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FACULDADE DE EDUCAÇÃO
ALEX BARREIRO
LEGISLADORES DO DESEJO:
UMA ETNOGRAFIA DAS DIFERENÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL A
PARTIR DOS DEBATES DA IDEOLOGIA DE GÊNERO
Campinas/SP
2019
ALEX BARREIRO
LEGISLADORES DO DESEJO:
UMA ETNOGRAFIA DAS DIFERENÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL A
PARTIR DOS DEBATES DA IDEOLOGIA DE GÊNERO
Campinas/SP
2019
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca da Faculdade de Educação
Rosemary Passos - CRB 8/5751
TESE DE DOUTORADO
LEGISLADORES DO DESEJO:
UMA ETNOGRAFIA DAS DIFERENÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL A
PARTIR DOS DEBATES DA IDEOLOGIA DE GÊNERO
COMISSÃO JULGADORA:
2019
A Rosa Vermelha desapareceu.
Para onde foi, é um mistério.
Porque ao lado dos pobres combateu
Os ricos a expulsaram do seu império.
Bertold Brecht
Agradeço à minha orientadora Ana Lúcia Goulart de Faria, pela amizade, disposição,
paciência, sobretudo pela dedicação e carinho com este texto de doutorado. Obrigado por nossas
reuniões e também pelas orientações por skype, e-mails e whatsapp durante todos esses anos,
sempre atenta às leituras e indicações bibliográficas necessárias para o desenvolvimento desta tese.
Uma pessoa autêntica e, sem dúvida, de grande generosidade.
Aos membros do grupo de pesquisa GEPEDISC – Culturas Infantis, em especial, à Solange,
Flávio, Artur, Léia e Vanderlete pelas leituras atenciosas e pelos questionamentos realizados.
Aos membros da banca de qualificação e defesa deste trabalho que dedicaram seu precioso
tempo, atenção e disponibilidade para contribuir com esta pesquisa: Helena Altmann, Solange
Estanislau, Daniela Finco e Claudia Vianna.
Aos meus pais, Aparecido (Kiko), Lusimar (Lu) e à minha irmã Maria Vitória por
acreditarem e investirem no meu desejo pelo conhecimento e nas minhas lutas travadas pela
conquista de uma sociedade mais justa e menos violenta no que se refere à igualdade de gênero e
reconhecimento das pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros.
Aos meus amigos e companheiros de trabalho, Filipe Noé Silva, Samantha Lodi e Marcelo
Rocha Campos, excelentes profissionais com os quais aprendi muito durante esses anos de trabalho,
contribuindo diretamente para o desenvolvimento desta tese.
Agradeço aos membros e participantes da ACP (Associação Campinense de Psicanálise),
associação da qual sou membro desde 2016, em especial, ao meu amigo Francisco Capoulade, com
quem aprendi a ler Lacan desconfiando das verdades “lacanianas” interpretadas por aqueles e aquelas
que valem de seus textos como escritos inquestionáveis. Também agradeço ao meu analista Terrence
Edward Hill, popularmente conhecido por “Terencio”, possibilitando-me convocar o sujeito do
inconsciente e ensinando-me a importância de uma escuta atenta às angústias e ao sofrimento do outro.
Aos meus amigos e amigas, Elen Giovana, Fernanda, Leandro, Raphael e Rodrigo, pelos
momentos de diversão e dificuldades que passamos juntos, sempre regados a bons vinhos e boas
conversas.
Obrigado ao meu marido Felipe Gomes que sempre abriu mão de muitos projetos pessoais,
para vivermos projetos comuns. Por ter me acompanhado todos esses anos, mudando-se de cidade
quando era preciso, sem medir esforços em deixar seus empregos. Lhe agradeço pela amizade, pelo
carinho e pelas palavras, afinal, palavras são gestos de amor tecido no simbólico.
Esta tese também é sua.
RESUMO
Este texto de doutoramento busca, a partir da pedagogia da educação infantil, dos estudos de
gênero e sexualidade e de contribuições da filosofia pós-estruturalista, problematizar como as
crianças de uma pré-escola, localizada no interior do Estado de São Paulo (região metropolitana
de Campinas), vivenciam e experimentam diferentes papéis e performances de gênero, e como
manifestam a sexualidade. Analisou-se como as professoras interpretam essas manifestações,
relacionando com o contexto político municipal e suas medidas (i)legais para conter ações
educativas para a equidade das relações de gênero e sexualidade, denominada pelos setores
conservadores por “ideologia de gênero”. Neste estudo, recorreu-se à etnografia como parte dos
procedimentos metodológicos, registrando as experiências, falas, conversas, entre outras
observações constatadas no diário de campo. Também se recorreu a um questionário gravado
com as professoras da educação infantil, selecionando fragmentos das narrativas concedidas
para a realização de análises que permitissem uma articulação com os problemas de pesquisa
evidenciados e com a atual conjuntura política da cidade, cujos debates sucedidos na sessão
ordinária da Câmara Municipal foram transcritos e arquivados. Esta pesquisa, como parte de
seus resultados, apresenta uma multiplicidade de gêneros existentes e possíveis diante dos
corpos que são, todavia, cortados, prescritos e assinalados em uma estrutura dicotômica e
binária a partir do sistema heteronormativo; e também evidencia, no trabalho das professoras,
concepções pedagógicas que resistem às bravatas educacionais apresentadas pelos legisladores
e setores conservadores locais, tornando a pré-escola e a educação infantil um território político
de intensas disputas, as quais, muitas vezes, relegam o papel da criança como produtora de
culturas e subjetividades.
This doctoral text research, based on the early childhood education´s pedagogy, of the studies
of gender and sexuality and contributions of the post-structuralist philosophy seeks to
problematize how children in a pre-school in São Paulo State (Campinas metropolitan region)
live and experience different roles and gender performances and how they express the sexuality.
We analyzed how teachers interpret these manifestations, relating them to the municipal
political context and its (i)legal measures taken in order to restrain educational acts towards the
equality of both gender and sexuality relationship, denominated by the conservative sectors as
“gender ideology”. In this study, we turned to ethnography as part of methodological
procedures, registering the experiences, talks, conversations, among other observations
reported on the field journal. We also used a questionnaire recorded with the pre-school
teachers, selecting fragments of the collected narratives in order to conduct analysis that
allowed a connection with the revealed research problems and also with the current political
conjuncture in the city, whose debates took place in the ordinary session of the city council and
were transcribed and archived. As part of its results, this research presents a multiplicity of
existing and possible genders in face of the bodies that are still sliced, prescribed, and marked
in a dichotomous and binary structure based in a heteronormative system. The research also
shows that, in the teachers’ work, there are pedagogical conceptions that resist to educational
bravados presented by the legislators and local conservative sectors, turning the pre-school and
the childhood education into a political territory of intense disputes, which, many times, relegate
the children’s role as a producer of cultures and subjectivities.
Key words: Gender. Sexuality. Early childhood education. Gender ideology. Peer culture.
LISTA DE SIGLAS
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 12
1 Ideologia de gênero: um breve histórico .............................................................................. 19
1.1 As tensões sobre os projetos de gênero e sexualidade na educação brasileira: ressonâncias
municipais................................................................................................................................. 22
2 Poderes, brinquedos e fantasias: a entrada em campo no Centro de Educação Infantil ....... 30
2.1 Do outro lado do muro: as conexões entre arquitetura e gênero na Escola Municipal de
Educação Infantil ...................................................................................................................... 37
2.2 Transgressões e resistência simbólica às masculinidades hegemônicas ............................ 42
3 Eu sou a musa: um passeio etnográfico pelas múltiplas experiências de gênero ................. 53
3.1 Da mulher Hulk aos xingamentos: disputas e duelos em torno do feminino ..................... 66
3.2 Para ser mulher você tem que se fantasiar! Performance e sexualidade infantil ................ 75
4 Diálogos sobre identidades na educação infantil .................................................................. 80
4.1 Tecendo sujeitos: emaranhando gêneros e sexualidades .................................................... 81
4.2 Gênero e organização do trabalho pedagógico ................................................................... 88
CONSIDERAÇÕES FINAIS: .................................................................................................. 96
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 103
ANEXO A ............................................................................................................................. 112
ANEXO B………………………………………………………………………………….............................115
12
INTRODUÇÃO
1
O sistema sexo/gênero é um conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade
biológica em produtos da atividade humana, nos quais essas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas.
13
2
Os vereadores votaram por unanimidade pela retirada das discussões e projetos de gênero do Plano Municipal de
Educação.
3
Cidade localizada no interior do Estado de São Paulo, próximo à região metropolitana de Campinas.
14
contato havia sido feito na graduação, há 10 anos, foi de suma relevância para fomentar não
apenas questões, como também possibilidades de interpretação sobre as intenções e a
preocupação da inserção dos projetos de gênero e sexualidade na educação infantil.
Após a elaboração de um projeto de pesquisa, submeti ao Comitê de Ética da Unicamp
e também à Secretaria da Educação Municipal, solicitando minha entrada em campo. Atendido,
pude ir a campo na educação infantil: em um CEI (Centro de Educação Infantil - 0 a 3 anos) e
em uma EMEI (Escola Municipal de Educação Infantil - 4 a 5 anos e 11 meses) ‒ esta última,
onde foi realizada a pesquisa.
É importante ressaltar que esta será a primeira tese de doutorado realizada na educação
infantil desse município, abrindo espaço para que outros/as pesquisadores/as da cidade e/ou
região possam dialogar, contribuindo para novos olhares e propostas educacionais.
Em fevereiro de 2017, junto às coordenadoras das unidades, sugeri um encontro inicial
com as professoras/es e monitoras/as para que eu pudesse me apresentar e apresentar as ideias
preliminares da pesquisa, destacando a possibilidade de mudanças e alterações no decorrer da
imersão em campo. O encontro com todas as profissionais ‒ citação no feminino, por não haver
nenhum professor ou auxiliar homem nas unidades ‒, foi de grande importância para diminuir
a sensação de desconfiança de um “estranho” naquele território. Estranho por duas razões: por
ser um homem em um espaço composto hegemonicamente por mulheres e por ser alguém que
não vinha da educação infantil. Desta forma, o universo da educação infantil, seu cotidiano e
as discussões que envolvem suas políticas e debates educacionais eram novos para o jovem
pesquisador com percurso em outra formação acadêmica e experiência profissional com alunos
de outro ciclo e idades. Adentrar os portões da creche e pré-escola me trouxeram uma miríade
de lembranças pessoais dos tempos em que era criança.
A entrada em campo permitiu novos traços no desenho deste trabalho, em particular
com relação aos objetivos, podendo ser elencados em alguns pontos: a) identificar como as
crianças manifestavam culturalmente seu gênero, observando a relação dessas diferenças; b)
verificar como as professoras trabalhavam com as questões de gênero e sexualidade na
educação infantil; c) analisar se as práticas pedagógicas das professoras contribuíam para a
normatização dos gêneros; d) compreender o processo de constituição e negociação das
subjetividades das crianças no espaço institucional e se havia resistências ante algumas práticas
pedagógicas; e) analisar se os debates políticos municipais ocorridos na Câmara dos Vereadores
e no Brasil, de forma geral interferiam no trabalho pedagógico das professoras. Os objetivos
descritos acima foram possíveis por meio de algumas escolhas de caráter metodológico, como
a etnografia e o uso de um questionário com as professoras.
15
A gravação das respostas das professoras assegurou maior autenticidade das falas
durante o processo de transcrição e, consequentemente, do arquivamento das informações,
permitindo, conforme Ribeiro (2008), que, caso ocorresse a necessidade de maiores
esclarecimentos durante a análise do material coletado, o/a pesquisador/a retornasse para outras
informações.
Já os registros do caderno de campo produzidos por meio do contato com as crianças
e as professoras, contendo a observação entre as crianças nos espaços internos (salas) e
externos (pátio, parquinho e refeitório) e também entre as professoras e as crianças, foram o
material requerido para análise e interlocução com as respostas coletadas. Esse processo de
4
A mudança ocorrida no formato da entrevista foi discutida junto ao grupo de pesquisa Gepedisc, optando pela
realização em dupla, uma vez que as turmas de ambas foram acompanhadas durante o trabalho de campo, no ano
de 2017.
16
5
A cópia da transcrição das Atas Ordinárias da Câmara Municipal foram conseguidas nos arquivos da própria
Câmara.
18
6
Fonte:<https://oglobo.globo.com/sociedade/menino-veste-azul-menina-veste-rosa-diz-damares-alves-em-
video-23343024>. Acesso em: 4 fev. 2019.
20
7
A concepção histórica do aparecimento e uso da expressão “ideologia de gênero” foi discutida em palestras e
vídeos pela professora e pesquisadora Jimena Furlani, da Universidade do Estado de Santa Catarina. Em contato
com a pesquisadora, ela destacou não ter publicado a pesquisa, contudo, disponibilizou-me vídeos e textos com as
obras utilizadas. Posteriormente, realizei um levantamento da leitura bibliográfica para averiguar e confrontar as
informações. O texto resultado deste movimento encontra-se acima, com o subtítulo “Ideologia de gênero: breve
origem do termo”.
8
<http://www.providafamilia.org.br/site/index.php.html>. Acesso em: 19 mar. 2017.
9
<http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf>. Acesso em: 19 mar. 2017.
10
<http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2014/02/declaracao_pequim.pdf>. Acesso em: 19 mar.
2017.
11
O´LEARY, Dale. The Gender Agenda: redefining Equality, Lafayette, 1997.
12
<https://xlavida.files.wordpress.com/2006/09/ideologia-de-genero.pdf>. Acesso em: 19 mar. 2017.
21
Tendo em vista que as políticas para a equidade das relações de gênero atualmente
permeiam a jurisdição de vários países, estendendo direitos a pessoas trans, integrantes do
movimento Pró Vida e Pró-família passaram a afirmar que as organizações internacionais, como
a ONU (Organização das Nações Unidas) e a União Europeia, são responsáveis pela incitação da
construção de políticas públicas e de uma visão de mundo nesse sentido. A insatisfação de grupos
conservadores e ligados aos movimentos religiosos encontra-se publicada, sob o título: Contra o
cristianismo: a ONU e a União Europeia como nova ideologia (ROCCELLA; SCAFFIA, 2014)
e discorre sobre a ameaça que essas instituições representam para o futuro da família cristã.
Outra importante referência para entender a apropriação, utilização e os deslocamentos
conceituais contrários às políticas de gênero é o livro do argentino Jorge Scala13, traduzido para
o português em 2015, com o título Ideologia de gênero: o neototalitarismo e a morte da família
(SCALLA, 2015). Neste livro, o advogado Scala, conhecido por suas posições ortodoxas contra
o direito reprodutivo das mulheres, desenvolve argumentos para conter a aprovação de leis que
ampare e promova a equidade nas relações de gênero, afirmando caminharmos para uma política
da morte.
O autor ressalta que a ONU desenvolveu uma “agência do gênero” e que esta agência
dedica-se a controlar que todos os organismos e programas da ONU incluam o gênero em suas
agendas. Conforme o autor, a União Europeia e o Banco Mundial condicionam os empréstimos
para o desenvolvimento dos países pobres, por cláusulas da difusão de gênero (SCALA, 2015).
13
Na América Latina, o livro de Scala teve influência importante, sendo o combate contra o que denomina como
“ideologia”, o que justificou manifestações que vão desde movimentos a favor da família tradicional até
manifestações contra políticas de governos de esquerda. Iniciada na Argentina e no Brasil, a disseminação da
gramática político-moral da noção de ideologia de gênero já alcançou, em 2016, países como o México e a
Colômbia, contribuindo, no caso do primeiro para a luta contra a aprovação do “matrimonio sin discriminación”
e, no último, para a vitória do não à paz no plebiscito que visava referendar o acordo com as Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia (FARC). (MISKOLCI; CAMPANA, 2017, p. 726).
22
No Brasil, as tensões sobre os debates para se discutir gênero e sexualidade nas escolas
emergiram a partir de 2011:
A partir de 2014, com a abertura das câmaras municipais e estaduais de todo o país para
as sessões legislativas de aprovação dos Planos Municipais e Estaduais de Educação, como nos
lembram Nascimento (2015) e Barreiro et al. (2017, p. 3), os debates se acaloraram:
É importante, sem dúvida, resgatar parte do contexto histórico que permitiu a construção
de uma arena de batalha nacional em torno do tema e quais as suas ressonâncias no munícipio
em que esta pesquisa é realizada.
chegaram aqui pelo campo da educação14, tendo em vista seu caráter disciplinar e suas
dimensões de violência contra outras expressões da sexualidade humana e das identidades que
escapavam aos regimes de normalização.
[...] A acolhida brasileira da Teoria Queer na área da educação pode estar ligada a
uma compreensível sensibilidade crítica de nossas educadoras e educadores com
relação às forças sociais que impõe, desde muito cedo, modelos de comportamento,
padrões de identidade e gramáticas morais aos estudantes, sobretudo crianças e
jovens. Trata-se, portanto, de uma acolhida positiva e louvável, pois é bom saber que
o público da área de educação tem interesse e está fazendo algo que, em outros países,
permanece como uma especulação desvinculada da prática e, por isso mesmo, menos
apta a interferir e impulsionar a mudança social. (MISKOLCI, 2012, p. 36)
14
Guacira Lopes Louro é considerada uma das expoentes nos estudos Queer no Brasil. Dentre seus livros
destacam-se: Ensaio sobre sexualidade e Teoria Queer e Gênero, Sexualidade e Educação. Citamos também o
artigo “Teoria Queer: uma política pós-identitária para a educação”
28
Folhetos das palestras sobre “Ideologia de gênero” divulgadas em sites e panfletos pela cidade.
Fonte: Arquivo pessoal do autor.
Nos anos 2015 e 2016, como pode-se verificar nos títulos dos cartazes, as palestras e a
abordagem dos conteúdos ilustrados estão em consonância com aqueles desenvolvidos em
instâncias federativas por militantes contrários às propostas de gênero nas escolas, podendo,
dentre eles, serem destacados o senador e pastor Magno Malta, o pastor Marco Feliciano e o
deputado Jair Bolsonaro. Além desses nomes, cuja visibilidade é nacional, é importante
mencionar os membros ligados ao movimento da Igreja Católica e também do movimento Pró-
vida e Pró-família, tais como o padre Paulo Ricardo de Azevedo Junior, o professor Felipe
Nery, o padre José Eduardo de Oliveira e Silva e a professora Fernanda Takitani. No segmento
evangélico incluem-se o pastor Silas Malafaia, a professora Damares Alves20 e a “ministra
evangélica” formada em psicologia Marisa Lobo. Todos esses nomes estão reunidos no
Observatório Interamericano de Biopolítica21, instituição que se dedicou em agrupar essas
20
Ao longo dos anos em que esta tese vem sendo escrita, os grupos de extrema direita liderados por Jair Bolsonaro
disputaram as eleições presidenciais, assumindo a Presidência da República em janeiro de 2019, nomeando
Damares Alves como ministra da mulher, da família e dos Direitos Humanos.
21
“O Observatório Interamericano de Biopolítica é uma organização de cidadãos livres, conscientes e ativos
dedicada à defesa da dignidade e dos direitos da pessoa humana. Reconhece que existem iniciativas parlamentares,
em diversos países, que agridem e desvalorizam a vida humana inocente e procuram debilitar a proteção para
mulheres e crianças. Reconhece ainda que os legisladores sofrem pressões para legalizar o aborto em nome dos
direitos humanos, saúde reprodutiva ou equidade para as mulheres. Pretende, diante deste quadro, contribuir para
o fortalecimento de condutas parlamentares comprometidas com a vida, família, educação e liberdade”. Texto
extraído do site da organização: <http://biopolitica.com.br/>. Acesso em: 28 ago. 2017.
29
e identidades. “Em suma, toda máquina é corte de fluxo em relação àquela com que está
conectada, mas ela própria é fluxo ou produção de fluxo em relação àquela que lhe é conectada.
É esta a lei de produção de produção” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 55).
O pé de um dos garotos que antes servia para andar, agora batendo no chão de areia
provocava tremores, desestabilizando as construções, derrubando casas e prédios, mobilizando
os colegas a se abrigarem. Quando um deles se agachava e uma de suas pernas girava em torno
de seu corpo, não espalhava simplesmente a areia do parque em seus amigos, mas espirrava ‒
como ele ressaltou ‒, um “pó perigoso” que poderia provocar a cegueira de seus adversários,
caso não se protegessem. Da palma da mão emanavam raios e poderes suficientemente capazes
de derrubar pessoas e transformá-las em animais. Um dos companheiros de batalha, por
descuido, atingido por um raio, tornou-se uma zebra (animal da história contada pela professora
naquele dia). Contudo, o barulho emitido pela zebra era diferente de qualquer outro equino.
As meninas se agrupavam com o intuito de lutar contra aquelas criaturas, super-heróis
ou seriam monstros? Não há certeza do que se tratava, do que eram, uma vez que se
metamorfoseavam constantemente. Nunca permaneciam a mesma coisa. Ali o corpo não
obedecia aos movimentos pelos quais foram educados. As mãos que antes seguravam as
canetinhas, o copo para beber água ou o talher no refeitório, tornavam-se instrumentos de
guerra, aparelhos fantasiosamente poderosos. Os joelhos, quando agachados, projetavam uma
cápsula protetora do corpo, uma espécie de “domo de vidro” sobre ele, inquebrável. Os pés que
serviam para levá-los ao banheiro e caminhar em fileiras já não correspondiam a este propósito,
eram pés mutantes. Corpos sem órgãos, como colocou Deleuze e Guattari (2010).
Em grupo, as quatro garotas que desafiavam as criaturas e seus comparsas, gritavam,
como se um ataque sonoro pudesse derrotá-los. Os braços de uma delas movimentavam-se
constantemente, como uma corda ao ser chacoalhada, enquanto suas amigas, rindo, imitavam
os gestos braçais indo ao encontro dos meninos. Entre risadas e empurra-empurra, gritos e mais
gritos ecoavam no parque, ou seria uma arena de batalha? Uma cidade? Tratava-se de um
espaço “desterritorializado”, em que o balanço deixava de ser apenas um pedaço de madeira
com correntes, em que o gira-gira, o trepa-trepa e os demais brinquedos transformavam-se, a
partir de cada uma das crianças, em um singular imaginário povoado pela fantasia. Fantasias
compartilhadas. As mentes operavam como máquinas desejantes, produzindo suas próprias
referências, linguagens e relações culturais.
Nesse momento, uma voz vinda do fundo do parque ordenava para que algumas crianças
parassem de gritar, exclamando haver outras em salas, e que todo aquele barulho poderia
32
Nesse momento, a professora olhou para os lados, observando se havia alguém por perto
e baixando o tom de voz, como se fosse contar-me um segredo, disse:
O Felipe é um aluno que só brinca com as meninas, fala mole e é cheio dos
“trejeitos”. Ele quase nunca está com os meninos, a não ser quando na brincadeira
estão todos, quando brincam com o baldinho na areia. Além de brincar só com elas,
ele gosta de brinquedos de meninas, como: boneca, lacinho de cabelo, pulseiras, tudo
que é do universo feminino. Você acha que isso já é um indício? Você sabe, né... será
que ele vai ser gay? (Fragmento do diário de campo, fevereiro de 2017)
Pedi para que ela contasse um pouco mais sobre o Felipe, então comentou:
O ano passado (2016) na hora dos cantinhos, o Felipe estava brincando. Ele havia
colocado uma tiara, segurava uma bolsa nas mãos, estava com um tecido no ombro.
Eu observava, sem me intrometer, porém, meu celular apitou, eu havia recebido uma
mensagem. Quando peguei o celular para visualizar, ele me olhou e achou que eu
estava tirando uma foto dele. Coitado! Ele veio correndo dizer para não tirar foto!
Estava desesperado, achando que eu tinha fotografado. Eu respondi que só estava
vendo uma mensagem.
Os pais dele não sabem como lidar com tudo isso. O pai não aceita, porém a mãe acabou
comprando uma boneca pra ele. Deve ter sido escondido do pai. Acho que esses conflitos
aparecem por conta da religião, ainda mais agora com esses assuntos de gênero.
23
Nenhum dos nomes descritos se refere ao “nome de registro” das crianças ou professoras mencionadas.
33
Hoje em dia tem mais crianças assim do que antigamente, você não acha?
(Fragmento do diário de campo, fevereiro de 2017)
Quem sou eu pra dizer para a criança que ela não pode brincar com isso ou com
aquilo? Que mal há em brincar? É brinquedo, não oferece perigo. Às vezes, eu penso
que essas questões são biológicas, sei lá, talvez hoje existam mais casos em
24
Incessantes repetições que a cultura e as instituições sociais produzem por meio das relações de poder sobre
corpo e que passam a naturalizar-se.
34
Ainda hoje, pesquisadores e pesquisadoras sustentam que, para além das diferenças
anatômicas entre os sexos, os cérebros de meninos e meninas processam de modos
distintos a linguagem, as informações, as emoções, o conhecimento e tantas outras
características tidas como naturais. Frequentemente lemos ou escutamos diferentes
relações sociais explicadas pelas características biológicas, como, por exemplo,
“meninos dominariam com mais facilidade conceitos das ciências extas e noções
geográficas”, e “meninas teriam mais desenvoltura nas áreas de expressão, como
linguagem e artes”.
Mas será, de fato, possível afirmar que as preferências, as competências e os atributos
de personalidade são originalmente configurados conforme cada sexo? Será verdade
o que aprendemos sobre as justificativas biológicas para as diferentes habilidades de
meninas e meninos? (FINCO, 2010, p. 20)
A criança que Frigide Barjot pretende proteger não existe. Os defensores da infância
e da família apelam para a figura política de uma criança que eles constroem, uma
criança pressupostamente heterossexual e com o gênero normatizado. Uma criança
que privamos de qualquer força de resistência, de qualquer possibilidade de fazer um
uso livre e coletivo de seu corpo, de seus órgãos e de seus fluidos sexuais. Essa
infância que eles pretendem proteger exige o terror, a opressão e a morte.
(PRECIADO, 2014, p. 2)
Nesse sentido, “Quem defende a criança Queer” é um texto libertário que, com base em
inúmeros casos (por todo o mundo), tal como o caso de Felipe, busca compreender que a criança
enquanto sujeito participa na produção de sua identidade, que em interlocução com a cultura e
a sociedade vigente não apenas reproduz os referenciais culturais aprendidos, como também
resiste, negocia, transgride e produz valores culturais entre seus pares. A identidade das crianças
é também a identidade cultural, ou seja, a capacidade que as crianças possuem para construírem
culturas não redutíveis totalmente às culturas dos adultos.
Assim como nas brincadeiras descritas, em que suas ações e interações desconstruíam a
territorialidade local onde se encontravam, elas podem romper com estruturas binárias de gênero,
potencializando a capacidade de produzir novas identidades sem a determinação adulta que recorre
a um modelo cultural de sociedade, que também é político, para interditá-las de um movimento em
busca da autonomia. Por isso, controlar as produções de gênero, pela via sexo-anatômica, também
36
se refere a executar a manutenção de suas funções sociais e seus lugares de ocupação na economia.
Sobre essa questão, escreveu Chaui (1982, p. 64):
Com efeito, à medida que uma forma determinada da divisão social do trabalho se
estabiliza, se fixa e se repete, cada indivíduo passa a ter uma atividade determinada e
exclusiva que lhe é atribuída pelo conjunto das relações sociais, pelo estágio das forças
produtivas, e evidentemente, pela forma da propriedade. Cada um não pode escapar
da atividade que lhe é socialmente imposta. A partir desse momento todo o conjunto
das relações sociais aparece nas ideias como se fossem coisas em si, existentes por si
mesmas e não como consequências das ações humanas.
Para a autora Saffiotti (1992, p. 193) “As relações de gênero, evidentemente, refletem
concepções de gênero internalizadas por homens e mulheres”, por isso o machismo não se torna
apenas privilegio de homens, sendo muitas das mulheres também suas portadoras.
As análises incorridas nesse sentido, permitem compreender o gênero como atributos
construídos para sua função social. Contudo, Butler vai além ao afirmar que não devemos apenas
limitar o gênero como inscrição cultural de significados e funções sobre o sexo. Gênero se refere
a um aparelho de produção, o dispositivo de caráter discursivo por meio da qual o sexo é
produzido e estabelecido enquanto pré-discursivos.
Felipe, neste caso, ao afrontar as convenções de gênero e desafiar o estatuto da
masculinidade, pode ser visto por muitos grupos como uma ameaça, por isso a ideia da
necessidade de corrigi-lo, tanto na esfera corporal, envolvendo as gesticulações, o timbre de voz
e a conjuntura de movimentos corpóreos, quanto nas suas escolhas pessoais, diretamente
relacionadas às brincadeiras, brinquedos, acessórios e até, futuramente, profissionais.
2.1 Do outro lado do muro: as conexões entre arquitetura e gênero na Escola Municipal
de Educação Infantil25
25
Este capítulo não possui como parte de seus objetivos um estudo aprofundado da relação entre arquitetura e as
teorias de gênero. Busca-se apresentar aos/às leitores/as uma série de observações registradas acerca do espaço
físico e seus sentidos interpretados à luz dos estudos de gênero aplicados à educação, desnaturalizando as
finalidades das construções físicas e seus arranjos espaciais.
38
compreensões de uma identidade marcada e naturalizada pelos adultos. A imersão das crianças
nessa territorialidade de sentidos não implicará, necessariamente, que as identidades forjadas
se codifiquem sem resistências, reinterpretações ou mesmo atribuições de sentidos diversos em
decorrência de cada experiência infantil.
Ao lado direito do pátio está o corredor, permitindo o acesso às quatro salas. Afixado
nas paredes, está o mural da chamada, maneira ilustrativa para contabilizar os corpos que ali se
encontram. Os desenhos de um menino e uma menina dividem o quadro em dois, permitindo a
contabilização dos corpos em sua dimensão cindida (perspectiva dual baseada na exclusão de
outras possibilidades), organizada por práticas sexo-políticas26. As mesinhas amarelas também
indicam o limite de possibilidades interativas, são quatro, nenhuma mais! Quatro crianças em
cada mesa, admitindo o deslocamento para outras, mas não o excedente à regra: oito pernas se
balançando em seus vãos. Ao centro está a mesa da professora, lhe assegurando pela posição a
capacidade de enxergar como em um Panóptipo (FOUCAULT, 1987) todos os grupos, suas
condutas e, em caso de infração das regras, anunciar as sanções. Sanções normalizadoras.
26
Práticas que organizam as funções de gênero através de características biológicas dos corpos.
39
Do lado esquerdo do pátio estão os banheiros, lugar em que as fezes, a urina, entre outras
necessidades fisiológicas deveriam ser o objeto de preocupação, mas que tornaram-se cápsulas
de armazenamento de gêneros, conforme Preciado (2018, p.01) ao analisar banheiros adultos:
Assim que trancada a porta, nos deparamos com uma privada branca, com poucos
centímetros de altura, uma espécie de banco de cerâmica perfurado, mas que conecta o nosso
corpo defecante a uma invisível cloaca universal (na qual se misturam os resíduos de mulheres
e homens). Para Preciado (2018, p.01):
O vaso sanitário feminino reúne assim duas funções diferenciadas tanto pela sua
consistência (sólido/líquido), como pelo seu ponto anatômico de evacuação (duto
urinário/ânus), sob uma mesma postura e um mesmo gesto: feminino=sentado. Ao sair
da cabine reservada à excreção, o espelho, reverberação do olhar público, convida ao
retoque da imagem feminina sob o olhar regulador de outras mulheres. Atravessemos o
corredor para nos dirigir agora ao banheiro masculino. Fixados na parede, a uma altura
entre 80 e 90 centímetros do chão, um ou vários mictórios agrupam-se em um espaço,
geralmente também destinado às pias, acessível ao olhar público.
No fundo do pátio está o parquinho com seus brinquedos afixados, árvores e areia
espalhadas pelo chão. Ao centro, duas cadeiras em que permanecem as professoras durante as
atividades de recreação, supervisionando as crianças e observando suas interações. Meninos e
41
A tese defendida por Foucault consiste na ideia de que nas sociedades modernas, a norma
possui um alcance maior que a lei, prevalecendo como efeito estilizado das relações de poder
estabelecidas. A lei é externa ao indivíduo e funciona por ocasião da violação do que é previsto
como proibido, já a norma está envolvida na conjuntura da existência humana, presente nas
relações do cotidiano e alcançando sua assimilação e interioridade mediante as distribuições
espaciais, arquitetônicas e do controle de condutas, segregação e representação que produzem.
Enquanto a lei pode ser encarada como direta e também teatral, a norma, como escreveu
Candiotto (2012, p. 21) “é difusa e indireta; ela funciona como padrão culturalmente construído
a partir do qual uma multiplicidade de indivíduos é cindida por dentro, entre normais e anormais”.
42
Guattari (1977) em Revolução molecular: pulsações políticas do desejo nos alerta sobre os
perigos que a creche e também a pré-escola podem oferecer quando o modelo educacional e
pedagógico consiste na produção de subjetividades normatizadas a serviço da utilização do capital:
Em um certo dia, pela manhã, cheguei com antecedência na unidade da EMEI, por volta
das 7h00min, meia hora antes da entrada das crianças. Conversei com a professora da turma (Rose)
sobre a minha pesquisa e perguntei sobre as crianças, mencionando que realizava um trabalho
etnográfico que tinha um dos focos nas manifestações de gênero e sexualidade. Ela alertou que ali
havia crianças muito interessantes para serem observadas. Em seguida, a conversa foi interrompida,
para que Rose pudesse ir até o pátio da escola receber as crianças que estavam chegando.
Permaneci sentado no canto da sala, em uma pequena cadeira e fiquei em silêncio para
não prejudicar a dinâmica e a organização. Observava cada um deles entrarem e seus olhares
de desconfiança, como que se perguntassem: ‒ quem é esse homem aqui?
Em seguida, uma das crianças (um menino) caminhava com os passos leves em direção à
sala, o que tornava seu andar mais delicado e os movimentos do corpo menos bruscos. O garoto
sentou-se à minha frente, cruzando as pernas por debaixo da mesa e colocando a mão no queixo
enquanto aguardava a professora entrar. Ali, ele iniciou uma conversa com a colega que estava
ao lado. Nesse momento tento escutá-lo, e percebo que sua voz parecia acompanhar seus
movimentos, ou seja, era marcada por uma delicadeza atribuída socialmente a uma feminilidade.
Rose, ao entrar, pediu para que todos ficassem em roda ‒ era a hora da chamada. Então
me sentei ao lado do garoto e perguntei seu nome, e ele me respondeu, dizendo se chamar
Raphael (5 anos).
43
Naquele dia, Raphael estava vestido com a camisa do Corinthians, uma calça de
moletom e uma sandália. A camisa do time de futebol me chamou a atenção, uma vez que ele
era o único com aquela vestimenta ‒ pouco convencional entre as crianças –, que parecia uma
“casca”, uma tentativa de ocultar ou cobrir os movimentos que seu corpo produzia. Contudo,
ainda era cedo para buscar uma aproximação com as crianças ou levantar qualquer hipótese,
então esperei iniciarem as atividades para me integrar junto deles/delas. Rose me chamou a
atenção para observar duas delas (Raphael e Fernanda), dizendo:
O Raphael, a gente percebe, ele tem um jeito muito diferente dos outros meninos,
repara. Agora, a Fernanda, é uma outra situação. Durante as atividades ela se
esfrega na cadeira, fricciona os órgãos no canto da cadeira. Chega a transpirar, me
dá até nervoso!
Em seguida perguntei: ‒ Você já conversou com os pais sobre isso?
‒ Já sim, ela respondeu. Porém, falei para a mãe prestar atenção se ela não estava
com infecção de urina, porque assuntos assim a gente não fala de cara, tem que
contornar para dizer. Mas a mãe disse que não era, e que ela fazia aquilo em casa
também. (Fragmento do diário de campo, março de 2017)
Então, permiti que elas chegassem até mim. E assim como Corsaro (2005), nas primeiras
semanas em campo as crianças passaram a se comunicar comigo, mostrando suas atividades
44
produzidas (desenhos e pinturas), pedindo para que eu ajudasse amarrar o tênis e também
fazendo comida com as massinhas de modelar.
O fato da professora me inserir na comunicação com as crianças facilitou com que elas
me reconhecessem como um sujeito integrado àquele espaço. Desta forma, passaram a me
chamar de “professor”, tratamento que aponta um distanciamento produzido entre nós, uma vez
que poderiam me chamar por Alex, ou outro nome qualquer, mas optaram por me tratar como
alguém que exerce sobre elas uma relação de poder desigual.
Uma situação marcante ocorreu quando, observando o grupo em que Raphael se
encontrava durante uma atividade para desenhar e colorir a capa bimestral da pasta de
atividades, ele desenhava um quadrado com alguns rabiscos que pareciam animais. Então
perguntei:
A construção social das identidades infantis nesse contexto pode ser vista como um
processo de negociação constante por aquilo que constitui o social e a maneira como
as identidades são construídas dentro de uma cultura eminentemente em movimento
e em confronto. Assim, rejeitar as narrativas tradicionais de certeza, controle e
domínio significa rejeitar a arrogância da certeza teórica. Porque, segundo Bhabha
(2007), “as identidades, como a própria cultura, são formadas de maneira performática
nessa encruzilhada, fissuras e negociações”.
27
A compreensão sobre os significantes foi buscada a partir das contribuições do psicanalista Jacques Lacan.
47
psicológica. Schulman (2010, p.76) sobre a questão relembra que muitas vezes, ninguém no
interior da família se identifica com as pessoas LGBT, tampouco e as que se encontram externo
ao laço familiar.
Como destacou Magalhães e Ribeiro (2015, p. 1565) “essa (re)produção constante do/a
homossexual como anormal, um desvio a ser identificado, acaba por gerar preconceitos,
maneiras de definir e perceber esses sujeitos como objetos a serem corrigidos”. Esses corpos
são tratados na sua dimensão abjeta. A abjeção se situa na zona inóspita, inabitável da vida,
restrita aqueles que não usufruem o estatuto de sujeito, como lembrou Butler (2016).
Porto (2016, p. 162), a partir de Butler, destaca:
[...] graças a Deus [o município], através dos seus representantes, Câmara dos
Vereadores, Prefeito Municipal, irá enterrar este artigo, essa emenda que fala sobre a
ideologia de gênero, fazendo assim, Senhor Presidente, uma ampla demonstração de
valorização e proteção das crianças desta cidade para que o pai e a mãe tenham
certeza que o seu filho sai de casa para ir à escola, ele vai lá buscar o conhecimento,
enriquecer o seu conhecimento, e deixar para a família a sua orientação.
Infelizmente, nós estamos vendo, ao longo do Brasil, cidades que não terão essa
felicidade de tirar a ideologia de gênero, cidades que estão discutindo cartilha de
orientação sexual para a criança de seis anos, e às vezes orientação homossexual.
48
Senhor Presidente, é essa a questão que eu quero demonstrar, essa questão que nós
devemos deixar para a maior instituição brasileira, a instituição chamada família. 28
[...] eu quero aproveitar e dizer que isso já foi retirado, a ideologia de gênero, já foi
retirado do plano nacional, e a associação LGBT, de uma forma estratégica, sabendo
que havia sido derrotada em Brasília, Senhor Presidente, eles vieram para as regiões
28
Ata da 21ª Sessão Ordinária, da 3ª Sessão Legislativa, da l6ª Legislatura, realizada no dia 22 de junho de 2015,
p. 5.
29
Ibid, p. 7.
30
Ibid, p. 7.
31
Palavra utilizada com frequência por segmentos evangélicos para referir-se ao demônio.
32
Ata da 21ª Sessão Ordinária, da 3ª Sessão Legislativa, da l6ª Legislatura, realizada no dia 22 de junho de 2015,
p. 13 (grifo nosso)
49
estaduais e municipais, mais de cinco mil municípios, talvez algumas Câmaras não
preparadas, como nós sabemos que infelizmente em algumas Câmaras foi aprovada,
mas graças a Deus na maioria não porque houve Pastores, Padres, Parlamentares,
defensores das famílias evangélicas e católicas, alertando.
Esta casa recebeu e-mails. Esta casa tem notícia que foi colocado em rede social, em
Twitter, Facebook, com relação a alertar o perigo da ideologia de gênero. 33
Ideais como “proteção da família”, “proteção das nossas crianças” aparecem com
frequência nas falas dos legisladores, sempre relacionadas aos perigos oferecidos pelas mídias
por tornarem pública a afetividade de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
transgêneros. Para os vereadores, a identidade de gênero e a heterossexualidade eram
biológicas, contudo, a cultura corrompia esta natureza conduzindo crianças a outros
comportamentos de gênero e sexuais, como destacou o pastor e vereador João Campos: “Então,
Senhor Presidente, a ideologia de gênero é uma tentativa de afirmar para todas as pessoas que
não existe identidade biológica”34.
A preocupação dos legisladores ‒ caso em 2016, ou posteriormente, não fossem
reeleitos para os cargos35 ‒, para defender a família impulsionou a elaboração de uma Emenda
de Lei Orgânica, com o intuito não apenas de retirar as discussões de gênero e sexualidade do
Plano Municipal de Educação, como o de proibir que qualquer debate nessa instância ocorresse
nas pré-escolas e escolas municipais.
Eu fiz uma Emenda à Lei Orgânica, porque nós vamos aprovar aqui hoje um
substitutivo do Plano Municipal de Educação, mas eu fiz uma Emenda à lei orgânica
que diz o seguinte, Senhor Presidente, que altera o Artigo 31 da Lei Orgânica do
Município, que não será objeto de deliberação qualquer proposição legislativa que
tenha por objeto a regulamentação de políticas de ensino, currículo escolar,
disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma complementar ou facultativa, que
tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo gênero ou orientação sexual. Com
isso aqui vai ficar garantido, mesmo que amanhã venha outro plano municipal de
Educação, Senhor Presidente, não vai poder contemplar a ideologia de gênero,
porque essa lei, se for aprovada por esta Câmara, vai proibir e coibir isso”. 36
33
Ibid, p. 11
34
Ibid, p. 13
35
Todos foram reeleitos para os cargos legislativos (2017-2020), com exceção do vereador Everaldo (PRB) que
concorreu a disputa pelo majoritário (executivo), perdendo para o prefeito que tentava a reeleição.
36
Ata da 21ª Sessão Ordinária, da 3ª Sessão Legislativa, da l6ª Legislatura, realizada no dia 22 de junho de 2015
(p. 11).
50
37
As provocações de Deleuze e Guattari em O anti-Édipo buscam questionar a noção de desejo como falta,
interrogando a triangulação edípica que produz as identidades sexuais e as relações de identificação de gênero,
tendo em vista que ambos propõem compreender o desejo como produtor, como máquina. Desta forma, nosso
inconsciente máquina estabelece diferentes formas de conexões com ambos os sexos e gêneros, rompendo a
dimensão binária estrutural que produz identidades inteligíveis. Por isso, sermos transexuados elementarmente.
52
Enquanto ele está aqui no infantil, não tem problema. As crianças nem ligam, não
entendem direito. O problema é depois, lá no fundamental. Se não tiver uma
professora que enfrente junto com ele, pode esquecer, vai ser motivo de chacota. Isso
quando não agridem. (Fragmento do diário de campo, abril de 2017)
Bianca, de imediato interveio: mas ele é uma winks homem! Sem prolongar a discussão
optei por escutar as crianças conversando enquanto realizavam uma atividade de desenho livre.
O desenho das “Winks” permanecia sendo debatido, e nomes de outros personagens apareciam,
como: Tecna, Flora e Stella, até surgir o nome de personagens homens, como Brandon e Sky.
Curioso, perguntei ao Felipe:
A partir desta cena, pode-se retomar a concepção de gênero proposta por Butler,
concebendo-a como uma ação performativa de nomeação, e que faz existir a diferença
anatômica e a possibilidade de relações entre os seres, portanto, a categoria homem ou mulher
não se trata de uma instância biológica natural e atemporal, mas antes, nomeações que passam
a estabelecer um critério de organização nas relações sociais.
Na medida em que participava das atividades, as crianças interagiam comigo com maior
frequência, contando fatos relativos à vida familiar, alguns pensamentos e opiniões. Nesse caso,
em especial, me refiro à opinião da figura de Stela, a merendeira.
Durante os horários de café da manhã e almoço, a merendeira “fiscalizava” quem estava
ou não comendo toda a comida. Como as crianças se serviam e eram orientadas a pegarem
apenas a quantidade que conseguiriam comer, ficava sob a responsabilidade delas não
desperdiçar os alimentos e, para verificar, Stela passava observando os pratos. Quando havia
sobras, algumas crianças com medo aguardavam Stela entrar na cozinha para despejarem no
recipiente que ficava em cima de uma mesa no pátio. Porém, com o passar das semanas, as
crianças perceberam que a merendeira – chamada de Bruxa por alguns ‒, não esboçava
nenhuma reação quando eu depositava as sobras, e passaram, desde então, sabendo que se
tratava de um adulto imerso entre elas, a solicitar que eu jogasse para elas o restante da comida,
evitando qualquer reação que as constrangesse, caso fossem pegos despejando. Assim, as
crianças encontraram maneiras para burlar as regras, um ato de enfrentamento e resistência às
ordens do mundo adulto, às suas tentativas de governamento.
40
Ao questionar as crianças para que prestassem atenção nos chamados da professora, percebi que havia agido
como um adulto convencional. Posição esta que buscava me distanciar quando estava interagindo entre eles.
60
Ele também ressaltou que gostava das personagens Elsa e Anna do desenho Frozen.
Felipe possuía admiração pelos atributos da feminilidade e as personagens com quem
se identificava eram mulheres belas, delicadas, vaidosas e poderosas que enfrentavam as
dificuldades e resistiam aos obstáculos que apareciam ao longo da trama nos desenhos. Talvez,
como sua mãe, ao enfrentar situações de dificuldade no dia a dia?
Felipe possuía atributos de comportamentos de gênero socialmente designados
femininos41 pela cultura e sociedade adulta brasileira, mas isso não provocava em seus/suas
companheiros/as de sala nenhuma manifestação de estranhamento, repúdio ou discriminação.
Talvez por considerarem irrelevante entre eles/elas, ou não notarem. A tendência hegemônica
entre as crianças era em executar tarefas de gênero normatizadas, levando meninas a brincarem
com bonecas e louças e os meninos com carrinhos e super-heróis, porém as transgressões destas
fronteiras não evidenciavam nenhum problema entre seus colegas quando ocorriam.
Me recordo uma cena em que, sentado, brincando com algumas crianças de cozinha, um
garoto me perguntou:
A pré-escola, neste caso, não emergia como espaço de discriminação, mas como um dos
dispositivos de controle que produz, ao longo do tempo, comportamentos que acabam
naturalizando-se, como a utilização de cores, adereços, maneiras de sentar-se, brinquedos, uso
de banheiros, etc. Práticas que marcam o corpo, definindo identidades, segundo Eribon (2004),
Louro (2014), Weeks (2010); governando a infância, como observou Veiga-Neto (2015, p. 55):
“governar a infância significa educar as crianças, moldando-lhes a alma que é, ao mesmo
tempo, efeito e instrumento de uma anatomopolítica dos e sobre os corpo infantis” e, para isso,
submeter seus sujeitos (nesse caso, as crianças) às disciplinas, um princípio de controle da
41
Como destacado anteriormente, Felipe brincava exclusivamente com as meninas, preferia as bonecas aos
carrinhos, interessava-se pelas personagens mulheres nas animações, manifestava interesse em representá-las
durante as brincadeiras, além da delicadeza e sensibilidade nas gesticulações dos movimentos corpóreos.
Significados socialmente atribuídos à feminilidade em nossa cultural.
61
produção do discurso. “Ela fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma
ritualização permanente das regras” (FOUCAULT, 1996, p. 36).
A partir das colaborações de Butler (2008), pode-se analisar nesta cena com Felipe a
necessidade de processos identificatórios (masculino ou feminino) que são reiteradamente
reforçados por condutas e formas de representação que afirmam uma identidade de gênero.
Como o gênero – conforme Butler - se trata de um efeito performativo e de repetição estilizada,
ele passa a definir o sexo, não havendo a necessidade, nem adequação entre identidade subjetiva
e anatomia, por isso, o gênero não é substância, mas efeito performativamente produzido.
As observações e interações promovidas junto de Felipe ao longo dos meses, permitem
observar que ele não ocupava em seus enunciados a posição de mulher42 nos discursos e na
linguagem43. Tratava-se de um garoto que promovia interações e interlocuções com elementos
culturais da feminilidade, nada relacional a qualquer determinismo biológico.
Se ser menina e ser menino fossem apenas construções biológicas, não seria
necessário tanto empenho para defini-los rotineira e reiteradamente como tal. É
perceptível que existem intensos esforços para que as crianças desenvolvam uma
identidade de gênero feminina ou masculina – existe uma busca pelo desenvolvimento
“normal” da masculinidade e da feminilidade. (FINCO, 2013, p. 173)
Esses dados permitem inferir uma importante análise. Felipe ocupa a posição de um
homem, posição evidente na sua linguagem, na maneira de relacionar-se e atender as demandas
dos amigos/as, professores/as, entre outros. Porém, a dimensão imaginária que ele faz deste
lugar que também é simbólico (homem) não está hegemonicamente caracterizada como
masculina, uma vez que Felipe passeia pelas experiências de gênero que são múltiplas, ora
masculina, ora feminina, masculina-feminina, feminina-masculina, entre outras inomináveis,
mediante a dicotomia das questões de gênero que nos são colocadas.
O gênero, muitas vezes, é produzido como uma dimensão imaginária do sexo, portanto,
de uma respectiva anatomia, e reconhecer-se homem para muitos exige um gênero inteligível
ao sexo, mas Felipe diz – por meio de seus gestos, atos e criações –, que esta dimensão
42
Esta afirmação consiste em um conjunto de observações realizadas durante alguns meses na pré-escola, a partir
das relações entre Felipe e as outras crianças e também entre os adultos. Felipe utilizava o banheiro masculino.
Levantava-se ao escutar os pedidos da professora para que “os meninos” lavassem as mãos primeiro ou
“escovassem os dentes”. Durante as brincadeiras, mesmo imaginariamente fantasiando ser uma personagem
mulher, Felipe era tratado por pronomes masculinos. Ele representava, durante as brincadeiras de massinha ou
cozinha, o papel de um homem na execução de tarefas prescritas como femininas no campo sociocultural.
43
O discurso pode ser compreendido como a forma da linguagem posta em execução/ação, ou seja, a língua
assumida pelo sujeito falante. Enquanto a linguagem é entendida como a capacidade de comunicação através de
uma estrutura, por elementos vocais (a língua), requerendo técnicas complexas que necessitam de funções e
interpretações simbólicas.
62
imaginária pode ser desconstruída, negociada, reinventada, e isso não provoca fendas, fissuras
e abalos no registro de pertencimento sexual, uma vez que reconhecer-se homem não está mais
necessariamente interligado a um gênero binário, inteligível, libertando o homem (e também a
mulher) de um registro de gênero compulsório a uma instância biológica. Felipe leva a
pensarmos o gênero como uma possibilidade anárquica, livre do sistema oposicionista, como
disse Louro (2014, p. 38):
Por isso, o gênero não pode ser compreendido como uma expressão ou resultante de
uma leitura biológica, como destacou Scott (1988), tampouco resultante das pressões
ambientais e da civilização, mas sim da constituição subjetiva do indivíduo na cultura.
[...] na ideologia burguesa, a família não é entendida como uma relação social que
assume formas, funções e sentidos diferentes tanto em decorrência das condições
históricas quanto em decorrência da situação de cada classe social na sociedade. Pelo
contrário, a família é representada como sendo sempre a mesma (no tempo e para
todas as classes) e, portanto, como uma realidade natural (biológica), sagrada
(desejada e abençoada por Deus), eterna (sempre existiu e sempre existirá), moral (a
vida boa, pura, normal, respeitada) e pedagógica (nela se aprendem as regras da
verdadeira convivência entre os homens, com o amor dos pais pelos filhos, com o
63
respeito e temor dos filhos pelos pais, com o amor fraterno). Estamos, pois, diante da
ideia da família e não diante da realidade histórico-social da família.
Senhor Presidente, neste momento quero pegar a bíblia e fazer uma leitura de um
versículo bíblico, porque é aquilo que o cristão conhece, é aquilo que o cristão
acredita, livro de Gênesis, capítulo 1, versículo 27, a palavra de Deus diz o seguinte:
E criou Deus o homem à sua imagem, a imagem de Deus o criou macho e fêmea, os
criou, e Deus os abençoou, e Deus disse, frutificai-vos, enchei a terra.
Agora eu digo para vocês, Presidente, público presente, Nobres Pares, Deus criou o
homem e a mulher, e disse mais ainda, que era para povoar a terra. Agora, como que
um homem com homem vai gerar filhos, ou mulher com mulher vai gerar filhos 44.
44
Ata da 21ª Sessão Ordinária, da 3ª Sessão Legislativa, da l6ª Legislatura, realizada no dia 22 de junho de 2015,
p. 8.
45
Ata da 21ª Sessão Ordinária, da 3ª Sessão Legislativa, da l6ª Legislatura, realizada no dia 22 de junho de 2015,
p. 12.
64
[...] a ideologia de gênero não é macho e fêmea. Estou falando de gay, de lésbica,
transexual, travesti e por aí vai, bissexual, e por aí vai, criaria só a questão de sexo,
porque necessidade então de colocar ideologia de gênero, ideologia é uma proposta
e gênero é uma espécie46.
As palavras confusas enunciadas por Cunha denotam a preocupação com uma educação
capaz de respeitar as diferenças, combatendo as desigualdades de gênero, uma vez que
ameaçariam um modelo de masculinidade hegemônica, que busca se sobrepor em termos de
gênero à condição feminina, ao lugar social da mulher, além de irromper ‒ por meio de
pedagogias desconstrucionistas ‒, o tabu da homossexualidade, concedendo às crianças a
possibilidade de acesso às representações de outros arranjos familiares e afetos. Por isso, a
preocupação entre os vereadores não apenas em retirar as palavras “gênero” e “sexualidade”
dos planos municipais de educação, mas ainda fiscalizar livros didáticos, solicitando a remoção
46
Ata da 21ª Sessão Ordinária, da 3ª Sessão Legislativa, da l6ª Legislatura, realizada no dia 22 de junho de 2015,
p. 10.
65
47
Lei n. 5.035 de 15 de março de 2017.
67
novas funções e características, até mesmo dos objetos que se supõem indisponíveis para
interação, como as pernas das mesas.
Ali, onde o acesso ao vocabulário ou à linguagem adulta poderia limitar a comunicação
entre as crianças, outras variáveis de comunicação se produzem, estas levando em consideração
o deslocamento corporal que através dos dedos apontam, da boca que grita, dos braços que
giram, dos dentes que mordem, ou de palavras inventadas entre eles/elas para referirem-se a
coisas ou objetos. O corpo como uma máquina que produz.
As crianças haviam feito uma convenção, e nela definiram uma espécie de “ritual” de
fidelidade para comprovar quem eram os verdadeiros “amigos”. O desafio consistia em jogar
comida no chão com a colher sem que a professora visse! A confirmação da combinação veio
à tona quando um dos colegas desaprovados se reportou a mim, que estava próximo, entregando
os amigos que haviam feito, dizendo:
- Ela quer que eu também taque comida no chão para ser amigo deles.
Respondi com outra pergunta: - Depois brincamos todos juntos de outra coisa, poder
ser?
- Pode, mas não chame ela (apontando para a garota que o havia desconsiderado
como amigo).
- Ela também é legal, não é?
- Ela é a mulher Hulck, ele respondeu.
(Fragmento do diário de campo, junho de 2017)
48
“O fabricante ou o sujeito que constrói brinquedos neles introduz imagens que variam de acordo com a sua
cultura. Cada cultura tem maneiras de ver a criança, de tratar e educar. Entre as antigas concepções, a criança, vista
como homem em miniatura, revela uma visão negativa: a criança é um ser inacabado, sem nada específico e
original, sem valor positivo”. (KISHIMOTO, 2011, p. 21)
69
“Há portanto um grande equívoco na suposição de que as próprias crianças movidas pelas suas
necessidades, determinam todos os brinquedos” (BENJAMIN, 1984, p. 72).
Na pré-escola, é possível observar as marcas de classe social e gênero nas brincadeiras
realizadas entre as crianças.
A disposição dos brinquedos nas salas das professoras Rose e Ofélia não encontravam-
se segregadas por gênero, assim, meninos e meninas podiam transitar entre as brincadeiras,
desde que em cada cantinho não possuísse um número maior que quatro crianças. Número
delimitado pelas professoras em decorrência da quantidade de cadeiras em cada mesa. Vez ou
outra, escutava-se Rose chamando a atenção das crianças quando elas começavam a aglomerar-
se em torno de uma única mesa. Rose exclamava: são só 4 em cada brincadeira!
Essa restrição era determinada pelas professoras sob a intenção de organizar o
espaço, vindo a produzir um disciplinando dos corpos, tornando-os obedientes a uma
dinâmica institucional, sujeitos a supostas “punições” ou “ameaças 49”, caso infringissem as
sanções normalizadoras que nelas produziam comportamentos servis, como em um setor de
produção fabril.
Observei, em uma certa manhã, enquanto as crianças aglomeravam-se em torno de uma
das pequenas mesas, composta com quatro cadeiras, meninas e meninos rodeando-a, falavam
alto e se movimentavam, mexendo mãos e pés, dialogando uns com os outros e segurando peças
de encaixe. Tentei me aproximar, com o intuito de analisar o que ocorria, uma vez que se
juntavam cada vez mais. Porém, antes de chegar até elas, Rose batendo as mãos solicitou para
que se dispersassem, indo cada um para uma brincadeira, reiterando a regra de quatro por vez,
regra provisoriamente desacatada.
O que denominei por punições ou ameaças podem ser destacadas em frases, como: “Se desobedecerem não vão
49
a casa. Ela questionou a possibilidade de levá-la em outra data, no período noturno, e o médico
reagendou a consulta. Em seguida, ela se levantou, limpou a casa e segurou na mão da filha,
avisando ser a hora da consulta. Posteriormente um dos meninos acenou, dando tchau para a
esposa que levava a filha até o médico.
Esta cena chamou a atenção por três importantes destaques, sendo eles: os brinquedos,
a classe social e os papéis de gênero. Nota-se que os brinquedos disponíveis eram: telefones,
celulares, teclados de computadores e mouses, ou seja, objetos de trabalho. Tais objetos
poderiam ser apropriados e ressignificados de suas funções pelas crianças ‒ como muitas vezes
foram –, mas naquela circunstância cumpriam suas utilidades e finalidades profissionais do
mundo adulto.
A encenação entre as crianças representava uma realidade econômica e social entre os/as
envolvidos/as, uma vez que a mãe impossibilitada de levar a filha ao médico, diante as tarefas
domésticas, pediu para que a consulta fosse adiada, remarcada para outro dia, no período
noturno, possivelmente horário em que o pai estaria em casa. A cena em que o menino (marido)
acena “tchau” para a esposa e para a filha que se deslocavam para a consulta, possibilita inferir
que a obrigação dos cuidados com a criança recaía sobre a mulher, logo, sobre a maternidade,
cabendo a ela esta tarefa e responsabilidade.
O médico atende a criança e pede, inclusive, que ela abra a boca e em seguida prescreve
e aplica a injeção. Observando os movimentos entre as crianças acreditei que a brincadeira
havia se encerrado, uma vez que ambas (mãe e filha) encontravam-se sentadas. Entretanto,
aquele era o ponto em que aguardavam o ônibus, como destacou a mãe.
Todo o cotidiano de uma família sem privilégios econômicos fora representado na
brincadeira, como: a ausência de um veículo privado para levá-los até o destino, a preocupação
com a limpeza da casa (uma vez que não havia outra pessoa que realizasse as obrigações) e os
papéis de gênero assimilados pelas crianças.
“O brinquedo é, então, um objeto cultural que traz inúmeros significados e que servirá
de veículo às brincadeiras”, como destacou Leite (2002, p. 66). E prossegue, retomando
Brougère que diz:
71
Para Leite (2002), a identidade é tecida/constituída nas relações de interações, por meio
de processos identificatórios, mas também de resistências. Tais processos não se efetuam
unicamente por meio da “imitação”, como se as crianças não tivessem autonomia na produção
cultural, como se apenas assimilassem as referências culturais do ambiente e do meio social em
que estão imersas. As identidades se produzem na relação com a alteridade, portanto, com o
outro. Para a autora (p. 67),
É o outro quem me constitui sujeito, quem me mostra quem sou – é na relação com o
diferente de mim que vou alicerçando ou desconstruindo hipóteses, modelos. A
possibilidade de experienciar sentimentos fortes e contraditórios, colocar-me em
múltiplos papéis, de exercitar o poder, dizer o indizível, viver o imaginável – enfim,
na interação com o outro, a brincadeira alarga as fronteiras entre a fantasia e a
realidade colaborando significativamente na construção da identidade das crianças.
Na qualidade de sujeito social, brincando, a criança não está só fantasiando, mas
trabalhando suas contradições, ambiguidades e valores sociais.
Colonizar a infância é produzir uma imagem que define o que ela é, o que não é, o
que não pode ser. A infância é invenção dos adultos, como já disse Benjamin: as
crianças nunca disseram o que é ser criança; se disseram, não foram ouvidas. Adultos
pensam as crianças, adultos pensam pelas crianças; adultos dizem às crianças o que é
ser criança. (GALO, 2018, p. 61)
- Toma, é pra você, disse João ao me entregar um pires com uma panela com comida
feita com massinha de modelar.
- Hummm, que delicia essa comida, respondi. Quem te ensinou a fazer?
- Meu pai!
- Seu pai cozinha?
- Sim, ele quem cozinha.
- E você, cozinha?
- Não, eu ainda sou criança, né. Me respondeu gargalhando.
(Fragmento do diário de campo, junho de 2017)
- Isso é de mulher!
- Eu não posso brincar de mulher? Respondi.
- Para ser mulher você tem que se fantasiar! Tem que passar batom, usar sandália,
deixar seu cabelo grande igual a gente.
Fernanda, que sentava-se ao lado de Gaby, vira-se para a colega respondendo: - não
adianta, mesmo assim, ele não vai ser igual a gente!
(Fragmento do diário de campo, junho de 2017)
Portanto, o gênero é sempre um feito, “ainda que não seja obra de um sujeito tido como
preexistente à obra” (Butler, 2008, p. 48). Logo, não há identidade de gênero por trás das
expressões do gênero; essa identidade é um efeito performativamente constituída, pelas próprias
expressões tidas como resultado, acrescenta a filósofa.
Dias depois, durante a execução de uma atividade, evidências a partir da experiência
etnográfica trariam novos dados para fomentar algumas das análises empreendidas. A observação
me recordou a história de literatura infantil Ceci tem pipi? De Thierry Lenain (2004), que narra a
imaginação do garoto Max que acreditava que o mundo estava dividido entre pessoas que tinham
ou não pipi. Porém, as certezas de Max sobre a divisão do mundo é abalada com a chegada de
Ceci em sua escola. Ceci subia em árvores, andava de bicicleta, jogava futebol, entre outras
atividades consideradas socioculturalmente como masculinas. Em determinado momento da
história, Max desconfia que Ceci seja uma “sem pipi com pipi”, o que seria uma trapaça para ele,
e então resolve investigar para comprovar sua teoria. Contudo, Max ao ver Ceci nua descobre que
ela tem perereca e pergunta: Você não tem pipi. Não, ela responde, eu tenho perereca! Assim,
Max é questionado a repensar sua divisão entre os que tem ou não pipi, entendendo que nas
meninas, na verdade, não lhes falta nada, pelo contrário há a presença de um outro órgão: a
perereca!
Ilustração da capa do livro “Ceci tem pipi?” e de uma das páginas, escrito pelo autor Thierry Lenain.
Fonte: Arquivo pessoal do autor.
Naquele dia, a professora Rose havia entregue para as crianças uma folha de sulfite com
um boneco impresso. O boneco estava vazio, sem roupa, sem adereços e sem sexo. Tratava-se
78
apenas de traços que ganhavam a forma de um ser humano. Em seguida, a professora entregou
outra folha com o desenho de algumas roupas para que as crianças recortassem e colassem
no/na boneco(a), garantindo ao vazio uma identidade.
Eu me encontrava sentado junto de um grupo exclusivamente composto por meninas, e
dentre elas, estava Fernanda. A professora aproximou-se perguntando de que cor elas pintariam
a imagem. Fernanda olhando para o desenho respondeu: - eu vou pintar com esse! (segurando
o lápis da cor bege). Peguei um lápis de cor vermelho, e disse que pintaria a minha “boneca”
com ele. Fernanda, respondeu:
- É menino, Alex.
- Por que menino? Questionei.
- Por que ele não tem perereca!
As demais meninas do grupo achando engraçado, repetiram:
- É, ele não tem perereca.
(Fragmento do diário de campo, agosto de 2017)
As roupas são de menino, a outra amiga acrescentou, sentado em uma das cadeiras
enquanto começava a cortar a folha para colorir e colar em seguida. Esta cena permite inferir e
problematizar sobre dois importantes aspectos, sendo eles: a noção de falta decorrente do medo
da castração na teoria psicanalítica freudiana e a compreensão de inteligibilidade de gênero,
elaborada por Butler.
Nota-se que a noção de falta, neste caso, não aparece com relação ao pênis, ou seja, a
premissa da ausência não se dá necessariamente por um suposto pênis que faltaria na menina,
mas pela “perereca” que elas possuem.
A metáfora edípica freudiana da castração, ainda muito revisitada por profissionais das
áreas psicológicas sugere que o complexo do reconhecimento identitário ocorre no menino
através do medo/ameaça da perda do pênis, enquanto na menina pelo sentimento de ausência,
algo que lhe falta. Sobre esta questão, Barreiro (2015, p. 155) resume a compreensão edípica
freudiana, ressaltando:
Para Freud, a entrada da menina quanto do menino na castração está ligada ao pênis,
ora marcado como ausência, ora enquanto medo da perda. Desta forma, quando os
meninos verificam na vagina uma distinção anatômica, inicialmente esta distinção não
é interpretada como uma diferença sexual: o clitóris passa a ser compreendido como
um pênis que irá se desenvolver. A posteriori ele acredita que o pênis foi extraído e
esta consideração provoca-lhe medo de perder o seu, levando-o a refletir sobre o que
seria necessário fazer ou renunciar para não perdê-lo.
A menina acredita que seu pênis em breve crescerá, não generalizando a percepção da
falta do pênis em todas as mulheres, sendo levada a acreditar que aquelas que
o perderam foram castigadas, portanto, castradas. Assim, o que marca a diferença
estrutural entre meninos e meninas quanto à castração é, de acordo com Freud, em “A
79
Deleuze (1997) em seu texto “O que as crianças dizem” critica Freud e sua perspectiva
familiarista por apontar a construção das identidades entre as crianças pequenas a partir das
figuras do pai e da mãe, recorrendo a análise do caso do menino Hans (1905) como uma
experiência, cuja interpretação se dá em uma conjuntura universal. Isso faz com que Freud
perca, de acordo com Deleuze, “os mapas dos trajetos que são essenciais para a vida psíquica”
(1997, p. 73), reconduzindo toda a trajetória infantil a duas figuras.
A criança não para de dizer o que faz ou tenta fazer: explorar os meios, por trajetos
dinâmicos, e traçar o mapa correspondente. Os mapas dos trajetos são essenciais à
atividade psíquica. O que o pequeno Hans reivindica é sair do apartamento familiar
para passar a noite na vizinha e regressar na manhã seguinte: o imóvel como meio.
Ou então: sair do imóvel para ir ao restaurante encontrar a menininha rica, passando
pelo entrepostos de cavalos – a rua como meio. Até Freud considera necessário
introduzir um mapa.
Freud, no entanto, conforme seu hábito, reconduz tudo ao pai-mãe: estranhamente o
desejo de explorar o imóvel parece-lhe um desejo de dormir com a mãe. É como se os
pais tivessem lugares ou funções primeiras, independentes dos meios. (DELEUZE,
1997, p. 73)
oráculo de Delfos, não desvendam o enigma lançado pela esfinge e nos apontam que não há
destino sobre Édipo ou Jocasta. Deleuze lança luzes sobre aquilo que pouco nos importamos:
os trajetos dinâmicos de uma máquina que incansavelmente produz.
Com relação a “inteligibilidade de gênero” ou também denominado por gêneros
inteligíveis, a constatação por uma das crianças de que a boneca não possuía vagina, associado
pela outra garota que ao observar os desenhos da roupa referiu que se tratavam de roupas para
meninos, exprimem como a cultura instituiu nas representações simbólicas e no imaginário uma
noção de coerência e continuidade entre sexo, gênero e desejo. A verdade sobre o sexo “é
produzida pelas práticas reguladoras que geram identidades coerentes por via de uma matriz de
normas de gênero” (BUTLER, 2008, p. 39). Nesse sentido, a matriz cultural da qual por
intermédio a identidade de gênero se torna inteligível exige que muitas identidades não existam
ou permitam existir, “isto é, aquelas em que o gênero não decorre do sexo e aquelas em que as
práticas do desejo não “decorrem” nem do “sexo” nem do gênero” (BUTLER, 2008, p. 39).
Portanto, outras “identidades de gênero” que perpassam as fronteiras demarcadas pela matriz
cultural de produção identitária (binária) aparecem como falhas, anomalias e irregularidades de
uma suposta coerência natural, essencializada.
50
Me refiro às transcrições das atas da sessão da Câmara Municipal.
81
51
Tendo em vista que a coordenadora e diretora das EMEIs não se encontram presentes na unidade, sendo as
docentes e as trabalhadoras dos setores da alimentação e limpeza as responsáveis pelo cotidiano da pré-escola,
tornou-se obsoleto o fato de estender as entrevistas à direção e coordenação, uma vez que não vivenciam ou
compartilham das experiências no ambiente em que a pesquisa ocorreu.
82
Questionadas sobre a manifestação da sexualidade por parte das crianças em sala, Rose
e Ofélia responderam ter presenciado muitas expressões, entretanto, quando interrogadas sobre
quais manifestações haviam presenciado, conduziram o entendimento da resposta à outra
instância e categoria, referindo-se aos papéis de gênero.
de gênero Scavone (2001) ‒, tornando-a não uma opção52, mas uma condição imanente e natural
da mulher que passa a manifestá-la desde a mais tenra idade durante as brincadeiras, “fazendo
do menino o pai do bebê”. Diferentemente da mãe, ser “pai” é uma condição atribuída pela
menina, e não um papel natural latente e presente nele. Para ele é delegada esta função, uma
vez que o homem é associado ao papel de trabalho produtivo remunerado.
Aos homens foi tradicionalmente associado o papel de provisões por meio de trabalho
produtivo remunerado. Em outras palavras, ao homem foi associado o papel de
protagonista das atividades que a sociedade selecionou como espaço privilegiado de
atribuição de valor, ou seja, aquelas relacionadas à economia de mercado; enquanto a
mulher foi relegada ao espaço da privacidade domiciliar, imune e opaco à intervenção
e à visibilidade externas, protagonista das atividades relacionadas à economia
doméstica. (TEIXEIRA, 2010, p. 258)
52
É importante destacar que a filósofa Simone de Beauvoir, em seu célebre livro O Segundo Sexo (1949), refuta a
concepção do determinismo biológico da maternidade que reservava às mulheres o destino de “ser mães”. A
maternidade, a partir destas contribuições, começa a ser questionada enquanto um destino biológico e passa a ser
compreendida como uma construção social, o que se apresenta para a autora como causa principal do domínio
sexual do homem sobre a mulher.
84
que secundarizam o status de sua função social “da mesma forma que o desenvolvimento das
qualidades psicológicas femininas em torno da maternidade e da reprodução, perpetuando a
falta de poder das mulheres” (2005, p. 167).
A pesquisadora Elisabeth Badinter (1993) contraria tese de Chodorow, afirmando que
“a maternagem não tem sexo”. A autora defende a tese de que a maternagem se aprende no
cotidiano, nos possibilitando compreender que ambos os sexos são possivelmente capazes de
cuidar de crianças, contudo, tais experiências e aquisições dependem das relações culturais
estabelecidas em uma respectiva sociedade. Badinter diz que os homens maternam, mas que
para isso deve haver interesse, e que muitas vezes as próprias mulheres se negam a compartilhar
dessa função.
Outro importante fator se refere às gesticulações e à voz dos meninos que desestabilizam
um suposto “estatuto” da masculinidade, marcado por outros timbres, gestos e expressões que
não mantêm diálogos com as normas e convenções sociais de “como ser” homem. Isto nos
aponta que desde a educação infantil as crianças são diagnosticadas, em termos de gêneros, e
os resultados destas análises revelam a performatividade como um “sintoma homossexual”. A
homossexualidade, nessa perspectiva, emerge como resultante das inconformidades de gênero,
ou do que Butler (2010) denominou por gêneros inteligíveis. Quando não há inteligibilidade na
estrutura “sexo-gênero-sexualidade”, e o corpo rompe com as dicotomias binárias, logo, ele
tende a ser sexualizado, e o conjunto de suas ações são conduzidas a uma interpretação de
característica sexual ‒ a homossexualidade.
Para a pesquisadora da temática Finco (2012, p. 50):
Rose: Sim, comprovadamente, devido a nós estarmos aqui há 26 anos e alunos nossos
que já tinham esse tipo de demonstração, hoje são homossexuais. Ofélia concorda
com Rose, balançando a cabeça e dizendo que sim.
(Transcrição do questionário realizado em dezembro de 2017)
53
De acordo com a pesquisadora Amara Mora Rodovalho (2017, p. 365) “O próprio dicionário Houaiss, trazendo
a etimologia de “cis” como “da preposição latina de acusativo “cis” ‘aquém, da parte de cá de’ (por oposição a
trans)”. Para Rodovalho, “cis” se refere àquilo que margeia, que não cruza, que deixa de cruzar, tudo em função
duma dada linha. “É possível imaginarmos a utilização de um desses termos sem, de pronto, nos referirmos ao
outro? É partindo dessa pergunta retórica que ouso afirmar que o discurso médico, ao nomear como “trans” a nossa
maneira peculiar de existir, de reivindicar existência, automaticamente nomeou a outra maneira, a sua maneira,
não-trans, como “cis”, cabendo-nos apenas pensar formas de fazer com que as duas imagens propostas nessa
metáfora, aquilo-que-cruza e aquilo-que-deixa-de-cruzar, se traduzam em sentidos mais palpáveis”.
86
Rose: Então, avisar praticamente não. A gente vai falar com os pais sim de uma
suposta diferença que ele vem apresentando, porque isso, muitas vezes, causa
sofrimento na criança. O menino que quer brincar de boneca e isso já foi detectado
em casa pelos pais, e é muito difícil o pai chegar e comentar isso com a gente. Quando
você dá a devolutiva, há uma negação do pai, principalmente. Então, eles sofrem
muito.
Ofélia se referindo a um caso, diz a Rose: Você lembra? Ele conversa com a mãe e
não com o pai, porque o pai não podia saber.
Rose: É um segredo, um segredo que eles contam para os professores.
Ofélia: Ele brincava com a boneca da prima, ia na casa da prima, que era uma
felicidade dele ir na prima, porque o pai não admitia.
Rose: Quando você chama a família, orienta a família, ela já está ciente.
(Transcrição da entrevista realizada em dezembro de 2017)
54
Utilizo o termo “Trans” para referir as práticas que transitam e desafiam uma normativa de gênero binária, ou
seja, aos hábitos, performances e condutas socioculturalmente prescritas como masculinas e femininas.
87
O corpo não é um dado passivo sobre o qual age o biopoder, mas antes a potência
mesma que torna possível a incorporação prostética dos gêneros. A sexopolítica torna-
se não somente um lugar de poder, mas, sobretudo, o espaço de uma criação na qual
se sucedem e se justapõem os movimentos feministas, homossexuais, transexuais,
intersexuais, transgêneros, chicanas, pós-coloniais... As minorias sexuais tornam-se
multidões. O monstro sexual que tem por nome multidão torna-se queer.
(PRECIADO, 2011, p. 14)
Como não há uma essência biológica ou metafísica do que é masculino e feminino, mas
sim produções socioculturais, imaginários. O que produzimos é a naturalização por meio da
repetição de uma representação, portanto, encenamos uma representação daquilo que
culturalmente e socialmente constituímos e dialogamos como sendo masculino e feminino.
Quando esta representação é renegociada com base nas convenções culturais, os sujeitos
passam com maior ou menor resistência a sujeitar-se aos efeitos de poder provocados nas
propostas representacionistas. Entretanto, o poder, como nos destaca Butler (2017) retomando
Foucault, não é exclusivamente restritivo, punitivo, ameaçador, e na medida em que sua ação
cessa, interdita, controla, regula, ele também produz. O poder é produção e implica em produzir
novos agenciamentos, subterfúgios e saídas dos mecanismos de controle identitários. As
crianças ao se assujeitarem à cultura, interagem com as referências e produzem outras relações
e identificações. O corpo da criança torna-se uma caixa de ressonância da palavra, e é também
sobre sua materialidade que é tecida e negociada sua identidade.
[...] o indivíduo se forma – ou melhor, formula-se – como prisioneiro por meio de sua
“identidade” constituída discursivamente. A sujeição é, literalmente, a feitura de um
sujeito, o princípio de regulação segundo o qual um sujeito é formulado ou produzido.
Essa sujeição é um tipo de poder que não só unilateralmente age sobre determinado
indivíduo como uma forma de dominação, mas também ativa ou forma o sujeito.
Portanto, a sujeição não é simplesmente a dominação de um sujeito nem sua produção
– ela também designa um certo tipo de restrição na produção, uma restrição pela qual
essa produção acontece. (BUTLER, 2017, p. 90)
encarar tais situações como “segredos”, as crianças sabem da interdição que as impossibilitam
de acessar algumas experiências, contudo, resistem às determinações e se arvoram no desafio
de um encontro com o interdito.
efervescência das relações que se estabeleciam era restritivo para nomear. O envolvimento entre
as crianças possibilitava pensar o agenciamento de outros gêneros não escritos. Rose, sobre esta
experiência mencionou que “Durante a brincadeira, nesse cantinho do “faz de conta” é a
representação mesmo. Menino brinca com boneca, é uma brincadeira normal. Sem demonstrar
tendência”, enquanto Ofélia afirmou que os meninos “ajudam a fazer o almoço, a comidinha,
sem demonstrar tendências”.
Para as professoras meninos e meninas brincavam com brinquedos e afazeres do outro
sexo sem demonstrar “tendências”, por isso, chamou-se por “normal”, ou seja, mesmo as
professoras compreendendo a importância das crianças transitarem por diferentes atividades,
ainda assim, para elas prevalece a ideia de que os brinquedos e os papéis desempenhados estão
correlacionados a um sexo. O pensamento tornou-se uma máquina de percepção dualista,
dicotômica e maniqueísta.
Ao perguntar como eram pensados e organizados os “cantinhos” das brincadeiras, elas
disseram:
Rose: São poucos, mas o que a gente observa na nossa prática são crianças, pelo
menos, na minha sala, eu posso classificar em duas famílias: a família
desestruturada, a criança que não tem o apoio, geralmente a mãe é sozinha. Essa
criança tem mais dificuldades em seguir as regras, é a criança que “pode tudo”.
(Transcrição do questionário realizado em dezembro de 2017)
Esta resposta nos fornece duas chaves de leitura: a primeira conectada à compreensão
da tríade edípica (pai, mãe e filho) para justificar e explicar situações e fenômenos envolvendo
as relações entre as crianças e entre crianças e professoras. Essa leitura consiste no fundamento
da ausência, neste caso, da ausência paterna, que passa a justificar algumas condutas. O pai é
interpretado como a única lei, figura, de acordo com elas, capaz de inscrever os regramentos e
a ordem moral. O Édipo sempre é convocado para explicar os comportamentos. Aprendemos a
edipianizar as relações e as análises sobre a vida.
Deleuze e Guattari (2011, p. 94) dissertam sobre a “edipianização” da vida e os perigos
derivados desta dependência triangular, mas, sem relegá-las ou desconsiderar sua importância.
Os autores escrevem:
Não dizemos que Édipo e a castração nada sejam: somos edipianizados, castrados, e
não foi a psicanálise que inventou essas operações às quais ela apenas fornece os
novos recursos e processos de seu gênio. Mas será que isso é suficiente para fazer
calar o clamor da produção desejante: somos todos esquizos! Somos todos perversos!
Somos todos Libidos demasiado viscosas ou demasiado liquidas...não por gosto, mas
porque somos levados pelos fluxos desterritorializados...
A segunda chave de leitura diz respeito a uma outra interpretação da fala de Rose, que
ao reportar sobre o comportamento apresentado por algumas das crianças sem a presença do
pai, denuncia as dificuldades enfrentadas pelas mães que assumem a responsabilidade pela
educação dos filhos, muitas vezes tendo de administrar o tempo com os afazeres domésticos e
o trabalho fora de casa.
A contenção dos fluxos desejantes das crianças e sua edipianização possibilitam um
movimento de cortes que irrompem em possibilidades para aniquilar subjetividades,
circunscrevendo as crianças na territorialidade do capitalismo. Edipianizar as relações
significa conduzi-las a uma lógica codificada, e nesse sentido, antecipar a alfabetização,
impossibilitando que a pré-escola seja um espaço de outras vivências e experimentações com
o corpo. Assim ela se integra às estratégias para que cada vez mais cedo as crianças aprendam
a viver e pensar em estruturas previamente estabelecidas pelo consumo e ritmo da
produtividade.
91
Portanto, entende-se que para o vereador a noção de cidadania está intimamente ligada à ideia
de produção. Cidadão é aquele que produz, dominando as técnicas e a decodificação do
sistema capitalista. E nesse sentido, preservar a função escolarizadora, abstendo-se da
problematização das questões de gênero, permitindo a manutenção de um sistema que gera
desigualdades econômicas e políticas, estabelecendo as funcionalidades e ocupações dos
sujeitos a partir de critérios sexuais, relegando alguns marcadores sociais de diferenças, como:
etnia, gênero e classe social que levados em consideração evidenciam desigualdades
históricas construídas no país.
Como é que nossas crianças iriam ser orientadas, mas tardar iríamos ter o dessabor
de estar dando cartilhas como nós vemos em outros municípios, não prestando um
serviço para a criança, mas no meu modo de entender prestando um desserviço,
deixando o tempo precioso dessa criança dentro da escola, deixando de produzir
outros conteúdos, deixando de ser competitivo com outras instituições
educacionais, buscando a formação de um cidadão, porque no meu modo de ver a
escola desta cidade e a escola brasileira, ela deve ser uma fábrica de cidadão,
formar esse cidadão para a sociedade, para que ele se forme de tal maneira que
tenha plena condição de escolher a sua bagagem técnica, o que ele deve, o que ele
vai escolher profissionalmente, com uma boa base educacional, vindo de casa,
como diz o jargão, educação vem do berço, e com o apoio ao conhecimento das
escolas.
Esses cidadãos escolhem a sua profissão, com embasamento e com apoio, e isso,
Senhor Presidente, tiraria o tempo dessa formação para discutir questões sexuais,
inclusive dentro das CEI´s, EMEF´s, e EMEI´s. Nós somos contrários a isso55.
55
Ata da 21ª Sessão Ordinária, da 3ª Sessão Legislativa, da l6ª Legislatura, realizada no dia 22 de junho de 2015,
p. 12.
93
[...] por volta do século XVIII nasce uma incitação política, econômica, técnica, a falar
do sexo. E não sob a forma de uma teoria geral da sexualidade mas sob forma de
análise, de contabilidade, de classificação e de especificação, através de pesquisas
quantitativas ou causais. Levar “em conta” o sexo, formular sobre ele um discurso que
não seja unicamente o da moral, mas da racionalidade, eis uma necessidade
suficientemente nova para, no início, surpreender-se consigo mesma e procurar
desculpar-se. (FOUCAULT, 2010, p. 30)
56
Para maiores informações, ler: BARREIRO, Alex. Pedagogia dos desejos: eugenia, psicanálise e sexualidade
infantil brasileira. São Paulo, editora Léxia, 2015.
94
for a de produzir conceitos, esta atividade ficará sob a responsabilidade dos meios de
comunicação.
O filósofo é o amigo do conceito, ele é conceito em potência. Quer dizer que a filosofia
não é uma simples arte de formar, de inventar ou de fabricar conceitos, pois os
conceitos não são necessariamente formas, achados ou produtos. A filosofia mais
rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos.
Professores e professoras também são formados com base nas mídias, traduzindo um
mundo a partir de seu sistema de representação dos valores do capitalismo.
Rose: Sim, nós tivemos uma palestra onde a gente estudou a diferença né...e a gente
busca muito na internet, nos meios de comunicação.
Ofélia: A gente busca na internet, como está um assunto bem em foco agora.
Rose: Porque até então não tem um diagnóstico fechado sobre isso... Esses dias
assisti um programa e que mudou muito a minha visão da “ideologia”. A menina, ela
nasceu com 95% dos hormônios masculinos, daí você para pra pensar? Essa menina
se sente um menino desde que ela nasceu! Hoje ela tem barba, tem tudo. Então como
é que foge disso? Então você para e pensa: bom, eu tenho que analisar melhor.
(Transcrição do questionário realizado em dezembro de 2017)
Entende-se, a partir das falas das professoras, que os papéis de gênero atualmente
não encontram na genitália um delimitador, assim havendo múltiplas formas de ser homem
ou mulher nas relações estabelecidas no tecido social. O “redesenhamento” dessas funções
sociais permitiram a dilatação acerca da concepção de masculino e feminino,
proporcionando e permitindo borrar as fronteiras demarcadas que condicionavam as
experiências e o agenciamento desses sujeitos. Contudo, ainda que negociadas as práticas
de gênero na contemporaneidade e revisto o estatuto sexista, é importante destacar que a
genitália ainda se mantém como um designador da diferença sexual, responsável pela
produção simbólica do sujeito no interior de uma economia desejante, portanto, no interior
de uma estrutura linguística que possibilita as (des)identificações e os desdobramentos de
sua constituição subjetiva.
As multidões de gênero que atravessaram o binarismo agora buscam na revolução
linguística novos subterfúgios para implodir as dimensões simbólicas e imaginárias que
organizam a diferenciação sexual homem x mulher, porém esta investida muitas vezes se fratura
impossibilitando a concessão de um representante para um significante que possa produzir outra
categoria humana que não cindida pela divisão sexual.
96
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Algumas das inquietações levantadas no início desta tese, ainda parecem pairar, dando
a sensação de que o material colhido e registrado ao longo da pesquisa e das análises
empregadas não permitiram responder determinados questionamentos, como a percepção da
interferência ou ressonância dos discursos dos vereadores no cotidiano da pré-escola. Ou se a
campanha moral travada contra um inimigo denominado pelos setores conservadores por
“ideologia de gênero” faz sentido.
Durante a realização e observação do trabalho em campo e das questões realizadas,
foi possível inferir que as professoras passaram a se interessar com mais afinco pelas
temáticas relacionadas a “gênero” e “sexualidade infantil” em decorrência das polêmicas
travadas em debates na Câmara Municipal e também dos artigos em jornais e na mídia
televisiva. Entretanto, as professoras não se reconheciam na narrativa marcada pelo “pânico
moral” dos legisladores da cidade, ou seja, elas não se manifestavam “doutrinadoras”,
tampouco incitavam ou manipulavam as crianças a brincarem com alguns brinquedos
induzindo-as a que utilizassem o mesmo banheiro (denúncias presentes na alegação por parte
de grupos contrários à educação para as relações de gênero).
Os discursos dos vereadores para elas, como mencionou Rose, enquanto conversávamos
observando as crianças no parquinho, “parecia ficção” e não estabelecia nenhum elo com a
realidade e com o cotidiano da pré-escola. Mesmo as professoras conhecendo superficialmente
os estudos de gênero, informadas (como relatado em entrevista) através de textos nas redes
sociais ou em discussões de programas na televisão, sabiam que muitas das questões levantadas
para se combater o “sexismo” desde a infância não eram novos e faziam parte de documentos
oficiais que norteavam a educação infantil, como o RCNEI (Referencial Curricular Nacional
para Educação Infantil), como lembrou Ofélia, e que, portanto, toda essa atual polêmica parecia
“tempestade em copo d´água”.
Os planejamentos das atividades, as histórias contadas e a organização dos espaços
não eram pensados por elas com o intuito de privar, separar por sexo ou de censurar
brincadeiras, também não de induzir meninos e meninas a exercerem outros papéis, afinal,
brinquedo é pra brincar, não é? 57 Não havia por parte da coordenação das CEIs e EMEIs
municipais (SP) ou da Secretaria da Educação nenhuma recomendação, exigência ou ato de
censura sobre as propostas pedagógicas, portanto os documentos permaneciam como eixos
57
Frase destacada por Rose enquanto ajudava as crianças a guardar e organizar os brinquedos em sala. Registro
do diário de campo, outubro de 2017.
97
58
A expressão significa a fusão dos nomes Jair Bolsonaro, candidato à Presidência da República pelo PSL –
Partido Social Liberal e João Dória, candidato a governador pelo Estado de São Paulo pelo PSDB – Partido da
Social Democracia Brasileira. Ambos alinhados pela perspectiva do conservadorismo e da militarização.
98
ensina que não basta impedir o acesso aos objetos, brinquedos, lugares, cores e acessórios uma
vez que estes mecanismos de regulação e controle são ineficazes diante o imaginário infantil e
suas múltiplas possibilidades de criação e identificação. Outro aspecto importante diz respeito
ao fato da menina não inibir Raphael de brincar com as bonecas, mas sim com aquela
determinada boneca, brinquedo que não queria dividir.
Entendemos neste trabalho a subjetividade e os modos de subjetivação a partir das
contribuições de Foucault, portanto, como um espaço íntimo do indivíduo ou como ele constrói
suas percepções e opinião, acerca daquilo que é dito, e se relaciona com o social, o que resulta
em singularidades na sua composição e na maneira com que percebe e negocia com normas e
valores, compartilhados na sua dinâmica cultural e na construção da experiência histórica e
coletiva. Os modos de subjetivação, são, precisamente, as práticas de constituição do sujeito,
ou como escreveu Foucault (1997, p.111) “A história do cuidado e das técnicas de si seria,
portanto, uma maneira de fazer a história da subjetividade [...] através do empreendimento e
das transformações, na nossa cultura, das relações consigo mesmo, com seu arcabouço técnico
e seus efeitos de saber”.
O pânico moral ou a falácia, conforme Reis e Egert (2017), no artigo “Ideologia de
gênero”, referem-se a esta como construções fantasiosas sem fatos, e que servem como
mecanismo estratégico de intenções políticas eleitoreiras para eleger candidatos e candidatas
do campo conservador, uma vez que passam a se apresentarem como personalidades capazes
de barrar e conter o avanço de uma ideologia que “perverte” e “subverte” a natureza das
crianças, pois representam a população. Aliar-se ao obscurantismo religioso foi uma estratégia
precisa em nível nacional e no município ela também ocorreu, como foi possível verificar nos
discursos emitidos na sessão ordinária da Câmara Municipal:
[...] Eu digo isso, senhor presidente, porque nós, eu faço parte da bancada evangélica
nesta casa, respeito todas as religiões, nós somos cristãos e nós defendemos aqui,
senhor presidente, a família, nós defendemos aqui, senhor presidente, as coisas boas,
nós não somos homofóbicos, nós não somos intolerantes, senhor presidente 59.
Tendo em vista as benesses que este jogo moral produz politicamente (permitindo se
elegerem), compreender que o processo de subjetividade das crianças são negociações
simbólicas quais também operam na mecânica da resistência e não exclusivamente de uma
identificação prescritiva, pouco interessa aos vereadores que almejam elaborar e aprovar leis
59
Ata da 21ª Sessão Ordinária, da 3ª Sessão Legislativa, da l6ª Legislatura, realizada no dia 22 de junho de 2015,
p. 7-8.
100
com o intuito de estabelecer as normas das identidades, de seu gênero. Buscavam legislar
sobre o desejo humano, contudo, os esforços empreendidos não conseguem determinar os
sentidos e os usos que a criança fará e dará a eles. Por isso, o discurso da ideologia de gênero
tecido ao longo desses últimos anos, se trata de uma narrativa ficcional, incapaz de traduzir e
decodificar os trajetos das identidades. Tal discurso, incessantemente reiterado por homens e
mulheres eleitos/as das casas legislativas em todo o Brasil, almeja minar um campo de saber
científico que historicamente vem contribuindo para a elaboração de políticas de equidade de
gênero que visam desconstruir um legado patriarcal cuja herança colonial e colonizadora
realiza a manutenção de privilégios e domínios de espaços e cargos públicos e privados aos
homens brancos, cristãos e heterossexuais, convencionados a encenar seus papéis de
masculinidade dominantes. Minar este campo de produção científica significa tentar conter
os avanços sociais, conquistados nas últimas décadas, e a emancipação de sujeitos (mulheres,
negros, LGBTs, indígenas) que até então viviam às margens da história, trancafiados em seus
porões. Por essa razão, o presidente eleito Jair Bolsonaro anunciou junto de sua equipe
ministerial o controle no financiamento público de pesquisas, alegando a importância da
implementação de um filtro “ideológico 60” para a concessão das bolsas aos pesquisadores/as.
A notícia provocou a reação imediata de associações de pesquisadores, como a Anpuh
(Associação Nacional de História), Anped (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa
em Educação), SBHE (Sociedade Brasileira de História e Educação) e Anpocs (Associação
Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais)61.
Por isso, para os legisladores evitar que as teorias de gênero e sexualidade possam
problematizar a realidade sociológica, evidenciando mudanças para que se altere o quadro de
desigualdades de gênero e sexuais no país, passa pela educação, pela censura aos temas de
pesquisa e seus referenciais teóricos e conceituais. Para pensarmos a partir das contribuições de
Mignolo (2014), diferentes dispositivos de colonização são acionados para “assujeitar-nos” a
esta estrutura econômica, política e social vigente, sendo eles: o controle da economia, que
inclui a apropriação de terras e recursos naturais e exploração do trabalho, além da criação de
organismos internacionais como o FMI; o controle da autoridade relacionado à política de
direitos e suas relações internacionais e, sobretudo, o controle de gênero, sexual e do
conhecimento, que inclui a invenção do conceito “mulher”, a heterossexualidade como norma
60
<https://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/2018/10/17/sob-bolsonaro-pgr-passara-por-filtro-ideologico/>.
Acesso em: 21 jan. 2019.
61
<https://cartacampinas.com.br/2019/01/governo-bolsonaro-quer-cortar-bolsas-de-pos-graduacao-de-
pesquisadores-com-pensamento-critico/>. Acesso em: 21 jan. 2019.
101
reguladora e o modelo de família cristã como célula social. Junto a tais formas de colonização
também se inclui o da subjetividade, esta marcada pela concepção de mundo e vida enquanto
consumidores.
Colonizar para governar, criminalizando o pensamento crítico, as identidades
dissidentes que afrontam as fronteiras e demarcações de gênero e também das sexualidades
disparatadas (FOUCAULT, 2010) que se rebelam contra a matriz da heterossexualidade
compulsória; e coibir, punir ou prender subjetividades realocando-as para os espaços de
subalternidade suscetíveis aos ataques de violência física e emocional, dando uma
conotação de prática cultural ao extermínio/genocídio das diferenças étnicas, raciais, de
gênero, classe, idade e sexuais no Brasil. Estas medidas colonizadoras contemplam um
projeto moderno, para além da colonização territorial, e isso abarca, sem dúvida, a vida das
crianças que passam a ser colonizadas em diferentes espaços, como escreveu Gallo (2018,
p. 60): “Coloniza-se a infância nas escolas, mas também nas igrejas, nas famílias, nas ruas,
nas mídias...”.
Como já mencionado anteriormente, a elaboração desta pesquisa e deste texto foram
tentativas de desenhar um mapa durante um terremoto, cujas movimentações terrestres e os
efeitos ocasionados com seus tremores ainda permanecem. Por isso, se torna imprescindível
questionar se o trabalho etnográfico tivesse sido realizado na atual conjuntura política que o
Brasil enfrenta, quais seriam as condutas e respostas concedidas pelas professoras? O breve
período que separa o início da imersão em campo na pré-escola dos dias atuais estão marcados
por discursos de perseguição, controle e intenso combate às políticas das diferenças.
Contudo, este trabalho abre a possibilidades para novas investidas no campo da
educação infantil, pois, ao questionar o desejo do Outro sobre a criança, assim como os recursos
usados pelos adultos que almejam conduzir a construção de sua estrutura subjetiva, eles muitas
vezes fracassam ou são tomadas e reinterpretadas com diferentes intenções. Isso leva
pesquisadores e pesquisadoras da educação infantil a se atentarem para os jogos de relações de
poder que se estabelecem no cotidiano da pré-escola e como as crianças conduzem e negociam
também em suas dimensões simbólicas e imaginárias.
Além dos fatores de produções da subjetividade, este trabalho chama a atenção para
perceber a pré-escola e a educação infantil como um território de disputa política, caracterizada
neste cenário contemporâneo pela conduta do “anti-intelectualismo”, ou seja, pela elaboração
e propagação de ideias falsas, comumente chamadas de fakenews, buscando deslegitimar a
importância do pensamento intelectual e seus fundamentos e concepções pedagógicas, assim
como de seus autores, para criar um pânico moral, já destacado, levando as massas a desconfiar
102
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112
ANEXO A ‒ QUESTIONÁRIO
3. Durante o horário de trabalho, você já observou alguma criança mexendo com frequência
na própria genitália ou do colega?
Rose: Sim.
Ofélia: Na minha sala não.
6. Esses comportamentos são mais comuns em algumas crianças do que em outras? Se sim,
em quais são mais comuns?
Rose: Em meninos e numa porcentagem muito baixa.
Ofélia concordou.
8. Em situações como essas mencionadas nas questões anteriores, você costuma avisar mãe,
pai e/ou responsáveis pela criança? Por quê?
Rose: Então, avisar praticamente não. A gente vai falar com os pais sim de uma suposta
diferença que ele vem apresentando, porque isso, muitas vezes, causa sofrimento na criança. O
113
menino que quer brincar de boneca e isso já foi detectado em casa pelos pais, e é muito difícil
o pai chegar e comentar isso com a gente. Quando você dá a devolutiva, há uma negação do
pai, principalmente. Então, eles sofrem muito.
Ofélia se referindo a um caso, diz a Rose: Você lembra? Ele conversava com a mãe e não com
o pai, porque o pai não podia saber.
Rose: É um segredo, um segredo que eles contam para os professores.
Ofélia: Ele brincava com a boneca da prima, ia na casa da prima, que era uma felicidade dele ir
na prima, porque o pai não admitia.
Rose: Quando você chama a família, orienta a família, ela já está ciente.
9. Quando questões relativas à sexualidade e origem dos bebês são feitas como você esclarece
essas dúvidas?
Rose: Eles não percebem a diferença de um comportamento para o outro.
Ofélia: Para eles é bem natural.
Rose: Eles fazem no dia a dia. Por que, às vezes, um chama o outro, né, você...vamos dizer:
“você é viado”! A gente fala: mas o que que é isso? Coisa feia, viado é um animal. A gente
tenta ir por esse caminho. Mas hoje em dia está difícil, viu Alex, porque eles vêm muito sabido,
se fala tudo dentro de casa. Eles assistem novela da Globo das 21h que aborda muitos temas
diversos.
Ofélia novamente concordou, gesticulando com a cabeça, como se dissesse “sim”.
11. Os meninos brincam somente entre eles? De quê? E as meninas brincam entre elas? De
quê?
Rose: Não, eles brincam juntos. De bola, de basquete, jogos diversos, quebra-cabeça, na
casinha, que o menino também participa, não tem essa diferença, isso é de menino e isso é de
menina dentro da EMEI.
Ofélia: Não.
14. Quais crianças manifestam maior resistência com relação às ordens e determinações das
professoras?
Ofélia: São poucos, né, responde olhando para Rose.
Rose: São poucos, mas o que a gente observa na nossa prática são crianças, pelo menos, na
minha sala, eu posso classificar em duas famílias: a família desestruturada, a criança que não
tem o apoio, geralmente a mãe é sozinha. Essa criança, ela tem mais dificuldades em seguir as
regras, é a criança que “pode tudo”.
A criança que você fala pra ela: porque que você bateu em seu amigo? Porque o meu pai
mandou!
Ofélia: Vem de casa já com essa recomendação, sabe? “Pode bater sim, fez pra você, então
pode bater”. Então são os dois extremos.
Rose: É quando o pai e a mãe não seguem a mesma linha de educação pro filho. A mãe fala
uma coisa e o pai fala outra. O pai fala pro filho: você pode ter quantas namoradas você quiser
ao mesmo tempo. Fala isso para uma criança de seis anos!
16. Há resistência por parte das crianças em brincar ou participar das brincadeiras
consideradas femininas ou masculinas?
Rose: Não.
Ofélia: Não.
17. Você acredita que os brinquedos e as brincadeiras são elementos importantes para que o
menino se reconheça como homem e a menina como mulher?
Rose: Eu acho que toda brincadeira é válida, né. Isso faz parte já do universo infantil.
Ofélia: Para o desenvolvimento deles.
Rose: Para eles, tudo é brincadeira, brincando que eles vão se autoafirmando, vão
desenvolvendo a parte... familiar, que exemplos que têm lá na família, como é o comportamento
do pai, da mãe ... a mãe fazendo comida, o pai ajudando, o pai com o bebê no colo. Eu tinha
muito aqui, o menino segurando o bebê e a menina lá fazendo a comidinha. Então eu acho
assim, é a comunidade né, é de onde eles vêm.
Ofélia: É o meio que eles vêm.
18. Seus conhecimentos sobre gênero e sexualidade infantil foram desenvolvidos e debatidos
durante a sua formação? Quais fontes você acessa para obter conhecimentos sobre as
questões de gênero e sexualidade na infância?
Rose: Sim, nós tivemos uma palestra onde a gente estudou a diferença né...e a gente busca muito
na internet, nos meios de comunicação.
Ofélia: A gente busca na internet, como está um assunto bem em foco agora.
Rose: Por que até então não tem um diagnóstico fechado sobre isso... Esses dias assisti um
programa e que mudou muito a minha visão, da “ideologia”. A menina, ela nasceu com 95%
dos hormônios masculinos, daí você para pra pensar? Essa menina se sente um menino desde
115
que ela nasceu! Hoje ela tem barba, tem tudo. Então como é que foge disso? Então você para e
pensa: bom, eu tenho que analisar melhor.