreve
e aplica a injeção. Observando os movimentos entre as crianças acreditei que a brincadeira
havia se encerrado, uma vez que ambas (mãe e filha) encontravam-se sentadas. Entretanto,
aquele era o ponto em que aguardavam o ônibus, como destacou a mãe.
Todo o cotidiano de uma família sem privilégios econômicos fora representado na
brincadeira, como: a ausência de um veículo privado para levá-los até o destino, a preocupação
com a limpeza da casa (uma vez que não havia outra pessoa que realizasse as obrigações) e os
papéis de gênero assimilados pelas crianças.
“O brinquedo é, então, um objeto cultural que traz inúmeros significados e que servirá
de veículo às brincadeiras”, como destacou Leite (2002, p. 66). E prossegue, retomando
Brougère que diz:
71

[...] assim, o brinquedo se mostra como um objeto complexo que permite a


compreensão do funcionamento da cultura. Ele adquire um sentido especial para cada
criança e em cada diferente circunstância – seu valor simbólico ultrapassa sua função
técnica. Belotti (1979) aponta que a maioria dos brinquedos comercializados já faz
parte de uma (pré)concepção dos papéis de ser-menino ou ser menina”.
(BROUGÈRE, 1995, p. 9 apud LEITE, 2002, p. 66).

Para Leite (2002), a identidade é tecida/constituída nas relações de interações, por meio
de processos identificatórios, mas também de resistências. Tais processos não se efetuam
unicamente por meio da “imitação”, como se as crianças não tivessem autonomia na produção
cultural, como se apenas assimilassem as referências culturais do ambiente e do meio social em
que estão imersas. As identidades se produzem na relação com a alteridade, portanto, com o
outro. Para a autora (p. 67),

É o outro quem me constitui sujeito, quem me mostra quem sou – é na relação com o
diferente de mim que vou alicerçando ou desconstruindo hipóteses, modelos. A
possibilidade de experienciar sentimentos fortes e contraditórios, colocar-me em
múltiplos papéis, de exercitar o poder, dizer o indizível, viver o imaginável – enfim,
na interação com o outro, a brincadeira alarga as fronteiras entre a fantasia e a
realidade colaborando significativamente na construção da identidade das crianças.
Na qualidade de sujeito social, brincando, a criança não está só fantasiando, mas
trabalhando suas contradições, ambiguidades e valores sociais.

Esta encenação, possivelmente, carrega elementos de um cotidiano vivenciado pelas


crianças de um determinado estrato social, tendo em vista que a linguagem e o imaginário
presentes na cena, recorrem a determinados significantes e objetos. Ao mencionar que “é o
outro quem me constitui sujeito”, Leite se refere às demandas que este outro espera ou criou
sobre mim, podendo este outro ser um pai, uma mãe, uma instituição, como a igreja, a escola,
a sociedade, etc. O que está em questão é que na dinâmica da vivência em sociedade, e nas
relações culturais traçadas neste tecido social, o desejo do outro produz um diálogo com quem
devemos ser, criando demandas, e estas podendo ser atendidas, resistidas ou negociadas.
As diversas atividades que realizamos no cotidiano, como a manutenção de
equipamentos, varrer, passar, cozinhar, lavar (um carro, a casa, as louças); as expressões
corpóreas, como: sentar-se, cruzar ou abrir as pernas, levar as mãos ao rosto, dançar, pular,
rebolar; os brinquedos, como: carros, bolas, bonecas, casinhas, jogos, etc.; as roupas, os
calçados, o acesso às palavras e ao corpo; toda a multiplicidade que envolve as relações
humanas, as expressões, os desejos e a criação são catalisados e codificados socialmente,
compartimentados culturalmente em segmentos, estruturados por uma lógica binária e
dicotômica, como: masculino e feminino, poder e não poder, mal e ruim, bom ou mal, e
72

levados à maquinaria que produzem os corpos das crianças, capazes de colonizá-los, de


territoriarizá-los, suprimindo as possibilidades de acesso às diferenças e de outras formas
de subjetivação.

Colonizar a infância é produzir uma imagem que define o que ela é, o que não é, o
que não pode ser. A infância é invenção dos adultos, como já disse Benjamin: as
crianças nunca disseram o que é ser criança; se disseram, não foram ouvidas. Adultos
pensam as crianças, adultos pensam pelas crianças; adultos dizem às crianças o que é
ser criança. (GALO, 2018, p. 61)

Ao dedicar-me à observação da interatividade entre meninos e meninas, notei cenas que


permitiram compreender o gênero como uma experiência de maior plasticidade, quando
interseccionada à categoria “classe social”. Com isso, me reporto ao fato que, por tratar-se de
crianças residentes em um bairro periférico, muitas vezes, os materiais e as roupas de algumas
delas, em maior parte das meninas, escapavam às cores tradicionais que marcam na infância a
separação entre feminino e masculino. Assim, algumas garotas usavam roupas e possuíam
mochilas ou objetos nas cores azul, verde e até mesmo com estampas de heróis, ao passo que
nenhum dos meninos possuíam roupas ou utensílios nas cores rosa, pink ou lilás. Contudo, tanto
meninos e meninas diziam realizar tarefas domésticas, quando a professora questionou “quem
ajudava a mamãe em casa?”.
Durante os meses de observação, verifiquei que grande parte dos meninos não
participavam de algumas brincadeiras, quando incluía brinquedos como as bonecas. Ao
despejarem a caixa de bonecas, as meninas escolhiam aquelas com quais brincariam, deixando
outras de lado. Porém, nenhum dos meninos interessava-se pelo brinquedo, mas participavam
do cantinho da “casinha”, manuseando utensílios domésticos, como: panelas, pratos, frigideiras,
colheres, etc., e modelavam massinhas imaginando cozinharem. Quando prontas, me ofereciam
as comidas, incentivando-me a experimentar.
Entre os meninos, ser associado a referências femininas soava ofensivo, provocando
reações de raiva ou mesmo indignação, como por exemplo quando, durante o horário do parque
em que Fernando participava com um grupo de meninas de suas brincadeiras e um dos seus
colegas, João, chama sua atenção, questionando se ele não brincaria com os garotos. Ele balança
a cabeça respondendo que não e em um ato provocativo, João disse, caçoando: você vai virar
menina, fica brincando com as meninas!
Em seguida, Fernando se reporta a professora, dizendo: ‒ O João tá brigando comigo
professora, ele fica me xingando de menina. A professora, sem questionar a razão pede para
que João vá até ela e o alerta para não brigar com os amigos.
73

Nota-se que a manutenção da masculinidade e de sua hegemonia torna as


possibilidades de experimentações de gênero mais restritivas, uma vez que “ser homem”
exige manter-se em uma posição de superioridade, portanto, de potência e comando. Desta
forma, aquilo que se remete ou faz referência à contestação da posição de um poder
dominante é associado a outras coisas, como o feminino, impróprio à composição da
masculinidade, por isso o sentimento de ofensa e indignação diante circunstâncias como
essas. Mas brincar de “casinha” ou ajudar a mãe em suas tarefas domésticas não afrontava
o estatuto da masculinidade. Por quê? Uma hipótese é que se tratava de uma realidade social
marcada pelas dificuldades socioeconômicas, inserindo o homem na participação de fazeres
domésticos, como mencionou João em sala, enquanto eu o observava manusear a massinha
de modelar e os utensílios de cozinha:

- Toma, é pra você, disse João ao me entregar um pires com uma panela com comida
feita com massinha de modelar.
- Hummm, que delicia essa comida, respondi. Quem te ensinou a fazer?
- Meu pai!
- Seu pai cozinha?
- Sim, ele quem cozinha.
- E você, cozinha?
- Não, eu ainda sou criança, né. Me respondeu gargalhando.
(Fragmento do diário de campo, junho de 2017)

A sociedade e os agenciamentos culturais constroem sobre os corpos “realidades


sexuadas” como depositárias de princípios de visão e de divisão sexualizantes, como
observou Bourdieu (2010, p. 18). A relação arbitrária de dominação dos homens sobre as
mulheres, permite que os papéis de gênero femininos sejam apropriados e executados por
homens, sem que fira a virilidade masculina. Com isso, levanta-se a questão se o
agenciamento desses papéis e de suas transformações, ao longo das balizas históricas, não
se encontram sob o domínio do primado do homem, ou seja, se a transgressão de gênero
também não marca parte das estratégias de dominação simbólica dos homens em outros
espaços e funções antes feminilizadas.
A fala de João sobre cozinhar se remete à associação desta função também como
masculina, por isso, executada pelo pai, a qual ele ainda não aprendeu, por ser criança.
Nas últimas décadas, o número de programas televisivos e concursos de culinária
apresentam a gastronomia e o domínio com os alimentos como uma profissão de status,
marcada pela figura do chefe de cozinha, o “Master Chef”. Esta inserção de homens em
um ambiente que antes era, predominantemente feminino, perpassa as demarcações de
gênero estabelecidas, garantindo ao homem e à masculinidade sua territorialidade e
74

reconhecimento nesse papel social, passando agora a simbolizar a alta gastronomia,


diferentemente do que ocorre com a figura da “cozinheira”, aquela que ajuda a cozinhar e
cuida da limpeza e organização do ambiente.
Isso me provoca a refletir a ausência de meninos em brincadeiras “femininas”, ou na
aquisição de objetos, cores e adereços “femininos”, o que viria a interrogar ou desconstruir o
lugar do homem. Entretanto, para que as demarcações sejam rompidas e o homem passe a
transitar pelos terrenos da feminilidade, ele precisa produzir, no campo das representações,
imagens que relacionem essas atividades à instância que estabelece diálogo com um lugar de
poder.
76

como a vergonha ou a abjeção do ato, já encontravam-se impressas em suas condutas. As


manifestações da sexualidade ocorridas com Fernanda me levou a atentar o olhar para observá-
la durante os meses que se seguiram, permitindo com que eu acompanhasse ‒ enquanto
pesquisador ‒ os usos e caminhos que ela daria àquelas manifestações.
No início do mês de maio, ao chegar na pré-escola pela manhã, propositalmente me
sentei ao lado das meninas na roda, e dentre elas encontrava-se Fernanda. Procurei ouvir o que
as garotas conversavam, e entre os assuntos, estava a tiara em formato de orelhas de gatinho da
colega Gaby. Pedi para ver a tiara e em seguida coloquei em minha cabeça, provocando uma
reação imediata entre as meninas que passaram a rir.
Então, Gaby afirmou:

- Isso é de mulher!
- Eu não posso brincar de mulher? Respondi.
- Para ser mulher você tem que se fantasiar! Tem que passar batom, usar sandália,
deixar seu cabelo grande igual a gente.
Fernanda, que sentava-se ao lado de Gaby, vira-se para a colega respondendo: - não
adianta, mesmo assim, ele não vai ser igual a gente!
(Fragmento do diário de campo, junho de 2017)

Ao desconsiderar a afirmação de Gaby de que bastaria eu fantasiar-me para tornar


mulher, Fernanda presume que não seria um conjunto de característica ou itens, como: sandália,
batom e cabelos longos que me garantiriam essa condição. Entretanto, não se reportou a
genitalidade, ou seja, a anatomia para afirma-la como um condicionante do gênero.
Nesse sentido, me parece interessante – mais uma vez – retomarmos a noção de gênero
enquanto efeito performativamente produzido, que incessantemente reiterado, naturaliza-se
criando a sensação de um fato pré-existente a obra. Eu não poderia ser uma mulher, mediante
a inexistência de memórias, condutas e registros de uma identidade que construiu meus
caminhos nessa instância, ou seja, de experiências e posições de enunciação na linguagem que
me permitissem falar deste lugar. Como o gênero seria um exercício de repetição, ele passaria
a definir o sexo, não necessitando a unidade ou adequação entre identidade subjetiva e
anatomia.

Nesse sentido, o gênero não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de


atributos flutuantes, pois vimos que seu efeito substantivo é performativamente
produzido e imposto pelas práticas reguladoras da coerência do gênero.
Consequentemente, o gênero mostra-se performativo no interior do discurso
herdado da metafísica da substância – isto é, constitutivo da identidade que
supostamente é.
77

Portanto, o gênero é sempre um feito, “ainda que não seja obra de um sujeito tido como
preexistente à obra” (Butler, 2008, p. 48). Logo, não há identidade de gênero por trás das
expressões do gênero; essa identidade é um efeito performativamente constituída, pelas próprias
expressões tidas como resultado, acrescenta a filósofa.
Dias depois, durante a execução de uma atividade, evidências a partir da experiência
etnográfica trariam novos dados para fomentar algumas das análises empreendidas. A observação
me recordou a história de literatura infantil Ceci tem pipi? De Thierry Lenain (2004), que narra a
imaginação do garoto Max que acreditava que o mundo estava dividido entre pessoas que tinham
ou não pipi. Porém, as certezas de Max sobre a divisão do mundo é abalada com a chegada de
Ceci em sua escola. Ceci subia em árvores, andava de bicicleta, jogava futebol, entre outras
atividades consideradas socioculturalmente como masculinas. Em determinado momento da
história, Max desconfia que Ceci seja uma “sem pipi com pipi”, o que seria uma trapaça para ele,
e então resolve investigar para comprovar sua teoria. Contudo, Max ao ver Ceci nua descobre que
ela tem perereca e pergunta: Você não tem pipi. Não, ela responde, eu tenho perereca! Assim,
Max é questionado a repensar sua divisão entre os que tem ou não pipi, entendendo que nas
meninas, na verdade, não lhes falta nada, pelo contrário há a presença de um outro órgão: a
perereca!

Figura 13 – A perereca de Ceci

Ilustração da capa do livro “Ceci tem pipi?” e de uma das páginas, escrito pelo autor Thierry Lenain.
Fonte: Arquivo pessoal do autor.

Naquele dia, a professora Rose havia entregue para as crianças uma folha de sulfite com
um boneco impresso. O boneco estava vazio, sem roupa, sem adereços e sem sexo. Tratava-se
78

apenas de traços que ganhavam a forma de um ser humano. Em seguida, a professora entregou
outra folha com o desenho de algumas roupas para que as crianças recortassem e colassem
no/na boneco(a), garantindo ao vazio uma identidade.
Eu me encontrava sentado junto de um grupo exclusivamente composto por meninas, e
dentre elas, estava Fernanda. A professora aproximou-se perguntando de que cor elas pintariam
a imagem. Fernanda olhando para o desenho respondeu: - eu vou pintar com esse! (segurando
o lápis da cor bege). Peguei um lápis de cor vermelho, e disse que pintaria a minha “boneca”
com ele. Fernanda, respondeu:

- É menino, Alex.
- Por que menino? Questionei.
- Por que ele não tem perereca!
As demais meninas do grupo achando engraçado, repetiram:
- É, ele não tem perereca.
(Fragmento do diário de campo, agosto de 2017)

As roupas são de menino, a outra amiga acrescentou, sentado em uma das cadeiras
enquanto começava a cortar a folha para colorir e colar em seguida. Esta cena permite inferir e
problematizar sobre dois importantes aspectos, sendo eles: a noção de falta decorrente do medo
da castração na teoria psicanalítica freudiana e a compreensão de inteligibilidade de gênero,
elaborada por Butler.
Nota-se que a noção de falta, neste caso, não aparece com relação ao pênis, ou seja, a
premissa da ausência não se dá necessariamente por um suposto pênis que faltaria na menina,
mas pela “perereca” que elas possuem.
A metáfora edípica freudiana da castração, ainda muito revisitada por profissionais das
áreas psicológicas sugere que o complexo do reconhecimento identitário ocorre no menino
através do medo/ameaça da perda do pênis, enquanto na menina pelo sentimento de ausência,
algo que lhe falta. Sobre esta questão, Barreiro (2015, p. 155) resume a compreensão edípica
freudiana, ressaltando:

Para Freud, a entrada da menina quanto do menino na castração está ligada ao pênis,
ora marcado como ausência, ora enquanto medo da perda. Desta forma, quando os
meninos verificam na vagina uma distinção anatômica, inicialmente esta distinção não
é interpretada como uma diferença sexual: o clitóris passa a ser compreendido como
um pênis que irá se desenvolver. A posteriori ele acredita que o pênis foi extraído e
esta consideração provoca-lhe medo de perder o seu, levando-o a refletir sobre o que
seria necessário fazer ou renunciar para não perdê-lo.
A menina acredita que seu pênis em breve crescerá, não generalizando a percepção da
falta do pênis em todas as mulheres, sendo levada a acreditar que aquelas que
o perderam foram castigadas, portanto, castradas. Assim, o que marca a diferença
estrutural entre meninos e meninas quanto à castração é, de acordo com Freud, em “A
79

dissolução do complexo de Édipo” de que a menina aceita a castração como fato


consumado, enquanto que o menino teme sua ocorrência.

Contudo, a observação do desenho feito pelas meninas de 5 anos possibilita questionar


as leituras analíticas que se fundamentam nessa metáfora com o objetivo de explicar a castração
simbólica na infância pela falta do pênis.

Figura 14 – Colorindo e vestindo o boneco

Fotografia da atividade com bonecos.


Fonte: Pasta de atividades da criança.

Deleuze (1997) em seu texto “O que as crianças dizem” critica Freud e sua perspectiva
familiarista por apontar a construção das identidades entre as crianças pequenas a partir das
figuras do pai e da mãe, recorrendo a análise do caso do menino Hans (1905) como uma
experiência, cuja interpretação se dá em uma conjuntura universal. Isso faz com que Freud
perca, de acordo com Deleuze, “os mapas dos trajetos que são essenciais para a vida psíquica”
(1997, p. 73), reconduzindo toda a trajetória infantil a duas figuras.

A criança não para de dizer o que faz ou tenta fazer: explorar os meios, por trajetos
dinâmicos, e traçar o mapa correspondente. Os mapas dos trajetos são essenciais à
atividade psíquica. O que o pequeno Hans reivindica é sair do apartamento familiar
para passar a noite na vizinha e regressar na manhã seguinte: o imóvel como meio.
Ou então: sair do imóvel para ir ao restaurante encontrar a menininha rica, passando
pelo entrepostos de cavalos – a rua como meio. Até Freud considera necessário
introduzir um mapa.
Freud, no entanto, conforme seu hábito, reconduz tudo ao pai-mãe: estranhamente o
desejo de explorar o imóvel parece-lhe um desejo de dormir com a mãe. É como se os
pais tivessem lugares ou funções primeiras, independentes dos meios. (DELEUZE,
1997, p. 73)

Os mapas, como se refere Deleuze, possibilitam compreender os trajetos de construção


das identidades para além de figuras como “pai” e “mãe”. A cena edípica foi desmontada e as
crianças, para ainda nos lembrarmos o mito de Édipo, questionam a maldição anunciada pelo
80

oráculo de Delfos, não desvendam o enigma lançado pela esfinge e nos apontam que não há
destino sobre Édipo ou Jocasta. Deleuze lança luzes sobre aquilo que pouco nos importamos:
os trajetos dinâmicos de uma máquina que incansavelmente produz.
Com relação a “inteligibilidade de gênero” ou também denominado por gêneros
inteligíveis, a constatação por uma das crianças de que a boneca não possuía vagina, associado
pela outra garota que ao observar os desenhos da roupa referiu que se tratavam de roupas para
meninos, exprimem como a cultura instituiu nas representações simbólicas e no imaginário uma
noção de coerência e continuidade entre sexo, gênero e desejo. A verdade sobre o sexo “é
produzida pelas práticas reguladoras que geram identidades coerentes por via de uma matriz de
normas de gênero” (BUTLER, 2008, p. 39). Nesse sentido, a matriz cultural da qual por
intermédio a identidade de gênero se torna inteligível exige que muitas identidades não existam
ou permitam existir, “isto é, aquelas em que o gênero não decorre do sexo e aquelas em que as
práticas do desejo não “decorrem” nem do “sexo” nem do gênero” (BUTLER, 2008, p. 39).
Portanto, outras “identidades de gênero” que perpassam as fronteiras demarcadas pela matriz
cultural de produção identitária (binária) aparecem como falhas, anomalias e irregularidades de
uma suposta coerência natural, essencializada.

4 Diálogos sobre identidades na educação infantil

Após a experiência etnográfica junto das crianças, funcionárias e professoras na pré-


escola no ano letivo de 2017, considerou-se importante a realização de perguntas, por meio de
um questionário com as professoras das crianças de 0-5 anos e onze meses que acompanhei.
Buscou-se, a partir das entrevistas, uma análise mais ampla, levando em consideração os
registros etnográficos e as concepções das docentes sobre temas como “gênero” e “sexualidade
infantil”, assim como a organização do trabalho pedagógico efetuado e também dos
documentos50 utilizados referentes aos debates empreendidos na Câmara Municipal sobre a
inclusão, ou não, dos estudos de gênero e sexualidade no Plano Municipal de Educação (PME).
Para isso, foi elaborado um roteiro semiestruturado, ou seja, parcialmente aberto,
possibilitando às professoras responderem as questões e se expressarem sobre outros temas e
aspectos não previstos no questionário. Foram entrevistadas no mês de dezembro duas pessoas,
Rose e Ofélia, professoras das crianças observadas como destaquei anteriormente, e ambas
sugeriram que a entrevista não fosse individualizada. Questionadas sobre os motivos para a

50
Me refiro às transcrições das atas da sessão da Câmara Municipal.
81

realização do questionário51 em dupla em vez de individualizado, elas argumentaram se


sentirem mais “à vontade” para responder as perguntas e também conversar sobre os temas
abordados, podendo, inclusive, lembrar uma à outra caso fosse necessário recordar alguns
nomes ou “episódios” sucedidos com as crianças.
As perguntas foram feitas em dezembro de 2017, no período da manhã, às 8h00min na
sala da professora Rose, na pré-escola. Naquele dia, não havia crianças no prédio, apenas as
professoras e as funcionárias da cozinha, situação que colaborou para que nos acomodássemos
com menos restrições e conversássemos com mais tempo e sem interrupções. Rose e Ofélia me
convidaram para sentar, e interrogadas sobre a permissão em gravar as respostas, elas
argumentaram não haver nenhum problema, me autorizando. Juntos, antes de iniciar,
conversamos sobre o ano de 2017 e também assuntos da vida pessoal das professoras, em
seguida posicionei o gravador sobre a mesa e comuniquei que daríamos início as perguntas.
Elas se sentaram de frente para mim e não demonstraram nervosismo, tampouco se sentiram
desconfortáveis, não encontrando objeções para parar ou interromper as questões. Desta forma,
todas as questões previstas no questionário (semiestruturado) foram feitas, e durante algumas
delas as professoras estendiam suas respostas, refletindo sobre as questões e conversando uma
com a outra. Ao término, elas se levantaram e agradeceram pelo fato de participarem e poderem
contribuir com uma pesquisa na área da educação infantil, salientando que caso necessário
retornar para retomar algum aspecto esquecido, elas estariam disponíveis.
A transcrição das respostas encontra-se na íntegra em anexo, sendo requerido neste
capítulo uma seleção qualitativa das respostas, isto é, estabelecendo como critério os
fragmentos que mantém diálogos com os problemas desta pesquisa. Desta forma, os registros
etnográficos, as questões e as documentações reunidas neste texto serão problematizadas a
partir da atual conjuntura política e educacional que o Brasil enfrenta sobre a disputa pelos
debates das relações de gênero e sexualidade na educação que, sem dúvida, não estão esgotados
ou vencidos. Nesse sentido, figurativamente busca-se por meio dessas análises desenhar um
mapa durante um terremoto, assumindo os riscos de um desenho cartográfico que tende a
reconfigurar-se a cada nova investida política.

51
Tendo em vista que a coordenadora e diretora das EMEIs não se encontram presentes na unidade, sendo as
docentes e as trabalhadoras dos setores da alimentação e limpeza as responsáveis pelo cotidiano da pré-escola,
tornou-se obsoleto o fato de estender as entrevistas à direção e coordenação, uma vez que não vivenciam ou
compartilham das experiências no ambiente em que a pesquisa ocorreu.
82

4.1 Tecendo sujeitos: emaranhando gêneros e sexualidades

Questionadas sobre a manifestação da sexualidade por parte das crianças em sala, Rose
e Ofélia responderam ter presenciado muitas expressões, entretanto, quando interrogadas sobre
quais manifestações haviam presenciado, conduziram o entendimento da resposta à outra
instância e categoria, referindo-se aos papéis de gênero.

Pode descrever algumas destas manifestações?


Rose: Meninos que têm preferência pelos brinquedos, diga-se de meninas. Meninos
que desenham roupas, tipo estilista.
Ofélia: No faz de contas, representando papéis, meninos representando papéis de
meninas.
(Transcrição do questionário realizado em dezembro de 2017)

Observa-se a associação estabelecida entre sexualidade e gênero pelas docentes,


compreendendo uma categoria como desdobramento da outra. Assim, as manifestações da
sexualidade à qual o enunciado da questão se refere, são entendidas por elas como propensão à
homossexualidade, como veremos a seguir.
A palavra “sexualidade” contido na pergunta é lido na sua dimensão “homossexual”, e
concomitantemente na atribuição de um gênero para designar uma genitália, por isso, as
respostas quando as questões se referem à sexualidade infantil remontam a exemplos de
crianças que afrontam o gênero imposto para aquele respectivo sexo.
Em seguida, ao persistir na questão elas novamente retomam as performances de gênero
para elucidar a resposta, dizendo:

Rose: Eu acho o menino, ele aflora mais.


Ofélia: A menina a gente demora mais pra perceber.
Rose: A menina é difícil. Difícil a menina que não gosta de boneca, nesta idade. Nesta
idade já não tem aquela negação. A maternidade já está muito latente!
Ofélia: Já pega a boneca e já vai balançando.
Rose: Ela já coloca o menino como o pai do bebê. A blusa vira um bebê. Agora os
meninos, tem meninos que já tem a voz, a expressão de falar, o gestual, a fala, mas é
involuntário a gente percebe.
(Transcrição do questionário realizado em dezembro de 2017)

Neste fragmento, muitos elementos chamam a atenção. O primeiro refere-se ao menino


como mais “aflorado” sexualmente em detrimento das meninas que “demora mais pra
perceber”. A percepção diz respeito à maternidade e ao potencial da mulher e sua suposta
inclinação natural à maternidade ‒ como bem lembrou a pesquisadora dos estudos das relações
83

de gênero Scavone (2001) ‒, tornando-a não uma opção52, mas uma condição imanente e natural
da mulher que passa a manifestá-la desde a mais tenra idade durante as brincadeiras, “fazendo
do menino o pai do bebê”. Diferentemente da mãe, ser “pai” é uma condição atribuída pela
menina, e não um papel natural latente e presente nele. Para ele é delegada esta função, uma
vez que o homem é associado ao papel de trabalho produtivo remunerado.

Aos homens foi tradicionalmente associado o papel de provisões por meio de trabalho
produtivo remunerado. Em outras palavras, ao homem foi associado o papel de
protagonista das atividades que a sociedade selecionou como espaço privilegiado de
atribuição de valor, ou seja, aquelas relacionadas à economia de mercado; enquanto a
mulher foi relegada ao espaço da privacidade domiciliar, imune e opaco à intervenção
e à visibilidade externas, protagonista das atividades relacionadas à economia
doméstica. (TEIXEIRA, 2010, p. 258)

Para a professora e pesquisadora Sayão (2006) as diferenças destacadas acima sobre


meninos e meninas são produzidas e trabalhadas nas crianças pouco a pouco, e por diferentes
dispositivos que envolvem suas interações e relações com os adultos, com outras crianças,
podendo mencionar a televisão, o cinema, a música, etc. Portanto, a demarcação do que cabe a
cada um dos sexos se inicia bem cedo e ocorre pela materialidade e pela subjetividade. “Essas
relações influenciam nas elaborações que as crianças fazem sobre si, os outros e a cultura, e
contribuem para compor sua identidade de gênero” (SAYÃO, 2006, p. 7).
Em sua tese de doutorado, Sayão retoma Chodorow, e transcreve:

As mulheres maternam. Em nossa sociedade, como na maioria das sociedades, as


mulheres não apenas geram filhos. Elas também assumem a responsabilidade inicial
pelo cuidado da criança, dedicam mais tempo a bebês e crianças do que os homens e
mantêm os primeiros laços emocionais com os bebês... A maternação das mulheres é
um dos poucos elementos universais e duráveis da divisão do trabalho por sexos
(CHODOROW, 1990, p.17, apud SAYÃO, 2005, p.166-167).

Assim, para Chodorow, a maternagem se trata de um fenômeno produzido de mães para


filhas. E amparada pela teoria psicanalítica do desenvolvimento da personalidade, como
destacou Sayão (2005, p.167), “ela compreendeu que as mulheres, na condição de mães,
socializam suas filhas e desenvolvem nelas a capacidade e o desejo de maternar sendo que tal
capacidade acha-se embutida na relação mãe-filha e surge dela”. Assim, a maternidade e o papel
do cuidado com os filhos e filhas, como apresentada nos discursos das professoras, são aspectos

52
É importante destacar que a filósofa Simone de Beauvoir, em seu célebre livro O Segundo Sexo (1949), refuta a
concepção do determinismo biológico da maternidade que reservava às mulheres o destino de “ser mães”. A
maternidade, a partir destas contribuições, começa a ser questionada enquanto um destino biológico e passa a ser
compreendida como uma construção social, o que se apresenta para a autora como causa principal do domínio
sexual do homem sobre a mulher.
84

que secundarizam o status de sua função social “da mesma forma que o desenvolvimento das
qualidades psicológicas femininas em torno da maternidade e da reprodução, perpetuando a
falta de poder das mulheres” (2005, p. 167).
A pesquisadora Elisabeth Badinter (1993) contraria tese de Chodorow, afirmando que
“a maternagem não tem sexo”. A autora defende a tese de que a maternagem se aprende no
cotidiano, nos possibilitando compreender que ambos os sexos são possivelmente capazes de
cuidar de crianças, contudo, tais experiências e aquisições dependem das relações culturais
estabelecidas em uma respectiva sociedade. Badinter diz que os homens maternam, mas que
para isso deve haver interesse, e que muitas vezes as próprias mulheres se negam a compartilhar
dessa função.
Outro importante fator se refere às gesticulações e à voz dos meninos que desestabilizam
um suposto “estatuto” da masculinidade, marcado por outros timbres, gestos e expressões que
não mantêm diálogos com as normas e convenções sociais de “como ser” homem. Isto nos
aponta que desde a educação infantil as crianças são diagnosticadas, em termos de gêneros, e
os resultados destas análises revelam a performatividade como um “sintoma homossexual”. A
homossexualidade, nessa perspectiva, emerge como resultante das inconformidades de gênero,
ou do que Butler (2010) denominou por gêneros inteligíveis. Quando não há inteligibilidade na
estrutura “sexo-gênero-sexualidade”, e o corpo rompe com as dicotomias binárias, logo, ele
tende a ser sexualizado, e o conjunto de suas ações são conduzidas a uma interpretação de
característica sexual ‒ a homossexualidade.
Para a pesquisadora da temática Finco (2012, p. 50):

As preferências e os comportamentos de meninas e meninos não são meras


características oriundas do corpo biológico; são construções sociais e históricas.
Portanto, não é mais possível compreender as diferenças entre meninos e meninas
com explicações fundadas no determinismo biológico. Como nos alerta Fausto-
Sterling, é fundamental desconstruir a ideia de um corpo essencialmente natural. O
corpo não é uma entidade meramente natural, ele é uma dimensão produzida pelos
imperativos da cultura. É necessário, portanto, problematizar a ideia de que existe uma
natureza humana, uma essência imutável, que percorreria todas as culturas, todos os
grupos sociais; e que homens e mulheres teriam uma espécie de substrato comum, que
seria mais ou menos inalterável.

Para as docentes, tais comportamentos são mais frequentes em meninos do que em


meninas, mas, por quê?
Os registros em campo durante o ano de 2017 fornecem importantes elementos para
pensar esta afirmação. Retomo um fragmento do caderno de campo, ocorrido em agosto
quando, após a refeição no pátio, as crianças se deslocaram para escovar os dentes. Enquanto
85

as professoras ajudavam a retirar os pratos e limpar as mesas, meninas e meninos brincavam


nas portas dos banheiros, desafiando os(as) colegas a entrarem no vestiário um(a) do(a)
outro(a). As crianças sabiam que a brincadeira, de fato, consistia em desafiar as regras das
professoras que, muitas vezes, já haviam reiterado para que não entrassem no “banheiro
errado”.
Colocando os pés na porta do banheiro, e recuando, duas das meninas riam enquanto
ameaçavam entrar. Contudo, na vez de um dos meninos que, assim como elas, também recuava
dizendo que não entraria, notava-se que algumas das meninas caçoavam do colega e em seguida
uma delas se referiu a ele como “frouxo”.
Ser “frouxo” é não ser “firme” e assim não sustentar uma posição de hegemonia, ou
“poder”. Essa firmeza que oculta a frouxidão é uma característica histórica, cultural e
socialmente construída em torno da masculinidade e de suas representações, por isso, “ser
homem” exige sustentar uma atuação de gênero desvinculada de características sensíveis e
delicadas. Manter esta posição, este gênero, requer um árduo esforço, daí a percepção mais
assídua por parte das docentes com relação aos garotos quando comparado às meninas. Os
deslizes da masculinidade se evidenciam quando não percorrem seu “script de gênero”
(ZANETTE; FELIPE, 2017).
Interrogadas sobre a possibilidade de poder identificar uma criança e se ela terá
tendências homossexuais, elas mencionam:

Rose: Sim, comprovadamente, devido a nós estarmos aqui há 26 anos e alunos nossos
que já tinham esse tipo de demonstração, hoje são homossexuais. Ofélia concorda
com Rose, balançando a cabeça e dizendo que sim.
(Transcrição do questionário realizado em dezembro de 2017)

O sintoma da homossexualidade se manifesta, diante desta compreensão, na


atuação de gênero, o que produz em termos diagnósticos a imagem do homem
homossexual como feminilizado, afeminado e da mulher homossexual como
masculinizada. Os outros possíveis garotos e garotas homossexuais que seguem as
prescrições de gênero normativas, denominada por “Cis 53” não passam pelo crivo do

53
De acordo com a pesquisadora Amara Mora Rodovalho (2017, p. 365) “O próprio dicionário Houaiss, trazendo
a etimologia de “cis” como “da preposição latina de acusativo “cis” ‘aquém, da parte de cá de’ (por oposição a
trans)”. Para Rodovalho, “cis” se refere àquilo que margeia, que não cruza, que deixa de cruzar, tudo em função
duma dada linha. “É possível imaginarmos a utilização de um desses termos sem, de pronto, nos referirmos ao
outro? É partindo dessa pergunta retórica que ouso afirmar que o discurso médico, ao nomear como “trans” a nossa
maneira peculiar de existir, de reivindicar existência, automaticamente nomeou a outra maneira, a sua maneira,
não-trans, como “cis”, cabendo-nos apenas pensar formas de fazer com que as duas imagens propostas nessa
metáfora, aquilo-que-cruza e aquilo-que-deixa-de-cruzar, se traduzam em sentidos mais palpáveis”.
86

diagnóstico do corpo homossexualizado, de uma identidade “homossexual”. Ele transita


pelas experiências sociais sem que sua sexualidade seja um alarme, sem que seu corpo e
sua “identidade” sejam interpretadas pelos seus desejos. São os corpos “estranhos” que
provocam as desconfianças, e para Santos (2001, p. 108) esta (re)conceitualização do
corpo nos possibilita uma certa leitura e apreciação daqueles corpos estranhos, “corpos
rotulados queers, como um lócus espetacular de criatividade e resistência à clas sificação,
homogeneização e normalização da vida”.
Para o pesquisador Ferrari em “Mãe! E a tia Lu? É menino ou menina? – Corpo, imagem
e educação” (2003) a crítica ao sujeito coeso, possuidor de um gênero e de uma identidade
sexual inevitável, se prolonga para a crítica da naturalização “do modelo heterossexual”,
abrindo espaço para a discussão da construção da homossexualidade pelo viés de gênero.
Diante da percepção de crianças “Trans54” na escola, perguntei como elas se reportavam
aos pais e/ou responsáveis:

Rose: Então, avisar praticamente não. A gente vai falar com os pais sim de uma
suposta diferença que ele vem apresentando, porque isso, muitas vezes, causa
sofrimento na criança. O menino que quer brincar de boneca e isso já foi detectado
em casa pelos pais, e é muito difícil o pai chegar e comentar isso com a gente. Quando
você dá a devolutiva, há uma negação do pai, principalmente. Então, eles sofrem
muito.
Ofélia se referindo a um caso, diz a Rose: Você lembra? Ele conversa com a mãe e
não com o pai, porque o pai não podia saber.
Rose: É um segredo, um segredo que eles contam para os professores.
Ofélia: Ele brincava com a boneca da prima, ia na casa da prima, que era uma
felicidade dele ir na prima, porque o pai não admitia.
Rose: Quando você chama a família, orienta a família, ela já está ciente.
(Transcrição da entrevista realizada em dezembro de 2017)

O sofrimento causado na criança pela diferença é provocado, de acordo com as


professoras, não pelos amigos da pré-escola, mas pelos pais que negligenciam outras produções
de subjetividades. Para as crianças, conforme Rose e Ofélia, essas diferenças são irrelevantes e
não implicam em práticas discriminatórias ou segregadoras: “Eles não percebem a diferença de
um comportamento para o outro”, disse Rose. Segundo Ofélia: “para eles [as crianças] é bem
natural”.
Imersas no tecido das relações sociais, as crianças aprendem a vincular suas condutas,
fazeres e deveres às normas de gênero estabelecidas. Se por um lado, isso poderia se apresentar

54
Utilizo o termo “Trans” para referir as práticas que transitam e desafiam uma normativa de gênero binária, ou
seja, aos hábitos, performances e condutas socioculturalmente prescritas como masculinas e femininas.
87

como um conjunto de manifestações e, em decorrência de suas relações de identificação e


resistências, produzir, como lembrou Preciado (2011), “multidões Queer” de gêneros, por outro
lado, não apagaria suas marcas sexuais. Entretanto, as instituições como a família e a escola
operam como corte de fluxos que conduzem essas potências em duas vias, dicotomizando as
possibilidades das experiências e, por meio da linguagem, circunscrevendo-as em um registro
de atuação e pertencimento binário.

O corpo não é um dado passivo sobre o qual age o biopoder, mas antes a potência
mesma que torna possível a incorporação prostética dos gêneros. A sexopolítica torna-
se não somente um lugar de poder, mas, sobretudo, o espaço de uma criação na qual
se sucedem e se justapõem os movimentos feministas, homossexuais, transexuais,
intersexuais, transgêneros, chicanas, pós-coloniais... As minorias sexuais tornam-se
multidões. O monstro sexual que tem por nome multidão torna-se queer.
(PRECIADO, 2011, p. 14)

Como não há uma essência biológica ou metafísica do que é masculino e feminino, mas
sim produções socioculturais, imaginários. O que produzimos é a naturalização por meio da
repetição de uma representação, portanto, encenamos uma representação daquilo que
culturalmente e socialmente constituímos e dialogamos como sendo masculino e feminino.
Quando esta representação é renegociada com base nas convenções culturais, os sujeitos
passam com maior ou menor resistência a sujeitar-se aos efeitos de poder provocados nas
propostas representacionistas. Entretanto, o poder, como nos destaca Butler (2017) retomando
Foucault, não é exclusivamente restritivo, punitivo, ameaçador, e na medida em que sua ação
cessa, interdita, controla, regula, ele também produz. O poder é produção e implica em produzir
novos agenciamentos, subterfúgios e saídas dos mecanismos de controle identitários. As
crianças ao se assujeitarem à cultura, interagem com as referências e produzem outras relações
e identificações. O corpo da criança torna-se uma caixa de ressonância da palavra, e é também
sobre sua materialidade que é tecida e negociada sua identidade.

[...] o indivíduo se forma – ou melhor, formula-se – como prisioneiro por meio de sua
“identidade” constituída discursivamente. A sujeição é, literalmente, a feitura de um
sujeito, o princípio de regulação segundo o qual um sujeito é formulado ou produzido.
Essa sujeição é um tipo de poder que não só unilateralmente age sobre determinado
indivíduo como uma forma de dominação, mas também ativa ou forma o sujeito.
Portanto, a sujeição não é simplesmente a dominação de um sujeito nem sua produção
– ela também designa um certo tipo de restrição na produção, uma restrição pela qual
essa produção acontece. (BUTLER, 2017, p. 90)

Os segredos que as crianças contam para as professoras, como mencionado no


fragmento acima, se referem às experiências do brincar com brinquedos do “outro” gênero. Ao
88

encarar tais situações como “segredos”, as crianças sabem da interdição que as impossibilitam
de acessar algumas experiências, contudo, resistem às determinações e se arvoram no desafio
de um encontro com o interdito.

4.2 Gênero e organização do trabalho pedagógico

O verdadeiro perigo não é este. Se o desejo é recalcado é porque toda posição de


desejo, por menor que seja, pode pôr em questão a ordem estabelecida de uma
sociedade: não que o desejo seja a-social, ao contrário. Mas ele é perturbador; não há
posição de máquina desejante que não leve setores sociais inteiros a explodir. Apesar
do que pensam certos revolucionários, o desejo é, na sua essência, revolucionário – o
desejo, não a festa! – e nenhuma sociedade pode suportar uma posição de desejo
verdadeiro sem que suas estruturas de exploração, de sujeição e de hierarquia sejam
comprometidas. (DELEUZE, 2011, p. 158)

Durante a entrevista, ao abordar alguns aspectos da organização do trabalho


pedagógico, questionou-se quais brincadeiras as crianças participavam e se os meninos e
meninas brincavam juntos. As professoras destacaram que durante os cantinhos a participação
nas brincadeiras não encontrava resistências, uma vez que eles/elas transitavam entre as
atividades e os brinquedos sem levar em consideração aspectos de gênero. Rose mencionou
que “eles brincam juntos. De bola, de basquete, jogos diversos, quebra-cabeça, na casinha,
que o menino também participa, não tem essa diferença, isso é de menino e isso é de menina
dentro da EMEI”.
As observações de Rose remontam a registros etnográficos, em especial, de uma cena
em particular. Enquanto as crianças, juntas (meninos e meninas), jogavam e separavam no chão
peças de montagem e encaixe, me aproximei, sentando-me ao lado deles/delas e em seguida
comecei a mexer, encaixando os blocos. Algumas das crianças se dispuseram a ajudar-me na
construção do objeto que não obtinha forma pensada previamente, mas que adquiria sentido e
animação na medida em que discutíamos o que poderia ser aquilo. Uma das meninas exclamou
dizendo se tratar de uma escola, enquanto o colega ao lado denotou não possuir “telhado” e
observou ser um carro. Então, respondi achar interessante a ideia de ser o carro, e que eles
poderiam usá-lo para passear!
Meninas e meninos presentes passearam com o carro por outras atividades, e após alguns
minutos se espalharam, após tomar contato com o baú (caixa) do “faz de contas”. Roupas,
acessórios e adereços que ali se encontravam adornavam os corpos e as imaginações, tornando
a sala um rico território de produção de diferenças. Garotos de pulseiras, tecidos envoltos ao
corpo, lenços e chapéus, enquanto as meninas também se apropriavam de objetos e adereços
simulando personagens. Ser homem ou mulher, masculino ou feminino em meio à
89

efervescência das relações que se estabeleciam era restritivo para nomear. O envolvimento entre
as crianças possibilitava pensar o agenciamento de outros gêneros não escritos. Rose, sobre esta
experiência mencionou que “Durante a brincadeira, nesse cantinho do “faz de conta” é a
representação mesmo. Menino brinca com boneca, é uma brincadeira normal. Sem demonstrar
tendência”, enquanto Ofélia afirmou que os meninos “ajudam a fazer o almoço, a comidinha,
sem demonstrar tendências”.
Para as professoras meninos e meninas brincavam com brinquedos e afazeres do outro
sexo sem demonstrar “tendências”, por isso, chamou-se por “normal”, ou seja, mesmo as
professoras compreendendo a importância das crianças transitarem por diferentes atividades,
ainda assim, para elas prevalece a ideia de que os brinquedos e os papéis desempenhados estão
correlacionados a um sexo. O pensamento tornou-se uma máquina de percepção dualista,
dicotômica e maniqueísta.
Ao perguntar como eram pensados e organizados os “cantinhos” das brincadeiras, elas
disseram:

Rose: De acordo com os eixos, através de planejamento, cuidado na escolha da


atividade para que ela seja desafiadora.
Ofélia: Que seja do interesse da criança também.
Rose: E o mais importante, que ele tenha a livre escolha de naquele momento ele
participar daquele cantinho, tendo a responsabilidade de passar por todos no
decorrer da semana.
Ofélia: Vai desenvolvendo a autonomia deles, né.
(Transcrição do questionário realizado em dezembro de 2017)

Nota-se a preocupação para que as crianças participem de diferentes brincadeiras ao


longo da semana, obtendo a livre escolha, desenvolvendo a autonomia. As observações do
trabalho em campo permitem constatar a fala das docentes, ou seja, as propostas pedagógicas
contemplam a diversidade e permitem a participação das crianças em diferentes atividades.
Entretanto, para elas as transgressões de gênero ocorridas no espaço da educação infantil
resumem-se em experimentações com artigos, acessórios e papéis de um ou outro sexo,
impossibilitando-as de compreender o gênero como produção autônoma, desconectadas de uma
genitália ou de uma sexualidade.
Quando se discute sobre as resistências por parte das crianças em participar de
atividades ou questionar algumas imposições/determinações colocadas, Rose e Ofélia
mencionam que as crianças que resistem são, na maioria das vezes, filhos e filhas de famílias
“desestruturadas”, não possuindo apoio em casa e vivem com as mães sozinhos/as.
90

Rose: São poucos, mas o que a gente observa na nossa prática são crianças, pelo
menos, na minha sala, eu posso classificar em duas famílias: a família
desestruturada, a criança que não tem o apoio, geralmente a mãe é sozinha. Essa
criança tem mais dificuldades em seguir as regras, é a criança que “pode tudo”.
(Transcrição do questionário realizado em dezembro de 2017)

Esta resposta nos fornece duas chaves de leitura: a primeira conectada à compreensão
da tríade edípica (pai, mãe e filho) para justificar e explicar situações e fenômenos envolvendo
as relações entre as crianças e entre crianças e professoras. Essa leitura consiste no fundamento
da ausência, neste caso, da ausência paterna, que passa a justificar algumas condutas. O pai é
interpretado como a única lei, figura, de acordo com elas, capaz de inscrever os regramentos e
a ordem moral. O Édipo sempre é convocado para explicar os comportamentos. Aprendemos a
edipianizar as relações e as análises sobre a vida.
Deleuze e Guattari (2011, p. 94) dissertam sobre a “edipianização” da vida e os perigos
derivados desta dependência triangular, mas, sem relegá-las ou desconsiderar sua importância.
Os autores escrevem:

Não dizemos que Édipo e a castração nada sejam: somos edipianizados, castrados, e
não foi a psicanálise que inventou essas operações às quais ela apenas fornece os
novos recursos e processos de seu gênio. Mas será que isso é suficiente para fazer
calar o clamor da produção desejante: somos todos esquizos! Somos todos perversos!
Somos todos Libidos demasiado viscosas ou demasiado liquidas...não por gosto, mas
porque somos levados pelos fluxos desterritorializados...

A segunda chave de leitura diz respeito a uma outra interpretação da fala de Rose, que
ao reportar sobre o comportamento apresentado por algumas das crianças sem a presença do
pai, denuncia as dificuldades enfrentadas pelas mães que assumem a responsabilidade pela
educação dos filhos, muitas vezes tendo de administrar o tempo com os afazeres domésticos e
o trabalho fora de casa.
A contenção dos fluxos desejantes das crianças e sua edipianização possibilitam um
movimento de cortes que irrompem em possibilidades para aniquilar subjetividades,
circunscrevendo as crianças na territorialidade do capitalismo. Edipianizar as relações
significa conduzi-las a uma lógica codificada, e nesse sentido, antecipar a alfabetização,
impossibilitando que a pré-escola seja um espaço de outras vivências e experimentações com
o corpo. Assim ela se integra às estratégias para que cada vez mais cedo as crianças aprendam
a viver e pensar em estruturas previamente estabelecidas pelo consumo e ritmo da
produtividade.
91

Trata-se pois de um sistema de iniciação ao sistema de representação e aos valores do


capitalismo que não mais põe em jogo somente pessoas, mas que passa cada vez mais
pelos meios audiovisuais que modelam as crianças aos códigos perceptivos, aos códigos
de linguagem, aos modos de relações interpessoais, à autoridade, à hierarquia, a toda
tecnologia capitalista das relações sociais dominantes. (GUATTARI, 1985, p.51)

Ainda sobre a lógica do agenciamento capitalista e da máquina edipianizadora, Guattari


(1985, p. 53) diz:
Esta homogeneização das competências semióticas é essencial ao sistema da economia
capitalista: “a escrita” do capital implica com efeito que o desejo do indivíduo, em seus
diferentes desempenhos semióticos, seja capaz de se adaptar, de se “tradutibilizar”
agenciando-se a partir de qualquer ponto do sistema sócio-econômico.
[...] A iniciação ao capital implica, em primeiro lugar, esta iniciação semiótica nos
diferentes modos de tradutibilidade, e nos sistemas de invariantes que lhes correspondem.

A concepção da pré-escola como uma fábrica, lócus privilegiado para a formação de


agentes produtivos capazes de interagir com as marcas e códigos do capitalismo, encontram-
se presentes entre os vereadores do município. Nos debates sobre o PME, o vereador Jéferson
Luís da Silva manifesta sua preocupação com os debates sobre gênero e sexualidade nas
escolas municipais, dizendo que cabe à escola a tarefa de produzir conteúdos, formando
alunos(as) competitivos: uma espécie de fábrica de cidadãos. Esvaziada da sua infância, a
criança passa a ser vista como um “vir-a-ser”, portanto, incapaz diante sua compreensão de
exercer a função de um sujeito ativo na produção de sua identidade, sucumbida a uma
governamentalidade por parte dos adultos (e das instituições) que retêm e guardam para elas
o futuro delas próprias.

Por esta palavra, “governamentalidade”, entendo o conjunto constituído pelas


instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que
permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que
tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política
e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Em segundo lugar,
por “governamentalidade” entendo a tendência, a linha de força que, em todo o
Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito, para a preeminência deste tipo de
poder que podemos chamar de “governo” sobre todos os outros – soberania, disciplina
– e que trouxe, por um lado o desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos
de governo [e por outro lado], o desenvolvimento de toda uma série de saberes. Enfim,
por “governamentalidade”, creio que se deveria entender o processo, ou antes, o
resultado do processo pelo qual o Estado de justiça da Idade Média, que nos séculos
XV e XVI se tornou o Estado administrativo, viu-se pouco a pouco
“governamentalizado”. (FOUCAULT, 2008, p.143-144)

Para o vereador, a “fábrica de cidadãos” deve preocupar-se com o desenvolvimento


técnico, não permitindo tempo para se desenvolver um trabalho que vise à desconstrução de
preconceitos de gênero e da marginalização social mediante critérios de orientação sexual.
92

Portanto, entende-se que para o vereador a noção de cidadania está intimamente ligada à ideia
de produção. Cidadão é aquele que produz, dominando as técnicas e a decodificação do
sistema capitalista. E nesse sentido, preservar a função escolarizadora, abstendo-se da
problematização das questões de gênero, permitindo a manutenção de um sistema que gera
desigualdades econômicas e políticas, estabelecendo as funcionalidades e ocupações dos
sujeitos a partir de critérios sexuais, relegando alguns marcadores sociais de diferenças, como:
etnia, gênero e classe social que levados em consideração evidenciam desigualdades
históricas construídas no país.

Como é que nossas crianças iriam ser orientadas, mas tardar iríamos ter o dessabor
de estar dando cartilhas como nós vemos em outros municípios, não prestando um
serviço para a criança, mas no meu modo de entender prestando um desserviço,
deixando o tempo precioso dessa criança dentro da escola, deixando de produzir
outros conteúdos, deixando de ser competitivo com outras instituições
educacionais, buscando a formação de um cidadão, porque no meu modo de ver a
escola desta cidade e a escola brasileira, ela deve ser uma fábrica de cidadão,
formar esse cidadão para a sociedade, para que ele se forme de tal maneira que
tenha plena condição de escolher a sua bagagem técnica, o que ele deve, o que ele
vai escolher profissionalmente, com uma boa base educacional, vindo de casa,
como diz o jargão, educação vem do berço, e com o apoio ao conhecimento das
escolas.
Esses cidadãos escolhem a sua profissão, com embasamento e com apoio, e isso,
Senhor Presidente, tiraria o tempo dessa formação para discutir questões sexuais,
inclusive dentro das CEI´s, EMEF´s, e EMEI´s. Nós somos contrários a isso55.

O posicionamento dos legisladores se encontrava marcado por um discurso de


inspiração religiosa, como visto antes, tecendo críticas ao que denominaram por
“desnaturalização do sexo”, afirmando caber à família a tarefa de orientar seus filhos e filhas
sobre os assuntos da sexualidade.
Foucault (2010) nos lembra que a família é princípio de regulação e de normalização
da vida sexual das crianças. Em seu primeiro volume de História da Sexualidade, o filósofo
questiona que a sexualidade tenha sido ao longo dos séculos unicamente alvo de repressão.
Suas investigações apontam sobre uma verdadeira explosão discursiva sobre o sexo, ou seja,
um conjunto de saberes e práticas discursivas investidas de seu caráter cientificista
passaram a permear as instituições, constituindo uma rede de saber-poder sobre a intimidade
de homens, mulheres e crianças. Não se referia a uma repressão ou tabu sobre o assunto,
mas da concessão de legitimidade de quem e onde se poderia falar sobre, por isso, ao longo
da chamada modernidade, a sexualidade conquista seu estatuto nos saberes médicos-

55
Ata da 21ª Sessão Ordinária, da 3ª Sessão Legislativa, da l6ª Legislatura, realizada no dia 22 de junho de 2015,
p. 12.
93

psiquiátricos, na psicanálise entre outras abordagens de caráter científico, como a eugenia


e o higienismo na época 56.

[...] por volta do século XVIII nasce uma incitação política, econômica, técnica, a falar
do sexo. E não sob a forma de uma teoria geral da sexualidade mas sob forma de
análise, de contabilidade, de classificação e de especificação, através de pesquisas
quantitativas ou causais. Levar “em conta” o sexo, formular sobre ele um discurso que
não seja unicamente o da moral, mas da racionalidade, eis uma necessidade
suficientemente nova para, no início, surpreender-se consigo mesma e procurar
desculpar-se. (FOUCAULT, 2010, p. 30)

A explosão discursiva mencionada por Foucault (2010, p. 31), permite a elaboração


de uma “política do sexo”, “isto é, a necessidade de regular o sexo por meio de discursos
úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição”, mobilizando o Estado Moderno a
integrar em si uma prática antiga exercida pelas instituições cristãs: o cuidado com a
pastoral, caracterizado pelo cuidado com o grupo, mas também com cada agente que
compõe a pastoral, ou seja, uma relação individual como ocorrida na confissão. Esse “poder
pastoral” se exerce explorando e guiando as almas e os indivíduos e produzindo uma
verdade sobre si.
Essas características se encontram presentes no Estado Moderno, que passou a
desenvolver uma matriz de individualização a qual entende que a salvação do sujeito se
converte na segurança de sua vida. O poder pastoral foi assumido por diferentes instituições
modernas, como: a polícia, a escola, a clínica médica e psicanalítica, entre outras. Essa matriz
produz deliberadamente uma forma de subjetividade.
Nesse sentido, uma educação para a desconstrução dos papéis de gênero e da busca
pela equidade de direitos, possibilitando o acolhimento e a produção de novas subjetividades
pode colocar em risco a organização de uma estrutura social assentada nas desigualdades, tais
como as desigualdades salariais, de oportunidades, de reconhecimento, valorização, entre
outras.
Educação para o estabelecimento de novas relações de gênero permite desfragmentar a
compreensão biologizante do gênero que garante um caráter restritivo da humanidade,
contrapondo os meios de comunicação que na atualidade atuam e funcionam como veículos
para a construção de entendimentos sobre temas e assuntos, formando conceitos. Como já
lembrou Deleuze (2011, p. 11), em O que é Filosofia?, se a tarefa do filósofo na atualidade não

56
Para maiores informações, ler: BARREIRO, Alex. Pedagogia dos desejos: eugenia, psicanálise e sexualidade
infantil brasileira. São Paulo, editora Léxia, 2015.
94

for a de produzir conceitos, esta atividade ficará sob a responsabilidade dos meios de
comunicação.

O filósofo é o amigo do conceito, ele é conceito em potência. Quer dizer que a filosofia
não é uma simples arte de formar, de inventar ou de fabricar conceitos, pois os
conceitos não são necessariamente formas, achados ou produtos. A filosofia mais
rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos.

Professores e professoras também são formados com base nas mídias, traduzindo um
mundo a partir de seu sistema de representação dos valores do capitalismo.

As questões políticas, como a “ideologia de gênero” e o “Escola sem partido” que o


município enfrentam provocam ressonâncias na educação infantil e no trabalho
pedagógico?
Rose: Então, este tema até a gente sugeriu para que seja estudo no ATPC, porque nós
não tivemos ainda, nenhum esclarecimento vindo da Secretaria. Nós lemos o que está
na mídia. Mas a gente ainda trabalha no tradicional. Banheiro de menino e banheiro
de menina.
Ofélia: Exatamente.
(Transcrição do questionário realizado em dezembro de 2017)

As falas apontam para um efeito colateral [conforme interesses dos vereadores]


levantado pelas polêmicas em torno das discussões de gênero nas escolas. Em vez de
silenciar, as discussões na Câmara Legislativa aumentavam a curiosidade. O
desconhecimento do assunto fez com que as professoras sugerissem os estudos das
temáticas nos espaços de formação docente, possibilitando novas leituras e entendimento ,
pois para ambas as discussões de gênero centralizavam-se na polêmica sobre o uso dos
banheiros. Interrogadas sobre seus conhecimentos acerca de uma educação para as relações
de gênero e sexualidade na infância, assim como das fontes recorridas para compreenderem
estes conceitos, elas responderam:

Rose: Sim, nós tivemos uma palestra onde a gente estudou a diferença né...e a gente
busca muito na internet, nos meios de comunicação.
Ofélia: A gente busca na internet, como está um assunto bem em foco agora.
Rose: Porque até então não tem um diagnóstico fechado sobre isso... Esses dias
assisti um programa e que mudou muito a minha visão da “ideologia”. A menina, ela
nasceu com 95% dos hormônios masculinos, daí você para pra pensar? Essa menina
se sente um menino desde que ela nasceu! Hoje ela tem barba, tem tudo. Então como
é que foge disso? Então você para e pensa: bom, eu tenho que analisar melhor.
(Transcrição do questionário realizado em dezembro de 2017)

Por meio das respostas, percebe-se a dificuldade em desarticular os conhecimentos de


gênero e sexualidade das verdades biologizantes, ou seja, mesmo discutindo as noções
identitárias enquanto constructos culturais, atravessados pelas relações de poder políticas,
95

sociais e econômicas no tempo histórico, a crença no determinismo emerge para justificar as


diferenças, ao passo que a norma é inquestionada.
Entretanto, as contradições aparecem, sobretudo, enquanto conversamos sobre o que é
ser homem ou mulher atualmente?

Rose: Aiaiaiaiii!!! E agora?


Eu acho que a gente é “ser humano”. Independentemente de você nascer menina ou
menino, hoje não tem mais aquela ação só de homem, ação só de mulher como o
homem prover a casa, a mulher ficar em casa. Tá tudo junto e misturado.
Ofélia: Não tem como. A mulher trabalha, a mulher é dona de casa, o marido tá
ajudando também, não tem mais....
Rose: Definir que é o problema, né.
Ofélia: Que pergunta difícil.
(Transcrição do questionário realizado em dezembro de 2017)

Entende-se, a partir das falas das professoras, que os papéis de gênero atualmente
não encontram na genitália um delimitador, assim havendo múltiplas formas de ser homem
ou mulher nas relações estabelecidas no tecido social. O “redesenhamento” dessas funções
sociais permitiram a dilatação acerca da concepção de masculino e feminino,
proporcionando e permitindo borrar as fronteiras demarcadas que condicionavam as
experiências e o agenciamento desses sujeitos. Contudo, ainda que negociadas as práticas
de gênero na contemporaneidade e revisto o estatuto sexista, é importante destacar que a
genitália ainda se mantém como um designador da diferença sexual, responsável pela
produção simbólica do sujeito no interior de uma economia desejante, portanto, no interior
de uma estrutura linguística que possibilita as (des)identificações e os desdobramentos de
sua constituição subjetiva.
As multidões de gênero que atravessaram o binarismo agora buscam na revolução
linguística novos subterfúgios para implodir as dimensões simbólicas e imaginárias que
organizam a diferenciação sexual homem x mulher, porém esta investida muitas vezes se fratura
impossibilitando a concessão de um representante para um significante que possa produzir outra
categoria humana que não cindida pela divisão sexual.
96

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Algumas das inquietações levantadas no início desta tese, ainda parecem pairar, dando
a sensação de que o material colhido e registrado ao longo da pesquisa e das análises
empregadas não permitiram responder determinados questionamentos, como a percepção da
interferência ou ressonância dos discursos dos vereadores no cotidiano da pré-escola. Ou se a
campanha moral travada contra um inimigo denominado pelos setores conservadores por
“ideologia de gênero” faz sentido.
Durante a realização e observação do trabalho em campo e das questões realizadas,
foi possível inferir que as professoras passaram a se interessar com mais afinco pelas
temáticas relacionadas a “gênero” e “sexualidade infantil” em decorrência das polêmicas
travadas em debates na Câmara Municipal e também dos artigos em jornais e na mídia
televisiva. Entretanto, as professoras não se reconheciam na narrativa marcada pelo “pânico
moral” dos legisladores da cidade, ou seja, elas não se manifestavam “doutrinadoras”,
tampouco incitavam ou manipulavam as crianças a brincarem com alguns brinquedos
induzindo-as a que utilizassem o mesmo banheiro (denúncias presentes na alegação por parte
de grupos contrários à educação para as relações de gênero).
Os discursos dos vereadores para elas, como mencionou Rose, enquanto conversávamos
observando as crianças no parquinho, “parecia ficção” e não estabelecia nenhum elo com a
realidade e com o cotidiano da pré-escola. Mesmo as professoras conhecendo superficialmente
os estudos de gênero, informadas (como relatado em entrevista) através de textos nas redes
sociais ou em discussões de programas na televisão, sabiam que muitas das questões levantadas
para se combater o “sexismo” desde a infância não eram novos e faziam parte de documentos
oficiais que norteavam a educação infantil, como o RCNEI (Referencial Curricular Nacional
para Educação Infantil), como lembrou Ofélia, e que, portanto, toda essa atual polêmica parecia
“tempestade em copo d´água”.
Os planejamentos das atividades, as histórias contadas e a organização dos espaços
não eram pensados por elas com o intuito de privar, separar por sexo ou de censurar
brincadeiras, também não de induzir meninos e meninas a exercerem outros papéis, afinal,
brinquedo é pra brincar, não é? 57 Não havia por parte da coordenação das CEIs e EMEIs
municipais (SP) ou da Secretaria da Educação nenhuma recomendação, exigência ou ato de
censura sobre as propostas pedagógicas, portanto os documentos permaneciam como eixos

57
Frase destacada por Rose enquanto ajudava as crianças a guardar e organizar os brinquedos em sala. Registro
do diário de campo, outubro de 2017.
97

norteadores da política educacional para as crianças, priorizando a autonomia das professoras


no processo de elaboração do planejamento. As falas, expressões e agenciamentos (como a
organização dos cantinhos das brincadeiras, das filas para alimentação ou ir ao banheiro, entre
outras) eram pensadas e negociadas entre as professoras com o intuito de “organizar” a rotina
das crianças, procedimentos adotados há anos, desde o início de suas atividades profissionais
na unidade da pré-escola, assim arraigadas e talvez pouco problematizadas mediante a
ausência dos cursos de formação docente, sobretudo com relação a temáticas como gênero e
sexualidade na infância. O longo tempo de experiência de ambas e o comprometimento com
a educação das crianças lhes autorizavam não dar credibilidade às falas dos vereadores que
almejavam dizer o que fazer ou não enquanto professoras na pré-escola, como mencionou
Rose em conversa: ‒ “Eles são professores há quanto tempo?”; “Entendem o que de
educação”? “Vieram nos perguntar alguma coisa”? Assim, o descontentamento por parte
delas com relação às acusações levianas e genéricas levantadas durante embates sobre o que
denominaram por “ideologia de gênero”, permitiam com que Rose e Ofélia considerassem
irrelevante uma política que implicaria na elaboração de uma pedagogia incapaz de abarcar a
diversidade e a criatividade das crianças.
É importante destacar que não existia por parte do Governo Municipal ou Federal na
ocasião da pesquisa (em 2017) determinações ou alusões que dessem importância a essa
aspiração de caráter ideológico na produção das identidades de gênero, limitando as
experiências e condicionando seus papéis em uma rígida e histórica estrutura binária,
oposicionista. Os documentos da área da Educação Infantil garantiam às professoras autonomia
e respaldo legal para elaborarem seus planejamentos. Contudo, uma série de mudanças políticas
ocorreram desde 2017 e com as eleições em outubro de 2018, permitindo que grupos
ultraconservadores ocupassem os principais cargos administrativos do país, como a Presidência
da República, os ministérios e cargos estratégicos. No atual governo do Estado de São Paulo
(2019) as transformações, assim como no âmbito Federal, também caminham na esteira do
conservadorismo, como prometido em campanha, cujo o slogan utilizado foi “Vote
BolsoDória58”. Diante a nova conjuntura, grupos, em especial ligados às igrejas neopentecostais
passaram a interferir e indicar os rumos para uma nova política educacional, centrada no
combate de seus espantalhos levantados em período eleitoral, como: ideologia de gênero, o
comunismo nas escolas e a escola sem partido. Ideias estas contestadas pelos docentes que

58
A expressão significa a fusão dos nomes Jair Bolsonaro, candidato à Presidência da República pelo PSL –
Partido Social Liberal e João Dória, candidato a governador pelo Estado de São Paulo pelo PSDB – Partido da
Social Democracia Brasileira. Ambos alinhados pela perspectiva do conservadorismo e da militarização.
98

afirmam um desconhecimento do governo com relação às reais necessidades e dificuldades que


o ensino público brasileiro enfrenta (FRIGOTTO, 2017). Essa nova configuração política e
ideológica que passa a aparelhar o Estado, produzindo um imaginário da figura do professor
como “doutrinador” ou mesmo uma ameaça, podem ter colocado as professoras Rose e Ofélia
em nível de maior atenção quanto ao clima de medo e pânico moral construído, em particular,
nos últimos meses. Mas é importante mencionar que nem todos os medos são verbalizados pelas
docentes, por razões de segurança ou anonimato, às vezes se reverberando no silêncio e
podendo passar a agir nos planejamentos e propostas que inviabilizam o trabalho com as
diferenças e com a diversidade étnica, cultural, de classe, idade e de gênero.
Sobre a questão “se a campanha moral travada contra um inimigo denominado pelos
setores conservadores por ‘ideologia de gênero’ faz sentido”, entendemos que os fragmentos
etnográficos, a observação e as análises das cenas registradas nos permitem compreender que
os processos de subjetivação e a relação de cada criança com o universo simbólico e
imaginário não obedecem a uma lógica pré-estabelecida pelas intenções dos adultos. Assim,
o desejo dos pais ou de qualquer outra pessoa sobre o/a filho/a ou a criança não garante uma
identificação com a identidade forjada ou fantasiada pela família ‒ lembremos das cenas dos
capítulos anteriores que enquanto o pai marcava o corpo do filho com a camiseta do
Corinthians, buscando tornar invisível seus trejeitos, Raphael rivalizava com o pai por meio
da cor verde e do Palmeiras, principal adversário do time paulista, resistindo ao intuito da lei
paterna. Cenas como essas ocorreram nas brincadeiras de Felipe e Raphael e já foram
estudadas por outros/as pesquisadores/as, como no caso das “unhas vermelhas” da cor do
Schumacher (FARIA, 2006).
As tentativas de construções identitárias que forçosamente ocorrem em razão de uma
política normativa de gênero e sexualidades, via dispositivo heterorregulador, acabam se
tornando obsoletas e violentas, desconsiderando a capacidade das crianças de produzirem
culturas infantis e interagirem entre elas, desconhecendo suas negociações com os sentidos e
os significantes que permeiam seu universo. As leis exclusivamente não podem produzir
subjetividades por sua força de privação ou controle, pois as formas de subjetivação, muitas
vezes desafiam as regras, resistem e se conectam com outros afetos e experiências.
Essa questão me retorna ao episódio em que Raphael estava com um grupo de meninas,
e buscou uma das bonecas que perto delas se encontrava para brincar e enquanto mexia e
gesticulava com o brinquedo, uma das garotas a tomou, alegando que “aquela” já pertencia a
ela anteriormente. Sem discutir, Raphael se dirigiu à caixa com blocos montáveis e ali
encaixando-os fez a sua própria boneca, dando continuidade às brincadeiras. Com isso, Raphael
99

ensina que não basta impedir o acesso aos objetos, brinquedos, lugares, cores e acessórios uma
vez que estes mecanismos de regulação e controle são ineficazes diante o imaginário infantil e
suas múltiplas possibilidades de criação e identificação. Outro aspecto importante diz respeito
ao fato da menina não inibir Raphael de brincar com as bonecas, mas sim com aquela
determinada boneca, brinquedo que não queria dividir.
Entendemos neste trabalho a subjetividade e os modos de subjetivação a partir das
contribuições de Foucault, portanto, como um espaço íntimo do indivíduo ou como ele constrói
suas percepções e opinião, acerca daquilo que é dito, e se relaciona com o social, o que resulta
em singularidades na sua composição e na maneira com que percebe e negocia com normas e
valores, compartilhados na sua dinâmica cultural e na construção da experiência histórica e
coletiva. Os modos de subjetivação, são, precisamente, as práticas de constituição do sujeito,
ou como escreveu Foucault (1997, p.111) “A história do cuidado e das técnicas de si seria,
portanto, uma maneira de fazer a história da subjetividade [...] através do empreendimento e
das transformações, na nossa cultura, das relações consigo mesmo, com seu arcabouço técnico
e seus efeitos de saber”.
O pânico moral ou a falácia, conforme Reis e Egert (2017), no artigo “Ideologia de
gênero”, referem-se a esta como construções fantasiosas sem fatos, e que servem como
mecanismo estratégico de intenções políticas eleitoreiras para eleger candidatos e candidatas
do campo conservador, uma vez que passam a se apresentarem como personalidades capazes
de barrar e conter o avanço de uma ideologia que “perverte” e “subverte” a natureza das
crianças, pois representam a população. Aliar-se ao obscurantismo religioso foi uma estratégia
precisa em nível nacional e no município ela também ocorreu, como foi possível verificar nos
discursos emitidos na sessão ordinária da Câmara Municipal:

[...] Eu digo isso, senhor presidente, porque nós, eu faço parte da bancada evangélica
nesta casa, respeito todas as religiões, nós somos cristãos e nós defendemos aqui,
senhor presidente, a família, nós defendemos aqui, senhor presidente, as coisas boas,
nós não somos homofóbicos, nós não somos intolerantes, senhor presidente 59.

Tendo em vista as benesses que este jogo moral produz politicamente (permitindo se
elegerem), compreender que o processo de subjetividade das crianças são negociações
simbólicas quais também operam na mecânica da resistência e não exclusivamente de uma
identificação prescritiva, pouco interessa aos vereadores que almejam elaborar e aprovar leis

59
Ata da 21ª Sessão Ordinária, da 3ª Sessão Legislativa, da l6ª Legislatura, realizada no dia 22 de junho de 2015,
p. 7-8.
100

com o intuito de estabelecer as normas das identidades, de seu gênero. Buscavam legislar
sobre o desejo humano, contudo, os esforços empreendidos não conseguem determinar os
sentidos e os usos que a criança fará e dará a eles. Por isso, o discurso da ideologia de gênero
tecido ao longo desses últimos anos, se trata de uma narrativa ficcional, incapaz de traduzir e
decodificar os trajetos das identidades. Tal discurso, incessantemente reiterado por homens e
mulheres eleitos/as das casas legislativas em todo o Brasil, almeja minar um campo de saber
científico que historicamente vem contribuindo para a elaboração de políticas de equidade de
gênero que visam desconstruir um legado patriarcal cuja herança colonial e colonizadora
realiza a manutenção de privilégios e domínios de espaços e cargos públicos e privados aos
homens brancos, cristãos e heterossexuais, convencionados a encenar seus papéis de
masculinidade dominantes. Minar este campo de produção científica significa tentar conter
os avanços sociais, conquistados nas últimas décadas, e a emancipação de sujeitos (mulheres,
negros, LGBTs, indígenas) que até então viviam às margens da história, trancafiados em seus
porões. Por essa razão, o presidente eleito Jair Bolsonaro anunciou junto de sua equipe
ministerial o controle no financiamento público de pesquisas, alegando a importância da
implementação de um filtro “ideológico 60” para a concessão das bolsas aos pesquisadores/as.
A notícia provocou a reação imediata de associações de pesquisadores, como a Anpuh
(Associação Nacional de História), Anped (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa
em Educação), SBHE (Sociedade Brasileira de História e Educação) e Anpocs (Associação
Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais)61.
Por isso, para os legisladores evitar que as teorias de gênero e sexualidade possam
problematizar a realidade sociológica, evidenciando mudanças para que se altere o quadro de
desigualdades de gênero e sexuais no país, passa pela educação, pela censura aos temas de
pesquisa e seus referenciais teóricos e conceituais. Para pensarmos a partir das contribuições de
Mignolo (2014), diferentes dispositivos de colonização são acionados para “assujeitar-nos” a
esta estrutura econômica, política e social vigente, sendo eles: o controle da economia, que
inclui a apropriação de terras e recursos naturais e exploração do trabalho, além da criação de
organismos internacionais como o FMI; o controle da autoridade relacionado à política de
direitos e suas relações internacionais e, sobretudo, o controle de gênero, sexual e do
conhecimento, que inclui a invenção do conceito “mulher”, a heterossexualidade como norma

60
<https://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/2018/10/17/sob-bolsonaro-pgr-passara-por-filtro-ideologico/>.
Acesso em: 21 jan. 2019.
61
<https://cartacampinas.com.br/2019/01/governo-bolsonaro-quer-cortar-bolsas-de-pos-graduacao-de-
pesquisadores-com-pensamento-critico/>. Acesso em: 21 jan. 2019.
101

reguladora e o modelo de família cristã como célula social. Junto a tais formas de colonização
também se inclui o da subjetividade, esta marcada pela concepção de mundo e vida enquanto
consumidores.
Colonizar para governar, criminalizando o pensamento crítico, as identidades
dissidentes que afrontam as fronteiras e demarcações de gênero e também das sexualidades
disparatadas (FOUCAULT, 2010) que se rebelam contra a matriz da heterossexualidade
compulsória; e coibir, punir ou prender subjetividades realocando-as para os espaços de
subalternidade suscetíveis aos ataques de violência física e emocional, dando uma
conotação de prática cultural ao extermínio/genocídio das diferenças étnicas, raciais, de
gênero, classe, idade e sexuais no Brasil. Estas medidas colonizadoras contemplam um
projeto moderno, para além da colonização territorial, e isso abarca, sem dúvida, a vida das
crianças que passam a ser colonizadas em diferentes espaços, como escreveu Gallo (2018,
p. 60): “Coloniza-se a infância nas escolas, mas também nas igrejas, nas famílias, nas ruas,
nas mídias...”.
Como já mencionado anteriormente, a elaboração desta pesquisa e deste texto foram
tentativas de desenhar um mapa durante um terremoto, cujas movimentações terrestres e os
efeitos ocasionados com seus tremores ainda permanecem. Por isso, se torna imprescindível
questionar se o trabalho etnográfico tivesse sido realizado na atual conjuntura política que o
Brasil enfrenta, quais seriam as condutas e respostas concedidas pelas professoras? O breve
período que separa o início da imersão em campo na pré-escola dos dias atuais estão marcados
por discursos de perseguição, controle e intenso combate às políticas das diferenças.
Contudo, este trabalho abre a possibilidades para novas investidas no campo da
educação infantil, pois, ao questionar o desejo do Outro sobre a criança, assim como os recursos
usados pelos adultos que almejam conduzir a construção de sua estrutura subjetiva, eles muitas
vezes fracassam ou são tomadas e reinterpretadas com diferentes intenções. Isso leva
pesquisadores e pesquisadoras da educação infantil a se atentarem para os jogos de relações de
poder que se estabelecem no cotidiano da pré-escola e como as crianças conduzem e negociam
também em suas dimensões simbólicas e imaginárias.
Além dos fatores de produções da subjetividade, este trabalho chama a atenção para
perceber a pré-escola e a educação infantil como um território de disputa política, caracterizada
neste cenário contemporâneo pela conduta do “anti-intelectualismo”, ou seja, pela elaboração
e propagação de ideias falsas, comumente chamadas de fakenews, buscando deslegitimar a
importância do pensamento intelectual e seus fundamentos e concepções pedagógicas, assim
como de seus autores, para criar um pânico moral, já destacado, levando as massas a desconfiar
102

dos professores, minimizar sua importância e desvalorizar seu papel, relativizando a


participação e obrigatoriedade do Estado com a educação básica, abrindo possibilidades para
outras modalidades educacionais que visem à restrição da criança com as diferenças e seus
conflitos e vivências sociais.
Em resumo, retorna ao espaço da educação infantil uma concepção essencialista da
identidade, em especial, do gênero, relegando as diferenças humanas, já apresentadas pelas
crianças desde a mais tenra idade, diferenças no modo de agir, de pensar e sentir, interpretar e
compreender as formas variadas do corpo e de quem são. Consequentemente, emerge uma nova
política que viola a existência de variações sociais na distinção entre masculino e feminino, as
múltiplas possibilidades de ser homem ou mulher, restritivas ao modelo binário que passa a
determinar, inclusive, o significado do sexo.
Esta compreensão que percebe o corpo emancipado do legado cultural que o
circunscreve, da instância essencialista que o limita, nos possibilita enxergá-lo em sua variável,
não mais capaz, como lembrou Nicholson (2000) de fundamentar noções restritivas à distinção
masculino/feminino através de grandes varreduras da história humana, mas na forma como a
distinção masculino/feminino permanece atuante em qualquer sociedade”
103

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ANEXO A ‒ QUESTIONÁRIO

Questões sobre sexualidade

1. As crianças que frequentam a pré-escola manifestam durante as brincadeiras ou


interações entre elas alguma expressão da sexualidade?
Rose: Sim, claramente.
Ofélia: Sim.

2. Pode descrever algumas destas manifestações?


Rose: Meninos que tem preferência pelos brinquedos, diga-se de meninas. Meninos que
desenham roupas, tipo estilista.
Ofélia: No faz de contas, representando papéis, meninos representando papéis de meninas.

3. Durante o horário de trabalho, você já observou alguma criança mexendo com frequência
na própria genitália ou do colega?
Rose: Sim.
Ofélia: Na minha sala não.

4. Como você procede ou procederia diante esta situação?


Rose: Eu procuro tirar a atenção da criança, chamar a atenção para outras atividades, para não
constrangê-la, e comunico aos pais.
Ofélia: Além de tirar a atenção, não fazer disso um alarde.

5. Você percebe outras manifestações da sexualidade entre as crianças?


Rose: eu acho o menino, ele aflora mais.
Ofélia: A menina a gente demora mais pra perceber.
Rose: A menina é difícil. Difícil a menina que não gosta de boneca, nesta idade. Nesta idade já
não tem aquela negação. A maternidade já está muito latente!
Ofélia: Já pega a boneca e já vai balançando.
Rose: Ela já coloca o menino como o pai do bebê. A blusa vira um bebê. Agora os meninos,
tem meninos que já têm a voz, a expressão de falar, o gestual, a fala, mas é involuntário a gente
percebe.

6. Esses comportamentos são mais comuns em algumas crianças do que em outras? Se sim,
em quais são mais comuns?
Rose: Em meninos e numa porcentagem muito baixa.
Ofélia concordou.

7. Você considera possível identificar na infância se alguma criança é ou terá tendências


homossexuais? Como identifica?
Rose: Sim, comprovadamente, devido a nós estarmos aqui há 26 anos e alunos nossos que já
tinham esse tipo de demonstração, hoje são homossexuais.
Ofélia concorda.

8. Em situações como essas mencionadas nas questões anteriores, você costuma avisar mãe,
pai e/ou responsáveis pela criança? Por quê?
Rose: Então, avisar praticamente não. A gente vai falar com os pais sim de uma suposta
diferença que ele vem apresentando, porque isso, muitas vezes, causa sofrimento na criança. O
113

menino que quer brincar de boneca e isso já foi detectado em casa pelos pais, e é muito difícil
o pai chegar e comentar isso com a gente. Quando você dá a devolutiva, há uma negação do
pai, principalmente. Então, eles sofrem muito.
Ofélia se referindo a um caso, diz a Rose: Você lembra? Ele conversava com a mãe e não com
o pai, porque o pai não podia saber.
Rose: É um segredo, um segredo que eles contam para os professores.
Ofélia: Ele brincava com a boneca da prima, ia na casa da prima, que era uma felicidade dele ir
na prima, porque o pai não admitia.
Rose: Quando você chama a família, orienta a família, ela já está ciente.

9. Quando questões relativas à sexualidade e origem dos bebês são feitas como você esclarece
essas dúvidas?
Rose: Eles não percebem a diferença de um comportamento para o outro.
Ofélia: Para eles é bem natural.
Rose: Eles fazem no dia a dia. Por que, às vezes, um chama o outro, né, você...vamos dizer:
“você é viado”! A gente fala: mas o que que é isso? Coisa feia, viado é um animal. A gente
tenta ir por esse caminho. Mas hoje em dia está difícil, viu Alex, porque eles vêm muito sabido,
se fala tudo dentro de casa. Eles assistem novela da Globo das 21h que aborda muitos temas
diversos.
Ofélia novamente concordou, gesticulando com a cabeça, como se dissesse “sim”.

Questões sobre gênero e organização do trabalho pedagógico

10. Durante as brincadeiras as crianças brincam com quais brinquedos e atividades?


Rose: Durante a brincadeira, nesse cantinho do “faz de conta” é a representação mesmo. Menino
brinca com boneca, é uma brincadeira normal. Sem demonstrar tendência.
Ofélia: Ajuda a fazer o almoço, a comidinha, sem demonstrar tendências.

11. Os meninos brincam somente entre eles? De quê? E as meninas brincam entre elas? De
quê?
Rose: Não, eles brincam juntos. De bola, de basquete, jogos diversos, quebra-cabeça, na
casinha, que o menino também participa, não tem essa diferença, isso é de menino e isso é de
menina dentro da EMEI.
Ofélia: Não.

12. Há recomendações da direção ou da Secretaria da Educação sobre como devem ser


organizadas as brincadeiras das crianças?
Rose: Nós temos as apostilas e os estudos.
Ofélia: Baseados na Proepe e nos cantinhos.
Rose: Sempre há uma orientação de resgate de brincadeiras, para que as brincadeiras sejam
feitas fora da sala com bola, corda, pipa, onde todos participam, né.

13. Como são pensados e organizados os “cantinhos” das brincadeiras?


Rose: De acordo com os eixos, através de planejamento, cuidado na escolha da atividade para
que ela seja desafiadora.
Ofélia: Que seja do interesse da criança também.
Rose: E o mais importante, que ele tenha a livre escolha de naquele momento ele participar
daquele cantinho, tendo a responsabilidade de passar por todos no decorrer da semana.
114

Ofélia: Vai desenvolvendo a autonomia deles, né.

14. Quais crianças manifestam maior resistência com relação às ordens e determinações das
professoras?
Ofélia: São poucos, né, responde olhando para Rose.
Rose: São poucos, mas o que a gente observa na nossa prática são crianças, pelo menos, na
minha sala, eu posso classificar em duas famílias: a família desestruturada, a criança que não
tem o apoio, geralmente a mãe é sozinha. Essa criança, ela tem mais dificuldades em seguir as
regras, é a criança que “pode tudo”.
A criança que você fala pra ela: porque que você bateu em seu amigo? Porque o meu pai
mandou!
Ofélia: Vem de casa já com essa recomendação, sabe? “Pode bater sim, fez pra você, então
pode bater”. Então são os dois extremos.
Rose: É quando o pai e a mãe não seguem a mesma linha de educação pro filho. A mãe fala
uma coisa e o pai fala outra. O pai fala pro filho: você pode ter quantas namoradas você quiser
ao mesmo tempo. Fala isso para uma criança de seis anos!

15 As questões políticas, como a “Ideologia de gênero” e o “Escola sem partido” que o


município enfrentam provocam ressonâncias na educação infantil e nas trabalho
pedagógico?
Rose: Então, este tema até a gente sugeriu para que seja estudo no ATPC, porque nós não
tivemos, ainda, nenhum esclarecimento vindo da Secretaria. Nós lemos o que está na mídia.
Mas a gente ainda trabalha no tradicional. Banheiro de menino e banheiro de menina.
Ofélia concorda.

16. Há resistência por parte das crianças em brincar ou participar das brincadeiras
consideradas femininas ou masculinas?
Rose: Não.
Ofélia: Não.

17. Você acredita que os brinquedos e as brincadeiras são elementos importantes para que o
menino se reconheça como homem e a menina como mulher?
Rose: Eu acho que toda brincadeira é válida, né. Isso faz parte já do universo infantil.
Ofélia: Para o desenvolvimento deles.
Rose: Para eles, tudo é brincadeira, brincando que eles vão se autoafirmando, vão
desenvolvendo a parte... familiar, que exemplos que têm lá na família, como é o comportamento
do pai, da mãe ... a mãe fazendo comida, o pai ajudando, o pai com o bebê no colo. Eu tinha
muito aqui, o menino segurando o bebê e a menina lá fazendo a comidinha. Então eu acho
assim, é a comunidade né, é de onde eles vêm.
Ofélia: É o meio que eles vêm.

18. Seus conhecimentos sobre gênero e sexualidade infantil foram desenvolvidos e debatidos
durante a sua formação? Quais fontes você acessa para obter conhecimentos sobre as
questões de gênero e sexualidade na infância?
Rose: Sim, nós tivemos uma palestra onde a gente estudou a diferença né...e a gente busca muito
na internet, nos meios de comunicação.
Ofélia: A gente busca na internet, como está um assunto bem em foco agora.
Rose: Por que até então não tem um diagnóstico fechado sobre isso... Esses dias assisti um
programa e que mudou muito a minha visão, da “ideologia”. A menina, ela nasceu com 95%
dos hormônios masculinos, daí você para pra pensar? Essa menina se sente um menino desde
115

que ela nasceu! Hoje ela tem barba, tem tudo. Então como é que foge disso? Então você para e
pensa: bom, eu tenho que analisar melhor.

19. O que é ser homem ou mulher?


Após anunciar a questão, elas ficaram em pausa durante 28 segundos, olhando uma para a outra.
Rose: Aiaiaiaiii!!! E agora?
Eu acho que a gente é “ser humano”. Independentemente de você nascer menina ou menino,
hoje não tem mais aquela ação só de homem, ação só de mulher como o homem prover a casa,
a mulher ficar em casa. Tá tudo junto e misturado.
Ofélia: Não tem como. A mulher trabalha, a mulher é dona de casa, o marido tá ajudando
também, não tem mais....
Rose: Definir que é o problema, né.
Ofélia: Que pergunta difícil.

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