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A MISSÃO DO CARMELO NO NOSSO TEMPO

“Espera um pouco, filha, e verás grandes coisas” (F 1,8)


Quando Teresa iniciava a primeira fundação, São José de Ávila, o Senhor lhe
garantiu que aquela obra que então começava “seria uma estrela da qual sairia um
grande esplendor” (V 32,11). Certamente não devemos pensar que se referisse
exclusivamente a um convento, mas a tudo o que viria a significar o movimento
iniciado por Teresa na Igreja (cf F 1,8) e para toda a humanidade.
Tenho certeza de que o carisma teresiano hoje é mais atual do que nunca. Isto não
quer dizer que os nossos conventos estejam lotados ou que tenhamos mais vocações do
que qualquer outra família na Igreja. A atualidade não se mede nesse sentido. Também é
verdade que hoje, mais do que nunca, estamos nos tornando mais cientes da nossa
riqueza carismática e da responsabilidade consequente que nos compromete perante a
Igreja e o nosso povo.
Um carisma não surge na Igreja como propriedade exclusiva de um grupo ou
família, mas como um dom do Espírito que chama a revitalizar algum aspecto essencial
dentro do conjunto da vida cristã. Por isso, o Carmelo com o seu carisma peculiar é um
dom da Espírito à humanidade, dele recebendo uma tarefa e responsabilidade
fundamental.
Acredito, contudo, que ainda temos pela frente um caminho até chegarmos a ter
plena consciência da responsabilidade que nos compete como herdeiros de tal dom.
Se nos aproximarmos ao mundo que nos rodeia, facilmente podemos criar um
quadro de algumas das características mais comuns das nossas sociedades
(Globalização, Injustiças e desigualdades, Materialismos, pragmatismos, consumismo e,
no meio a tudo, uma procura e auge do espiritual...) Qualquer quadro, porém, corre o
risco de cair nos estereótipos e de esquecer outras realidades de relevante importância.
Para evitar tais riscos, pretendo focar aquilo que, de diversas maneiras, está à base
dessa problemática que podemos identificar e que, em certo sentido, pode significar um
desafio para o carisma teresiano no mundo atual. A própria Igreja, com todo o
dinamismo que foi se criando em torno da Nova Evangelização, abre para nós, acho eu,
um panorama de ação e comprometimento perante o qual não podemos ficar
indiferentes por diversos motivos. Um deles, e acredito que seja nuclear para o Carmelo
Teresiano, está bem em sintonia com a experiência de Teresa e com a resposta que ela
deu ao seu tempo, e que ora pede que nós demos ao nosso.
Como iremos constatando, a atualidade dela é a nossa atualidade. A Nova
Evangelização, os Documentos prévios e a Exortação apostólica do Papa Francisco,
bem como a sua Encíclica sobre a Fé, ajudar-nos-ão a centrar nossa reflexão sobre qual
continua a ser nossa missão hoje.
Não devemos confundir a atualidade de um personagem ou de um carisma com a
popularidade deles, e nem mesmo com o fato de tal personagem gozar de ampla fama
ou ser foco de devoção. A verdadeira atualidade de algo reside na sua capacidade de ser
a resposta adequada a quanto, desde o mais profundo do seu ser, o ser humano almeja,
procura e precisa.
Por isso, uma compreensão cabal da atualidade de Santa Teresa e da missão que
hoje a Igreja e a humanidade esperam do Carmelo descobri-la-emos só a partir de uma
análise objetiva da realidade que nos envolve, da situação real vivida pelo ser humano
do nosso tempo, em sintonia com os valores nucleares constitutivos da nossa vocação e
missão carismática.
Um exemplo tangível do constitutivo desta atualidade o percebemos na figura do
Papa Francisco. Num tempo em que muitos achavam que a Igreja não tinha mais nada
para dizer ao homem de hoje, quando a instituição era vista como caduca e obsoleta,
num contexto em que cada vez se fala mais de espiritualidade sem religião... aparece um
personagem praticamente desconhecido até então, que com um pequeno repertório de
gestos e palavras singelas e acessíveis está propiciando uma transformação que, tempo
atrás, era difícil imaginar.
O Papa Francisco pode ser para nós um bom termómetro do que possa ser a
atualidade, compreendida não como furo jornalístico, mas como necessidade
preeminente sempre presente no coração de todo ser humano.
Como preâmbulo à nossa exposição, ele pode servir-nos de indicativo de quanto
pode e deve representar a atualidade da missão de Teresa e o Carmelo no mundo de
hoje, partindo de um simples paralelismo entre ambos personagens que, posteriormente,
deveria ser aprofundado e ampliado:
- O primeiro grande gesto de Francisco, que chama profundamente a
atenção é a sua simplicidade, naturalidade, humildade, com a consequente
renúncia a protocolos, palácios e símbolos de poder e/ou distinção...
Poderíamos descobrir esta mesma atitude em Teresa pela sua reprovação
da “negra honra” e a exaltação que faz da humildade, bem como a sua
convicção do valor da verdadeira pobreza e despojamento.
- Outro aspecto chamativo do Papa é a sua atitude de reconhecimento do seu
ser pecador, tal e como ele próprio se define. Em Teresa é algo
característico também do conhecimento de si própria: mulher ruim,
pecadora, miserável.
- Porém, tanto em Francisco como em Teresa isto não se fecha à limitação
pessoal mas abre-se como fruto de uma profunda experiência da
misericórdia de Deus. Para Francisco este é o valor primordial que a Igreja
deve transmitir. Para Teresa é a base e fundamento de todo o caminho de
seguimento de Cristo.
- Outros aspectos comuns seriam: A importância da dimensão relacional-
pessoal com Deus, como fundamento da vida da fé; a centralidade da
pessoa: não julgar, mas servir; a atenção às periferias...
Em definitivo, acredito que o Papa Francisco encarna adequadamente o grande
desafio da Nova Evangelização, situando no centro a pessoa de Jesus e os valores
evangélicos como o elemento que deva guiar e presidir o caminho da Igreja. Neste
sentido, como nossa reflexão tratará de evidenciar, Teresa tem uma atualidade e
centralidade plenamente relevante. Ela encarna, com toda excelência, em sua vida e
obra, quanto continua a ser Boa Notícia, quanto continua a ser a mensagem essencial do
Evangelho, quanto permanece sempre atualidade porque tange ao desejo mais profundo
de Deus e do homem. Que todos sejam felizes e se salvem.
Os novos desafios levantados pela cultura mundial globalizada na aurora do
século XXI são imensos: “A Igreja está chamada a encarar... o desafio da nova
evangelização ciente de que as transformações não apenas dizem referência ao mundo
e à cultura, mas que também atingem em primeira pessoa à própria Igreja, às suas
comunidades, às suas ações e à sua identidade. O discernimento é tido, então, como o
instrumento necessário, como o estímulo para enfrentar com maior determinação e
responsabilidade a situação atual” (Instrumentum Laboris, 16). Estas significativas
palavras do Instrumentum Laboris do Sínodo para a Evangelização já apontam o rumo e
a procura de respostas ao desafio que, como Igreja, temos no mundo atual. É necessário
discernir o momento presente para responder ao novo chamado evangelizador que Deus
nos faz. “A Igreja é ciente. [...] evangelizar, constitui, realmente, a ventura e vocação
da própria Igreja, sua identidade mais profunda. Ela existe para evangelizar, quer
dizer, para pregar e ensinar, ser ducto do dom da graça, reconciliar os pecadores com
Deus, perpetuar o sacrifício de Cristo na Santa Missa, memorial da sua morte e
ressurreição gloriosa”. A Igreja permanece no mundo para continuar a missão
evangelizadora de Jesus, plenamente consciente de que, assim agindo, continua a
participar da condição divina porque, movida pelo Espírito a anunciar o Evangelho no
mundo, revive nela mesma a presença de Cristo ressuscitado que a vincula em
comunhão com Deus Pai” (Ib 27)
Assistimos a um processo irreversível que finca suas raízes na cidade secular. A
secularidade é o ambiente aonde não apenas se enfatiza a autonomia do homem e as
realidades terrenas, mas também o chão em que cresce a ausência de Deus, por vezes de
maneira alarmante. É fácil passar da secularidade ao secularismo, o que vem a significar
a expulsão da imagem de Deus e o simbolismo religioso da sociedade atual.
Diante de realidade tão volúvel as perguntas que, como a membros da Igreja,
emergem são: realmente, estamos evangelizando?; está a missão evangelizadora no
centro dos nossos interesses de cristãos?; o que deveria mudar a fim de anunciarmos a
boa notícia de Jesus com maior transparência?1
O mesmo Papa Bento XVI destacava o essencial com grande ênfase, quando
afirma que a fé surge do encontro pessoal com Cristo, e não de uma opção ética: “não
começamos a ser cristãos por uma decisão ética ou uma grande ideia, mas mediante o
encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá um novo horizonte para a
vida e, junto com isso, uma orientação decisiva...”2 Igualmente o Papa Francisco vem
insistindo nesta centraliadade, durante todo o Ano da Fé, tanto em suas alocuções e
homilias, como no documento Lumem Fidei, onde ressalta constantemente a dimensão
experiencial e viva da fé. Mas, sem dúvida nenhuma, os grandes retos e desafios com
que hoje o cristão se defronta ficaram suficientemente plasmados e ponderados na
Evangelii Gaudium. Aqui, ainda com maior veemência, descobrimos uma profunda
sintonia entre Francisco e Teresa, ao mesmo tempo em que emerge a viçosa atualidade
do carisma teresiano e a consequente responsabilidade e desafio que isso significa para
a família teresiana.
Uma das duas: ou recuperamos a experiência de Deus, do Deus verdadeiramente
Deus, ou então está a perigo o futuro da religião, pelo menos o futuro do cristianismo.
Não podemos ignorar que a origem tanto da crise sobre Deus como da crise sobre o
homem que sofre significativa parcela do mundo atual reside, em boa medida, na
forma medíocre e distorcida que os cristãos temos de conceber o homem e de
representarmos Deus, derivada, em tantas ocasiões, de uma evidente pobreza das
comunidades cristãs no vigor teologal, na vitalidade da nossa fé e na vivência do amor.

1
De fato, o Instrumentum Laboris da Nova Evangelização compreendia três capítulos bem significativos: o 1º
analisa a situação, o 2º fala do anúncio do Evangelho de Jesus Cristo, e o 3º da iniciação à experiência cristã.
2
Bento XVI, Deus caritas est, 1
O próprio K. Rahner o reconhecia num texto de apenas alguns anos atrás que
continua vigente e atual: “Sendo sinceros, no campo do espiritual somo, até extremos
alarmantes, uma Igreja sem vida. Onde é que se fala com línguas de fogo sobre Deus e o
seu amor?... Aonde é que na Igreja não apenas se ora, mas se experimenta a oração
como um dom pentecostal do Espírito, como graça sublime? Onde existe, muito acima
de qualquer perquirição (pesquisa) racional, uma mistagogia voltada à experiência viva
de Deus a partir do cerne da própria existência?”3. Frente à “Crise de Deus” só se pode
responder com a “Paixão por Deus”, como afirmara no seu dia J. B. Metz. Mas, onde
achar na Igreja a paixão por Deus? Como suscitá-la?
Teresa de Jesus perante a Nova Evangelização
É por demais conhecido que Teresa de Jesus foi mulher que amou profundamente
a Igreja, e zelou constantemente pelo crescimento espiritual dos seus membros ou, em
palavras dela, “procurar que esses poucos amigos de Deus fossem bons”. Teresa optou,
desde os primórdios, não tanto pela quantidade quanto pela qualidade.
Além do mais, ela sempre foi ciente da missão, bem como das dificuldades
enfrentadas pela Igreja no século XVI: os desafios da evangelização de novos mundos, a
educação e solicitude para com o povo, a divisão entre os cristãos, a carência de
“verdadeiros amigos de Deus” uma série de dificuldades nem sempre fáceis de serem
superadas. Teresa teve que encarar, nela própria e nos outros, uma realidade basilar
muito semelhante à nossa: a falta de vivência, de experiência da fé, e a mediocridade de
uma vida religiosa mais preocupada em assegurar a ortodoxia e defender seus direitos e
privilégios do que evangelizar, no sentido mais autêntico da palavra.
Monsenhor Rino Fisichella, citando a Bento XVI, sintetiza o grande desafio da
Nova Evangelização:
“No presente momento da história experimentamos a verdadeira
necessidade de homens que, a través de uma fé iluminada e vivida, tornem a
Deus digno de crença para o mundo... Sentimos a necessidade de seres humanos
com o olhar voltado para Deus, apreendendo dele a verdadeira humanidade.
Precisamos de seres humanos cujo intelecto seja iluminado pela luz de Deus e a
quem Deus abra o coração, de modo que o seu intelecto possa falar ao intelecto
dos outros e o seu coração possa abrir-se ao coração dos outros. Somente
mediante homens alcançados por Deus é que Deus pode retornar aos homens”
(Bento XVI)
A Nova Evangelização parte, pois, desde ponto: da credibilidade de nossa
vida de crentes e da nossa convicção de que a graça age e transforma até ao ponto
de converter o coração. O mundo atual experimenta uma profunda necessidade de
amor porque conhece, infelizmente, apenas seus grandes fracassos. Daqui nasce,
bem provável, o paradoxo que se descerra perante nossas vistas e que compele à
mente a refletir sobre o sentido de tamanha ação” (Rino Fisichella, Conferência na
Universidad Pontificia Bolivariana, 06 de fevereiro de 2011)4
Não é possível aproximarmo-nos de Teresa de Jesus, bem como de uma
mensagem válida para a nossa realidade desde o desafio da Nova Evangelização, desde

3
Cambio estructural en la Iglesia, Madrid, Cristiandad, 1974, 102-110
4
Fiz questão de destacar em negrito o que acredito seja, em definitivo, um dos objetivos que a Nova
Evangelização deva assumir, enquanto convite a retornar aos valores originais do Evangelho, e que encontramos,
amplamente desenvolvidos, em Teresa de Jesus.
o isolamento do momento que nos corresponde viver. Ressoa sempre em Teresa de
Jesus um profundo eco ligado à situação por ela vivida. Sua obra não surge isolada de
uma realidade difícil e problemática, principalmente a nível eclesial: lutas de religião,
massacres indiscriminados de indígenas, graves injustiças sociais, e o enorme desafio da
evangelização dos novos povos, bem como também daqueles “velhos”.
A obra de Teresa não pode ser entendida como um simples movimento de
Reforma ao interior de uma Ordem, mas como apoio real e efetivo à causa de Cristo.
Ela sempre faz questão de pô-lo em evidência. Quando funda São José recorda que o
seu propósito era fazer algo por Cristo, fazendo o que estava ao alcance das suas mãos,
que era viver os conselhos evangélicos da maneira mais perfeita possível. Palavras que
encontram uma ampla ressonância quando Teresa começa a escrever o Caminho de
Perfeição:
“Nesta época, chegaram a mim notícias sobre os danos e estragos causados
na França pelos luteranos, e sobre o grande crescimento que essa seita
experimentava. Isso me deixou muito pesarosa, e eu, como se pudesse fazer
alguma coisa ou tivesse alguma importância, chorava com o Senhor e Lhe
suplicava que corrigisse tanto mal. Eu tive a impressão de que daria mil vidas para
salvar uma só alma das muitas que ali se perdiam. E, vendo-me mulher, imperfeita
e impossibilitada de trabalhar como gostaria para servir ao Senhor, fui tomada
pela ânsia, que ainda está comigo, tendo Deus tantos inimigos e tão poucos
amigos, de que estes fossem bons. Decidi-me, então, o pouco que posso: seguir
os conselhos evangélicos com toda a perfeição e ver que essas poucas irmãs que
aqui estão fizessem o mesmo. Depositei a minha confiança na grande bondade do
Senhor, que nunca deixa de ajudar a quem se determina, por Ele, a abandonar
tudo...” (C 1,2)

A esta realidade, que evidencia o “caos religioso” que grassa por Europa,
acrescenta-se a realidade do Novo Continente, que avoluma em Teresa seus anseios
apostólicos:
Cerca de quatro anos depois, ou mais, recebi a visita de um franciscano, Frei
Alonso Maldonado, grande servo de Deus, movido pelos mesmos desejos meus
com relação ao bem das almas. Tive grande inveja dele ao ver que podia realiza-
los. Tendo chegado das Índias há pouco tempo, ele me contou que lá, por falta de
doutrina, perdiam-se muitas almas. Depois de nos fazer um sermão e prática, e de
nos estimular a fazer penitencia, partiu. Sobreveio-me uma profunda tristeza, e
fiquei quase fora de mim, diante da perdição de tantas almas. Recolhi-me a uma
capela e, coberta de lágrimas, clamei a Nosso Senhor, supliquei-Lhe que me
dessse recursos para salvar uma única alma, já que tantas o demônio levava. Pedi-
lhe que fortalecesse a minha oração, pois outra coisa não estava ao meu alcance.
Senti muita inveja dos que, por amor de Deus, podiam dedicar-se à salvação das
almas, mesmo em meio a mil mortes. Ao ler nas vidas dos santos as conversões
que eles fizeram, aumenta mais (Obs.: a edição OCD/Loyola traduz “muito”) a
minha devoção, ternura e inveja por esses feitos do que por todos os martírios que
suportaram. Deus me deu essa inclinação, já que, acredito eu, Ele valoriza mais o
esforço e oração para ganharmos para Ele uma alma, por sua misericórdia, do que
todos os outros serviços que Lhe possamos prestar” (F 1,7)
Estes dois textos, que marcam os principais acontecimentos de um panorama
eclesial e social característico do s. XVI, evidenciam o sentido profético e apostólico da
vocação de Teresa e, nela, a vocação da família a quem ela deu vida. Uma vocação
profundamente eclesial que, dadas as circunstâncias, ver-se-á compelida a procurar o
caminho mais autêntico para poder envolver-se em cheio pela re-evangelização de
Europa e na evangelização dos novos mundos.
E, qual é a nossa situação atual?
Acredito identificar, no âmbito da nossa sociedade global, alguns sintomas
evidentes que ameaçam na raiz a felicidade e a plenitude do ser humano, razão pela qual
se erguem como desafios para a mensagem de Teresa de Jesus hoje. Os problemas ou
situações que no fundo não fazem o homem feliz, acabam por conduzi-lo a uma
procura de algo mais autêntico, algo capaz de preencher esses espaços que a sociedade e
o ritmo de vida não são capazes de preencher e nem de satisfazer. Tal vez a “demanda”
daquilo que verdadeiramente sara ao homem e pode ajudar-lhe em sua vivência plena
seja hoje ainda muito tênue. Contudo, os sintomas acenam, cada vez mais, a um
despertar da espiritualidade do homem, perante a qual devemos estar preparados, ou
mais ainda, deveríamos antecipar-nos, a fim de que o homem encontre uma orientação
genuína para a sua sede e necessidade.
A sociedade moderna, devido ao fenômeno da globalização, vem-se configurando
universalmente sob uma série de parâmetros cada vez mais generalizados que
influenciam e marcam profundamente o modo de vida dos seres humanos, até mesmo
por cima dos grandes condicionantes culturais. A nível global, problemas como o
Racionalismo, o Pragmatismo, a era digital, o neocapitalismo, bem como as suas
consequências a todos os níveis: Banimento da vida interior, Crise da instituição
religiosa, Consumismo, e, no âmbito religioso, a gradativa presença da New Age, de
movimentos pseudomísticos e os grupos crescentes conservadores e fundamentalistas...
que levam a enfermidades cada vez mais estendidas nos países capitalistas, como são o
isolamento, a depressão, o estresse, o ativismo, a carência de sentido, o relativismo de
valores e da verdade, e, como contrapartida, a busca de certeza (fruto da imaturidade e
do infantilismo), as atitudes conservadoras, as posturas fundamentalistas da religião, a
ambiguidade e enganação religiosa entre as pessoas simples...
E tudo isto aponta para um problema mais profundo e que acaba sendo a raiz da
“infelicidade e insatisfação” do homem contemporâneo: a não aceitação de si mesmo,
o desconhecimento de si, de tudo quanto é a pessoa humana no seu âmago (com a
consequente perda da sua dignidade), tudo mascarado pelo narcisismo e egoísmo que
afastam a pessoa de si mesma e, por igual motivo, de Deus.
A grande luz que Teresa pode oferecer ao mundo de hoje, está centrada
principalmente sobre um tema que tudo envolve e tudo resolve: aquele de fomentar no
ser humano uma abertura à experiência de Deus.
Previamente ao questionamento sobre o tema da experiência de Deus em Teresa,
deveríamos formular-nos uma pergunta, ou perguntas, sobre a realidade atual, ao
mesmo tempo em que ela a nós concerne e ajuda-nos a perceber a atualidade da nossa
vocação teresiana. Consiste em posicionar-nos frente ao porquê da crise religiosa de
hoje. Ninguém duvida que toda experiência religiosa é vivida dentro de um contexto
histórico determinado, numa época concreta e numas circunstâncias peculiares. Por
muito elevada que for a experiência mística do crente, ela não o afasta da sua realidade
e nem lhe convida a afastar-se dela, a ignorá-la ou a fingir. É bem o contrário. Uma das
notas de autenticidade da mística é o “enraizamento na terra dos homens”, e o
compromisso com a transformação deles. Dentro dessa realidade, o místico é voz e
olhar profético, testemunha de plenitude, que ajuda a perceber a luz por trás da
escuridão, e infunde ânimo a quem cansa no caminhar.
O CARMELO DE TERESA PERANTE A NOVA EVANGELIZAÇÃO:
A base da problemática religiosa de hoje não é algo novo, embora se encarne em
realidades diferentes a través das diversas etapas da história. A própria Teresa de Jesus,
no seu processo espiritual, descobriu que o se verdadeiro problema (o pessoal, o eclesial
e o social) consistia em que tudo fora construído sobre o alicerce da mentira (a honra, a
idealização e egocentrismo da pessoa, a conceptualização de Deus). O seu itinerário
pessoal à procura da luz que, afirmamos, desemboca e inicia na sua conversão, tornou-
se possível após 20 anos de busca interior pelo caminho da oração. Até descobrir essa
mentira sobre a qual construíra a sua vida, e começar a firmar-se na verdade: verdade de
si mesma (conhecimento-miséria) e verdade de Deus (experiência-misericórdia).
Unicamente desde essa verdade acolhida, reconhecida e experimentada, começou o seu
processo de “determinada determinação”.
Necessidade de “amigos de Deus”
O Papa Francisco soube captar com precisão esta necessidade, que ele situa como
prólogo da sua Evengeli Gaudium: “Convido a cada cristão, em qualquer lugar e
situação em que se encontrar, a renovar agora mesmo o seu encontro pessoal com Jesus
Cristo” (EG 3)5
A preocupação de Teresa pela evangelização, entendida nas suas múltiplas
facetas, resulta algo evidente nela. Seus anseios e aspirações de salvar almas estão
intimamente ligados aos seus desejos de que na Igreja, frente a tantas necessidades e
situações difíceis, o mais urgente acabe sendo: “que pois Ele tem tantos inimigos e tão
poucos amigos, que estes sejam bons”. Frequentemente reduzimos o carisma teresiano
à oração, mas, no fundo, nela acaba revelando-se muito mais veemente o desejo
apostólico de que muitas pessoas venham a ser autênticos amigos de Deus. Eis onde
descobre Teresa um dos valores emergentes mais necessários e imprescindíveis, não
apenas visando que a sua oração de intercessão seja eficaz, mas, antes, pretendendo que
tantos outros, especialmente aqueles que são ministros da Igreja, tornem-se
autênticos amigos de Deus.
Teresa está bem ciente das dificuldades reais da sua época. E por isso clama ao
Senhor dizendo: “Não permitais, Senhor, mais prejuízos para a Cristiandade. Iluminai
estas trevas” (C 3,9)
Mas também é consciente dos desafios fundamentais, e é por isso que os leva
sempre presentes no coração da sua oração e da oração do Carmelo:
Ó irmãs minhas em Cristo! Ajudai-me a suplicar isso ao Senhor, pois foi
com esse fim que Ele vos reuniu aqui. Essa é a vossa vocação; esses devem ser os
vossos cuidados e os vossos desejos; empregai aqui as vossas lágrimas e para isso
dirigi os vossos pedidos Não cuideis, pois, irmãs minhas, dos negócios do
mundo... O mundo está sendo tomado pelo fogo; querem voltar a condenar Cristo,
como se diz, pois se levantam mil testemunhos falsos, pretendendo derrubar a sua

5
Outros lugares da exortação do Papa Francisco onde se destaca a centralidade deste tema: 89, 91, 120-121, 151,
154
Igreja. E vamos perder o tempo em súplicas que, se fossem ouvidas por Deus,
talvez levassem a se perder mais uma alma no céu? Não minhas irmãs; não é hora
de tratar com Deus de coisas pouco importantes” (C 1,5)
E os negócios importantes são:
“... temos que pedir a Deus que neste castelinho, onda já temos bons
cristãos, nenhum se passe para o lado adversário, e que os capitães deste castelo
ou cidade, ou seja, os pregadores e teólogos, se tornem notáveis no caminho do
Senhor. E, como a maioria deles pertence às ordens religiosas, suplicai que
progridam em sua perfeição e vocação, o que é muito necessário, visto que o que
nos há de valer, como tenho dito, é o braço eclesiástico, e não o secular. Como
nenhuma importância temos nem para um nem para outro na defesa do nosso Rei,
procuremos ser de tal maneira que as nossas orações possam ajudar esses servos
de Deus que com tanto trabalho se fortaleceram com o conhecimento e com uma
vida santa, empenhando-se agora em ajudar o Senhor” (C 3,2)
Teresa é consciente, bem ciente, das dificuldades que a Igreja enfrenta na sua
missão. E por isso mesmo sabe que não é questão apenas de que alguém ore por ele (os
“capitães”), que os apoie desde a comunhão em Deus, mas que os próprios membros da
Igreja devem estabelecer um novo dinamismo de vida desde a sua relação com Deus:
“porque, se não agirem assim, sequer vão merecer o nome de comandantes;
nem permita o Senhor que saiam de suas celas nessas condições, pois provocarão
mais danos do que benefícios. Este não é o momento de se perceberem
imperfeições em pessoas que devem ensinar. Se não estiverem interiormente
fortalecidos em compreender como é importante ter todas as coisas sob os pés,
desapegando-se delas e voltando-se para as coisas eternas, por mais que o queiram
encobrir, eles o deixarão transparecer. Isso assim é porque eles tratam com as
pessoas do mundo. Tende certeza: o mundo nada lhes perdoa, nem deixa de
perceber qualquer imperfeição sua. De muitas coisas boas não se dará conta,
chegando até a não considera-las como tais; quanto às faltas ou imperfeições, sem
dúvida não as deixará passar” (C 3,3-4)
A oração de Teresa não é uma mera ficção. Ela sabe que o seu pedido deve
repercutir em uma transformação de vida daqueles que oram e por quem ela ora e,
sem tal mudança, dificilmente o resultado será positivo:
“Eu vos peço que procureis agir de um modo que nos faça merecer alcançar
de Deus estas duas coisas: a primeira é que, dentre os muitos eruditos e religiosos,
haja muitos com as qualidades necessárias para isso, como tenho dito, e que o
Senhor anime os que não estão muito dispostos, já que um perfeito fará muito
mais do que muitos que não o sejam. A outra é que o Senhor os sustente, uma vez
que estejam na batalha que, repito, não é pequena, para que eles possam livrar-se
dos inúmeros perigos que há no mundo...” (C 3,5)
“...muito mais fará um perfeito que muitos que não o sejam”... Teresa aposta
pela qualidade de vida. Porém convém perguntarmo-nos em que consiste para Teresa
essa perfeição, essas “qualidades necessárias”.
Certamente o grande desejo de Teresa, desde a sua experiência pessoal, é que no
sacerdote se concentrem convenientemente a virtude, a piedade e as letras (erudição).
Sua experiência faz com que ela incida nestes aspectos como sendo suma importância:
ela sabe que “eruditos pela metade” sempre acabaram sendo m obstáculo no seu
caminho de seguimento e de oração. O próprio João da Cruz chega a designar estes tais
prelados como “cegos da alma”, porque não conhecem os caminhos do espírito, e
estorvam, com a sua “ignorância”, que tantos atinjam os bens da união com Deus.
Para além do perfil do sacerdote, interessa-nos, no entanto, destacar aqueles
elementos que, segundo o pensamento de Teresa, não devem faltar tanto nos cristãos
quanto nos seus pastores. Elemento que podemos resumir em sua expressão “amigos de
Deus”. A própria experiência pessoal levou a Teresa a viver na própria carne o quanto a
ausência de autenticidade na relação de amizade é que impediu, por longos anos, viver a
autenticidade e a plenitude do seu ser cristã. Sua descoberta, o seu tesouro, que não
canse de proclamar em seus escritos, e haver-se encontrado com um Deus próximo,
misericordioso e amigo. Um Deus que está à espera de que “acolhamos” tantos dons
como ele nos oferece; um Deus que em Cristo norteia todo a autêntico seguimento.
Anunciadores da Boa Notícia: a misericórdia de Deus.
Quando Teresa escreve a sua autobiografia, o Livro da Vida, tem o intuito de
vários objetivos: proclamar o rosto do Deus da misericórdia, defender a centralidade de
uma autêntica oração na vida cristã e estimular (açular) o gosto por ela, quer dizer, que
os outros também se encorajem a percorrer este caminho experiencial. Três objetivos
que surgiram desde a sua experiência de Deus e desde o seu chamado a iniciar o
Carmelo Descalço, Objetivos que, no fundo, formam parte dessa missão carismática que
Teresa recebe e transmite. A experiência da misericórdia de Deus é fundante na vida de
Teresa, é o início da sua conversão após quase 20 anos de vida religiosa embaçada pelo
falso conceito do Deus Juiz, a quem ela devia pagar tributo, como se ela fosse a
protagonista, aquela que pudesse “pagar o que era preciso” para alcançar o prêmio.
Descobrir o Deus das Misericórdias significa para Teresa encontrar e aceitar a verdade
de Deus. De um Deus capaz de transformar desde dentro, de um Deus que já nos dera
tudo no seu Filho, de um Deus gratuidade, que unicamente admite a resposta desde a
gratuidade. Daqui surge a “vida nova”, a “nova mulher” (cf V 23,1) que se torna
consciente das grandes riquezas que Deus tem-lhe oferecido, muito embora a sua
infidelidade e pecado (cf V 4,3). Como o próprio João da Cruz afirma, Deus não é
conquistado, “embora façam extremos”, senão com só o amor (Cf CB, 32,1)
Desde este momento Teresa vive convicta de que o grande anúncio que deve
fazer, a Boa Notícia que deve proclamar a todos os homens consiste em que eles
conheçam e descubram o amor de Deus. E ela apresenta-se como testemunha para que
“se animem todos a contentar Sua Majestade” (V 37,1)
Quando escreve o Caminho de Perfeição, apesar de reportar-se diretamente ao
grupo de Monjas de São José, modela taxativamente sua visão do que significa o
seguimento de Cristo, não apenas como chave de vida para as monjas, mas para todo
cristão. Não só modela um ideal de vida centrado na oração, mas pretende incutir nas
suas monjas a convicção de que não será um exercício de oração o que dará sentido às
suas vidas, e nem mesmo a sua austeridade ou penitência, mas sim a vivência dos
valores nucleares que constituem o seguimento de Cristo. E a tal escopo dedica mais da
metade do livro, antes de começar a falar da prática da oração: amor de uns pelos
outros, desapego, humildade. Virtudes que na mente de Teresa representam os
conselhos evangélicos nos seus valores centrais: pobreza = desapego; amor = castidade;
humildade = obediência. Este escrito teresiano já foi definido como o “evangelho de
Teresa”, no sentido de ser anúncio do Deus de Jesus Cristo e caminho para viver o
seguimento.
Faço estas referências porque ai ficam profundamente plasmados os grandes
temas sobre os que Teresa se debruçou no seu tempo, os mesmos aos que hoje somos
por ela convidados para revitalizar nossas vidas sacerdotais e enfrentar com otimismo o
desafio da Nova Evangelização: ousar avançar pelo caminho da amizade com Deus, a
fim de que, achando o Deus amigo, possamos dar testemunho dEle diante dos irmãos,
“homens necessitados de amor”. Sem dúvida que este é um dos temas que com maior
vigor e constância comparece na doutrina transmitida pelo Papa Francisco6
Permanecer em Jesus
Como haveremos de ser os cristãos, segundo a mente de Teresa? Uma resposta do
essencial, como foi expressado com nitidez pelo Papa Bento XVI no Regina Coeli do
domingo 06 de maio de 2012:
Como discípulos, também nos... crescemos na vinha do Senhor vinculados
pelo seu amor. “Se o fruto que devemos dar é o amor, o seu pressuposto é
justamente este “permanecer” que tem tudo a ver profundamente com aquela fé
que não abandona o Senhor” (Gesù di Nazaret, Milano 2007,305). Virou
indispensável permanecer sempre unidos com Jesus, depender dele, porque sem
Ele nada podemos fazer (cf Jo 15,5). ... Queridos amigos, cada um de nos é como
um ramo que vive unicamente fazendo crescer a cada dia na oração, nos
sacramentos e na caridade, a sua união com o Senhor. E aquele que ama Jesus,
a videira verdadeira, produz frutos de fé por uma abundante colheita espiritual.
Supliquemos à Mãe de Deus para permanecermos solidamente ancorados em
Jesus e para que todas as nossas ações tenham nele o seu início e a sua plenitude”
(Regina Coeli, Bento XVI, domingo 06 de maio 2012)
O Evangelho, Santa Teresa, Bento XVI e o Papa Francisco coincidem no mesmo,
e nos dão a pauta: “permanecer nele”; essa é a chave, a única chave válida do sentido e
do valor da nossa vocação carmelitana e da missão que nos é encomendada. Neste
sentido, ninguém melhor que Teresa sobe traçar e mostrar o caminho da “amizade com
Cristo”. Na mente de Teresa o carmelita é o “amigo de Cristo” por excelência, aquele
que age em seu nome e prolonga sacramentalmente a sua presença. Aquele que está
chamado a ser transparência (visibilidade) de Cristo para os homens, porque o
carmelita, o “amigo e discípulo de Jesus”, não age em nome próprio, mas em nome de
Jesus, e isto implica uma grave responsabilidade de comunhão-união com Ele. Também
o Papa Francisconão cessa de insistir neste tema7
Acredito, sinceramente, que Teresa de Jesus pode jogar um papel de suma
importância neste projeto da Nova Evangelização. Porém, só se for escutada, e bem
escutada (superando a visão reducionista), especialmente como Mestra no caminho para
a “amizade com Cristo”.
Oração como estilo de vida
Salientava antes, que Teresa não se propõe apenas fundar um estilo de vida sobre
a oração, mas fazer da oração um estilo de vida. Porque para ela, a oração vai muito
além de uma simples prática: é o espaço para criar uma relação de amizade nada menos
que com Deus. Uma relação chamada a tudo penetrar na vida, a fazer com que tudo seja
vivido desde essa consciência da Presença, mas que simultaneamente encharque dessa

6
Alguns dos lugares mais significativos na Evangeli Gaudium: 3,11,37,39,43,112
7
Cf, EG 11,12,20,88,278
presença tudo o que é feito. Trata-se de criar o espaço, na própria vida, para o encontro,
algo parecido com o espaço de vida dos discípulos em torno a Jesus.
O objetivo, não esqueçamos, é servir Cristo. Isso implica em que Cristo venha a
ser, realmente, o centro da vida: “não prescindamos de tão bom Mestre”, destaca
Teresa. Não se trata nem sequer de um bom exercício meditativo, se bem que Teresa
nos convida a exercitar-nos nele. Trata-se de que experimentemos a “sede” de que a
nossa vida, e por isso mesmo a nossa consagração, necessitam alimentar-se diretamente
da Fonte. Mas a Fonte não se encontra apenas na intimidade, mas nos caminhos e, de
um modo todo especial, no exercício da caridade. Para Teresa “as obras” acabam sendo
a verdadeira demonstração de uma vida em comunhão: “Pois isto é oração, filhas
minhas; para isto serve este matrimônio espiritual: para fazer nascer obras, sempre
obras” (7M 4,6)8. E tudo isto como fruto do seu compromisso com a pessoa, cuja
necessidade está sempre acima do “sábado”. É o evangelho do Samaritano, capaz de
reconhecer quem é o seu próximo porque encontrou-se verdadeiramente com Deus.
Teresa de Jesus não nos oferece um método sistemático, simplesmente nos
convida a que nos descubramos olhados, amados: só o amor desperta o amor. Porque é
justamente de aqui que surgirá para Teresa a emergência fundamental do seu anúncio:
cantar as misericórdias do Senhor, anunciar a todos quem é verdadeiramente este
Senhor amoroso, para que todos sintam-se animados a procura-lo e servi-lo (cf. V 18,8)
Antes já acenei para o mesmo, porém convém repeti-lo novamente. Não lhe
preocupa a Teresa que seus pecados sejam de conhecimento público (V 4,3): o
verdadeiramente importante de sua palavra é que aflore o Rosto do Deus Abba-Pai.
Quando Teresa escreve experimenta essa urgência, certamente motivada porque ela
mesma viveu longos anos sem conhecer Deus, achando que Deus o único que aguardava
era o sacrifício da sua vida como ressarcimento dos seus pecados... Porém Deus queria
presenteá-la, “Deus não se cansa de dar”, aliás, Deus castigava seu pecado e
infidelidade com maiores manifestações de amor. Por isso clama que “nunca
desesperem e nem deixem de confiar na grandeza de Deus” (V 19,3)... E quando Teresa
aceita Deus assim, tal e como Ele é, cedendo-lhe todo o protagonismo desde a
gratuidade, deixa de ser ela a protagonista para começar a viver também desde a
gratuidade daquele infinito dom que não fora capaz de ver e nem de querer receber.
O anúncio do Deus Amor, não desde a palavra, mas pelo testemunho de uma vida,
acaba sendo a outra grande mensagem que Teresa transmite-nos hoje e sempre. Teresa,
no seu tempo, dizia com gracejo contra aquele tipo de convivência de uma fé mais
condicionada pelos medos e temores dos “demônios” do que pelo amor de Deus (ainda
hoje continuam existindo muitos temores e mais anúncios de calamidades do que de
esperança):
“Não entendo esses medos. Por que dizer: “demônio! demônio!” quando se
pode dizer “Deus! Deus!” – fazendo tremer o demônio? Sim, pois já sabemos que
o demônio não pode sequer mover-se se o Senhor não lhe permitir. Que digo?

8
Cfr. 5M 3,11: Quando vejo algumas pessoas muito diligentes em compreender a oração que têm e muito
empertigadas quando estão nela (a tal ponto que não ousam mexer-se nem agir com o pensamento, a fim de não
perderem um pouquinho do gosto e da devoção que tiveram), percebo quão pouco entendem do caminho por
onde se alcança a união. E pensam que nisso reside o essencial. Não irmãs, não; o Senhor quer obras. Se vedes
uma enferma a quem podeis dar algum alívio, não vos importeis em perder essa devoção e tende compaixão
dela. Se ela sente alguma dor, doa-vos como se a sentísseis vós. E se for necessário, jejuai para que ela coma;
não tanto por ela, mas porque sabeis que o vosso Senhor deseja isso. Esta é a verdadeira união com a vontade de
Deus....”
Sem dúvida, tenho mais medo dos que temem muito o demônio do que dele
mesmo; porque ele não me pode fazer nada, ao passo que aqueles, especialmente
se são confessores, trazem muita inquietação...” (V 25,22)
Deixemos a Deus ser Deus. O Ressuscitado, o que já venceu a morte e o pecado, o
que triunfou sobre a história. Aparelhemo-nos com o otimismo do Deus Amor.
Evangelizar é sempre anunciar a “boa notícia”, assim como fez Cristo e fez Teresa
como os homens do seu tempo: “Recordem-se de suas palavras e vejam o que Ele fez
comigo: embora eu me cansasse de ofendê-lo sua Majestade nunca deixou de perdoar-
me” (V 19,15)9
Recuperar a dignidade do ser humano no mistério do Amor de Deus
Santa Teresa, enquanto profunda conhecedora do interior do ser humano, é uma
radiante admiradora do homem, e por isso reclamada da inconsciência em que tantas
vezes vivemos: “Não é pequena lástima e confusão que, por nossa culpa, não nos
entendamos a nós mesmos nem saibamos quem somos” (1M 1,2). Todavia, nada há que
lhe faça recuar em sua profunda convicção: “Basta que sua Majestade diga que o fez à
sua imagem para que possamos entender a grande dignidade e formosura da alma”
(1M 1,1)
É oportuno ora recordar que o amor de Deus é gratuito. Ele não nos ama porque
tenhamos uma viva consciência da sua presença; ou porque sejamos particularmente
bons, Particularmente virtuosos, particularmente meritórios; ou porque sejamos, de
alguma maneira, úteis ou necessários para Ele. Deus nos ama não porque nós sejamos
bons, mas porque Ele é bom. Ele nos ama embora não tenhamos nada para lhe
oferecer... ama-nos ainda que nada tivéssemos digno de ser amada10. Este amor de Deus
torna o homem digno de confiança. Desde continua sendo fiel e o homem permanece
sua imagem e semelhança. Por isso, o lugar mais natural onde se acende “a paixão por
Deus” é o coração humano. Daí a urgência de confiar na capacidade e possibilidade do
homem para viver a experiência mística. E o lugar onde o homem se encontra
verdadeiramente com Deus não é a igreja, o trabalho, ou diante do Sacrário. O
verdadeiro encontro acontece no seu íntimo mais profundo (testemunhas são Agostinho,
Teresa, João...)
Poucos autores como nossos místicos, Teresa e João, chegaram a uma
compreensão tão profunda da dignidade infinita do ser humano. Certamente, somos
fracas criaturas, pecadores, miseráveis... porém isso não esgota nem o ser e nem a
compreensão do que verdadeiramente somos.
A visão que sobre o ser humano apresenta Teresa é algo fundamental frente à
Nova Evangelização11. O fato de ressaltar exclusivamente o que é negativo nos torna
pessimistas, incapazes e descrentes de que a felicidade seja possível.
De fato, se atentamos ao Livro das Moradas (e como vimos na conferência
anterior), o ponto de partida proposto por Teresa já não é mais o homem pecador, mas o
homem que abre os olhos à sua verdadeira dignidade: “um castelo todo de diamante ou
de cristal muito claro”. Imagem que carrega no seu bojo uma força fantástica. O
diamante permanece diamante muito embora a sujeira que possa ter sobre ele. Não
perde nem o seu brilho e nem a sua consistência. Mas para poder reconhê-la (a

9
Cf EG 8, 73-74, 78-82, 165, 259, 262, 264, 281
10
Cf. J. RATZINGER, Ser Cristiano, Bilbao, DDB 2005, 64
11
Cf. EG 444, 71, 104
dignidade) é necessário ultrapassar as barreiras da poeira e da sujeira que foram se
acumulando. E assim propunha Teresa o processo espiritual orientado à plenitude:
começar a reconhecer o que somos, para deixarmos de ser esses “animais” que não
conhecem os tesouros e nem as riquezas que habitam seu interior e que formam parte do
seu ser.
Só desde a convicção daquilo que eu sou é que poderei lançar-me a um caminho
marado pela grandeza e pela beleza. E só desse jeito poderei abrir-me experiencialmente
para reconhecer a grandeza dos outros.
A importância que Teresa atribui ao “conhecimento de si” firma-se, justamente,
nisto. Não se trata de um mero processo psicológico, se bem que, neste sentido, Teresa é
ratificada por todas as escolas psicológicas e humanistas atuais ao ressaltarem a
importância basilar deste aspecto na construção da plenitude e felicidade da pessoa.
Para Teresa é algo muito maior: trata-se do caminho que nos abre ao reconhecimento do
nosso ser criado. Nascido do amor de Deus, e onde descobrimos a radicalidade profunda
e infinita de esse amor que nos cria como o “tu correspondente” dele (imagem e
semelhança), mas que também se antecipa à nossa fé. Ninguém, a não ser Deus, tem a
sua fé depositada no homem, uma confiança inabalável, atestada no fato de fazer sua
morada em nós e não afastando-se nunca do homem. Não apenas Deus nos amou
primeiro, senão que nossa fé torna-se possível pelo fato de Deus acreditar no homem,
Deus confia em mim. Sem dúvida um mistério que nos supera, mas do qual Teresa quer
convencer –nos, porque é desse jeito que realmente somos de Deus. Esse Deus que
espera pacientemente por nós, que nunca desespera e nem deixa de confiar em que, um
dia, nos aperceberemos de tudo quanto Ele nos oferece, sem precisarmos procura-lo
como uma esmola por outros lugares.
Deste modo poderemos compreender melhor a K. Rahner quando afirma que a
dimensão mística forma parte essencial da dinâmica interior do ser humano e que, de
diversa maneira e com diversa linguagem, sempre será exigida e procurada pelo homem
de todos os tempos: “ dentro de todo homem existe algo assim como uma, quando
menos anônima, confusa, reprimida experiência fundamental de um reclamo a Deus
(nascida do próprio ser do espírito e da graça da autodoação de Deus oferecida sempre a
todo homem). Esta experiência fundamental é constitutiva do homem em sua concreta
composição (de natureza e graça). E esta experiência é “mística”12. O homem é capaz de
Deus. E Deus se deixa experimentar no seu interior. Forma parte, segundo os nossos
místicos, da nossa natureza humana. Daqui a importância radical da humanidade de
Cristo e da nossa humanidade: não somos anjos, mas homens”.
Concluindo
Se eu tivesse que sintetizar em breves palavras o que significa para Teresa a Nova
Evangelização e, por isso mesmo, a missão à qual hoje o Carmelo é chamado, seria
suficiente dizer: precisamos aprender a descobrir-nos amados por Deus, porque ai finca
suas raízes a novidade do Evangelho anunciado por Jesus, e experimentado e vivido
profundamente por Teresa. Ser capazes de suscitar esta experiência nos outros, deveria
ser o motivo, a razão e a missão do ser hoje do Carmelo no mundo. Essa é a tarefa à
qual dedicaram sua vida, sem trégua, nossos fundadores, Teresa e João.

12
K. RAHNER, La experiencia personal de Dios más apremiante que nunca, en Revista de Espiritualidad 29
(1970) 312
Só o amor é capaz de transformar as vidas a começar pela nossa. E só o encontro
com “aquele que sabemos nos ama” pode transformar nosso coração e o dos outros,
dando-nos a chance de descobrir que, unicamente nesta dinâmica - e não por outras vias
– será possível re-evangelizar, primeiro a nós mesmos e depois os outros... Outros
caminhos, e aí está a história a evidenciá-lo, poderão tal vez sobreviver, porém nunca
expressarão a mensagem última e central do Evangelho” “quem permanece em mim,
permanece no meu amor”, e “nisto conhecerão que sois os meus discípulos”.
Incontestável para Teresa, ao ponto de assegurar às suas monjas que se vier a faltar este
amor fraternal de umas para com as outras, acreditem que expulsaram o esposo de casa.
Não há alternativa. Orar, sim, orar muito: porém oração-relação, oração que nos
encaminhe a um autêntico e pessoal encontro com Cristo e com os outros. Só ele pode
dar-nos a vida: nós somos os ramos.
Porque a identidade do cristão só pode alicerçar-se numa relação pessoal com
Cristo, que o transforma em testemunha do amor de Deus, e o anuncia com sua vida.
Aí deita suas raízes, ainda, a consciência inequívoca de que o ser humano goza de
uma dignidade recebida como um presente, constitutiva da sua natureza mais
primordial, mas que só em Deus encontra a sua origem e compreensão.

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