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pautas lesbianas

consentimento

em defesa do
sexo não-fascista

quem cala consente (?)
consentimento
substantivo masculino É preciso romper o mito-modo de
funcionamento do sexo enquanto resultante
(1) manifestação favorável a que (alguém) faça
de um conjunto de sinais e gestos que ma-
(algo); permissão, licença. "ela se casou sem o
nifestam o desejo. O desejo precisa sair do
consentimento da família tradicional burguesa”

campo das expressões físicas, das demons-
(2) manifestação de que se aprova (algo);
trações corpóreas, para passar ao campo da
anuência, aquiescência, concordância. “a artista
palavra, do dito e do racionalizado.
deu consentimento para exibição da obra"

(3) condescendência. "ela consentiu a presença
Vivemos em um mundo onde mul-
da ex em seu aniversário"

heres são estupradas e seus algozes buscam
(4) uniformidade de opiniões, concordância de
ter seus atos justificados afirmando:
declarações, acordo de vontade das partes para
! “ ela queria, ela estava com uma saia curta ”
préfácil, prédifícil
“ ela queria, ela me chamou para entrar em
sua casa”
Esse é um dos zines mais difíceis que
“ eu não tenho culpa, porque ela queria!”
já escrevi. Ele é difícil porque as reflexões
“ ela desejava, eu sei que sim porque seus
que levaram a sua produção são resultados
gestos me diziam isso, ela usava um batom
diretos de abusos e violências contra mim
vermelho, toda mulher que usa batom ver-
diretamente perpetradas ou - nos casos em
melho quer transar, esta em busca de um
que atingiram terceiras - vivenciadas. É difí-
homem, está disponível ”
cil porque ele inicia em um terreno perigo-
“ ela disse que não, mas não pareceu que ela
so, onde a própria construção da “mulher” é
não queria ”
colocada em xeque.
Por vezes o prazer masculino é con-
Há uma crença coletiva de que mul-
struído nessa própria contradição por eles
heres possuem uma bondade inata. De que
inventada. O homem se excita nessa su-
há ausência de maldade em seus seres. Afi-
posição de que não há relação entre o que
nal, a Guerra é masculina, as armas são ex-
foi dito e o que se deseja, se excita também
tensões do falo e a natureza é a mãe de-
com impor o desejo a mulher, com o fato de
struída pelo homem. Se o que você procura
saber que ela não quer mas pelas sua ação
é um texto que desmascare isso ao exibir a
“fazê-la querer”. Essa construção é o que
contradição de que mulheres também po-
rege os roteiros de filmes pornográficos.
dem causar o mal, este não é um bom per-
iódico de leitura. Eu não possuo como obje-
Quando abrimos mão de “falar o
tivo primário, nem secundário, a intenção de
sexo”, falar sobre o sexo, consentir com
fornecer um material que permita classificar
palavras altas e claras, deixamos nossa vida
alguma mulher como ruim ou abusiva. Se
sexual percorrer o caminho perigoso e turvo
você o fizer, favor não me cite como referên-
das interpretações. Um caminho que não foi
cia, esse é um claro: não-consentimento.
por nós inventado.

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Se os homens fazem sexo-instin- É preciso colocar o sexo em perspectiva,
to, rogo para que nós mulheres LOCALIZAR o sexo em seu contexto ex-
que amam mulheres façamos: terior e interior para cada uma. Para
sexo-verbo mulheres que desempenham relações não-
sexo-dito monogâmicas isso possui desdobramentos
sexo-discurso. ainda maiores e desproporcionais.

Nosso ato sexual deve começar aí. como gozar pela boca?
Começar na palavra. No diálogo. No con-
senso-dito de ambas as partes. Apenas por Eu tenho plena consciência de que
intermédio da conversa sincera uma com a proponho algo que subverte tudo que nos
outra permitimos o alcance de nossa subje- foi ensinado, condicionado e praticado sobre
tividade, nosso interior. Só a partir daí co- sexo até aqui. Creio também que algumas
nhecemos os significados e o mundo uma lesbianas já gozam o sexo no diálogo da pa-
da outra. E eu defendo que quanto mais lavra em alguns meandros da vida, até por-
soubermos sobre essas subjetividades mais o que creio que tal mudança e giro de pers-
sexo será libertador e transgressor para nós. pectiva é resultante de reflexões feministas,
Mais proveitoso e em consonância com to- muitas das quais já fazemos. Não há uma
das as facetas éticas de uma vida feminista invenção da roda neste texto, há apenas o
anti-capitalista lesbiana. pedido da aplicação de uma filosofia femi-
nista que de fato emancipe as mulheres em
Quem cala não consente. Apenas todos os aspectos da vida.
quem fala consente… ou não-consente.
Para internalizar isto é necessário uma mu- É esperado que não falemos sobre
dança radical nas estruturas de pensar e agir. nossos desejos e vontades. Em toda nossa
Aderir essa consciência é aderir o compro- existência nos ensinaram a não falar o que
misso não apenas de comunicar seu desejo e pensamos, antes considerar o pensamento
vontade, mas aderir também o compromisso dO outrO e resguardar nossas imaginações
de criar contextos de comunicação. Contex- e expectativas a 7 chaves. Por isso, mulheres
tos que convidem as mulheres a falar aber- carregam traços de timidez e insegurança. É
tamente sobre os desejos e sua realização. preciso primeiro se desvencilhar dessas mar-
cas que a misoginia imprimiu em nossa
É preciso DESINTERDITAR o verbo identidade, para ter coragem de abrir a boca
sexual. Revela-lo e tira-lo de sua profunda e dizer:
obscuridade. Fomentar canais de diálogo, Eu te desejo!
naturalizar as falas sobre sexo. Eu gostaria ir para a cama com você!
Eu gostaria de te beijar!
DESBANALIZAR o sexo é urgente. Les- Eu gostaria de te tocar aqui!
bianas falam sobre sexo, não falar nunca foi Eu gostaria de te tocar ali!
o problema real de nossa classe, mas a forma Eu gostaria de viver uma determinada experiên-
que falamos sobre sexo, por vezes, é profun- cia sexual com você!
damente despropositada e grosseira. Eu possuo uma fantasia!

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Mas, alto lá, não dizer por dizer. Não rir ouvir um não, ao revés de viver uma ex-
dizer para apenas colocar para fora e cuspir periência sexual que não foi confortável para
ao mundo aquele desejo livre de culpa. Mas, ambas as partes, é
dizer sabendo que estes ditos estão sempre humanizar
acompanhados destes outros que busquem a outra mulher
saber da outra mulher como ela se sente em em primeiro lugar
relação a eles: ao invés de
Você me deseja? buscar a satisfação
Você gostaria de ir para a cama comigo? de seus desejos
Você gostaria de me beijar? a todo custo
Eu posso? Eu devo?
Eu posso te tocar assim? Você quer ser tocada Se compreendermos isso, seremos ca-
dessa maneira? pazes de comemorar todas as vezes que
Você gostaria de me tocar daquela forma? levarmos “um fora”. Sairemos felizes todas
Você gostaria de viver uma determinada as vezes que nossos desejos não forem con-
experiência sexual comigo? cretizados. Porque ao ouvir um NÃO de
Você partilha da minha fantasia? uma outra mulher teremos plena consciên-
cia de que ela é uma mulher que naquele
Compreendo que isso nos leva a con- momento tomou posse de algo que sempre
versas difíceis. Não queremos ser rejeitadas. foi despossuída: seu próprio corpo. Isto é
Porém, quem pergunta não perguntará por quase um milagre.
educação, não para cumprir um rito ou uma O “NÃO”
tabela, perguntará com o anseio de atingir a humaniza as mulheres
verdade sobre o sexo. Atingir a verdade do porque elas afirmam nele
sexo é fundamental para que não se perceba o direito sobre o próprio
que viveu um sexo fantasia, um sexo fascista corpo e a
que anulou e objetificou a outra ou um sexo coerência interior
que só foi bom para seus próprios interesses. entre suas ações e
vontades. Bem como, o
A mulher que pergunta deve estar “SIM” humaniza as
pronta para ouvir um NÃO como resposta. mulheres na medida em
“Aceitar” ouvir um não e até mesmo prefe- que for dito de forma
consciente e não por
pressão social ou
contexto.

Podemos por vezes achar que estamos


sendo ridículas ao perguntar para uma
mulher em que já demos uns amassos - a
qual nos olhou com desejo nos olhos, a
mesma que agora se encontra em nossa casa
parada na cozinha bebendo um copo d’água
tão excitada que podemos ver sua mente nos
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despindo a cada gole: “Você quer ir para O que fazer quando percebemos que
cama comigo?”. Vai parecer até piada per- vivemos uma relação sexual com outra mul-
guntar sobre algo tão “óbvio”. Mas, não é her em que não estávamos de pleno acordo?
piada. É o verdadeiro início de uma troca Que não consentimos? É comum já sairmos
sexual consciente, inteira, entregue e essen- dessas situações com a cabeça confusa e um
cialmente lésbica. Não existe desejo óbvio, profundo mal-estar. Mas, também é comum
não reproduziremos as chaves de leitura só realizar o abuso tempos depois conver-
masculinas, não leremos sinais para sando com amigas ou companheiras a re-
definir desejo. speito do ocorrido. Como lidar?

Nós lesbianas buscamos Nós sempre teremos a opção de anu-


o desejo direto na fonte: lar aquela mulher de nossas vidas. Nós não
nós escutamos os lábios. somos obrigadas a conviver com ninguém
que tenha nos causado dor, direta ou indire-
abuso tamente ou que tenha faltado com empatia
rompendo o nosso direito ao nosso próprio
Existem muitos tipos e formas de corpo. Entretanto, também aproveito para
abusos sexuais possíveis entre mulheres. Ex- afirmar que nós não temos o direito de ex-
istem níveis também. Nem os níveis, nem os por essa mulher para o mundo enquanto
tipos fazem com que o abuso adquira maior abusadora, isso seria perpetrar contra ela
ou menor legitimidade. Um abuso é sempre uma nova violência. Creio que não seja
um abuso. Eu gostaria de falar aqui sobre necessário discutir aqui o mal uso da ferra-
um dos abusos que mais me ocorreram. menta de escracho entre mulheres lésbicas.
Aqueles abusos que vivemos justamente Ninguém tem a ganhar com a perpetuação
pela falha da comunicação, pelo atropelo, do mito da “lésbica abusiva predadora”, nem
por conta daqueles momentos que alguma vitima, nem abusadora, muito menos a co-
mulher previu que você a desejava e por isso munidade como um todo. Essa discussão
se impôs sobre você. Aquele abuso que é in- entretanto deve ser feita e eu a deixo para
dissociável de um contexto de má comuni- um outro momento.
cação e falta de empatia pela outra.
Bom, voltando ao que podemos faz-
Aqui, não pretendo falar sobre aqueles er… podemos nos afastar dessa mulher e ter
abusos ditos “absurdos”, aqueles em que so- conversas conscientes com as pessoas que
mos agarradas do nada ou diretamente amamos e confiamos para processar aquilo
forçadas fisicamente a ter relações com al- da melhor forma possível para NÓS. Prior-
guém, abusos em que a violência aparece em izando nosso bem-estar emocional. Esse é
primeiro plano. Esses abusos são tão impor- um caminho legitimo. E eu algumas vezes o
tantes quanto os outros dos quais pretendo tomei. Porém, considero outra possibilidade:
falar e se em algum momento você o viven-
ciou quero que saiba que eu me solidarizo conversar com
com sua causa e lamento profundamente. essa mulher.

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Repito, digo isso como possibilidade! Tenho ao sexo, de maneira crítica e compromissada
plena consciência de que não podemos socialmente.
colocar o diálogo sobre o abuso como modus
operandi universal. Haverá casos em que ele Nem tudo são flores, também já me
será prolífico, haverá casos em que ele nem ocorreu de a mulher em questão agir exata-
deveria ser cogitado. Essa possibilidade me mente como os advogados de homens acu-
ocorre porque muitos dos abusos que vivi e sados de estupro me dizendo: “Você queria!
que vivenciei na vida das outras mulheres Você desejava! Suas atitudes me diziam isso!
ocorreram por falta de comunicação anteri- Você disse que não queria mas suas atitudes
or - e resquícios de falta de empatia, claro. diziam outra coisa! As palavras são subjeti-
vas e eu compreendi outra coisa do que você
Nos casos em que me atingiram dire- disse. Eu não tenho culpa”. Nesse caso eu
tamente eu conversei com essas mulheres. não preciso dizer que a situação só deixou
As chamei, sentei diante delas e disse mais claro como não havia como manter
“Lembra aquela noite? Aquela em que essa mulher na minha vida. E é bem ver-
aconteceu isso e isso? Então, naquela noite dade que eu me senti violentada pela se-
eu NÃO havia consentido. Eu estava gunda vez quando conversamos, sua conver-
dormindo” ou “Eu transei com você por que sa teve efeito de gas lighting na minha
me senti pressionada” ou “Eu não queria ter cabeça e foi difícil segurar as pontas. Mas,
feito daquela maneira”. Depois disso é es- através da conversa, a verdade - tanto sobre
tabelecido um espaço para a fala. Para a mim quanto sobre ela - foi revelada. Não
problematização. Para a construção. Evita- deixando margens para interpretações ou
se que seja atormentada pelo fantasma de traumas.
uma vivência sexual traumática. A partir daí,
todo o diálogo que foi negado antes ganha o Por vezes, muitas vezes, o abuso acon-
centro do palco. tece entre companheiras. Entre mulheres
que se relacionam de forma estável e tem
Existem feridas que nunca vão se bons relacionamentos em linhas gerais. Isso
curar. Entretanto, falar sobre isso pode, em acontece por inúmeros motivos, mas para
alguns casos, levar ambas as mulheres a analisar tais situações devemos lembrar que
compreensões melhores e maiores do que mulheres são criadas para satisfazer o desejo
ocorreu entre elas. Pode permitir o acesso a dO outrO dentro de um namoro/casamen-
subjetividade da outra que foi negado to. Criadas para nunca negar sexo para
outrora. Nos meus casos tive experiências aquelE com O qual desenvolve um rela-
múltiplas, já ocorreu de após o confronto cionamento afetivo. Para além disso, é bem
com a mulher que havia abusado de mim verdade que muitas de nós introjetaram o
ela se abrir e me acolher dizendo: “Eu não mito heterossexual falacioso de que uma re-
percebi isso no momento. Fiz um mal lação amorosa vai bem quando a vida sexual
julgamento da situação. Me desculpe, eu er- está ativa.
rei, me perdoa?”, possibilitando uma conver-
sa sobre consentimento na qual operou uma Creio que em muitos dos casos os
transformação pessoal de ambas em relação abusos poderiam ser evitados se falássemos

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para nossas companheiras coisas simples seus desejos ao impor sua vontade sexual a
como: qualquer custo sobre nós.
“Nunca transe comigo sem
vontade própria. Eu só Pensando em uma comparação no
quero fazer amor com você sentido de facilitar a compreensão, essa
se for de seu pleno desejo” construção social masculina seria algo que
se assemelha a construção social das mulhe-
Se você nunca disse isso para sua res brancas. Haja visto que no contexto es-
companheira, fale hoje. cravocrata brasileiro a mulher negra é en-
tendida como a responsável por servir a “pa-
Nesses casos, de abuso entre compan- troa branca”, mesmo quando ela não possui
heiras, eu aconselharia ainda mais forte- patroa e mesmo quando o trabalho dela não
mente que se conversasse sobre o(s) é de doméstica. Esse papel a persegue ao
abuso(s) em questão. Afinal, você abriu sua ponto de qualquer mulher branca que orbi-
vida para essa pessoa durante um período, tar a sua vida ter o poder - literalmente - de
você a escolheu para expor sua subjetivi- reduzi-la a isso. Isso é abusivo. Nestes casos,
dade, ter essa conversa com ela te ajudará a em que há um relação de poder, a identidade
entender a si mesma e ser capaz de homem significa uma identidade abusiva so-
responder de vez: eu quero ou não quero bre a identidade mulher e a identidade branca
continuar nessa relação? uma identidade abusiva sobre a identidade
negra.
“abusiva” ela é?
Considerando esta digressão, ao meu
É necessário contextualizar e compre- ver, os rótulos para “pessoas abusivas” devem
ender os efeitos de nossas palavras. Fornecer ser resguardados a situações como tais, pois
a carteirinha de abusadora para qualquer de fato nessas situações desempenhar aquele
mulher é ostraciza-la e resumir sua existên- abuso fez parte da marca de construção da
cia há um, dois ou três atos. Ao fazê-lo identidade do individuo. O homem é cons-
abrimos mão do compromisso de revolução truído em contraponto a mulher em uma
social e irmandade que temos com nós sociedade misógina. A branca em contra-
mesmas. Perdemos a oportunidade de dis- ponto a negra em uma sociedade racista. A
cutir problemas coletivos para reduzi-los a rica em contraponto a pobre em uma socie-
uma indivídua categorizada como proble- dade de classes. Quando um homem abusa
mática. sexualmente de uma mulher ele o fez basea-
do no principio de que possuía esse direito,
Agora, você pode me perguntar, por- dada sua “natureza” masculina.
que fazemos exatamente isso com homens?
Porque homens são construídos socialmente Devemos resguardar este termo para
enquanto nossos abusadores. Todas as estru- esses quadros em que o abuso é configurado
turas sociais os direcionam para a compre- pelas estruturas de opressão e pela gama
ensão do corpo da mulher enquanto sua complexa de símbolos sociais, não fazer uso
propriedade e da necessidade de satisfazer de forma reducionista as ações especificas.
De fato para um homem-rico-branco “ser
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abusivo” é parte fundante de sua Identidade o que precisa ser dito, essa mulher se
em muitos aspectos. Deve haver um trabal- lembrará dessa conversa para sempre.
ho intenso - e possível, diga-se de passagem (4) Não tente se justificar, não há justifica-
- de desconstrução para que mude-se o tivas para o injustificável
cenário (5) Peça desculpas sinceras, se coloque
realmente no lugar dela
Você ainda pode me perguntar: e se (6) Não termine a conversa até compreen-
essa mulher tiver um longo histórico de der os sentimentos dessa mulher
abusos sexuais? Não cabe chama-la de (7) Converse sobre os caminhos que a
abusiva? Continuo sustentando que seria levaram a tratar o assunto contigo dessa
um mal uso sem tamanho do termo, pode- maneira
mos descrevê-la exatamente da forma que (8) Se reveja. Não se martirize. O martírio
ela é “uma mulher com um longo histórico de não ajuda ninguém e não mudará o pas-
abusos sexuais”. Precisamos parar de buscar sado.
termos para economizar saliva, é mais im- (9) Evite publicizar o assunto, converse so-
portante a coerência da fala do que a facili- bre só com pessoas de extrema razoabil-
dade de expulsá-la da boca, especialmente idade e confiança. Nós só temos a
quando nossas palavras serão responsáveis perder com a publicização de nossa in-
por definir a vida de outra mulher. timidade, quer sejamos vitimas quer se-
jamos protagonistas do abuso.
“abusiva” fui eu
estupro
Apontaram que cometi um abuso,
e agora? A leitora deve ter notado que em momento
algum dessa publicação eu me referi ao
Se em algum momento da sua vida “abuso sexual” entre mulheres como “es-
futura alguma mulher lhe comunicar que o tupro”. Não o faço porque acredito que usar
sexo entre vocês não foi consensual, não a categoria para se referir aos abusos entre
haja precipitadamente. Se você é um ser mulheres seria um descabido mal uso do
humano que presta, eu acredito que termo que enfraqueceria demandas
provavelmente você nem sabia que havia históricas por nós colocadas.
possibilidade de tal fato. Te dou um voto de
confiança e acredito que você jamais teria Acredito que só homens cometem es-
continuado se tivesse realizado que não tupro. Ao desvincular esse termo da mas-
havia consentimento. De qualquer forma, o culinidade nos levaríamos a esquecer que os
fato é que: o abuso rolou. Se os fatos são abusos sexuais em sua grande maioria ocor-
reais, se vocês tiveram algum envolvimento rem pautados na manifestação da força e
sexual: supremacia masculina, com o objetivo de
controlar nossos corpos e de subjuga-lo a
(1) Não questione a vitima destinação reprodutiva contra nossa von-
(2) Mantenha a voz calma e baixa tade. Não há melhor exemplo disso do que
(3) Tente não reagir imediatamente, em o chamado “estupro corretivo” que visa re-
silêncio pense em cada palavra. Só diga
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conduzir mulheres lésbicas ao suposto ciclo consentimento em um momento sexual
“natural” heterossexual da vida. muito especifico, aquele em que o ato sexual
abre margem para a existência de mais do
Estupros são resultado direto de uma que duas protagonistas.
organização econômica que nos explora e
nos oprime. Não quero também dizer que Nesse clima de desconstrução sempre
há um menor e outro maior, de maior ou me pego vivendo momentos em que o de-
menor gravidade. Tanto o abuso quanto o sejo é ampliado e alimentado em cole-
estupro tem impactos nocivos em nossas vi- tiva. Momentos os quais várias mulheres
das. Mas as formas de lidar com ambos são percebem-se interessadas todas umas pelas
completamente distintas. Eu me recuso a outras. Pode chamar isso do quiser: ménage
lidar com qualquer mulher lésbica da mes- à trois, suruba, sexo em grupo, sexão ou ba-
ma forma que lidaria com um homem, não canal. O fato é que se pouco conversamos
há simetria entre eles e qualquer compara- sobre o sexo à duas, imagine sobre o sexo
ção é um falso-cognato. em grupo. Esses contextos de, digamos…
extrema libertinagem sexual - sem nenhum
ménage à 3, à 4, à 5… julgo moral - podem ser extremamente abu-
sivos na medida em que tem o potencial de
Mulheres lésbicas são por vezes reco- constranger as mulheres que neles estão
nhecidas como aquele grupo social mais re- envolvidas a transar sem nenhuma vontade
volucionário, as descontraídas e descons- própria anterior.
truídas que venceram todos os paradigmas
da liberdade sexual. Elas lidam bem com a O sexo em grupo é uma fantasia im-
nudez e com o ciúmes, elas estão em vias de posta no imaginário sexual de muitas de
abolir o amor romântico. São as mais livres. nós. Perguntamos muitas vezes para nossas
Libertas. Emancipadas. Revolucionárias. A amigas “Você já transou com mais de uma pes-
vanguarda! Não-monogâmicas. O futuro soa?”. Esse estigma coopera para a hiperval-
será feminista e sapatão! Elas são maravi- orização de uma experiência sexual que
lhosas porque romperam com todos padrões pode ser cheia de lacunas. Essas lacunas ex-
de beleza e inventaram uma linguagem es- istem porque sexo foi condenado a um lugar
tética só pra si. perigoso e controlado dentro de nossa sub-
jetividade enquanto mulheres, ele se tornou
Esse é o clima que paira nas minhas essa coisa sensível e mal resumida para
vivências lésbicas coletivas. Eu compreendo muitas de nós. E isso não foi feito a toa,
que é uma vivência localizada geografica- fomos desprovidas de nosso desejo para que
mente, economicamente e socialmente. ele fosse instrumentalizado pelos homens
Longe de mim lançar aqui uma concepção em prol de um determinado sistema
única de vivência lesbiana, reconheço tam- econômico e funcionamento social.
bém que essa é uma vivência privilegiada.
Mas acredito que é uma vivência compartil- Eu não defendo que paremos de fazer
hada por muitas das leitoras dessa publi- ménage. Eu apenas peço, será que
cação, em maior ou menor grau. Desejo poderíamos ter a ousadia coerente de con-
com a exposição dessa vivência falar sobre versar sobre, antes de levar tudo a cabo?
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Será que podemos entrar em um sexo em
grupo com a certeza do que aquilo significa
para cada uma das mulheres participantes?
Será que podemos ficar mais molhadas com
o desempenho livre da liberdade plena da
outra do que com a realização de nossos de-
sejos? Isso seria uma verdadeira suruba les-
biana. Com ela eu me alegraria imensa-
mente.

Se você possui alguma fantasia sexual


sobre a qual não conseguiria/ poderia/deve-
ria falar sobre, ela não uma fantasia. Ela é
seu desejo imposto na vida de outra mulher.

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Desenho na página 3,
De Dioniso

Gravuras do Manifesto,
de Maria Sibylla Merian

Da página 9, Jan
(@furiosaarte). 


Co-Edição por
Heretika Editora Lésbica
Independente

heretika@riseup.net

http://heresialesbica.noblogs.org

Co-produção COMITÊ PERMANETE,


Um comitê autônomo afetivo estético
artístico que acredita na emancipação
pelos formas coletivas e pessoais de
existência, através da arte e da sa-
botagem do Estado.

COPYLEFT, todo conteúdo pode e


dever ser xereca-copiado, desde
que mantida suas fontes

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MANIFESTO
POR UM SEXO NÃO FASCISTA

EU, _____________________, lésbica feminista anti-capitalista, me com-


prometo a não colocar meu gozo acima da subjetividade das mulheres. Meu
gozo só virá em consentimento e diálogo com o gozo da outra.

O sexo não será mais ser esse local palco da realização dos desejos a
todo custo, da auto satisfação. Não por motivos moralizantes e tradi-
cionais, mas pelo simples fato de que essa concepção é profundamente
misógina e limitadora. Qualquer liberdade atingida através dela será
efêmera e me condenará a jamais romper com a regência masculina em min-
ha subjetividade e no desempenho de nossa sexualidade.

Se eu desejar transar com as mulheres eu conversarei e cuidarei delas.


Não há sexo sem cuidado mutuo.

Assumo que o sexo é uma troca de subjetividades e


que cada mulher é um mundo.

Declaro o compromisso de acessar as mulheres com palavras,


antes de acessá-las com as mãos.

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