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‘Titulo original: Qwestce que l'Occident? © Presses Universitaires de France ‘Traducio: Pedro El6i Duarte Capa de José Manuel Reis Depésito Legal n° 227621/05 ISBN: 972-44-1248 Direitos reservados para lingua portuguesa por Edighes 70 Impressio, paginacto e acabamento: ‘Manue A. Pacisco, Loa, para Eoicoes 70, Lo. Junho de 2005 sem prévia autorizagio dos Direitos de Autor seré passivel imento judicial. AD 4e26 Philippe Nemo O QUEE O OCIDENTE? edicdes 70 Introdugao Pareceu necessério a Fichte, em 1808, escrever um. Discurso a Nacdo Alea, a Julien Benda, em 1933, escre- ver um Discurso d Nagdo Europeia. As circunstancias geopoliticas de hoje convidam talvez, por seu lado, a algo como um “discurso A nago ocidental”, Ha uma analogia entre as trés situagées, Fichte pronun- ciou as suas conferéneias quando as invasées napolesnicas ameagavam a prépria existéncia da Alemanha, Benda publicou o seu ensaio quando a “guerra civil europeia”, iniciada em 1914, ameagava a Europa na sua prdpria existéncia. Nos dois casos, estes autores tinham compre- endido que as comunidades afectadas por estes traumas, a “nagdo alema” ¢ a “nagdo europeia”, tinham sido, até ‘entdo, mais sentidas do que pensadas ¢ que quem quisesse defendé-las devia comegar por as tornar mais reconhect- veis aos olhos dos seus préprios membros, Tentaram definir os ideais e os valores que encarnavam (de um modo bastante contestavel no que diz. respeito a Fichte, mas esse € outro problema). Contribuiram, assim, com os seus livros, para que se criasse uma “consciéncia de si” da Alemanha ¢ da Europa, 0 que nao deixou de ter a sua 9 © Que E 0 Ocipente? importancia para a criagio das instituigdes zes de integrar estas comunidades na durago da respectivamente, a Alemanha unificada de Bismar Uniao Europeia. Hoje ainda, as crises geopoliticas da inicio do século XXI abalam uma realidade que sentimos ser essencial para as nossas existéncias, mas acerca da qual nao possuimos uma consciéneia suficientemente clara. A construgio europeia, que foi pouco contestada durante cerea de cin- quenta anos, suscita cepticismo, porque nao se vé bem segundo que critérios os seus promotores pretendem alargar a Europa-ao Leste ¢ ao Sul. O terrorismo, a disseminagdo das armas de destruigdo macic¢a e a mundializacdo econémica suscitam respostas divergentes de um lado e do outro do Atlantico que poderiam ir até a0 entre a Europa e a América. Os fluxos migraté- am um n{vel eritico para além do. qual. a integraco cultural se tora problemética e vemos emergic uma sociedade que seré culturalmente plural. Em todos estes problemas est manifestamente implicada uma reali- dade, 0 “Ocidente”, pelo que se torna urgente tentar ter dela uma ideia precisa. que € 0 “Ocidente”, the West? Teré esta civilizagio ‘ow esta cultura — nao iremos distinguir aqui os dois termos — uma unidade mais profunda do que as suas divisdes ‘geopoliticas? Possuird valores e instituigées comuns que facam dela um mesmo mundo, distinguindo-a, por muito tempo ainda, dos mundos chines, japonés, indiano, arét co-muculmano e africano e mesmo de mundos considera- dos mais préximos, como o mundo ortodoxo do Leste europeu © russo, a América Latina e Israel? Se sim, existiré uma solidariedade profunda entre os pafses do Ocidente que justifique que fagamos deste conjunto, de algum modo, uma unidade politica (sendo, a este respeito, 10 InrRopugao, a Uniio Europeia ¢ o Império Americano, manifestamen- te, duas falsas boas ideias)? E se se atingiram, nesta izagéo, certas figuras do universal cujo desapareci- mento ou enfraquecimento afectariam a humanidade no seu todo, deveremos defender uma tal civilizagio, nio apenas das ameagas de tipo militar, mas também dos stiscos de desagregagio que resultam do. despertar_dos comunitarismos ou da mesticagem cultural? O propésito deste ensaio nao € responder directamente a estas questoes — no farei mais do que indicar algumas pistas como concluso -, mas apresentar determinadas chaves histéricas e filos6ficas das respostas po: De facto, a civilizacdo ocidental pode definir primeira abordagem, pelo Estado de direito, a democracia, as liberdades intelectuais, a racionalidade critica, a cigncia ¢ ‘uma economia de liberdade fundada na propriedade privada. (Ora, nada disto é “natural”. Estes valores e estas instituigdes so o fruto de uma longa construgZo histérica. Acontece que adquiri um certo conhecimento desta construgdo ao preparar uma volumosa Historia das Ideias Politicas que se estende da Antiguidade até & nossa época('). A luz do que este longo trabalho me ensinou, penso que se pode estruturar_a morfogénese cultural do_Ocidente, apesar de toda_a sua complexidade, em cinco acontecimentos essenciais: 1) A imvengdo da Cidade, da liberdade_gragas a0 primado da lei, da ciéncia e da escola pelos Gregos; 2) a invengao do direito, da propriedade privada, da “pessoa” e do humanismo por Roma; a revolugao ética e escatolégica da Biblia: a carida- de que ultrapassa a justiga e a instauragdo de um tempo linear, o tempo da Historia ¢ da escatologia; a “Revolugao Papal” dos séculos XI a XIII, que escolheu utilizar a razio humana, nas duas formas 3 4) ul O Que EB 0 Ocwente? da ciéncia grega e do direito romano, para integrar- a ética a escatologia biblicas na historia, realizan- do assim a primeira verdadeira sintese entre “Ate~ nas”, “Roma” “Jerusalés 3 00 Oi 5) a promogio da democracia liberal, realizada pelo que se convencionou chamar as grandes revolugdes democraticas (na Holanda, na Inglaterra, nos Esta- dos Unidos em Franga e, depois, sob uma forma ou outra, em todos os outros paises da Europa Ocidental). Sendo o pluralismo mais.eficiente, nos trés dominios da ciéneia, da politica e da economia, do que qualquer ordem natural ou artificial, este iltimo acontecimento deu ao Ocidente uma-eapaci- dade de desenvolvimento sem precedentes,-que Ihe permitiu gerar a Modernidade. primeiro acontecimento é correntemente designado como o “milagre grego”. O terceiro considera-se a si mesmo um acontecimento profético. Todavia, sob deter- minados pontos de vista, so estes cinco acontecimentos que constituem “milagres”, porque so todos.solugses de continuidade na hist6ria cultural, so saltos evolutivos. Alguns deles envolveram também civilizagdes nao oci- dentais, O que caracteriza, todavia, 0 Ocidente foi ter sido modelado por todos os cinco e por mais nenhum outro. Neste livro, gostaria de delinear, esquematicamente, esta morfogénese. Evidentemente, a minha intengao ndo é fazer, nalgumas dezenas de paginas, um resumo da “hist6- ria da civilizagdo ocidental” nem apresentar algo de novo sobre cada um dos cinco acontecimentos considerados em si mesmos. O que pretendo € destacar determinadas carac- teristicas abstractas destes acontecimentos ~ discricio- nariamente identificadas € voluntariamente simplificadas 2 InrRoDUGAO, —e mostrar como se relacionaram entre si para criar_o espirito peculiar dos Ocidentais de hoje. o ignoro as intimeras objecedes, quer de fundo, quer de método, que um procedimento como este pode suscitar. A mais grave é que, ao formular a questo “O que €?” parecer desejar definir uma esséncia, corre ca (~ buicaos grupos humanos uma natureza eterna ¢ incomuni- cael e um devir endégeno. No entanto, nao € esse 0 método que vou seguir. .O “Ocidente” que procuro definir-n: ‘0, mas uma 4 cultura liderada sucessivamente-por diversos povos. Nesta historia, foram implicados homens de diferentes etnias que assumiram voluntariamente valores estranhos ao-seu grupo de origem. Penso nos Romanos, que se helenizaram, nos Gauleses vencidos, que aceitaram de bom grado a Jatinidade (abandonaram completamente a sua lingua em duas ou trés geragGes), nos europeus pagios, que se converteram em massa ao cristianismo, na propria Europa cristd, que, mais tarde, decidiu apropriar-se do direito romano ¢ da ciéncia grega e fazer destes passados 0 seu passado, a fonte das suas normas, do seu imaginario e da sua identidade. Em. todos estes casos, portanto, estes grupos assumiram, retrospectivamente, uma filiagio espi- ritual que ndo corespondia & sua filiagdo biolégica ou étnica, mas que resultou da escolha livre dos seus dirigen- tes e dos seus pensadores. Foi bastante ridicularizada a escola colonial francesa que ensinava 2s criangas afticanas os grandes momentos da histéria da Franga — 0 vaso de Soissons, Joana d’Arc —, como se estes acontecimentos pertencessem a sua historia, Mas serd isto assim tio absurdo? Nos mesmos, os Europeus, 0 que somos sendo colonizados que reconheceram Sécrates e Cicero, Moisés € Jesus como seus antepassados, mais do que os frustes 2B 0 Que E 0 Ociente? seres que povoavam as florestas celtas e germanicas? Os valores ¢ as instituigGes consteuidas ao longo da histéria cultural do Ocidente pertencem aquilo que Karl Popper chamou 0 “mundo 3” ~ 0 mundo das ideias, das represen- tages, das doutrinas, das realidades propriamente cultu- rais. Eles podem ser apropriados actualmente por todos os povos do mundo, se os considerarem bons, no. constituin- do propriedade exclusiva de ninguém. A acusagio de essencialismo carece de fundamento. Contudo, o meu propésito ndo é a polémica, Caracte- rizarei de modo positivo e analitico 0 contributo essencial de cada um dos cinco acontecimentos ¢ mostrarei como se combinaram para constituir a Forma PeOccident»”, Cahiers d’épistémologie du Groupe de recherches en épistémologie comparée, Université da Québec & Montréal, 14 Intropucko Abril de 2003; “Union européenne ou "Union occidentale'?", ”. Ble designa no livro a cultura que ¢ comum & Europa Ocidental e 4 América do Norte. Neste sentido, coincide mais ou menos, em extensio, com as nogdes de “civilizagdo europeia” e de “cristandade (no ortodoxa), como explicaremos em detalhe neste entanto, 0 termo “Ocidente” nem sempre foi usado neste sentido. problema ¢ que ele nao se refere a uma localizagao absoluta, ‘como “Europa” ou “América”, mas tem um sentido essencialmen- te relativo, pois © “ocaso” e © “nascente” di redonda & medida que se muda de longitude. As define-se por oposigdo a0 “Oriente”, 0 “Oeste” por oposigao ao “Leste”, mas também estes pares ndo tem sentido senio em relagdo a um meridiano que a histéria deslocou muitas vezes: a) Em primeiro lugar, a Europa crista opde-se aos paises do “Levante”, ou seja, a0 Oriente arabico-mugulmano © 20 Ex- temo Oriente indiano e chins, na época das Cruzadas e, depois, com a viagem de Marco Polo. Esta divisdo € forte- ‘mente reactivada quando 0s Turcos avangam pela Europa até as portas de Viena. b) As Grandes Descobertas e, em particular, a descoberta da América, mudam esta topologia, A partir de entao, distingue- -se um “Novo Mundo” ¢ um “Velho Mundo” e alguns Pee centendendo por isso 0 continente americano, onde se a verdadeira democracia e a verdadeira liberdade, por oposi- histéria da palavra), a nogao de “Ocidente” exclu’ a Europa GF. a este propésito 0 que diz Carl Schmit, Le Nomos de la Cc da Terra tera um eco paradoxal no que, pouco depois, iré dizer uma familia do pensamento europen, que € sobretudo alemé, ao recusar quer 0 liberalismo anglo-sax6nico, quer tudo 0 que, na velha Furopa, se parega demasiado com 15 a 0.Que ff 0 Ocwenre? ceste. Uma antiga tradi¢o intelectual alema (anterior mesmo Lutero) tinha rejeitado Roma, no duplo sentido da Roma Itdlia, a Inglaterra, etc.) © a reconhecer que possuem uma ‘dentidade puramente “germénica” e “"nordica”. E claro, toda- via, que estas escolhas foram realizadas por uma minoria, cuja audiéncia $6 aumenta a partir de 1914 e que chega a0 poder em 1933, resultando no que pode ser considerado, por isso, um acidente da Historia. Tais escolhas equivalem a riscar de siibito dois mil anos de histéria cultural alema e a afastar 4 Alemanha para longe do verdadeiro bergo da sua civiliza- so. Os Alemies despertaram em 1945 desta espécie de delirio colectivo. Quer o chanceler Konrad Adenauer, quer os principais partidos politicos alemaes, incluindo o SPD no seu io ¢ 0 capitulo XID. (© Ocidente € igualmente uma noglo polémica entre os eslavofilos nussos: € “ocidental” tudo 0 que & catélico & protestamte, quer dizer, toda a Europa Ocidental,incluindo a Poldnia. Este mundo & considerado materialist, prosaico & no verdadeiramente cristio, pensando que é conveniente protegerem-se dele, se quiserem impedir que a alma da Santa Rissia soja iremediavelmente corrompida (cf. o que dizemos de Dostoievski nas pp.73-76 e na nota, 9 do capftulo 4) Durante a Guerra Fria, fala-se mais naturalmente de do que de “Ocidente”, porque o adversério agora o “Leste”, ‘04 seja, 0 mundo comunista, o qual, com as suas Componentes russa, chinesa e indochinesa, esté situado a leste da Europa 16 InroDucao, Ocidental e, a fortiori, da América. A este mundo comunista ‘opde-se © “mundo livre", sendo habitual incluir de novo a Europa Ocidental ¢ a América do Norte no &mbito dos termos, “Oeste” © “Ocidente”, isto é, 0 campo dos paises capitalistas ce democréticos, Alias, em todas as grandes crises geopoliticas estes “Ocidentais” manifestaram uma solidariedade sem fa- has no seio da NATO. O chanceler Willy Brandt quase parecia um traidor quando props uma Ostpolitik demasiado ‘complacente com o Leste. Vemos, portanto, que os termos, “Ocidente” e “Oeste” tinham, neste contexto, uma significa- ‘edo ao mesmo tempo ideol6gica e civilizacional. or fim, a queda do Muro de Berlim dé origem a uma nova ‘ordem mundial. © declinio da ideologia marxista conduz a supressio, ou a redugio a quase nada, da oposigio Este- Oeste. Os terceiro-mundistas ¢ 0s altermundistas, sucessores, ideol6gicos dos marxistas, tendem a substitu-la pela clivagem, “Norte-Sul”. Todavia, 0 “Norte” no é de modo nenhum hhomogeneo, uma vez que inclui agora 0 Japiio ¢ os “dragées” asidticos, enquanto espera pela China, A concordarmos com. Samuel P. Huntington, autor do Choque das Civilizagées, as reais linhas de forga geopoliticas e estratégicas do mundo moderno seriam clivagens de “civilizagies", e nao ideol6gi- cas nem de riqueza. O termo “Ocidente” voltaria, portanto, a ter toda a sua pertinéncia geopolitica. Por isso, ainda se toma mais urgente analisar a realidade cultural profunda a que corresponde. CAPITULO 1 O “Milagre Grego”: a Cidade, a Ciéncia 1. Os tracos constitutivos da cidade grega segundo Jean-Pierre Vernant ‘A Cidade grega nasceu na sequéncia de uma catéstro- fe: a destruigGo, cerca de 1200 a. C., das monarquias sagradas € centralizadas de tipo micénico que existiam em solo grego. Seguiu-se uma longa Idade Média, séculos obscuros de onde emergiu finalmente, em meados do século VIII, uma realidade inaudita, produto de um “salto” evolutivo: a Cidade ('). Jean-Pierre Vernant () caracteri- zou esta mutagdo, realizada por homens politicos e pensa- dores gregos da época arcaica (os “Sete Sébios” e seus congéneres), de acordo com as seguintes caracteristicas: 1) A crise da soberania. Quando a Cidade emerge, yerificamos que 0 poder migico-religioso do rei micénico consagrado, que reunia em si todas as fung0es sociais, se tinha desagregado. As funcGes reais sao exercidas, a partir de entio, por diversos magistrados: militares, juizes, governantes, sacerdotes, etc. A monarquia dé lugar & 19 © Que E 0 Ocwente? reptiblica. O poder politico torna-se colectivo, sendo situa- do en to meson, no seio da comunidade, tornando-se uma “responsabilidade de todos”. 2) O aparecimento de um espaco piiblico. Ao passo que 0 poder do rei micénico estava encerrado no espao secreto do palicio real, 0 poder dos magistrados, na nova Cidade, ¢ piiblico e aberto, 0 que € evidenciado pelo aparecimento da agora, a praca onde se realizam as reu- nides dos cidadios, que a arqueologia revelou, e pela mudanga de estatuto da escrita, que se torna um meio de tomar piblicos os pensamentos, de os oferecer ao jutzo de um ptiblico anénimo. As leis sio passadas a escrito. Embora a escrita jé seja entio bimilenar, é no contexto da Cidade grega que aparecem os primeiros textos que se podem considerar livros. 3) A valorizagao da palavra e da razdo. Como 0 poder fica exposto na agora e pode ser af posto em causa por qualquer um, as decisdes e as leis nio se podem impor seniio na medida em que tenham convencido a assembleia. Tal néo € possivel, a nao ser que, por um lado, sejam justificadas por razes objectivas e universais que tenham neutralizado antecipadamente as objecgdes © que, por outro, estas mesmas razdes sejam expostas com uma argumentacdo convincente, tendo em conta a psicologia e as capacidades de entendimento da assembleia. O pensa- ‘mento racional e a arte do discurso sao assim, para Vernant, as duas criagGes intelectuais directamente induzidas pelo cardcter publico que o poder assumiu na Cidade nascente, Mais tarde, as ciéncias da légica, da dialéctica e da ret6rica formalizario os processos da argumentagdo racio- nal rigorosa e a arte do discurso, mas nao farlio mais do que recolher 0 que antes tinha sido espontancamente ctiado na agora, 20 © “Miacre Greco”: a Cina, 4 Ciéncta 4) A igualdade perante a lei. Os membros da sociedade civica que acedem ao espago piblico convivem cada vez como iguais, isoi. De facto, como o que € relevante para assegurar a situagio de um homem na comunidade jé ndo é a fun¢io magico- -religiosa que exerce ou o lugar que ocupa numa linha- gem, mas sim, por um lado, a sua capacidade de combater ‘em igualdade com os outros na falange hoplitica (*) e, por ‘outro, a de contribuir com argumentos racionais na agora, © uma vez. que, no espago piiblico, a objeccao pertinente ¢ a observacio objectiva podem vir quer do mais insignifi- cante cidadao, quer do mais notavel, qualquer um deles é subs homem abstracto, igual aos demais perante a lei tanto no sentido de Ihe estar submetido como no de participar na sua claboragio. A virtude da sophrosyne (‘moderagio”) substitui as virtudes aristocréticas que ainda vemos ser exaltadas por Homero, mas que Hesfodo comeca a conde- nar como hybris, como desmesura, fonte de desordens, de injustigas e de violéncias. Na verdade, surge um homem totalmente novo, o cidadao, aquele que nao s6 sabe que é, mas também que pretende ser igual aos seus semelhantes segundo 0 direito e a raziio e, portanto, em dignidade (*). 5) A metamorfose da religido. Ao inventar Estado regido pela razio publica, os Gregos, paradoxalmente, inventaram a religido, ou, pelo menos, aquilo que nds, ocidentais modernos, designamos com este nome, quer dizer, uma certa relagdo “vertical” do homem com Deus. Antes, a religido era uma coisa completamente diferente. Ela era aquilo que ligava “horizontalmente” 0 grupo, a forma tinica ¢ obrigatéria do vinculo social, a argamassa da ordem social assegurada pela catharsis da violéncia realizada pelo rito em conformidade com 0 mito (°). Mas cis que, a partir de agora, a ordem social é assegurada pelo a O Que E 0 Ocwenre? Estado, que pune os crimes, aplicando as Jeis humanas (°), Por este facto, a religiio toma-se initil do ponto de vista social. E claro que ela nfo desaparece, mas muda radical- mente de estatuto: 1) 0 culto fica subordinado ao Estado, com © desenvolvimento dos cultos poliddicos ligados & Cidade e 20 seu territorio, fenémeno que conduz & neutralizagio do religioso enquanto tal (pois é a politica que comanda 0 religioso, e nao o inverso, como nas si arcaicas); 2) aparecem, por reacgo, formas de religiosidade privadas, como os mistétios, as confrarias e a especulacdo filoséfica sobre o divino, ou seja, a partir de entéio, no Ocidente, a “religiao”, 6) A distingéo physis/nomos. O “mifagre grego” nao ficard concluido senéo quando for introduzida uma diltima inflexao em relagao ao Estado sacralizado antigo, a saber, a propria ideia de que a lei, sendo humana, pode ser modificada livremente pelo homem ¢ que a ordem social pode ser submetida & critica e A mudanga. parecer entiio a politica no seu sentido proprio, ou seja, néio apenas a discusso dos problemas de tipo executivo, determinando uma aegao colectiva concreta no quadro dos costumes € das hierarquias sociais existentes (0 que os Estados sacralizados jé praticavam () e que os antropélogos (*) ‘mostraram mesmo que era ¢ continua a ser praticado nas “sociedades sem Estado”), mas uma discussio radical acerca das proprias regras da vida social. Tal supunha a tomada de consciéncia da autonomia da ordem social em relagdo a ordem natural, quer dizer, da existéncia de duas ordens distintas, uma ordem transcendente e intangivel, a da physis ou “natureza”, e outra artificial, criada pelos homens, varidvel no tempo e no espago, passivel de critica € de reformas, a do nomos, que resulta de uma “conven- Gio” (). A ideia foi expressamente formulada nos dois Litimos tergos do século V, no tempo dos sofistas ('"). 2 O “Mu.aane Greco": a C1pabe, A CIENCIA Ocidente iré herdar, por intermédio dos Romanos, estas mutagdes que demarcam nitidamente a Grécia de todas as sociedades anteriores, quer se trate das sociedades arcaicas, quer dos primeiros Estados criados no Préximo Oriente Antigo, que eram ainda monarquias sacralizadas. 2. A igualdade dos cidaddos e a liberdade gracas ao primado da lei Com as suas inovagdes, os Gregos instauraram o prin- cipio do governo pela lei e o da liberdade individual que Ihe est indissociavelmente ligado, base civica sobre a qual serio erigidos os Estados de direito modernos. Desde ento, com efeito, € suposto 0 cidadao obedecer apenas a uma regra geral, igual pata todos ¢ andnima,-e ndo a uma ordem pessoal ¢ arbitréria, vinda do-rei, de um elemento mais velho de uma linhagem ou_de uma pessoa colocada mais acima numa hierarquia socio-césmica. Como, para além disso, a regr tiblica, conhecida_antecipada- mente, certa © estével, ido sabe sempre a priori, como agi para nao ser submetido & coergao de outrem. $6 depende dele no entrar em litfgio com outros cidadios nem com 0 Estado. Dispondo de instrumentos cognitivos seguros para antecipar 0 que € Ifcito e ilicito fazer, pode tomar a responsabilidade pela-sua-vida, decidindo por si mesmo as suas actividades: torna-se_um ser livre. A formula civica inventada pelos Gregos cria, portanto, a liberdade individual no sentido em que ser sempre enten- dida no Ocidente (mesmo se o Baixo Império Romano, os reinos barbaros e 0 feudalismo representam neste aspecto uma longa regressio). Quando os fil6sofos politicos ingle- ses criam as expresses government of laws, not of men & rule of law, nao faro mais do que reformular na sua lingua 0 velho ideal civico grego. 2B 0 Que E 0 Ocwente? Podemos 1é-lo em Aristételes: © governo da lei € preferivel ao de apenas um dos cidadios individualmente considerados e, aplicando esta ‘mesma ideia, ainda que seja preferivel que certos individuos detenham a autoridade, s6 devemos investi-los como guardides © servos das leis. [..] Querer 0 governo da lei &, segundo parece, querer 0 governo exclusivo de Deus e da azo; querer, pelo contririo, o governo de um s6 homem & querer também o de um animal selvagem, porque o apetite itracional tem de facto este cardcter animal e a paixio adultera o cardcter dos dirigentes, ainda que sejam os mais virtuosos dos homens.(!!) Aristételes acrescenta que um regime em que é “o Povo que governa, e nfo a lei”, néo é um regime de liberdade, porque, neste caso, 0 povo comporta-se como “monarca colectivo” ('?). O que caracteriza um regime rdade nao € o facto de serem dadas ordens em nome de todos, mas de haver apenas regras gerais, e ndo ordens “Particulares. O juiz ou 0 governante $6 dio ordens parti- culares quando se trata de preencher as inevitaveis Tacunas . O que os Gregos inventaram, em tltima anélise, Portanto, como ¢ vulgar dizer-se, a democracia, 0Estado de direito”,” ‘ Uma caracteristica particularmente significativa da re- volugio das mentalidades realizada com a promogao da cidadania em Atenas ¢ 0 estatuto que a Cidade reserva aos estrangeiros. Como Péricles recorda no célebre discurso Minebre relatado por Tucidides ("*), ela acolhe um grande mimero de “metecos” ¢ concede-Ihes os principais direitos civicos e, em primeiro lugar, o de residir em permanéncia na Cidade. Foi precisamente por os Gregos, e em particu- lar 08 Atenienses, terem construfdo um conceito abstracto 24 ei. O “MitaGre Greco”: a CIDADE, a CifNCIA de Cidade e de cidadio (*) que houve homens que se puderam juntar a este tipo novo de agrupamento humano, independentemente da sua pertenga a linhagens e etnias. Pela primeira vez na Hist6ria, um sistema social admite nao estar fundado numa comunidade de origem (") 3. A ciéncia Tendo inventado a racionalidade critica e a igualdade perante a lei, os Gregos, subsequentemente, inventaram a ciéncia. 6 necessario compreender que Cidade e ciéncia ndo constituem duas invengdes sucessivas e independen- tes; clas suscitam-se uma & outra. De facto, & medida que se consolida o Estado civico, a religido arcaica perde 0 seu dominio sobre as mentalida- des ¢ deixa de poder impor a unanimidade relativamente as crengas miticas. Podem ser discutidas pelos_sibios diferentes hipsteses sobre o kosmos, tal como as diferentes propostas de acco publica o so também pelos oradores politicos. Por outro lado, a partir do momento em que se concebe a harmonia social, nfo como sendo produzida pela acgao intencional das divindades, mas pela obedién- cia de todos os cidadaos a uma mesma lei impessoal, pode também conceber-se que 05 elementos do kosmos se man- tm no seu lugar préprio-porque estio todos submetidos a uma mesma “lei da natureza”. E provavel que os primeiros fisicos gregos, ou seja, a Escola de Mileto, com Tales, Anaximandro ¢ Anaximenes, tenham aplicado espontanea- mente a natureza o esquema que os cidadios gregos aplicavam & sociedade. A terra, os mares e os astros esto no lugar em que esto ¢ possuem.as propriedades que Ihes pertencem porque este lugar e estas propriedades sa0 0 resultado da obediéncia de todos estes elementos a idénti- cas leis naturais anénimas, universais e necessérias, tal 25 0 Que E 0 Ocwente? como a ordem da Cidade e os lugares e as funges dos seus diversos cidadaos resultam da obediéncia ao mesmo nomos. As coisas fazem justiga umas &s outras, diz Anaximandro, © reparam as suas injustigas segundo a ordem do tempo.(") Os Gregos deram assim um passo que as “ciéncias” ‘mesopotimica c egipcia nao deram ("*), Foi frequentemen- te realcado que os tratados mesopotamicos de medicina e. de astrologia sao, tal como os tratados de adivinhago e os textos paradigmas, ¢ nio 0 enunciada de_lei Podemos expressar a mesma ideia de uma maneira um pouco dife- André Pichot (), procede segundo ia dos objectos” e a “via do espirito cientifico”. As ciéncias tradicionais anteriores & Cidade grega resultam da “via dos objectos”, no sentido em que possuem um saber real sobre tipos definidos de objectos cientificos — 0s astros, os niimeros, as docngas, etc. -, saber que pode ser muito abundante ¢ vir acompanhado de téenicas refinadas. Mas nunca assumem a forma de teo- rias, quer dizer, de discursos abstractos que enunciem leis, universais ¢ necessérias a que o universo obedega, Ora, é esta forma que as investigagdes cientificas dos Gregos tendem entio a adoptar. Uma verdadeira fusio entre “via dos objectos” e “es- pitito cientifico” serd realizada nos séculos clissicos do mundo grego e, sobretudo, na época helenistica e greco- -romana. Seré nessa altura que as grandes disciplinas cientificas — a _matemiticas, a astronomia, a fisica, a medicina, a fisiologia, a zoologia, a biologia ~ atingirdo a sua maturidade, O mesmo espirito cientifico manifestou-se também, entretanto, naquilo a que hoje chamamos as “ciéncias 26 O “Miacre Greco”: A Crane, 4 Créncia sociais". Sabemos que a gramatica, a ret6rica e as ciéncias politicas foram esbogadas pelos sofistas na segunda meta- de do século Ve desenvolvidas no século IV pelos filéso- fos, os ret6ricos ¢ as suas escolas, Devemos fazer uma ‘mengio especial em relagdo a historia, que procura em Her6doto 0 seu caminho © se encontra em Tucfdides, enquanto espera por Polibio e os grandes historiadores do mundo greco-romano. Quando se Ié Tucidides ou Polibio, sociolégicas € psicolégicas que permitam ex- plicar racionalmente © comportamento dos agentes. 4. A escola O nascimento da ciéncia determina, por sua vez, 0 da outra grande invengdo que o Ocidente herdaré, ida desde a geragao de Aristételes ¢ de Alexan- dre, 0 Grande, nas formas que iré conservar até ao fim do mundo antigo e depois, sem verdadeira solugdo de continui- dade, até as sociedades ocidentais contemporaneas. A nogio de escola, ¢ nao apenas o termo, é grega. De facto, néio tem. sentido. criar_escolas senzio onde-houver uma ciéneia para transmitir. As sociedades arcaicas nao possuem escolas, 56 tém ritos e processos de iniciagao (como ¢ ainda 0 caso da agogé espartana: Esparta tem, a este respeito, um atraso fatal em relago a Atenas). Os ovos antigos que possuem escrita, mas anteriores A eclosiio daciéncia grega, nao conhecem seni “escolas de escribas”, escolas priticas de técnicos especializados, S6 quando hé uma ciéncia desinteressada, “liberal”, uma actividade que € apenas intelectual e sem qualquer componente técnica, desportiva ou militar, se justifica erigir uma ins especial dedicada a transmiti-la & juventude. 27 O Que E 0 Ocipente? 1 das confrarias de sabios, como ensino puramente privado dos sofistas, os Gregos porio a funcionar um verdadeiro sistema escolar, com escolas primarias, onde um mestre ensina as criangas a ler, escrever e contar, escolas secun- darias, onde 0 professor ensina aos alunos a gramética e a literatura ¢, por intermédio destas, o espirito de anélise ¢ a cultura em geral, ¢, por tiltimo, estabelecimentos de ensino superior, a saber, as escolas de filosofia, rica e de medicina. Notemos que om ter qualquer originalidade em matéria escolar: iré adop- tar tal qual o modelo escolar grego, mas, tendo inventado A partir do momento em que este sistema ficar a funcionar, tender a divulgar o espirito cientifieo, se nao em toda a sociedade helenistica e greco-latina, pelo menos em todas as suas elites. Este espirito resume-se no ideal da paideia, palavra que Varrio e Cicero traduziram por humanitas © que, portanto, nfo deve ser traduzida nas Iinguas modemas, apesar da sua raiz etimolégica, pela palavra “educagdo”, que diz respeito estritamente a juven- tude, mas pela palavra “cultura”, que é mais geral @). Este ideal de uma humanidade que nao se cumpre senso prati- cando as letras e as ciéncias sera transmitido ao Ocidente modemo, embora seja verdade que ird sofrer uma espécie de eclipse ou de hibernagio nos primeiros séculos do cristianismo. No entanto, nao podemos deixar de verificar que, apés os seus sucessos iniciais, a Antiguidade Greco-Romana no conseguiu verdadeiramente que a ciéncia “levantasse vo”, Procurou-se bastante a razdo desta esterilidade. Os homens do fim da Antiguidade tinham j4 no seu patrimé- nio de conhecimentos cientificos quase tudo 0 que iré 28 “Maar Greco”: a Cipape, a CiéNcta constituir 0 ponto de partida de Copémico, Galileu e Descartes. Entio, por que razo nao fizeram uso imediato dele? Um elemento da explicagdo € que ndo beneficiaram de um investimento social suficiente, para além da ajuda muito limitada que os sabios receberam de alguns sobera- nos helenisticos em Alexandria e Pérgamo. Os_sébios ‘gregos foram. quase todos amadores isolados (*).. nao faz sendo relangar a questio: por que raza falta de interesse da sociedade antiga pelas poten da ciéncia? A escravatura, como j4 foi-sugerido-por-al- ‘guns, tomava initil, em grande parte, a invencio de técni- cas para dominar melhor a natureza. Isso é um facto, mas ensamos que a causa é mais profunda. Nao hé diivida que na Antiguidade pag nao havia vontade suficiente para “mudar 0 mundo” e, por isso, para fazer progredir a cigncia, Veremos mais tarde qual serd o elemento propria- mente moral que tinha de aparecer para que fosse desper- tado este estranho prurido. ©) Cf. Moses Finley, Les anciens Gr [Os Gregos Antigos, Lisboa, Edi depois de 1200 a. C. Os nossos conhecimentos sobre a Grécia em 29 0 Que Fo csv? relagio a este perfodo limitam-se praticamente aos contributos da . A escrita regressard & Grécia na época dos poemas (entre meados ¢ © fim do século VIII. a pensée grecque (1962), ’ Frangois Polignac, La nnaissance de la cité grecque, Découverte, 1984. (©) Infantaria pesada capaz de destruir os ataques da cavalaria, Esta aristocritico, estando baseada na bravura e nos feitos AA forga da falange reside na sua coesio e, portanto, 1a: €a arma da democracia por exceléncia, quer por ser composta por muitos cidados com riqueza mediana, quet pot cexigir virtudes que S40 proprias dos cidadios, a sophrosyne (a moderagio) e a aceitagéo de uma regra igual para todos. A “revolugdo hoplitica”, isto é, a substituigéo da cavalaria pela falange, teve lugar n VI, oséculo em que corteu a criago © {, que ndo s4o adequadas, porque estas desigualdades ¢ estas mentalidades cxistiam a fortiori nas sociedades pré-civicas. Nio se deve comparar a Cidade grega com as cidades posteriores que imitardo e aperfeicoarao 0 seu contributo, mas com as sociedades anteriores de que se demarca e em relagio as quais inova, Por oucos que fossem, e sabendo nds que nio inclu‘am os escravos, as mulheres € os metecos, os cidados gregos nao deixam de ser dccisivamente promovida em Atenas pelas reformas de Dricon e de Solon, entre 630 © 600 a. C., aproximadamente, e, ‘mais em geral, pelos reformadores pol “Sete Sabios da Grécia”. Cf. a nossa Histoire des idées politiques dans l'Antiquité ot au Moyen Age, op. cit, pp. 46-48, ©) CF. Samuel Noah Kramer, L’Histoire commence & Sumer, Patis, Arthaud, 1986, cap. 5, “Le premier Parlement”, onde esté resumi- da uma tabuinha suméria que regista uma deliberago tomada, 30 O “Mitaare G00”: A CIDADE, A C1ENCIA cerca de 2000 a. C., numa assembleia da cidade-estado de Uruk Trata-se de saber se accitam pagar um tributo exigido por uma poténcia estrangeira ou se the declaram guerra. J4 € uma delibe- ago, mas nao € uma discusso “politica” no sentido de um debate que envolva as regras juridicas e constitucionais em que o Estado se funda, ©) Cf. Georges Balandier, Anthropologie politique (1967), Pats, PUR, col. Quacrige, 1991. ©) Se queremos evitar uma confusdo ineémoda, € preferivel nao identificar este segundo tipo de ordem pensado pelos sofistas, 0 rnomos, ordem artificial, ordem por convengao, com a “cultura”. A ordem de que esta ditima resulta 6, na realidade, um terceiro tipo de ordem, distinto dos dois primeiros, € uma ordem que no é natural nem artificial, porque & estabelecida pelos homens sem que dependa das suas intengbes, £ a ordem “espontinea’”, que 160 seré verdadeiramente pensada sendo a parti do século XVIM e da a ems ala depots (6 inf, pp 105 ro) ‘thimo parimetro na sua lista. Fm contra principal da reflexio de Popper acerca da in + pp. 49-52. ico” que tenha sido, defende também que se tos civis aos metecos. Pede que Ihes seja atribuido um protector oficial e argumenta que é vital para Atenas sutorizar a presenga activa de estrangeiros na Cidade (Xenofonte, Rendimentos, caps. II e II). Os contemporineos de Péricles, a quem Karl Popper chama (em A Sociedade Aberta ¢ os seus JInimigos) “a grande geraga0 dade aberta” — Sécrates, i t6fanes — slo talvez, em ymens mais “modernos” de © Qur E 0 Ocwente? toda « Antiguidade. $0 mais irGnicos e livres de todo 0 pensa- mento mégico-religioso do que os homens da maioria dos outros perfodos da Antignidade, a comegar pelos atenienses da época uc imediatamente se Ihes segue, @ do dectinio da democracia, de que Platdo, Aristételes e Deméstenes foram testemunhas. () Opinido de Anaximandro relatada por Simplicio (Commentaire sur la Physique de Arisiote, 24, 13, em Les Présocratiques, Pats, Gallimard, Bibliotheque de Ia Pléiade, 1988) ) Quanto as ciéneias dos mundos indiano e chinés, elas sao, em qualquer caso, menos antigas do que as cincias mesopotimicas © egipcias. Por outro lado, nio parece que tenha surgido nestes ‘mundos, em tempos recuados, alguma coisa de comparavel & promogao greva da lei natural ¢ da racionalidade (°) CE. a este proposito 2 andlise de Jean Bottéro, “Le ‘code’ de Hammourabi", in Mésopotamie, Paris, Gallimard, 1987, pp. 191- 23. (Cf. André Pichot, La naissance de la science, 2, Pais, Gallimard, col. Folio-Essais, 1991; ef. também Geoffrey B. R. Lloyd, Les ‘buis de la science grecque, 2 t., Paris, La Découverte, 1990. . Paris, Le Seuil, 1981, pp. 147-156. (@) CE. aeste propésito Geoffrey E. R. Lloyd, Les débuts de la science sgrecque, t. 2, cap. 10. 32. CAPITULO 2 O Contributo Romano: 9 Direito Privado, o Humanismo Os Gregos inventaram 0 “governo pela lei”, todavia, no levaram muito longe a elaboragio do direito, Nas pequenas cidades gregas, formadas por comunidades etni- camente homogéneas, o direito era maioritariamente nfo escrito (razo por que conhecemos muito mal o direito gtego). Ora, se 0 direito deve tornar possivel a cooperagao Pacifica e fecunda entre os homens, ao delimitar as fron- teiras entre 0 meu e 0 feu, 6 evidente que tera um papel tio mais eficaz quanto souber definir com maior rigor estas fronteiras. Sera este aperfeigoamento que os magistrados € jurisconsultos romanos irdo realizar, constituindo um processo t4o “miraculoso”, num certo sentido, quanto 0 “milagre grego”, embora tenha sido menos analisado e se The tenha feito justiga com menor frequénci poucos séculos, constituiram um sistema de direito priva- do muito elaborado e sem qualquer equivalente nas civili- zagdes anteriores. Iremos ver que, ao realizar esta tarefa, os Romanos alteraram completamente a concepgao que se tinha até af acerca do homem e da pessoa humana (). 33 © Que E 0 Ocwente? 1A invengao de um direito universal no Estado romano multiéinico Roma tinha-se tornado um Estado cosmopolita (multiémico, ditfamos hoje) devido as suas conquistas. O Estado romano estava obrigado a fazer conviver em boa harmonia homens de proveniéncias diferentes, que, no melting-pot romano, tinham méltiplas oportunidades para choques ¢ litigios. le a Lei das Doze Tébuas de 451 a. C., conjunto comparavel ao direito grego arcaico). De facto, este direito, embora representasse j4 uma inovacao e uma conquista politica da plebe relativamente ao antigo direi- to das gentes — que era apenas consuetudinério e oral ¢ interpretado unicamente pelos patricios — s6 podia ser administrado num contexto quase ritual. Nao apenas pressupunha a adesio ideolégica aos ritos da religitio romana ¢ aos mitos que estavam na sua base, mas tam- bém o conhecimento literal das fSrmulas com que era aplicado. O Digesto relata 0 exemplo de um processo perdido unicamente por causa deste formalismo rigido, impenetravel aos que estavam sujeitos & sua jurisdigéo ¢ no pertenciam a etnia dos “Qui Os estrangeiros, aliés, nao tinham acesso a ele, Perdiam sempre nos seus ‘gios com os Romanos, por tal razio. Quanto aos litigios que ocorriam entre estrangeiros, era ainda menos esperar que pudessem ser solucionados com os procedimentos deste direito autéctone, © magistrado encarregado de aplicar a justica em Roma, durante a Repiblica, € 0 pretor. Ora, em 242 a. C., quer dizer, no momento em que Roma tinha conquistado a Itélia e iniciava a sua expansao para fora dela durante a 34 © ConrriuTo ROMANO: © DIREITO PRIVADO, © HUMANISMO Primeira Guerra Pénica, os Romanos criam um praetor peregrinus, um “pretor dos estrangeiros”, para além do pretor “urbano” cléssico. O pretor dos estrangeiros tem 0 mandato de resolver os litfgios que nao podem ser abran- gidos pelo direito civil tradicional (mais tarde, haveré diversos pretores, quer urbanos, quer peregrinos). E razoavel supor que o cargo de pretor peregrino nao fosse, de inicio, especialmente cobigado (era atribuido por sorteio entre os pretores eleitos) e nao propiciasse uma reputagdo elevada ao seu detentor: no fim de contas, tratava-se apenas de dirimir os assuntos entre cidadaos de segunda categoria, No entanto, isto constituiu ocasio para inovagdes fundamentais. De facto, dado que os que esta- ‘vam sujeitos & sua jurisdigiio no conheciam as formulas tradicionais, o pretor peregrino foi autorizado a qualificar 05 crimes ¢ delitos segundo termos ¢ conceitos que nao figuravam literalmente no direito civil existente e que cram escolhidos de tal modo que os interessados os com- preendessem sem ambiguidade. Era necessério usar, por- tanto, palavras comuns e fGrmulas destitufdas de referén- cias a religiGes ou instituigées étnicas particulares. Isso exerceu uma pressio favordvel & criagio de um vocabulit- rio juridico cada vex mais abstracto. Esta faculdade dada ao pretor peregrino de inventar “f6rmulas” juridicas novas esta provavelmente (sendo controversa, a hipdtese é correntemente utilizada) na ori- gem do “procedimento formulirio” que substituiu defini- tivamente, para todos os que estavam sujeitos a jurisdigao do Estado romano e nio apenas para os estrangeiros, 0 velho “procedimento das accdes da lei”. A partir de entao, © direito civil legal foi acompanhado, completado e corri- gido por um “direito pretoriano” ou “honorério”, consti- tuido pelas formulas inventadas todos os anos pelos ma- gistrados. 38 © Que E 0 Ocwente? Este processo de criag3o intelectual supunha a confron- ago com uma série diversificada de casos e a possibilidade de realizar muitas tentativas de correcgio. Tudo isso cons- tituiu, precisamente, as condigdes particulares em que © novo direito foi elaborado. O cargo de pretor era anual ¢ electivo (como todas as magistraturas republicanas). Por isso, em cada ano, 0s candidatos que pretendiam ser eleitos tinham de reflectir sobre 0 “édito” que iriam publicar ao entrar em fungdes. Este “édito do pretor” deveria conter 0 conjunto de férmulas que o magistrado se comprometia a fazer respeitar durante 0 seu mandato. Bem entendido, o novo pretor podia retomar as férmulas dos seus predecesso- res sem as alterar (pars tralaticia do édito), mas podia também impor outras (pars nova). Ele tinha, portanto, todo © interesse em adaptar 0 édito em fungao das ligGes da experiéncia, conservando as formulas que se tinham revela- do adequadas, climinando as que continham ambiguidades € envolviam um contencioso pesado e propondo novas que resolvessem os problemas que tivessem surgido na prética dos processos. Assim, a instituigdo judiciéria romana (como, mais tarde, a instituigao judicidria inglesa, em que 0 juiz pode julgar de acordo com os precedentes sem estar vincu- lado a um c6digo rigido) estava dotada de um instramento de uma rara flexibilidade, que associava uma certa continui- dade (a0 retomar em cada magistratura um mesmo corpus de formulas comprovadas) a uma faculdade permanente de inovagdo. Este trabalho de criagao juridica realizado pelos pretores foi decisivamente acelerado e alterado quando Roma en- trou em contacto mais fntimo do que antes com a cultura do século II a. C.). Os juristas romanos adquiriram entao algum conhecimento da filosofia grega e, em particular, da filosofia estéica. : 36 © Conrmuro Romano: o Direrro Privapo, 0 HUMANISMO Sabemos que, na sequéncia da criagdo do mundo helenfstico, que amalgamou os Gregos, 0s Macedénios ¢ os orientais da Pérsia, da Siria, do Egipto, etc. (as. grandes monarquias helenisticas foram j4, neste sentido, estados multigtnicos, embora numa escala menor do que a repablica romana), os estdicos tinham elaborado a teoria do cosmopolitismo. Tinham pensado que a humanidade cons- titui uma comunidade tinica que partilha uma natureza humana idéntica e que as regras das relages sociais no seio desta comunidade decomem de uma tnica “lei natural”, sendo as leis positivas de cada cidade apenas o decalque e ‘uma aproximagao a esta. Recordemos a célebre apresenta- do que Cicero fez desta lei natural, em A Reptblica: Ha uma lei verdadeira, que é a recta razio, conforme & natureza, presente em todos os seres, sempre de acordo consigo mesma, que nio pode extinguir-se, que nos chama imperiosamente a desempenhar a nossa fungao, nos interdi- ta a fraude e nos desvia dela, O homem hone nunca & surdo aos seus mandamentos ¢ as suas Ses, mas estes no tém acgdo sobre o perverso. A esta lei nenhuma alteraco € permitida, nao € licito revogé-la nem no todo nem em parte. Nem o Senado nem o povo podem dispensar- -nos de lhe obedecer e nao é de modo nenhum necessério procurar um Sexto Elio para a explicar ou interpretar. Esta lei ndo é uma em Atenas e outra em Roma, uma hoje e outra amanha, ¢ uma nica e mesma lei eterna ¢ imutavel rege todas as nagdes ¢ em todos os tempos. Para a ensinar ¢ prescrever existe um deus Gnico; a concepgao, a delibera- ‘do e a entrada em vigor desta lei também a ele pertencem. Quem nio obedece a esta lei ignora-se a si mesmo e, uma vez que ignora a natureza humana, sofrerd por isso o maior castigo, ainda que escape aos outros suplicios (A Republi- 37 O Que E 0 Ocwente? Se esta lei esté de facto inscrita no coragio de todo 0 ser humano, a consequéncia é clara: quando se encontram homens de cidades diferentes, se niio puderem ser postos de acordo segundo os cédigos positivos das suas cidades respectivas, poderio sé-lo por referéncia & lei natural que Ihes comum. A tarefa que consiste em buscar os princi- pios de justica segundo os quais habitantes de cidades diferentes podem chegar a acordo, desde que estejam de boa fé, pode decerto realizar-se. E 0 reconhecimento da existéncia desta lei comum a todos os homens ¢ acessivel & “consciéncia” de todo 0 homem honesto que permite que a tarefa dos pretores romanos se consolide torne mais sistemética, quando, de i era puramente pragmatica e, sem ditvida, errética, direito que almejavam e que devia ser comum a homens de gentes diferentes era apenas a lei natural postulada pelos filsofos. O que justificava a “formula” imaginada pelo pretor era 0 facto de ser susceptivel de se ajustar melhor a este direito subjacente. Desde logo, importava pouco que ela se afastasse da letra do direito civil ritualizado. A fonte do direito jé nio residia no mito nem no costume, e menos ainda numa revelacdo religiosa, mas na natureza humana objectiva. Sendo esta universal e cognoscfvel pela razio ¢ pela consciéncia, também a férmula do pretor tinha tendéncia para se tomar universalmente aceite. Assim orientada, a tarefa de criago juridica dos ma- gistrados romanos prosseguiu desde 0 século III a. C. até ao fim do século I d. C.: foram trés séculos e meio de invengao continua, emanando de centenas de bons espfti- tos. Durante o Império, como j4 no havia pretores inde- pendentes, o patriménio do direito pretoriano foi reduzido a escrito sob a forma de um “6dito perpétuo” que recolhia toda a matéria dos éditos pretorianos. No decurso do Império, o direito terd origem sobretudo nos imperadores 38 Q Conraputo RomANo: © Direrro Privapo, 0 HuMANIsMo € nos seus juristas titulares, autores das “constituigdes imperiais”, procedimento que era mais artificial e menos ctiativo do que © procedimento formulério. Mas, pelo menos, o Império iré continuar o trabalho de codificagao do direito, que culminaré no Corpus Juris Civilis de Justiniano, no século VI. O balango destes desenvolvimentos é imenso: é em Roma que vemos emergir 0 direito civil que constitui ainda hoje a base de todos os direitos ocidentais mo- dernos. Basta consultar o indice de um manual de direito romano para tomarmos consciéncia, nao s6 da imensidao do trabalho realizado pelos magistrados e os jurisconsultos, ‘mas também do seu extraordinario alcance hist6rico. Nele encontramos, com efeito, as categorias que nos sio hoje familiares, quer se trate do direito das pessoas (menorida- de, incapacidade, tutela, curadoria, famflia, casamento, heranga, adopgio, legitimagao, nogio de pessoa moral, ete), quer do direito das coisas (propriedade, posse, ser- vid0es, coisas corpéreas e incorpéreas, méveis e iméveis, prescrigdo, nua propriedade, usufruto, compropriedade, indivisdo, locagao, etc.), quer do direito das obrigacaes (contrato, depésito, garantia, hipoteca, caugao, mandato, sociedade, compra, Venda, pacto sinalagmatico, dolo, frau- de, testamento, legado, etc.). Estas nogbes fundamentais, assim como o formalismo jurfdico que obriga a utilizar rigorosamente estes instrumentos, etapa apés etapa, sem nos deixarmos seduzir pela pressa, a paixio ou as preocu- paces de eficdcia administrativa, foram-nos transmitidas pelos Romanos por tradigao directa (mesmo se nao é continua) exclusiva, uma vez que s6 0 Ocidente, até uma data recente, a herdou (). Em suma, as sociedades que foram formadas pelo direito romano, depois de 0 terem sido pelo modelo grego 39 © Que B 0 Ociwente? de cidade, efectuaram deste modo um segundo “salto” na evolugao cultural da humanidade. 2. O direito privado romano, fonte do humanismo ocidental O direito romano, tal como foi produzido por este Jongo processo, possufa um meio mais eficaz do que qualquer dos outros anteriormente encontrados para defi- nir a propriedade privada, O direito honorétio tinha forja- do, pouco a pouco, o que poderfamos chamar instrumentos intelectuais de preciso, que permitiam manter 0 registo, de uma forma nao ambfgua, do que tinha sucedido ao meu © ao teu no decurso dos acontecimentos da vida. Por exemplo, depois de duas pessoas se terem casado, tido filltos, se terem associado a alguém, um dos associados ter contratado créditos ou contraido dividas, terem hipoteca- do ou resgatado bens, os seus filhos terem herdado delas, 6s filhos se terem casado, ¢ depois divorciado, tido filhos legitimos, naturais ou adoptados, o seu patriménio ter sido roubado ¢ depois restituido na sequéncia de uma decisao judicial, etc., depois de todas estas modificagées, os ins- trumentos intelectuais forjados pelo direito romano per- ‘item proceder de modo a que 0 meu e 0 teu permanecam rigorosamente delimitados. Cada um reencontra 0 que Ihe pertence. Ora, se 0 dominio proprio de cada um esta assim definido e garantido no tempo (e mesmo, pelo direito de heranga, para além da vida humana individual), € 0 proprio eu que assume uma dimensio que nio tivera em nenhuma outra civilizagdio. De facto, 0 que cada um é depende, em certa medida, daquilo que fem. Portanto, aquilo que tem é © permanece distinto do que outrem tem, o que cada um € ¢ permanece distinto do que outrem é 40 © Conrmipuro Romano: o Dinero Privapo, 0 HUMANISMO Consideremos trés pessoas, Caio, Marco e Quinto, tendo cada qual uma propriedade privada garantida pelo direito. Consideremos os estados sucessivos destas pro- priedades em diferentes etapas t,, ty ty, ty) fy vn estados que apenas fazemos variar, no esquema abaixo, para mais € para menos (a demonstragao seria mais forte se pudés- semos introduzir variagGes qualitativas), Vemos entdo de- senhar-se “itinerdrios de vida” diferentes: Mato es es Quine nn Estas linhas tomam rapidamente uma forma absoluta- ‘mente singular, sendo cada vez. menos sobreponiveis entre si, 0 que significa que os “eus” se diferenciam cada vex mais. O proceso & cumulativo, dado que cada porgo singular de vida vivida dé ao “eu” a ideia e os recursos que Ihe permitem conceber projectos de vida ulteriores que outros ndo poderdo conceber, precisamente porque tive- ram um passado diferente. As vidas individuais deixam entéo de se fundir no ‘oceano do colectivo, no apenas no sentido da fusdio no seio do grupo tribal arcaico, mas mesmo no sentido da solidarie- dade ainda bastante préxima que reinava na pequena Cidade ‘grega. O direito romano, apesar da aparéncia de prosaismo, ganha de sibito uma dimenséo moral inesperada. Podemos defender que, tendo inventado o direito pri nos inventaram a pessoa humana ii uma vida interior, um destino absolutamente singular, nao 41 © Que E 0 Ocipente? redutivel a nenhum outro, ou seja, um ego. O direito romano 6, por isso, a fonte do humanismo ocidental. Parece que foi Cicero quem teve a ideia de aplicar ao ser ‘humano em geral a palavra persona, que designava original- ‘mente, como sabemos, as personagens do teatro. Usou esta metéfora quando discutia, no Dos Deveres, ideias morais do estdico grogo Panécio (*). Todo o homem possui a natureza humana que é comum a todos, mas, para além disso, cada homem possui uma natureza que Ihe € propria, em virtude da qual tem um papel singular a desempenhar na vida, da mesma maneira que as personagens do teatro tm um papel singular a desempenhar na pega. Neste sentido, 0 homem individual merece, portanto, 0 nome persona que € dado aos actores. E tal como a pega de teatro nfo teria nenhum sentido sem a articulagdo das acces dos sentimentos difeerenciados das personagens, também a Republica nio existiria se os idados deixassem de ser eles mesmos, se, devido a algum Tito ou a alguma febre colectiva que fizesse desaparecer as garan-tias do direito, ela se tomasse um “grupo em fusdo”, uma comunidade solidéria e uninime, onde 0 cardcter pré- prio da personalidade de cada um fosse apagado. Pensamos que Cicero s6 pode acrescentar este elemento

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