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2 JOSE MAR{A ARGUEDAS AQUEM DA LITERATURA* ‘Nio era incomum, durante certo tempo, pensar a historiografia como ‘uma pritica abstrata e neutra, recepticulo maledvel aser preenchido por ontetido de diferentes naturezas origens, Assim, se uma determinada sociedade nao escrevera sua historia, imaginava-se que o exercicio na verdade nao seria demasiadamente dificil. Bastaria juntar dados = @ ‘matéria da pesquisa historiogréfica: documentos e testemunhos, registros de acontecimentos ~ e a partir deles construir um relato historiogritico, Essa narrativa, por sua vez, seria, formal ¢ conceitualmente, em sua estrutura e suas normas disciplinares, semelhante a outras jé elaboradas, com uma mesma temporalidade vazia, homogénea, desencantada e linear, independentemente da experiéncia temporal da sociedade cuja historia se buscava contar’ © que ocorreu ao longo da histéria da reflexéo sobre préticas literérias na América Latina nao fol significativamente diferente dessa configuracao. Da mesma maneira que cada sociedade teria sua historia, ue por sua ver seria a variante de uma ideia geral, cada sociedade teria, também, sua literatura, Assim, se nao nos surpreenderia encontrarmos nas prateleiras de uma biblioteca livros com titulos como “Histéria da Inglaterra’, “Historia da China” ou “Histéria dos incas”, no despertaria * Versio de artigo publicado em Estudos Avanados, Sto Paulo, vol 19, n. 5, set-der, Ver Chakrabarty, 2000a, pp. 73-77. surpresa encontrarmos volumes sobre “Literatura inglesa’, “Literatura chinesa” ou “Literatura pré-hispanica’ fesmoemboa parte das histérias literdrias hispano-americanas escritas ao longo do século XX, a situagio ndo € diferente e ‘literatura, Voltemos transculturacao, discutida no capitulo anterior, talvez.a mais influente teoria elaborada pela critica literdria hispano- -americana para descrever as relacées culturais da regiao na modernidade. : i 2 Rama, 2 MooAlteatam quand 56 zavaenes 110635 ALITERATURA Ba QUESTAO afrma que “a contrib orginal dos transcutoradores consist na (a visio regional”, Esse vocabulario triunfal de resgates, restauracdes, unificagdes e solugdes ser recorrente nos textos de Rama, mas é digno de nota que de convocado para descever um proceso que no parece Mais do que Rulfo, Guimares Rosa ou Garcia Marquez, Arguedas seria para Rama um paradigma dessas “solugdes transculturais”. Apés as formulagoes pioneiras do crtico uruguaio, leturas criticas posteriores da obra do peruano inclinaram-se a encontrar nela justamente um exemplo da insergo bem-sucedida do local no sistema global.“ A hip6tese nao é descabida e, de fato, no é impossivel encontrar na obra de Arguedas sinais que apontam para a tentativa de inserigao do mundo andino, "em que o autor crescera, de sua lingua e sua forma de estar no mundo, “nos géneros da narrativa fccional moderna, No perfodo em torno ao romance Los rios profundos (1958), etapa que serviria de base para as teorizagées transculturadoras de Rama, varios textos de Arguedas de fato ndo pareciam, a primeira vista, distantes de formulagdes em que © limite da alteridade cultural € a categoria identitéria, nacional ou regional, mas sempre sinttica, Se fosse apenas iso, a obra de Arguedas > Idem, pp. 230-231. 0 otimismo de Rama nio serd tio grande em alguns textos posteriores, mas so formolagées triunfalistas como essas gue terfo mals iniuéncia sobrea crlticahispano-americana, “Antonio Cornejo Polas, Martin Lienhard e Alberto Moreira seriam alguns exemplos de vores dissonantes. Ortiz, 1995, p-595. 57 MooAltenam gustoinds 57 zavaenes 110635 ‘O conto “La agonia de Rasw-Niiti”, publicado por Arguedas em 1962, pode parecer exemplar nesse sentido, O relato reconstréi uma danga ritual, a tradicional danca das tesouras, no dia em que ela serve de ritual preparatério para a morte de Rasu-Niti, dansak’ (dangarino) de uma comunidade quéchua. A morte ocorre, finalmente, em meio & danga, ¢ a ceriménia agénica se converte em uma espécie de celebragio, com a continuagao da danga pelo discipulo de Rasu-Niti apontando ao mesmo tempo para sobrevivéncia e seu limite.* i i z F t sobre os dangarinos: © Arguedas, 1983, p. 20. 7 Rama, 2001, p.332, © Adem, p. 238 MolAltertsaam gains 58 zavaenes 110635 ATITERATURA BM aUESTAO ‘Dangam s6s ou em competigao. As proezas que realizam eo fervor do sangue durante as figuras da danca dependem de quem esteja assentado em sua ccabeca e em seu coracio, enquante ele danca ou se levanta e langa barrotas ‘com os dentes, perfura carnes com sovelas ou caminha pelo ar sobre uma corda esticada do topo de uma érvore atéa torre do vilarejo? “O genio de um dansak’ depende de quem vive nele” (“El genio de un dansak’ depende de quién vive en é1”), explicard ainda o texto, que ndo estaria fora de lugar em um estudo antropolégico, Emm uita leitura como a) esbogada aqui, os rastros de uma possfvel alteridade andina na literatura arguediana no extrapolariam os limites da literatura moderna ou as convengdes do realismo maravilhoso, Embora seja comum que a fortuna critica veja na obra de Arguedas ‘uma progressio em diresao a radicalizagao que seria El zorro de arriba y el zorro de abajo, mesmo antes desse livro péstumo € po: no autor gestos indicativos de uma leitura menos triunfalista e euférica do embate cultural no continente americano. J&em 1950, antes até de Los rios profundos, ele se perguntava em que lingua devia escrever: vel encontrar Em castelhano? Depois de haver aprendido, amado e vivide através do doce e pulsante quéchua? Aquele era um dilema aparentemente insolivel, Escrevi o rimeiro relato no espanhol mais correto e “literdrio” disponivel para mim, [..] Mas eu odiava cada vex mais aquelas paginas, [..] Sob uma linguagem falsa, mostrava-se um mundo como se fosse inventado, [..] um mundo "em que a palavra consumiu a obra, “Bailan solos o en competencla, Las proezas que realizan y el hervor de su sangre urante las Sguras dela danza dependen de quién esté asentado en su cabera y st corazén, mientras él bailao levantay lanza barretas con los dients, se atraviesa las ‘ares con leznaso camina ene aire por una cuerda tendida desde a cima de un érbo! ala torre del pueblo” (Arguedas, 1983, pp. 213-214) Mem, p24 “Bn castellano? Después de haberlo aprendido, amado y vivido através del dulce y palpitante quechua? Fue aquel un trance al parecer insoluble. Escribi el primer relato eneleastellano mis corzectoy literario’ de que podia disponer..] Pero yo delestaba cada vez mis aquellas péginas.[.] Bajo un falso lenguaje se mostraba un mundo 39 ‘Tensdes semelhantes a essas nao estéo ausentes de textos de outros escritores identificados frequentemente como exemplos de hibridismo cultural exitoso. No romance Hombres de maiz, do guatemalteco Miguel Angel Asturias, um aldedo se escandaliza a0 chegar & cidade e testemunhar em uma fabrica a produgo em série de esculturas de santos, Jembrando-se de como artesios tradicionais de sua aldeia se isolavam da comunidade quando produziam imagens religiosas. A narrativa explica: ££ que nio deviam permitir que trabalhassem as imagens como se fossem ‘manequins ou méveis.[.] Talvez por causa do antecedente, le nao gostava de ver, ateis da diviséria de vidro que dava para a grade de uma varanda, aqueles que faziam os santos, fumando, cuspindo, assobiando, eos santos em volta dees, sem roupas."? (prodigies diel como mercado Em sgua ser relat a devolugio de uma imagem a fabrica, com a alegacio de que Ihe faltava «como inventado, un mundo literati’ en que la palabra ha consumido ala obra™ (Arguedas, 1995, p21). 2 Bs quenodebia ser permit que las imagenes se rabsjarancomossfueran maniguies ‘omucbies. [-] Quizés pore! antecedente,nole gustaba ver rasa mampara de vidio {que daba a la rea de un baleda, a los que hacian los santos, fumando, escupiendo, silbando,y aos santos que los rodeaban, sin ropa” (Asturias, 996, p. 202). MolAltersaam gman 60 zavaenes 110635 ATITERATURA BM aUESTAO da narrativa, sem que o status da obra literdria paresa comprometido de maneira significativa. Se a coliséo com a produgao em série provoca uma crise nos personagens, 0 abalo parece nao chegar & possibilidade da ‘produgao narrativa do romance. Na obra de Arguedas, hd indicios de que o dilema alcangou outra dimensio, levando-o a aproximagao com praticas discursivas outras € ‘busca de um modo de viver com o quéchua, sugerindo uma insatisfagio de outra ordem com as solugdes do hibridismo cultural. Assim, 0 livro final de Arguedas ~ El zorro de arriba y el zorro de abajo -, seguindo instrugées deixadas pelo escritor antes de seu suicidio, inclui: didlogos entre seres mitolégicos incas, um relato sobre os trabalhadores da indiistria de farinha de peixe no povoado de Chimbote, um discurso feito por Arguedas ao receber o Prémio Inca Garcilaso de la Vega e cartas escritas acolegas e amigos com despedidas e orientagdes para seu enterro, tudo entrecortado pelas paginas de seu didrio. A presenga dos seres mitolégicos ~ as raposas, ou zorros, do titulo ~ revela o desejo de fazer do livro, mais do que uma manifestagao original, uma continuagio do manuscrito Dioses y hombres de Huarochirt, compilagao de narrativas orais quéchuas recolhidas no século XVI e traduzidas ao espanhol por Arguedas em 1966. A conversa entre as raposas, interrompida no manuscrito colonial, cujo objetivo principal era a identificagao de idolatria, é retomada na obra de Arguedas, surgindo em trechos cruciais do romance e colocando a obra em didlogo com uma narragio nio literdria cuja origem antecede a chegada do género romance aos Andes. Por sua ver, 0 relato de Arguedas ser, como o manuscrito de Huarochiri, um texto inacabado e fragmentario, também ele interrompido por uma tragédia.” Sea estrutura fragmentéria ea multiplicidade de géneros e registros linguisticos certamente nao sao estranhas & tradigio literdria ocidental do século XX, a questi de nao pouca dificuldade é determinar 0 sentido preciso que tem, no contexto do conflito cultural andino, os Leal sd, pp. 192-93 ‘procedimentos que podemos reconhecer como semelhantes a estratégias| adotadas por escritores europeus. Uma resposta satisfatéria & pergunta teria que determinar se, além do contetido e do tema do livro, a propria ideia de representagao literdria foi afetada, sendo inserida em um paradigma alternativo indisponivel na cultura europeia, E possivel defender uma hipdtese desse tipo se pensarmos em como o processo de producao de EI zorro de arriba y el zorro de abajo foi sendo transformado, aproximando-se de uma ceriménia semelhante danga ritual das tesouras que figura no conto “La agonia de Rasu-Niti” e em textos etnogréficos de Arguedas, Entre maio de 1968 e 2 de dezembro de 1969, dia de sua morte, a vida de Arguedas se torna uma espécie de danga agénica andloga a do dangarino Rasu-Niti. O livro comesa, na primeira pégina do primeiro diério, anunciando uma morte que esta por vir, como faz 0 dansak’ no inicio do conto, nos dois casos aparecendo tradicionais sinais premonitérios andinos. Rasu-Niti avisa que vai morrer e se despede das pessoas mais préximas, o que Arguedas faz através do diario e das cartas que pede que sejam incorporadas ao volume. Como © dangarino, que se prepara e se veste para a iltima danga, Arguedas, sabendo-se préximo a morte, passa a se preparar e também faz da morte um acontecimento coletivo ¢ ritual, compartilhando-a com uma comunidade especifica de destinatarios. E se Rasu-Niti nao se despede sem antes transmitir sua fungao social a um discipulo, Arguedas indica em uma das iltimas paginas que escreve que em seu enterro deve falar um aluno, Edmundo Murrugarra, cujas qualidades ele louva." [Nas duas atividades ~ a danga ¢ a escrita ~ é enfraquecida a nogio de um sujeito humano como proprietario e origem daquilo que produz. Enquanto no conto o dangarino esta apenas seguindo uma divindade- a mie diz. filha, sobre as tesouras utilizadas na danga, que “o Wamani faz Devo essa tlkima observasio a Roberto Zular Segunda Antonio Cornejo Polar, oleitor 4o livro também poderia ser um herdeira em potencial:"o romance pressupde que © itinerério do narrador, que como novo zorra pée em contato os diversos mundos im suas objepesaescrtorescontempordneos como CarlosFuentes Ale Carpentier, salte vista a cenralidade dada por Arguedas 20 modo de producio ds literatura. Em seu famoso debate com Cortizar, 0 status do produtor o que mais uma vez esta em jogo, com Arguedas se poscionando contra o distanciamento critico, contra o {que chama de escrtor“profissional” contra a exclisividade do antftichismo como posbilidade politica contra 0 cormopolitimo: “Todos somos provincianos, dom Julio (Cortazan). Provincianos das nagbes e provincianos do supranacional que é, também, uma esfera, um estato bem imitado, do valor em s como apontam cor muita felicidad suas palavras" (Arguedas, 2016p. 47) ("Todos somos provincianos, don Julio [Cortiza] Provincianosdelasnacionesyprovincianosdelosupranacional ue es ambidn, una esfera, um estrato bien cerrado el del ‘valor ens como usted con mucha felicidad sala" [Arguedas, 992 p21 65 MoAltensa.m quand 65 zavaenes 110635 ‘A questo nao se resolveria se disséssemos, como fizeram alguns leitores de Arguedas, que seu texto final é na verdade uma autobiogratia. ‘Nao hé autobiografia moderna em Arguedas porque nao hé exatamente ‘um sujeito individual que se responsabilize pelo discurso ese situe como sua origem, como nao hi esse espaco em que, segundo Beatriz Sarlo, “a consciéncia de si pode se desenvolver porque as relagdes seculares ¢ privadas passaram a ter precedéncia sobre a relacio com Deus”. /A) * Sarlo & Altamirano, 1993, 7.125. % Apud Cornejo Pola, 1997, p24. 66 MoAlteaam quand 66 zavaenes 110635 ALITERATURA Ba QUESTAO (no caso, a tradugio necesséria é aquela que permite que a religiosidade seja lida como ficgao). E essa sensibilidade que fazia de Arguedas uma figura singular no conjunto dos escritores hispano-americanos de meados do século XX. Se nao faltavam vores dispostas a fazer a tradusao de ® Chakrabarty, 1997, p. 2. % velar, 2003. MooAltenem qustoinds 67 zavaenes 110635

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