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OS SENHORES DO LITORAL Conquista Portuguesa e Agonia Tupinambé no Litoral Brasileiro MARIO MAESTRI Editora da Universidade em ede ot dB © de Mario Maestri If edigao: 1994 Direitos reservados desta edigdo: Universidade Federal do Rio Grande do Sul Capa e planejamento grafico: Carla Luzzatto Editorapdo : Geraldo F. Huff ‘Revisdo: Maria da Graca Storti Féres ‘Anajara Carbonell Closs Marll de Jesus Rodrigues dos Santos Administragdo: Silvia Maria Secrieru Mézlo Macstrl doulorou-se pela Universit Cathoigue de Lourain, na Belgica, Letonow na [Unlveraidade de Ro Grande eos curaoa de pos-graduaeao cm Matis da Onivercidade Federal do Rio {de Janeiro e da Pontiicia Universidade Catollca do fo Grande do Sul- Dedlea-se a0 estudo da historia ido Brasil e da escravidao colonial. Publicou, entre outros: O escravo dalicho: resistencia e trabalfia (2 ed, Porto Alegre: ba. Unlversidade/UPRGS, 1953) Lo Schiavo eoloriale: lvoro# resistersa nel Hrasile ‘schiavista (Palermo: Sellerio, 1989); ‘au Brésil (Paris: Karthala, 1992); Storia del Bresile iano: Kenia: TO0i}"# professor histhra do Bras na Uveratiace Federal do Rls Grades Sal M1865 Maestri, Mario Os senhores do Iitoral: conguista RB a © agonia Tupinamba no litoral aslo / Matio Maest = Porto alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1994 1. Historia do Brasil - Conquista portu- guesa. 2. Historia do Brasil - Eseravizagao “Tupinambés. I. Titulo. cDu 981.01 ‘Catalogagao na publicagio: Méniea Ballejo Canto, CRB 10/1028 : i | Capitulo 6 Tupinambas Os senhores do litoral ara tragarmos o perfil das sociedades que ha- bitavam a costa no inicio do Quinhentos, possuimos a documentagao escrita ¢ os registros arqueolégicos. Sao abundantes ¢ ricas as descrigdes de europeus que visitaram ou viveram no litoral naqueles recua- dos tempos. Entretanto, tais relatos colocam alguns problemas metodolégicos. Muitas vezes, eles sto imprecisos e, jamais, ‘neutros’. Bom exemplo é 2 tendéncia a superestimagao dos dados quantitativos quinhentistas - demograficos e outros -. Se aceita- mos acriticamente estes mimeros, terfamos até “doze mil” tupinambés, que podiam viver até 180 anos, caminhariam, “em fila por um”, 3.300 quil metros “para atacar scus inimigos”"! O que sugeriria uma fila indiana de uns 11 km! (FERNANDES, 1948: 89, 100.) Por outro lado, devido ao desenvolvimento ur- bano e industrial de boa parte da faixa litordnea ¢ sobretudo aos poucos recursos alocados pelas autori- dades culturais, si poucos os levantamentos ar- quedlogicos sobre estas regides. ‘As primeira descrigdes das comunidades da costa que chegaram até nés devem-se a Améri- co Vespiicio, que ali esteve, em 1499-1500, € a ‘membros da frota cabralina. Como vimos, em 1°. de maio de 1500, Pero Vaz de Caminha, escolhi- do como escrivao da feitoria de Calecute, relata- va adom Manuel I, em uma longa carta, entre outras novidades, que os brasis eram gordos, saudaveis, de fisionomia ¢ corpos bem-feitos. De cor avermelha- da, andavam inocentemente nus ¢ enfeitavam-se com penas. Furavam 0 lébio inferior onde introdu- ziam pedras. O escrivao - que no retornaria a Portu- gal - dedicou palavras elogiosas e algo sensuais as americanas, que retratou como belas e jovens mulhe- res de longas cabeleiras negras. (CAMINHA, 1983: 247, 250) Com o passar dos anos, esta visio inocente € superficial foi substituida por anilises e classifica- es sistematicas e crescentemente preconceituosas das comunidades do litoral. Uma curiosidade ‘etno- grafica’ com claros objetivos pragmaticos. Em boa parte, a sobrevivéncia dos colonos dependia da capa- cidade de estabelecerem aliangas com os povos da costa e inserirem-se nas disputas em curso entre eles. Como assinalamos, em relagdo a pobreza docu- mental geral do Quinhentos, so abundantes os rela- tos sobre as populagdes litordneas. Nesta literatura, & medida que cresciam os antagonismos entre colo- 4 fos e natives, os “*bem feitos” brasis ¢ as “bem mogas” americanas metamorfoseavam-se em seres “selvagens” e “antropéfagos”. Sao dos séculos 16 e 17, entre outros escritos, as cartas, de 1501 e 1504, de Américo Vesplicio referentes ao Brasil; a carta de Pero Vaz de Caminha (cerea 1450 - 1500), de 1500; as breves anotagdes sobre o litoral da América do Sul, de 1519, de Ant6- nio de Pigafetta (1491-1534), sobrevivente da ex, digo de Fernéo de Magalhaes; as obras do francis- cano, viajante ¢ gedgrafo francés André Thevet (1502-1392), As singularidades da Franca Antérti- ca, de 1558, ¢ Cosmografia universal, de 1575; as ‘obras de Pero de Magalhaes de Gandavo, Historia da Provincia de Santa Cruz, editada em 1576, © Tratados da Terra do Brasil, editado em 1826. Rica informagdo fornece o relato Duas Via- gens ao Brasil, do mercenério alemao Hans Staden (1526-2), editado em 1557; 0 belissimo livro do cal- ta francés, Jean de Léry (1534-1611), Viagem & Terra do Brasil, publicado em 1578; os tés traba- thos do jesuita Femao Cardim (cerca 1540-1625) - Tratados da terra e gente do Brasil -, escritos, & crivel, em 1584, e editados, parcialmente, por pri- meira vez, em inglés, em 1625. De grande importin- cia sio o trabalho de Gabriel Soares de Sousa (cerca 1540-1591), Noticia do Brasil, escrito talvez em 1587 e publicado, por primeira vez, no inicio do século 19; 0 livro Didlogos das grandezas do Brasil presumivelmente de Ambrésio Fernandes Bran- dao, composto em 1618 ¢ impresso em fins do sécu- 1019. MIGRAGOES AMERICANAS, Destacam-se também as obras dos capuchi- hos franceses Claude d’ Abbeville (? - 1616/32) € ‘Yves d’ Evreux (cerca 1577-cerca 1620), que estive- ram no Brasil quando da fundagao da colénia france- sa do Maranhdo, em 1612-5; a abundante € minucio- sa correspondéncia dos jesuitas, que comegaram a a chegar ao Brasil a partir de 1549; a Histéria do Brasil, do Frei Vicente do Salvador (1564-1636/9), escrita em 1627 e publicada nos iltimos anos do século 19, e a Cronica da Companhia de Jesus, do jesuita Simao de Vasconcelos (1597-1671), publica- da, por primeira vez, em 1658. De grande ajuda na compreensio ¢ interpretagiio da documentacao qui nhentista sio os estudos etnograficos ¢ antropol6gi- cos sobre comunidades nativas contemporéneas, so- bretudo quando se referem a comunidades tupi-gua- ranis. Comunidades de lingua tupi-guarani, que se teriam separado do tronco linguistico Macrotupi, “talvez em algum lugar entre o Madeira e o Xingu”, teriam conhecido uma verdadeira explosio expan- sionista, hé 2 ou 3 mil anos, na Amaz6nia Central Esta forte tendéncia expansionista esteve possivel- mente ligada 20 dominio da agricultura. (URBAN, 1992:92,) A cultura tupi-guarani, como vimos, se as- sentava em um complexo econdmico baseado na caga, na pesca, na coleta, na cerémica e, sobretudo, numa horticultura de floresta tropical e subtropical ‘que explorava a mandioca (Manihot utilissima), era primeiro lugar, o milho (Zea mays), os feijées (Pha- seolus e Canavalia) ¢ as batatas-doces (Ipomoea batatas) secundariamente. (ABBEVILLE, 1975: 242: GALVAO, 1963: 121; THEVET, 1978: 89, 95 1983; 1953: 76 43, 51) Os tupinambas cultivavam, também, entre ‘outros géneros vegetais, os carés (Dioscoréa sp), 0S amendoins (Arachis hypogaea), as abdboras (Cur- cubita), as bananas, 0s abacaxis, 0 tabaco, 0 algodao ¢¢ as pimentas. (METRAUX, 1928: 67; GALVAO, 1963: 121, A antropofagia e a agressividade militar eram elementos constitutivos importantes desta tradi¢ao cultural. Organizados em coesas unidades produtivas € militares - as malokas ¢ a taba -, os tupi-guaranis partiram do bergo amazénico e evoluiram ao longo das varzeas dos grandes rios, ocupando os quentes € ‘imidos vales fluviais. Este ecossistema - as galerias florestais fluviais - permitia uma horticultura que desconhecia a adubacdo sistematica ¢ os instrumen- tos de ferro. Uma comunidade tupi-guarani de trés ou quatro centenas de membros necessitaria de um espago econémico de subsisténcia de aproximada- mente 45 km. Em algumas Tegies ricas em recursos naturais, apenas alguns quil6metros separavam uma aldeia de outra. (FERNANDES, 1970: 55) Os jesuitas registraram que os tupinambés, que viviam de 120 a 240 km distantes, permaneciam “em guerra, uns com os outros”. (LEITE, 1956: 136, 227, © braco guarani desta cultura avangou pelo vale do Amazonas em dirego da cordilheira dos ‘Andes. Seguindo os curso dos rios Madeira, Guapo- 16, Purus e Paraguai, orientou-se para o sul, estabele- ccendo-se ao longo deste trajeto e no Brasil meridio- nal. O braco tupi/tupinamba chegou, mais tarde, na foz do rio Amazonas e progrediu rapidamente para 0 sul, através do litoral, expulsando dali as comunida- des de cagadores e coletores menos aparelhadas que encontrou. Naquele entio, a Mata Atlantica cobria, com pequenas interrupgSes, as planicies litordneas ¢ as encostas dos planaltos brasileiros. Esta faixa cos- teira - de clima ameno, propria a agricultura e & coleta (fungos, raizes, frutos, seivas, pequenos ani- mais, larvas, etc), rica em caga e pesca (peixes, ma- riscos, crustéiceos, etc.) - estende-se, a0 longo do litoral, com uma largura média de 200 quilémetros. Antes mesmo da chegada dos portugueses, o litoral brasilico era ferreamente disputado pelas eo- munidades nativas, de mesma ou de diferentes ori- gens culturais. As comunidades tupinambés viviam um processo de crescimento demografico e pratiea- ‘vam uma economia de ““ocupagao destrutiva” (FER- ANDES. 1970:55,) As baixas temperaturas do Planal- to Central ¢ a impropriedade das terras do interior a uma horticultura que desconhecia a metalurgia do ferro determinavam que, muitas vezes, a sobrevivén- cia dos préprios grupos humanos involuerados nos combates dependesse do resultado desta disputa ter- ritorial. Perdendo 0 dominio de uma parcela do pi Vilegiado habitat, estas comunidades podiam entrar em acelerada decadéncia, Segundo 0 arqueélogo LP.Brochado, cerea de quinhentos “anos antes da chegada dos europeus, as duas mandibulas das fren- tes de expansio Guarani e Tupinamba se chocaram finalmente numa fronteira situada ao sul do curso do Tieté". (BROCHADO, 1984.) SENHORES DA COSTA No inicio do Quinhentos, comunidades tupi nambds ocupavam, com diversos nomes, a maior parte da faixa litordnea que ia da foz do rio Amazo- has a ilha de Cananéia, no litoral paulista. Em gran- des trechos do litoral dos atuais estados do Mara- nhio, Cearé, Rio Grande do Norte e Paraiba, habita- vam os potiguaras, tradicionais aliados dos france- ses. Do rio Paraiba até o rio Sao Francisco, viviam 08 caetés, em parte exterminados durante a fundagiio da capitania de Pernambuco. No Pard, Maranhéo, e do rio Séo Francisco as proximidades do rio das Contas, no atual estado da Bahia, dominavam as comunidades que passaram a histéria com o nome da subcultura a que pertenciam - os “tupinambas”. Das regides meridionais do rio das Contas a0 atual estado do Espirito Santo, viviam os tupini quins, que sofriam forte pressio de povos do inte- rior. O litoral do Espirito Santo - até 0 rio Paraiba do Sul - era dominado pelos goitacases, povo nio tupi que combateu duramente os colonos lusitanos. No atual estado do Rio de Janeiro, do cabo de Sao Tomé até a Angra dos Reis, viviam os tamoios / “tupinam- bas”, que se aliaram aos franceses contra os lusita- nos. De Angra dos Reis até a ilha de Cananéia, dominavam 0s goianases, que ofereceram pouca re- sisténcia aos europeus. A partir dos territérios meri- dionais dos goianases, até a ilha de Santa Catarina, e por amplas regides do interior, viviam os cari- J6s/guaranis que, como vimos, haviam alcangado 0 Titoral apés uma ionga e milendria peregrinagao pelo interior do continente. Possuimos abundante informagao sobre os tu- pinambés do litoral. Eles viviam em comunidades aldeas no classistas que praticavam, como acaba- a mos de assinalar, a horticultura, a caga, a pesca € a coleta. A produgao dos bens materiais realizava-se no contexto de uma divisdo sexual e etéria do traba- Tho. Os homens responsabilizavam-se pela caga € pelo preparo dos campos para as plantagSes; as mu- Theres, pelas restantes atividades horticultoras. Os tupinambés produziam sobretudo tubérculos (man- dioca-brava; mandioca-doce; batata-doce), legumi- nosas (feijoes; vagens) e cereais (milho). ( produto de base da economia tupinambé era ‘a mandioca. Levantamento contempordneo em uma comunidade nativa do rio Amazonas mostrou que @ ‘mandioca ocupava 91% de toda a érea cultivada e fomnecia de 85% a 91% do consumo diario de calo- rias da comunidade. (SEB/1, 1987: 154.) O milho cra utilizado mais na fabricagao de bebidas fermen- tadas e como produto de consumacao imediata do ‘que como cereal. (THEVET, 1953: 55) A atividade horticultora de plantago-enxertia assumia um papel dominante na sociedade tupinamba, “ndo apenas porque” mobilizava grande parte das energias “dos produtores, mas sobretudo porque” determinava “a organizagao social geral a qual as outras atividades ‘econémicas, sociais € politicas se” subordinavam. (MEILLASSOUX, 1977: 64; GALVAO, 1963: 132.) Em Mulheres, celeiros & capitais, o antropélo- go francés Claude Meillassoux destacou as impor- tantes tendéncias organizacionais determinadas as comunidades domésticas pela “‘agricultura de plan- tago-enxertia”. (MEILLASSOUX. 1977: 51-71.) Este tipo de cultivo, realizando-se através da replantagio de uma fraco do tubérculo ou do rebento, nao exige sementes e possui um rendimento relativamente ele- vado. Por outro lado, os produtos desta cultura so conservados, até o momento do consumo, sobretudo nas plantacdes, pois eles se degradam com facilidade apés serem colhidos. A mandioca - que possui um imenso nlimero de variedade - é um étimo exemplo. Apés um crescimento de seis meses, ela resiste, ma- dura, sob a terra, por pouco mais de um ano. (MAES- TRI, 1978: §7,) Para serem consumidos, tais produtos exigem complexas e trabalhosas manipulagdes. No 44 caso da cultura tupinambé, o esforgo beneficiador da ‘mandioca-brava, ou seja, a extrago do cido prissi- co que a torna venenosa - era realizado pelas mulhe- res, DESENVOLVIMENTO LENTO ‘Ao contrério da agricultura cerealifera, a eco- nomia doméstica de plantagdo-enxertia néo exige amplas equipes de trabalhadores para a realizagfo de obras coletivas (irrigagao, terraplanagem, adubagio, etc.) ou de pesadas tarefas ciclicas (colheitas, bene- ficiamento, transporte, armazenamento, etc.). (CHIL- DE, 1964: 66. Ela no permite, também, como a agri- cultura cerealifera, a formagdo de grandes estoques Tais determinagdes da agricultura/horticultura de plantagdio-enxertia néo contribuem & coesio dos gru- pos sociais aldedes que a praticam. ‘As crises alimentares tupinambés, quando de prolongados periodos de estio, deviam-se a incapa- cidade material de formar-se reservas alimentares reguladoras e ndo a imprevidéncia motivada por crengas de que “a terra sempre fornece tudo para todos”. (FERNANDES, 1948: 84) As priticas horticul- toras brasilicas realizavam-se harmonicamente no contexto da divisto familiar, etdria e sexual do trabs tho e da associagao de algumas unidades produtivas -residéncias coletivas e aldeia-.O acesso do grupo familiar & terra, no contexto de uma aldeia, era livre 08 meios de produgdo, muito simples. (Os grupos sociais aldedes organizados a partir desta estrutura produtiva - modo de produgao do- méstico - tendem a segmentagao na medida em que se desenvolvem demograficamente. A inexisténcia de grandes reservas alimentares ¢ a desnecessidade de sementes e de obras sociais de vulto para o inicio de uma nova comunidade viabilizam e facilitavam iniciativas segmentérias. Segundo Hans Staden, 0 mercenério alemio aprisionado pelos tupinambés em fins de 1553, inicios de 1554, um principal que quisesse fundar uma residéncia coletiva - maloka deveria reunir “cerca de 40 homens e mulheres”. (STADEN, 1974: 185.) Em geral, as aldeias - taba - se formavam com mais de uma residéncia, Como lembra Claude Meil- lassoux, a “segmentagdo, por ruptura com a comun dade mae, & cada vez mais dificil 4 medida que a agricultura se aperfeicoa”. Ela realiza-se com maior dificuldade nas comunidades domésticas cerealife- ras, tendencialmente mais estdveis do que nas que praticam a agricultura de plantagao-enxertia. (MEIL- LASSOUX. 1977: 72 Sobretudo nas comunidades domésticas assen- tadas sobre uma agricultura de plantagdo-enxertia, 0 desenvolvimento das forgas produtivas materiais era baixo ¢ lento, Elas possufam, igualmente, a tendén- cia a um crescimento demogréfico que se realizava sob forma de segmentagao da unidade-mae em co- munidades estruturalmente similares. Tais realida- des facilitaram as ilusdes fenomenolégicas que per- mitiram que o desenvolvimento técnico-produtivo e © devir historico destes grupos passassem pratica- mente ignorados que eles fossem percebidos - so- bretudo pelas escolas antropolégicas culturalistas, funcionalistas e estruturalistas - como imersos per- manentemente em uma espécie de equilibrio meca- nico atemporal. ‘Nao temos dados precisos sobre o tamanho médio das plantagdes tupinambas. Estimativas con- temporiineas sugerem que hortas “‘indigenas” de mandiocas de aproximadamente meio hectare sus- tentariam um grupo familiar de trés a cinco pessoas. (GALVAO, 1963: 126) A técnica de base das praticas horticultoras - a coivara - originava-se da abundan- cia de terras, da auséncia de ferramentas desenvolvi- das, do desconhecimento da adubagao artificial uili- zada em larga escala e da escassez relativa de bragos humanos. As operagdes horticultoras no eram com- plexas. Antes das chuvas, abria-se uma clareira na ‘mata virgem com ferramentas individuais simples -machados de pedra polida. TRABALHO RAPIDO. Calcula-se que, com um machado de pedra de 500 gramas, empregue-se em torno de quatro horas para derrubar uma drvore, de madeira resistente, de aproximadamente 30cm. de diémetro, na altura do corte. Com um machado de ferro, o mesmo trabalho 6 feito em meia hora, (HERING, 1908: 426- 33.) Segun- do parece, a extenuante derrubada das matas e pre- paro dos terrenos eram feitos, em forma associada, pelos homens de uma residéncia coletiva ou da al- deia, Apos, deixava-se tudo secar de duas semanas a dois meses. A seguir, langava-se fogo. Os troncos ¢ 98 ramos queimados libertavam quantidades de nu- trientes minerais que aumentavam a fertilidade dos terrenos. A madeira carbonizada abastecia em lenha a aldeia durante meses. (STADEN. 1974: 162: ABBEVIL- LE, 1975: 226; SEB\I: 47) O cosmégrafo André Thevet escreveu que era comum que 0 fogo queimasse a ‘mata bem além do desejado pelos tupinambés. (THE- VET, 1953: 211.) Tal método de limpeza dos terrenos causava danos ao ecossistema da Mata Atlantica, Portanto, um cultivo que se assentava sobre 0 uso da energia humana, sobretudo, e do fogo, secunda- riamente. ‘A derrubada das matas e a limpeza dos terrenos cram tarefas exclusivamente dos homens. O macha- do de pedra era, portanto, um instrumento essencial- mente masculino. As mulheres ocupavam-se dos tra- balhos agricolas restantes. Em 1627, o frei Vicente Salvador referiu-se a esta divisio do trabalho: “Os maridos na roga derrubam 0 mato, queimam-no ¢ dao a terra limpa as mulheres, ¢ elas plantam, mon- dam (arrancam) a erva, colhem o fruto e 0 carregam e levam para casa em uns cofos (cestos) mui grande de palma, langados sobre as costas [...].” (SALVA- DOR, 1982: 81.) ‘Apés um preparo superficial dos terrenos, plantava-se. Os trogos de mandioca eram enterrados na terra, Os gros de milho eram plantados com a ajuda de um pau de cavar, ou seja, um basto pontu- 45 do de madeira, ferramenta feminina por exceléncia. No século 20, na Amaz6nia, comunidades autécto- nes serviam-se ainda de “‘um bastio de um metro ¢ meio de comprimento, com a ponta em bizel ou afilada, endurecida a fogo”. (ABBEVILLE, 1975: 242; GALVAO, 1963: 125, O estudo de comunidades nati- ‘vas contempordneas comprovam que muitas delas cultivavam plantas titeis ao longo das trilhas. (SEB\t 173 ctpassim.) Em 1587, o senhor-de-engenho Gabriel Soares de Sousa falou em termos muito elogiosos da agricultura dos potiguaras: “Sao grandes lavradores dos seus mantimentos, de que esto sempre mui providos [...]-” (SOUSA, 1971: 55.) As ferramentas européias - principalmente os ‘machados e cunhas de ferro - facilitavam muitissimo 0 trabalhos agricolas americanos, sobretudo a tra- balhosa derrubada das drvores e limpeza dos terre- nos. O que terminou determinando em forma pro- funda, como veremos com vagar, no Capitulo XII, a histéria dos povos da costa. As plantagies localiza- vam-se nas imediagdes das aldeias ¢ o preparo dos terrenos era feito, em forma individual ou associada, sobretudo pela manha - “‘antes dos grandes calores € do tempo da chuva’”. No Maranhao, devido ao calor, trabalhava-se do “romper do dia” até as 10 horas ¢, das 14, até 0 “anoitecer”. Os tupinambés ndo prati- cavam a criago de gado com objetivo alimentar nem possuiam animais de transporte ou de tragio - de pequeno, médio ou grande porte. O que descarta- va qualquer possibilidade de adubagao das terras com o excremento animal. (ABBEVILLE, 1975: 226, 241; FERNANDES, 1948: 83, 111 THEVET, 1953: 210; FER ANDES, 1948: 83: EVREUX, 1929: 96), ‘Até a chegada dos europeus, o gado vacum € cavalar eram desconhecidos nas Américas. A bem da verdade, o homem foi, de certo modo, o Unico ser vvivo a ser criado e engordado para apés ser consumi do, Entretanto, os tupinambs criavam em suas resi- déncias ¢ aldeias, livres, sem objetivos alimentares, diversas espécies de péssaros domesticados - papa- gaios, araras, tucanos, etc. (THEVET, 1953: 167) As 46 dificuldades assinaladas da conservagao da mandio- ca e o regime alimentar pouco'equilibrado por ela propiciado determinavam que a caga, a pesca ea coleta fossem indispensdveis a estas comunidades. (MEILLASSOUX, 1977: 53) DOMINANDO 0 HORIZONTE As aldeias localizavam-se em um sitio alto, arejado, perto de matas férteis, do mar, de um rio ou de uma fonte de Agua. Préximo do litoral, caminhos ligavam as aldeias ao mar. As aldeias permaneciam no mesmo local de trés a seis anos e apés se desloca- ‘vam para outra paragem. Esta migragio dava-se den- tro de um mesmo espaco geogrifico ¢ as rogas aban- donadas eram reaproveitadas durante longos anos, ja que continuavam fornecendo produtos cultivados e atraindo a caga. As aldeias podiam fraccionar-se du- rante as mudangas. Os tupinambés migravam mais devido ao esgotamento dos recursos alimenticios da regido - caga, pesca, coleta - do que devido a queda da fertilidade dos terrenos. Em realidade, as hortas - localizadas prximas as aldeias, para facilitar o transporte da colheita até as residéncias - ocupavam apenas uma parcela das terras férteis. E crivel que a migragao fosse também determinada pela degradagao crescente das condi- 0es sanitérias do meio ambiente em relagio direta com as aldeias. Os atuais ianomis queimam suas aldeias-residéncias cada um ou dois anos, pois as folhas das coberturas comegam a romper-se € proli- feram baratas, aracnideos e outros insetos nas mora- dias, Por sua vez, 0s jivaros mudam 0 local das aldeias cada trés ou quatro anos devido as baratas. (SOARES, SD: 1, 246; METRAUX, 1928: 4; LEITE, 1957: 292; EVREUX, 1929: 72; KERN, 1991: 297, 306; SEB/2, 1987-43; 67; SEB/.254,) Hans Staden deixou-nos um depoimento sobre as aldeias tupinambés: ““Edificam suas habitagdes de preferéncia em lugares em cuja proximidade tém ‘gua e lenha, assim como caga e peixe. Se uma regidio se exaure, transferem seu lugar de moradia para outro.” (STADEN, 1974: 155) Segundo Jean de Léry e Claude d’Abbeville, a nova aldeia - com 0 mesmo nome - era erguida a uns trés a cinco quilé- metros da anterior. (ABBEVILLE, 1975: 222: LERY, 1961: 208.) Conseqiientemente, a colonizagao/conquista de novos territérios podia dar-se em forma quase im- perceptivel aos agentes do préprio movimento ex- pansionista, O sacerdote francés Claude d’ Abbeville arro- lou algumas das miiltiplas € pesadas tarefas femi ninas. Além serem responsaveis por boa parte dos trabalhos agricolas - plantar, limpar, colher-, as mulheres cuidavam da casa e das’ criangas, encarregavam-se do transporte de alimentos ¢ de outros objetos domésticos, buscavam agua, Preparavam os alimentos © 0 cauim, faziam o azeite de coco, colhiam e preparavam o algo dio, fiavam e teciam redes e faixas, fabricavam recipientes de barro. (ABBEVILLE, 1975: 242) Elas participavam igualmente da coleta, apoiavam os homens nas pescarias € nas construgées das resi- déncias, preparavam 0 sal, etc. (HOLANDA, 1963: 175; THEVET, 1953 :216,) Os homens derrubavam a mata ¢ prepara~ vam os terrenos agricolas; cagavam, pescavam, cortavam lenha; fabricavam as canoas, as armas, as moradias. Eles eram responsiveis pela defesa © conquista dos territérios e pelas praticas guer- reiras. Entretanto, as mulheres podiam acomy nhar os maridos quando das expedigdes mi tares. (LEITE, 1957: 109) As criangas colabora- vam sistematicamente nas atividades produtivas que requeriam pouco esforgo fisico - caga, pesca, coleta, horticultura. (LEITE, 1957:381,) 47 Capitulo 7 — Familia, residéncia, aldeia A célula social, produtiva e de consumo de base da sociedade tupinambé era a familia nuclear. No relativo a reprodug&o das condig&es materiais imediatas e cotidianas de existéncia, cada comunida- de familiar alded era tendencialmente auto-suficien- te, O mesmo no ocorria quanto & reprodugao das, condig6es gerais ¢ da propria comunidade (reprodu- Ho da espécie), Este tiltimo problema escapa aos, objetivos do presente trabalho. A derrubada das ma- tas, a defesa ¢ a conquista dos territérios, a irregular produtividade da horticultura e das outras atividades econdmicas ensejavam unidades produtivas que reu- iam diversas familias em uma residéncia - maloka - e diversas residéncias em uma aldeia - taba. Varias familias solidarias viviam em uma grande residéncia coletiva. As malokas formavam- se com os parentes, com 0s aliados e com os agrega- dos de um principal. Em espagos de cerca de 10m viviam as familias nucleares - o marido, a mulher, os filhos ¢ eventuais agregados (refugiados e cativos). (LERY, 1961: 208: STADEN, 1974: 155; THEVET, 1953: 116, Os principais e alguns aldedes que se desta- cavam podiam possuir mais de uma esposa. Cada esposa possuia a sua propria horta e a sua area habitacional. Nem todas as esposas de um principal viviam na sua residéncia ou aldeia. Esta forma de residéncia, a maloka, correspondia a0 desenvolvi mento econémico e social da sociedade tupinambi ela, imperavam, muito fortes, os vinculos consan- gilineos e o poder gerontocritico masculino. (ABBE- VILLE, 1975: 222; THEVET, 1953: 136) Os casais monogamicos eram mais comuns. Frei Vicente Salvador escreveu sobre os tupinam- bas: “[...] dormem nus, marido e mulher, na mesma rede, cada um com os pés para a cabeca do outro, exceto 0s principais que, como tém muitas mulheres, dormem s6s nas suas redes, ¢ dali, quando querem, se vao deitar com a que Ihes parece.” (SALVADOR, 1982: 79; STADEN. 1974: 174.) Cada easal possua sua grande rede de algodio, atada a troneos fincados no solo das residéncias. De dia e de noite, as mulheres, mantinham “‘acesas pequenas fogueiras de ambos os lados da rede do chefe da familia”. (THEVET. 1953; 159; 1983: 100.) As redes e o fogo serviam como Protegdo contra os insetos durante o sono, (SEB/I 253-4) O fogo era aceso com a fricgao de dois aus. Segundo parece, & noite, além de esquentar 0 ambiente ¢ afastar pequenos animais, cle servia igualmente para afugentar os “maus espiritos”. (CO- REAL, 1722:239,) Quatro a sete malokas retangulares formavam uma aldeia. Cada comunidade aldea era auténoma. Principalmente a luta pela manutengao / conquista dos cobigados territérios litordneos criava as condi- ‘GOes para a formagao de aliangas inter-aldeds - “na- 40” ou “confederagao” - e ensejava um permanen- 49 te estado de beligerdncia, (ABBEVILLE, 1975: 131 222, Sete ow oto aldeias podiam confederar-se para langar uma campanha militar. (THEVET. 1953: 178) Devido as determinagdes estruturais das comunida- des aldeds que analisamos, tais aliangas formavam- se e rompiam-se com grande facilidade. A escassa referéncia dos europeus & existéncia de “tribos” bra- silicas ressalta o carter independente das diversas aldeias. Este fenémeno facilitou sobremaneira a cocupagio lusitana do litoral. As aldeias eram circulares e as grandes resi- déncias possuiam duas portas nas extremidades ¢ uma no centro. Esta altima dava para o terreiro. Além destas residéncias permanentes, os tupinam- bs construiam abrigos notumos quando de viagens ou expedigdes guerreiras. (SEB, 1987: 31.) Nos apro- ximadamente 300m de cada maloka, viviam de 50 a 100 moradores. (PIGAFETTA, 1986: 58; STADEN, 1974: 155; FERNANDES, 1948: 59-65.) Exagerava 0 cal Jean de Léry ao afirmar que em uma residéncia coletiva habitariam “de quinhentas a seiscentas pes- soas e no raro mais”. (LERY, 1961:205,) Aldeias com seis € oito mil membros, como sugerem Léry € 0 sociélogo Florestan Fernandes, no correspondem & capacidade de sustentagdo material da economia tu- pinamba. (FERNANDES, 1948: 63.) Tais concentragées populacionais necessitariam, para o seu sustento, de “hortas” com aproximadamente 700 hectares! Em geral, é crivel que as aldeias mais populosas tives- sem em tomo de 350 habitantes, devido aos abun dantes recursos do litoral. No Rio de Janeiro, elas chegavam a ter 500 metros de didmetro. (BELTRAO, 1972: 129.) NUMEROS CONFUSOS A primeira descrigao detalhada de uma maloka da pena de um piloto anénimo da esquadra cabrali- na: “As suas casas so de madeira, cobertas de fo- thas e ramos de drvores, com muitas colunas de pau pelo meio, ¢ entre elas eas paredes, pregam redes de 30 algodio, nas quais pode estar um homem, e debaixo de cada uma destas redes, fazem um fogo, de modo que numa s6 casa pode haver quarenta ou cingenta leitos armados, a modo de teares.”” (SILVA, 1919: 119.) Futuros levantamentos arqueolégicos sisteméticos poderfo nos esclarecer sobre a real dimensio ¢ 0 rniimero de habitantes médios das residéncias coleti- vas tupinambés. Sobre tal problema, a documenta- do coeva diverge significativamente. Sem divisdes internas, as residéncias distribuiam-se, em tomo de ‘um grande patio central quadrado, onde se realiza~ ‘vam as reunides e festividades. ‘A distribuigao geogréfica simétrica expressava © status igualitério das diversas residéncias na al- deia. (KERN, 1991: 305.) Uma construgio comunitéria = “casa grande” - era destinada as deliberagées al- deds. Era o principal local onde os “velhos” trans- mitiam aos “novos” as narragdes miticas e a tradi- 80 oral profana, (EVREUX, 1929: 122.) Nas zonas conflagradas, fossos e duas paligadas de troncos de palmeira, geralmente em forma pentagonal, cerca- vam e protegiam as aldeias. (SALVADOR, 1982; 79.80: ABBEVILLE, 1975: 79; STADEN, 1974: 156.) Em frente do porto principal, assim como diante e no interior das residéncias, plantavam-se astes com as caveiras dos inimigos mortos. (STADEN, 1974: 97; THEVET, 1953: 92.) As diversas malokas, co- bertas de palha até o solo, comandadas por um ou dois principais, constituiam as unidades produtivas guerreiras aldeds. A sociedade tupinamba formava- se a partir da associagao livre de nticleos de produto- res familiares independentes, Era muito limitada a autoridade dos principais sobre os chefes de familia de suas malokas. Em geral, os senhores das diversas residéncias possuiam a mesma autoridade. (SALVA- DOR, 1982: 78; STADEN, 1974: 168.) ‘A inexisténcia de aparatos sociais coativos su- prafamiliares assentava a coesdo alde&i no consenso dos chefes de familia. O poder de convencimento era ‘Go apreciado que aqueles que se distinguiam pela capacidade de argumentagio eram chamados de “'se- nnhor da fala”. (CARDIM, 1978: 186) As mulheres, os ovens e as criangas no se pronunciavam durante as reunides. Nelas, os “velhos” - principais e chefes de familia - eram escutados com atengao e, em geral, obedecidos. (ABBEVILLE, 1975: 234; FERNANDES, 1970: 149; STADEN, 1974: 164) As decisées comunitérias eram tomadas na “casa grande” ou “casa dos homens”, no centro da aldeia, todas as noites. (ABBEVILLE, 1975: EVREUX. 1929; 87; 255; FERNANDES, 1970: 68-9) O cosmégrafo francés André Thevet, que visitou o Brasil em 1555, descreveu uma destas assembléias, “conduzidas” pelos anciios, nas quais ndo tomavam “parte as mu- Iheres ¢ criangas”. “Nelas, os indios procedem com urbanidade e discrigdio. Sucedem-se os oradores uns aps os outros: todos sao atentamente escutados. Terminada a arenga, cada orador passa a palavra 20 seguinte, ¢ assim por diante. Os ouvintes ficam to- dos sentados no chao, exceto alguns poucos [princi- pais] [...] [que] se conservam sentados em suas re- des.” (THEVET. 1978: 123; 1983: 79.) Cada aldeia possuia um ou mais grandes prin- is - morubi'xawa, Apenas durante as guerras eles comandavam discricionariamente os guerreiros. A ilha de So Luis, no Maranhao, possuia 27 aldeias. Quatorze delas tinham um morubixaba; dez, tinham dois; uma, tinha trés ¢, as duas mais populosas, ti- rnham quatro € cinco. (ABBEVILLE, 1975: 139-145.) E, crivel que as aldeias com mais de um morubixaba se formassem pela reunido de dois ou mais grupos al- deses. GENTE TRANQUILA Os tupinambés comiam, pouco, diversas ve~ zes ao dia. Em geral, 0s niicleos familiares realizam estas refeigdes frugais em forma isolada, sem pressa € em siléncio. Todos se serviam em um recipiente comum. Quando se comia, nao se bebia, ¢ vice-ver- sa. Apenas acabavam de se alimentar, furiavam (CO- REAL, 1722: 194; THEVET, 1953: 121, 149; SALVADOR, 1982: 80; EVREUX, 1929: 154.) Quando escasseavam ou abundavam os alimentos, os produtos da caga, da pesca, da coleta e da horticultura eram repartidos entre os membros de uma mesma maloka e taba. Na pesca ¢ na caga, quem apanhasse mais animais divi- dia 0 conseguido com os companheiros menos afor- tunados. (SALVADOR, 1982: 80; STADEN, 1974: 159), O capuchinho Yves d’ Evreux : 'E muito grande a liberalidade entre eles e, desc mhecida a avareza.” (EVREUX, 1929: 125.) Devido as, raz0es jé vistas, no interior da aldeia reinava um alto grau de “‘civilidade”, de “harmonia” € de respeito “individual”. O roubo era uma “instituigao” desco- nhecida. O cumprimento da palavra dada: 0 prestigio do poder de convencimento: o valor do exemplo e das relagdes interpessoais eram fen6menos sociais de grande importincia, pois deles dependia, em grande parte, a coesio aldea. padre Cardim escreveu espantado sobre as residéncias tupinambés: “Parece a casa um inferno ou labirinto, uns cantam, outros choram, outros co- mem. outros fazem farinha ¢ vinhos, etc. e (em) toda casa arde [..] fogos; porém ¢ tanta a conformidade, entre eles, que, em todo o ano, nao hé uma peleja, e, com nfo terem nada fechado, no ha furtos [...).” (CARDIM. 1978: 186,) Segundo Michel de Montaigne que, segundo veremos, entrevistou um francés que viveu longos anos nas costas brasilicas, na lingua tupi nao existiria palavras que traduzissem conceitos ‘como wulagdo, avareza e inveja. (MONTAIGNE, 1965: 206) Em 1549, na capitania da Baia, Manoel da Nébrega elogiava, igualmente, as relagdes interpes- soais aldeds: ““Os que so amigos vivem em grande concérdia entre sie amam-se muito, [..}. Se um deles mata um peixe, todos comem dele [..].” (NO- BREGA, 1955: 0.) Em 1612, o sacerdote francés d’Abbeville re- gistrou consideragées também elogiosas sobre a “tranguilidade”, “civilidade” e “educagao” dos tu- pinambas do Maranhfo: “Sao tio serenos ¢ calmos que escutam atentamente tudo o que Ihes dizem, sem jamais interromper os discursos. Nunca pertubam 0 discursador, nem procuram falar quando alguém SL esté com a palavra, Escutam-se uns a0s outros jamais discorrem confusamente ou a0 mesmo tempo [-]? (ABBEVILLE, 1975: 244.) De tal discrigao, como veremos, abusaram sem remorsos os jesuitas. Eles obrigavam os brasis a escutarem longas e comple- xas prédicas religiosas. Estas seriam, nos primeiros tempos, incompreensiveis, no relativo & forma ¢ a0 conteido, a disciplinada platéia americana. De madrugada, o principal, deitado em sua rede e, a seguir, passeando pela moradia e pela al- deia, muito de vagar, falando em voz alto e batendo no peito, “‘convencia”, por uma meia-hora, os mem- bros da residéncia, de aprontarem-se para as praticas produtivas didrias ou - se necessério ~ para a guerra, como haviam feito “seus antepassados”. (CARDIM, 1978: 177; LEITE, 1986: 407) A participagao da comu- nidade nas atividades bélicas era igualmente produto da concordancia geral dos aldedes. As criangas e as mulheres nao presenciavam as assembléias que deci- diam sobre as expedigdes guerreiras. (THEVET, 1953: 178) Nada se fazia contra a vontade da coletividade. Tal urbanidade e ordem social impressionaram mui to 0s europeus mais observadores, provenientes de sociedades divididas, em suas raizes, por antagonis- mos classistas. ‘Nao devemos idealizar a vida brasilica, Bra muito dura a luta destas comunidades pela existéncia ¢ a esperanga de vida média dos brasis seria baixa. CAlculos contemporaneos sugerem que um produtor ‘tupinambé dedicaria mais de sessenta dias, anual- mente, apenas aos duros trabalhos horticultores. (GALVAO, 1963: 127.) O principal mito tupi-guarani - a procura da terra sem mal - constituia a promessa de uma vida rica em prazeres materiais e desconhece- dora do trabalho e da velhice. Em 1549, o jesuita ‘Manoel da Nobrega relatava: “De certos em certos anos vém uns feiticeiros [..] thes dizem que no curem de trabalhar, no vao a roga, que o mantimen- to por si crescerd, e que nunca lhes faltara que co- mer, € que por si vird a casa; ¢ que as aguilhadas [paus pontudos] iro a cavar, e as flechas iro 20 ‘mato, por caga, para 0 seu senhor, e que hao-de 52 matar muitos dos seus contrérios € cativarao muitos para os seus comeres.”” (NOBREGA, 1955: 63.) MULHER EXPLORADA Evidentes contradigdes sociais transpassavam estas comunidades assentadas sobre a divisdo sexual ce etiria do trabalho. A mulher dependia do pai, ou do irmao, ou do tio, ou do marido. Ela era submetida e explorada pelo homem. O controle familiar das mu- theres assegurava a supremacia dos principais e dos mais velhos. Dos 8 aos 25 anos, os filhos homens trabalhavam para o pai. Para casarem-se ¢ constituir familia, 0 que faziam relativamente tarde, compro- metiam-se com a familia da esposa. © genro devia obrigagdes produtivas e militares ao sogro e a fami- lia da mulher. O filho, as devia ao pai. Se um genro desconhecesse estes deveres, perdia a esposa, que era reclamada por sua familia. Um tupinamba que controlasse muitas mulheres (sobrinhas, filhas, es- posas) era um homem poderoso. (NAVARRO, 1988: 136; LEITE, 1956: 119, 153, 316, 379: STADEN, 1974: 171; THEVET. 1978: 137; 1983: 92; 1953: 132; FERNANDES, 1948: 113) ‘Um homem com muitos parentes ¢ agregados fundava sua maloka, tornava-se um “principal”, transferia para seus “subordinados” boa parte de suas tarefas produtivas e guerreiras. Nao seria muito dura a vida de um principal. Segundo o depoimento de um jesuita, ele passaria boa parte do tempo deit do na rede ... (LEITE, 1957: 295.) O sacerdote francés Yves d’Evreux registrou que 0 “anciéo ou velbo”” “trabalha quando quer, € bem & sua vontade, mais para exemplo da mocidade, respeitando as tradigdes da sua Nagio, do que por necessidade”. (EVREUX, 1929: 133.) marido poligamo recebia mais do que entre- gava as suas esposas. Muitos jovens permaneciam. por muito tempo, solteiros ou contraiam matriménio com mulheres idosas. Alguns morreriam sem se ca- sar. As esposas mais velhas de maridos poligamos podiam perder o papel de “‘parceiras sexuais” mas manter as obrigag6es econdmicas devidas aos espo- 80s. (FERNANDES, 1948: 132.) Era ilusGria a retérica racionalizadora da “democracia familiar” aldea. En- tretanto, tais padres de casamento conviviam com uma relativamente ampla liberdade sexual feminina, antes do casamento, e com a pouca preocupagio dos tupinambas para com a virgindade das mulheres. (LERY, 1961: 202-5: FERNANDES. 1948: 139) So romanticas e idealizadoras as leituras con- tempordineas sobre a exceléncia e sabedoria “univer- sal” das instituig6es americanas. As comunidades brasilicas no podiam construir relagdes sociais por sobre os limites determinados pelo baixo desenvol- vimento de suas culturas materiais. (LUKACS, 1982: 1. 70.) Vistos de uma outra ética, os tupinambas podiam, ser terrivelmente “desumanos’. Eram extrema e ino- centemente cruéis com os inimigos e nao conhece- riam, nem mesmo, como lembrava Michel de Mon- taigne, 0 conceito “perdo”.. Como veremos nos Capitulos IX e X, as praticas antropofagicas chega- vam a tal extremo que as mes comiam os filhos tidos com os prisioneiros. Era igualmente comum, que cativos fossem abatidos e devorados apés lon- gos anos de convivéncia com os senhores. Vivendo num estégio civilizatério pré-ético, a concepsao de “solidariedade humana” nao ultrapassava os estrei- tos limites geograficos ditados pela economia do- méstico-alded. Os tupinambas eram destros pescadores e hi- beis nadadores e mergulhadores. (STADEN, 1974: 159: THEVET, 1978: 95: 1983: 46: COREAL, 1722: 181) Nos mares € nos rios, usavam jangadas e canoas leves & pesadas. Estas iiltimas, eram cavadas em troncos duros de certas drvores. Durante as viagens, nestas embarcagdes, 0s homens remavam e as mulheres serviam-se de cuias para langar fora a agua que nelas entrassem. Em torno de 25 remadores por ca- noa realizavam, ao longo do litoral, a uns trés ow quatro quilémetros das praias. rapidas ¢ longas expe- digdes guerreiras. Os europeus presenciaram comba- tes fluviais e maritimos envolvendo dezenas de ca- hnoas e centenas de combatentes. (THEVET, 1978: 128; 1982: 82: STADEN, 1974: 176; SOUSA, 1971: 313; LERY, 1961: 148, 149; FERNANDES, 1970: 99.) A cerdmica, a cestaria, 0 trabalho do algodio, a fabricago de ar- ‘mas ¢ instrumentos domésticos e musicais eram pré- ticas familiares aldeds nio-especializadas relativa- mente refinadas, ‘Na caga e na guerra, 0s brasis manejavam suas armas com grande mestria. Possufam pesados taca- pes de madeira vermelha ou negra; grandes ar- cos com diversos tipos de flechas; uma espécie de clava com a extremidade cheia de pedras; escudos de “cortiga de arvores”, de couro de animais e de pele de peixes; machados de pedra polida. Tal era o poder das flechas que elas podiam varar completamente um homem. Nas batalhas, soavam tambores, flautas, cometas e buzinas. Os tupinambas desenvolveram refinadas titicas e estratégias guerreiras. Elas os tor- naram a mais poderosa comunidade do litoral, até a chegada dos europeus. (VARNHAGEN, 1978: I: FER- NANDES, 1970: 36-9: STADEN, 1974: 178; THEVET. 1978 128; 1983: 79; COREAL, 1722: 214.) MANIA DE LIMPEZA Os tupinambés portavam os cabelos curtos, na testa, e deixavam-nos crescer, na nuca, nas orelhas € nas fontes. Pintavam o corpo com tinta negra de Jenipapo (Genipa americana) e vermelha de uruct (Bixa orellana) - dtimos repelentes de insetos. Os tupinambés tatuavam as carnes; furavam o lébio in- ferior para colocar objetos de pedra, osso ou madei- ra, Usavam colares de biizios, de ossos de animais € de dentes de inimigos. Nas grandes ceriménias, en- feitavam os bracos, as pernas e os cabelos com penas de variadas cores. A omamentagao e a tatuagem do corpo constituiriam recursos magicos - felicidade na caga, na guerra, etc. - € expressariam miiltiplas infor- magées - idade, sexo, status, etc. Os vestimentos europeus que portavam, sobretudo quando de festi- vidades, teriam fungao exclusivamente ornamental. 3 Untavam a pele com éleos. Raspavam os pelos do corpo, inclusive a barba, os cilios e as sobrancelhas, medidas profiliticas contra a proliferagao de parasi- tas e a contra atragdo de mosquitinhos e abelhas que incomodam os olhos. (SEB/1, 1987: 253; SEB, 1987 119-48) ‘As mulheres dedicavam grande atengao & orna- mentago corporal. Depilavam e pintavam as so- brancelhas 0 corpo; usavam colares de contas nos pescogos € nos bracos; ungiam os corpos. As tupi nambés deixavam crescer os cabelos até a cintura € prendiam-nos quando trabalhavam. Elas nao fura- vam 0 lébio inferior - simbolo de masculinidade -, ‘mas apreciavam muito portar enfeites nas orelhas. (Os brincos fornecidos pelos europeus eram singular- mente apreciados pelas americanas. O mesmo ocor- ria com os espelhos. Tanto homens como mulheres depilavam o pélo pubiano o que - como vimos - evita piolhos. (COREAL, 1722: 186; BRANDAO. 1977: 268; SOUSA, 1971: 305; THEVET, 1978: 107; 1983: $8; 1953: 110, 126; LERY, 1961: 109, 213: SEBV1, 1987: 253.) ‘Apés parir € guardar repouso por um ou dois dias, a mulher ia para a roga trabalhar. OQ homem ficava na rede fazendo-se de parturiente e recebendo as visitas. O que atrairia sobre ele, € nfo sobre @ mulher debilitada, os maus espititos, (LERY, 1961 203; BRANDAO, 1977: 250; EVREUX, 1929: 138.) © espo- so suspendia 0 intercurso sexual com a mulher quando da gravidez, apds 0 parto e durante o primei- ro ano de vida do recém-nascido. (FERNANDES, 1948: 143) A mie aleitava o filho até uma nova gravidez. Havia criangas que mamavam até os oito anos de jade. (SALVADOR, 1982: 81.) Os recém-nascidos eram também alimentados com “gros de milho as- sados”, “mastigados”, pelas maes, “até ficarem re- duzidos & farina”. (EVREUX, 1929: 128) ‘Na educagdo dos filhos, utilizava-se sobretudo © exemplo e raramente a corregao fisica, Na colénia do Maranhao, o capuchinho Yves d’Evreux presen- ciou um exercicio desta pedagogia do exemplo e da ‘emulagao. Homens e mulheres tupinambas trabalha- ‘vam duro na construgao do forte francés ¢ “davam 34 pequenos cestos para carregar terra” aos “filhi- hos”, conforme “suas forgas”. (EVREUX, 1929: 75.) (Os tupinambés escandalizavam-se ao verem os je suitas, ainda que em forma moderada, castigar fisi- ‘camente os jovens estudantes. Os pais dedicavam grande atengao aos filhos. O franciscano Claude ’- Abbeville afirmava serem as criangas brasilicas muito obedientes e “‘dotadas de uma certa seriedade e de uma modéstia natural muito agradaveis”. (AB- BEVILLE, 1975:224) Quando um tupinamba adoecia gravemente, ‘era atendido, em sua rede, pelos seus préximos, que seguiam apreensivos 0 desenvolvimento da satide do enfermo. Se falecia, familiares, parentes ¢ amigos externavam a tristeza chorando ¢ lamentando-se, Tongamente, em voz alta. A seguir, o morubixaba ou o principal da maloka, batendo no peito e nas coxas, proferia um elegante discurso fiinebre laudatério so- bre o falecido. Ele terminaria com as seguintes fra- ses: “- HA quem dele se queixe? - Nao fez em sua vida 0 que faz. um homem forte € valente?” O corpo era enterrado, em um “‘buraco fundo e redondo”., portando os melhores ornamentos do falecido e, se ele possuisse, um capote, camisa, chapéu ou qual- quer outra valorizada pega europs Agua, farinha, carne, frutas € outros alimentos cram depositadgs, na cova, proximos de sua mao direita. As armas, machados, foices, ete. ao contré- rio, eram acomodadas & sua esquerda. Ao lado, fa- zia-se um outro buraco onde se acendia um “fogo com lenha bem seca”. A sepultura era coberta, pou- co a pouco, apés os familiares, parentes e amigos despedirem-se do falecido. Nesta ocasido, enviava- se recados e presentes para outros trespassados €, entre outras recomendagdes, insistia-se para que 0 falecido nao se perdesse nem se esquecesse de suas armas e ferramentas no caminho que levava as “montanhas, alm dos Andes, onde” julgavam que iam ‘todos os mortos”. Os parentes proximos costu- mavam ir chorar nas sepulturas dos desaparecidos € espalhar gros de milho e outros alimentos sobre os ‘timulos. (EVREUX, 1927: 167.) Entre estes e outros hébitos americanos que impressionaram profundamente os europeus, encon- trava-se 0 estranho costume dos brasis de banharem- se todas as manhas e, se possivel. diversas vezes a0 dia. (COREAL, 1722: 190) O que os lusitanos critica- vam com severidade, pois acreditavam fazer mal & satide, O padre Fernao Cardim, escrevia no tltimo quartel do Quinhentos, espantado: “[...] os homens, mulheres e meninos, em se levantando, se vao lavar € nadar aos rios, por mais frio que faca; as mulheres nadam © remam como homens, e quando parem, algumas se vao lavar aos rios.” (CARDIM, 1978: 188,) Os recém-nascidos eram, também, imediatamente lavados no mar, rios ou lagos. (THEVET, 1953: 49.) 55 Aum passo do fim Em junho de 1556, ainda no contexto do movi- mento tupinamba antilusitano da capitania da Baia, © primeiro bispo do Brasil, dom Pero Femandes Sardinha, ¢ uma centena de acompanhantes, foram devorados por caetés do litoral, apés naufragarem, a uns 360 quilémetros de Salvador, a norte da desem- bocadura do rio Sao Francisco, quando retornavam a Portugal. (WETZEL, 1972: 25) Desde sua chegada a0 Brasil, em 1551, 0 bispo Pero Fernandes Sardinha se destacara por hostilizar os jesuitas ¢ apoiar os colo- nos na escravizagao sem critérios dos brasis. O pré- prio Manuel da Nébrega, ao relatar para Tomé de Sousa a morte do bispo, lembrara que ele “‘nlio se tinha por bispo” dos “gentis”. (NOBREGA, sd: 63.) Em meados do Quinhentos, importantes comu- nidades caetés (familia tupinamba) viviam nas re- gides que iam do norte da cidade de Salvador ao rio Sio Francisco, Na carta jé referida de 1558, dois anos apés 0 naufragio do bispo Sardinha, o padre Manoel da Nobrega pedira: “Os que mataram a gen- te da nau do Bispo se podem logo castigar e sujeitar [...” (NOBREGA, 1955:283 Em 1562, seis anos apés © grande banquete antropofagico, sob a pressio dos plantadores que ressentiam a falta de cativos, 0 go- vernador Mem de Sé decretou uma guerra justa con- ‘ra as comunidades caetés determinando que “fos- sem escravos, onde quer que fossem achados, sem fazer excegio nenhuma”. (ANCHIETA, 1946: 12-3.) Desnecessério dizer que apenas algumas aldeias cae- tés haviam participado dos sucessos de 1556, A ‘guerra justa’ anticaeté era a oportunidade esperada pelos plantadores. Eles aproveitaram a oca- sido para atacar até mesmo os caetés que viviam reduzidos sob a protecao jesuitica e, na falta destes, brasis aldeados de outras familias tupinambés. (NA- ‘VARRO, 1988: 384.) Em 26 de junho de 1562, 0 padre Leonardo do Vaile escrevia que caetés “pagios” e “cristios” eram cagados com tanta “‘diligéncia” que melhor seria que se deixassem “morrer em casa, sem buscar de comer nem fazerem suas rogas”, porque mal saiam “das abas dos padres” eram “ferrados” pelos cipidos escravizadores. (NAVARRO, 1988: 384.) A expansio da economia agucareira niio permitia que os colonos perdessem tempo selecionando os “brutos” que escravizariam. Tratava-se da legalizagdo da caga indiscrimi- nada do americano: criangas, jovens, adultos, ho- mens ¢ mulheres eram assaltados pelos caminhos, has rogas, nas aldeias, nos povos jesuiticos, onde fossem encontrados. Completamente desmoraliza- dos € rendidos, os sobreviventes tentavam apenas fugir dos ataques escravizadores. Segundo a Infor- magdo dos primeiros aldeamentos, possivelmente de José de Anchieta, antes dos acontecimentos, 0s aldeamentos de Santo Ant6nio, Bom Jesus, Séo Pe- dro e Santo André possuiriam uns 12mil habitantes. 143 ‘Apés a retirada de cativos e as fugas dos brasis para ‘08 sertdes, teriam ficado uns escassos mil, com os jjesusitas, (MARCHANT, 1980: 101; ANCHIETA, 1946: 14.) ‘A débacle era total. RECOMECAR OUTRA VEZ Mais uma vez, reiniciava a fuga maciga de brasis para os sertdes agrestes. Mais uma vez, grande parte do esforgo catequetico jesuitico se perdia com © abandono e despovoamento das “aldeias de in- dios". Tal foi a magnitude dos abusos perpetrados pelos colonos que o governador-geral, pressionado pelos jesuitas, viu-se obrigado a abolir 0 estado de guerra com as comunidades tidas como responsiveis pela sacrilega comilanga. Era a Gnica forma de inter- romper a caca indiscriminada dos americanos da regidio. Quando a administragao e os sacerdotes pu- seram fim aos estragos causados pelos colonos du- rante a guerra “anticaeté”, as comunidades aldeadas haviam sido dura e irreparavelmente golpeadas. ‘Muitos historiadores afirmam terem sido natu- rais e nfl sociais ¢ histéricas as causas da mortanda- de e do decréscimo populacional das comunidades brasilicas litordneas. Uma série de epidemias ¢ néo a violéncia do colonizador europeu seria a grande res- ponsével pelo acelerado desaparecimento das abun- dantes populagdes da costa. Para tal interpretagdo, a unificagao bacteriolégica mundial, conseqiiéncia inevitavel da expansio maritima européia, deve ser responsabilizada pela hecatombe populacional ame- ricana. E no o sistema colonial. A desaparigao des- tas populagdes deveria portanto ser analisada como uma triste mas inevitivel seqiiela da necesséria ¢ progressista expansdo dos contatos entre os hhomens dos cinco continentes. Um grande mal, devido a um ‘maior progresso. Os povos brasilicos encontravam-se fragiliza- dos diante de enfermidades - sobretudo virais - des- conhecidas do Novo Mundo. Desde os primei tempos, 0s contatos entre os povos do litoral e os 144 ‘europeus causaram problemas de satide para os bra~ sis. André Thevet conta, em Cosmografia universal, que, em meados do Quinhentos, os tamoios da ilha de Villegaignon e das cercanias foram infectados pelos franceses e que teria morrido “uma grande parte do povo”. Tamanha seria a mortandade que nfo se encontrariam americanos “para cortar o [pau] brasil e o portar aos navios, que ficavam fundeados, porque no podiam ser carregados”. Irritados com a situago, os nativos teriam explicado a mortandade como um castigo “por andarem com gente tio ruim”. (THEVET, 1953: 19, 88. Temos informaglo de uma epidemia, possivelmente de gripe, nas cercanias de Salvador, em 1552. Portanto, alguns anos antes da assinalada pelo viajante francés. Em uma carta de margo de 1552, 0 jesuita Vicente Rodrigues referia-se & epidemia e, perplexo, explicava o seu aparecimento a partir de critérios magico-religiosos: “Os dias passados fizemos al- guns cristios, dos quais depois alguns se tornaram a seus costumes, e querendo-os o Senhor castigar, foi a mortandade neles tanta que foi cousa de pasmo, mormente nos filhos e filhas mais pequenos [..].” (NAVARRO, 1988: 134,) Entretanto, em uma outra car- ta, do mesmo ano, Vicente Rodrigues afirmava ali- viado que a “grande mortandade” ou “‘tosse geral”” se fora ‘‘de todo”. (NAVARRO, 1988: 145,) Como assi- nala a carta, as criangas eram as mais atingidas. AGUA DA MORTE s jesuitas espantavam-se com o fato de que muitos recém-nascidos adoeciam ou morriam apés serem batizados. Os pajés respondiam as investidas ideol6gicas dos sacerdotes divulgando que o batis- ‘mo causava a morte - no que, em alguns casos, nfo estariam totalmente errados. Os préprios sacerdotes infectariam os desprotegidos recém-nascidos. Se- gundo parece, nfo raro, eles usavam a prépria saliva como Agua batismal! (STADEN. 1990: XXX.) Apenas chegado a capitania da Baia, 0 padre Manoel da Nébrega relatava: “Uma cousa nos acontecia que muito nos maravilhava a principio ¢ foi que quase todos os que batizévamos, caiam doentes, [...] do ventre, [...] dos othos, [..] de apostema (abscesso tiveram ocasido, os seus feiticeiros, de dizer que Ihes davamos a doenga com a 4gua do batismo e, com a doutrina, a morte [....” Tais casos, muitas vezes, no deixavam seqtelas irrepardveis. © mesmo N6: brega informava, aliviado: “[..] mas se viram em breve [os pajés] desmascarados, porque logo todos 0 enfermos se curaram.” (NOBREGA, 1988: 95.) Enguanto os nativos mantiveram a autonomia diante dos portugueses ¢ ndo sofreram as violéncias iniciadas a partir da colonizacao, tais problemas fi- caram circunscritos a algumas aldeias e regies, onde tendiam a ser superados. Em verdade, a ‘unii cago bacteriolégica’ iniciara meio século antes, com a visita das costas brasilicas pelos primeiros europeus. Estes breves surtos epidémicos, apesar dos graves - mas localizados - problemas que causa- vam, criavam as condigdes gerais para uma lenta ‘mas progressiva imunizacao relativa das populagdes americanas no referente as grandes enfermidades ‘ransmissiveis desconhecidas no Novo Mundo, ‘No relativo A capitania da Baia, tal situacao geral se modificou radicalmente com a desorganiza- 620 e submissao das comunidades da regio, quando da expansdo militar e territorial portuguesa no Re- céncavo. Jé foram elucidadas & exaustio as causas sociais ¢ histéricas da eclosdo das epidemias que causaram grandes hecatombes populacionais na Eu- ropa medieval. Alimentagio insuficiente, excesso de trabalho, priticas sociais anti ou pouco higiénicas, promiscuidade habitacional e vivencial foram fen6- menos sociais que contribuiram ativamente para 0 inicio e o desenvolvimento das “*pestes” medievais. ‘Nao é uma casualidade os grandes surtos epi- démicos brasilicos terem eclodido precisamente quando a sociedade tupinambé entrava em um acele- rado processo de desagregactio. Em fins de 1558 ou inicios 1559, uma epidemia - talvez. de variola - manifestou-se nas colonias meridionais -om rapidez, para o norte. Em carta escrita no Espirito Santo, possivelmente no inicio de 1559, um jesuita falava de uma grande “mortandade” entre os brasis “escravos” e “foros” da capitania. Em “bre- ve tempo”, “600 escravos” teriam morrido. A “‘mortandade” teria comegado “no sertiio e pela cos- ta, desde o Rio de Janeiro”. (LEITE, 1958: 19) Em junho do ano seguinte, uma “peste” se abatia sobre os cateciimenos da “aldeia de indios” de Sao Paulo. Os jesuitas desdobravam-se em cuida- dos, sangravam e alimentavam, inutilmente, os en- fermos com “laranjas” ¢ “agticares”. Atingidos, mesmo os mais fortes, “em quatro ou oito dias”, faleciam. Entretanto, assinalava o padre Rui Pereira “E posto que, o mais do tempo, andévamos entre eles, quis Nosso Senhor que nunca se nos pegasse a doenga.” (LEITE, 1958: 291.) No ano seguinte, 0 surto varidlico esparramava-se pelo Recdncavo. SEMPRE OS ESCRAVOS Em julho de 1561, 0 irmao José Anchieta not ficava que, naquele ano, a Divina Justia teria casti- gado, sobretudo os escravos da capitania de Sao Vicente, “‘com muitas enfermidades”, “‘sobretudo camaras de sangue”. “[...] dois, trés, quanto muito quatro dias duravam”” os enfermos. Desta vez, os jesuitas também teriam adoecido, ainda que nao mortalmente (LEITE, 1958: 371.) A navegagdo costeira € 0 apresamento, armazenamento € distribuigéo de cativos ao longo do litoral criavam as melhores con- digdes para que as enfermidades se propagassem rapidamente pelas capitanias, Os mais duramente tocados por estes flagelos eram os cativos dos lusita~ nos ¢ as comunidades nativas, golpeadas © expro- priadas de suas melhores terras. Em 1562, concomitantemente com as violén- cias ensejadas pela guerra justa anticaeté, uma epi- demia, segundo parece, de Variola, golpeou, por trés meses, as cercanias da cidade de Salvador, causando verdadeira hecatombe entre brasis aldeados ¢ feitori- 145 -zados. Desesperados, os sobrevientes “se vendiam ¢ se iam meter por casa dos portugueses a se fazer escravos, vendendo-se por um prato de farinha”. No inicio de 1563, apés a chegada de um navio portu- gués, uma segunda epidemia de “bexigas” instala- va-se em IIhéus, espalhando-se pelo litoral e parte do interior. Ela atingiria, a seguir, a capitania da Baia. ‘As seqiielas das epidemias entre os lusitanos foram quase nulas. Entre os americanos, mal-alimentados e vergastados pelas arbitrariedades dos colonos, foram terriveis. Na capitania da Baia, o primeiro surto, teria causado a morte de uns 30 mil brasis; 0 segun- do, teria ceifado a vida de “um quarto a trés quintos dos sobreviventes da primeira epidemia. (MAR- ‘CHANT, 1980: 103; ANCHIETA, 1946: 12-5.) Aterrorizados, famintos, morrendo como mos- ‘cas, sem forgas para enterrar 0s mortos, quanto mais para cacar e trabalhar nas rogas, os sobreviventes ofereciam-se como escravos nas povoacdes e enge- nihos e deixavam-se cativar sem resisténcia, tudo em troca de uma cuia de farinha de mandioca, Segundo a documentagio da época, alguns brasis apresenta- vam-se aos colonos “com os ferros nos bragos e nas pernas”. (MARCHANT, 1980: 104) A epidemia de or gem ‘européia’ criava a “extrema necessidade” que Justificava, segundo a legislagao lusitana, que um brasil se vendesse como escravo ... A mortalidade dos brasis feitorizados no engenhos foi também mui: to alta. As comunidades americanas néo viam o fim dos males de origens conhecidas e desconhecidas que se abatiam sobre elas. Segundo o historiador Alexander Marchant, quando tudo terminou, de uma populacao nativa avaliada em aproximadamente 80 mil habitantes, te- riam sobrevivido, “nas proximidades da Bahia”, 146 apenas uns 10 mil. Das onze “aldeias de indios”, sobravam apenas quatro. (MARCHANT, 1980: 104) Ainda que estas avaligdes sejam aproximativas talvez superestimadas, 0 certo & que fora vertiginosa ‘a mortandade entre os brasis. A produgao acucarei no podia porém parar. Os colonos certamente exigi- ram maior produeao dos cativos sobreviventes e re- puseram os estoques de trabalhadores feitorizados aumentando a pressdo sobre as comunidades sobre- viventes. A exagio dos colonos sobre os brasis cati- vos e livres teria chegado a niveis insuportaveis. A partir de entio, estes povos nao responderiam mais aos lusitanos como comunidades livres, mas sim como populagées cativas Em 1568, 0 Recéncavo era sacudido por uma revolta geral, segundo parece de cunho messifinico, em que engenhos foram abandonados pelos ‘negros da terra’ € senhores lusitanos, justigados. Segundo José de Anchieta, ‘‘na Semana Santa, se levantou alguma da escravaria dos portugueses, a saber, de Japecé, Parané-mirim e outras fazendas, fugindo para o sertdo, na qual fugida mataram alguns portu- gueses, pondo fogo a algumas fazendas, rouban- doo que podiam”. Muitos destes brasis se teriam auto-vendidos, sem saberem bem 0 que seria a escravidao, durante as grandes fomes ¢ epi- demias dos anos anteriores. (ANCHIETA, 1946: 41.) Mais uma vez, a revolta era dor ajuda das tropas das aldeias jesuiticas historiador norte-americano S.B. Schwartz, a re- volta teria ocorrido no ano anterior. (SCHWARTZ, 1988: 54) Esta situagao de crise continua das co- munidades da terra expressava o crescente desen- volvimento ¢ enriquecimento da sociedade colo- nial baiana. Capitulo 23 a Descimento A agonia final Nos anos 1570, a capitania da Bafa contava com dezoito engenhos agucareiros fabricando e ex- portanto a valiosa mercadoria para a Europa. (GAN- DAVO, 1965: 77.) Na década de oitenta, jé eram 40 as, unidades produtivas na capitania. (SCHWARTZ, 1988: 34) Por esta época, em um engenho trabalhariam aproximadamente de 60 a 100 cativos. As atividades do porto e da cidade; as rogas de mantimentos; os canaviais; as plantagdes de algodao; as pescarias; as, construgdes; as criagdes de gado etc., funcionavam sobretudo com o braco escravo do homem america- no, agora apoiado pelo esforgo de uma crescente populagio servil africana. A partir do fim da década de 60, escasseando nna costa autéetones que suprissem as necessidades de cativos, os colonos voltaram-se para as popula- g6es nativas do interior. Iniciava-se o ciclo das “‘en- tradas” e dos “descimentos”. Os “descimentos”, regulados pela Coroa, eram concebidos como 0 des- locamento, voluntério, de comunidades dos sertOes, para a proximidade das povoagdes portuguesas do litoral, onde thes seriam concedidas terras, em aldeias supervisionadas pela Companhia de Jesus. Os “descimentos” deviam ser feitos pelos jesuitas ou sob sua supervisio. Os “descidos” seriam remu- nerados se viessem eventualmente a trabalhar para 0s colonos. Ao menos em teoria, os nativos tinham 0 direito a se negarem & migragdo. (PERRONE-MOISES, 1992: 118. sea.) A realidade mostrou-se muito distinta das de- terminages reais. Era bastante comum que as co- ‘munidades refugiadas nos sertdes proximos - ou que ali vivessem - fossem trazidas, pelo convencimento ou pela forga, para 0 litoral, onde eram distribuidas entre os engenhos, plantages e “‘aldeias de indios”. ‘Nas maos dos colonos, ndo raro eram reduzidos & escravidio de fato. A conquista das capitanias do Norte - Sergipe, Paraiba, Rio Grande do Norte - fornececera abundantes levas de cativos para os en- sgenhos agucareiros, plantagSes, rogas e outras unida- des produtivas. Nos anos 60, um amplo territério costeiro ainda dominado pelos brasis separava as capitanias da Bafa e de Pernambuco. N&o raro, lusi- tanos perdiam a vida aventurando-se pelos caminhos terrestres que uniam aquelas donatarias. ‘Nestas costas - visitadas freqtientemente pelos entrelopos franceses - naufragaram ¢ foram devora- dos © primeiro bispo do Brasil e seus malogrados acompanhantes. Americanos escravizados fugidos das fazendas da capitania da Baia, quando da revolta de 1568, ali teriam encontrado refiigio. Em 1574, sentindo a crescente presstio dos colonos e, é crivel,, 147 Ree Jintuindo a impossibilidade de se oporem a eles com sucesso, uma delegacdo de comunidades das regides do rio Real [fronteira entre os estados da Bahia ¢ Sergipe] chegou, & capitania da Baia, pedindo jesui- tas para suas aldeias. (LECTE, 1938: 1, 439.) Em janeiro de 1575, um sacerdote e um irmao Jesuita retornaram com os brasis Aquela regio. Por exigéncia do quarto governador-geral do Brasil, Luiz de Brito, uma ‘forga militar de vinte soldados” acompanhou-os até a barra do rio Real, onde estacio- nou. Deixando a incémoda companhia, os jesuitas penetraram sem dificuldades nos atuais territ6rios de Sergipe. O éxito catequético foi fulgurante e total. Os sacerdotes foram recebidos de bragos abertos. Em junho do mesmo ano, haviam fundado trés igre- jas, em aldeias americanas, e “pacificado” 28 ou- tras. ‘SUCESSO EFEMERO sucesso seria efémero. A Coroa ordenara anteriormente a submissio daqueles territ6rios. © governador Luiz de Brito ali possufa “umas dez léguas” de terra & espera de serem rentabilizadas. Os plantadores da capitania da Bafa exigiam de volta os cativos fugidos e necessitavam de novos bragos es- cravos. Em novembro de 1575, Luiz de Brito mobi- lizou as aldeias jesuiticas baianas, convocou os colo- nos ¢ seus “escravos', decretou uma “guerra justa” contra um principal da regio - Aperipé - e tomou 0 rumo do norte, A recém-fundada igreja de Sao Tomé serviu como base de apoio para os escravizadores. Em 21 de dezembro, 0 exército ouviu missa na “‘igreja” e participou de uma “procissiio rogatoria” pelo bom éxito da operagio. Muitos brasis da regio haviam conhecido 0 cativeiro na Bafa e temiam a reescravizagao. O prin- cipal Surubi, que tivera desavengas anteriores com 0s colonos, confiando pouco na protego garantida, pela fundago, em sua aldeia, da “‘igreja” de Santo Inacio, abandonou-a e preparou-se para o combate. Os chefs Surubi e Aperipé foram combatidos ¢ 148 facilmente derrotados e o governador cativou grande lade de brasis. A intervencao convulsionou a regido, muito populosa, ¢ ainda muito superficial- ‘mente ‘pacificada’ pelos jesuitas. Nao contando. os lusitanos com forgas suficientes para ocupé-la, tive- ram que abandoné-la. Os sacerdotes recuaram para a capitania da Baia, levando consigo 1.200 aldedes, que foram distribuidos nas “aldeias de indios” de Santiago e do Espirito Santo. Na penosa retirada em dirego do Recéncavo, 08 sacerdotes deviam vigiar estreitamente os brasis. Conta o historiador e jesufta Serafim Leite, na sua Historia da Companhia de Jesus no Brasil, que. diante dos olhos dos padres, “os tomavam os bran- cos e amarravam e escondiam pelos matos, para servir-se deles como de escravos”. Nao sabemos quantos americanos morreram ou foram escraviza- dos antes de chegarem as povoagdes baianas. O de- sastre seria total e ndo pouparia nem mesmo os que alcangaram com vida as povoagdes jesuiticas. O mesmo historiador relata que “grande parte daque- les indios morreram em breve na Bahia, vitimados por doencas epidémicas, sarampio e variola”. (LEI- ‘TE, 1938: 439-46.) ‘Na carta anua de 1581, o jésuita José de An- chieta, j& sacerdote, refere-se a um ‘descimento’, realizado sob as ordens do padre Diogo Nunes [1548-1619], destro conhecedor do tupi-guarani. ‘Comunidades estabelecidas junto a serra de Araripe, nos atuais limites dos estados do Cearé, Piaui ¢ Pemambuco, a mais de 600 quil6metros de Salva- dor, teriam mandado “embaixadores a chamar os padres, que os fossem buscar” por “nao se atreve~ rem a vir s6s”. Temeriam os perigos da viagem e os portugueses, que andavam “‘salteando os pobres in- dios”, Em novembfo de 1580, o padre Diogo Nunes partiu para a Serra, acompanhado por um outro reli- gioso e, possivelmente, por alguns brasis conversos. POUCOS CHEGARAM A viagem teria sido muito dura. Além da incle- méncia do sertio, a aventura exigia que o sacerdote negociasse previamente a passagem dos retirantes com as comunidades nativas das cercanias. Ao al- cangar 0 destino, o padre Nunes teria pregado ¢ convencido a “muitos mil” que o seguissem. O que sugere um certo exagero de Anchieta. A predisposi- ‘edo de abandonar o territdrio seria - no méximo - de apenas uma parcela dos habitantes do Araripe. En- trementes, “portugueses e mestigos”, chegados & regido, certamente a procura de cativos, teriam de- movido muitos de tal decisdo. O sacerdote teria ini ciado 0 éxodo com 580 acompanhantes. Em julho de 1581, apds escapar de tentativas de escravizacao, a triste coluna formada por homens, mulheres € criangas alcangava o destino. Dos quase 600 retirantes que haviam partido do Araripe, apenas 250 chegaram as povoagdes jesuiticas da capitania da Bafa, Na mesma carta, o padre José de Anchieta informa que, por aquelas épocas, destacamentos es- cravistas percorriam os sertdes & caga de brasis que “cem homens portugueses” teriam morrido devido a resisténcia oposta pelos autéctones. (ANCHIETA, 1984:308-311,323-4,) Apenas alguns punhados do mais de meio milhar de “descidos” alcangaram possivel- mente a reiniciar a vida no litoral Relata José de Anchieta que, ém setembro de 1581, dois meses depois da chegada da coluna do padre Nunes, explodiram na regia ‘as mais cruéis € gerais doengas, que nunca nesta terra se viram”. (ANCHIETA, 1984: 307.) Ndo sabemos quantos ex-mo- radores do Araripe, extenuados pela longa e dificil marcha, aleangaram a sobreviver & epidemia ¢ & instalagao nas aldeias jesuiticas. Um ‘inverno” duro ¢ longo, com grandes “chuvas, invernadas, frios € tempestades”, castigara a populagao © compromete- ra as colheitas, sobretudo a de mandioca. (ANCHIE- TA, 1984: 307-8) Na capitania da Baia, uma fortissima epidemia de sarampo e disenteria causava mais uma hecatom- be entre a sofrida populacdo nativa. Debilitados pela miseravel vida a que estavam reduzidos ¢ mal-ali- mentados ao extremo, os brasis morriam aos mago- tes. A falta de bragos para levar n adiante as rogas aumentava a escassez de alimentos e debilitava ain- da mais a populaco enferma. Fechava-se assim 0 circulo infernal. Alguns engenhos da regitio chega- ram a perder cingiienta cativos. Em uma aldeia jesui- tica, 600 brasis adoeciam em um sé dia. Na cidade de Salvador e seu termo, teriam morrido nove mil americanos. A. DOR DO AMO padre José de Anchieta anota candidamente a tristeza que se abateu sobre os colonos da capita. nia: “O que neste tempo mais quebrava 0 coragao era o desamparo dos [brasis] que morriam, porque os mais era a mingua. E também dos portugueses que, com ais e gemidos, choravam sem remédio o pouco ou nenhum [eativo], thes ficava de vida, porque na verdade, morta a escravaria e indios, nao ha [como] viver nesta terra.”” (ANCHIETA,1984: 308.) A rarefaco das comunidades nativas colocava um grave proble- ma aos lusitanos. A escassez de mao-de-obra podia sustar 0 acelerado desenvolvimento da producdo agucareira que consumia pantofagicamente trabalha- dores escravizados. ciclo do “descimento” das comunidades brasilicas do interior exige estudos que explicitem todas as suas implicagGes. Parece terem sido varias as razdes que facilitaram a transferéncia voluntaria ou semivoluntéria, sem maior resisténcia, de nume- rosas aldeias do interior em dire¢o ao mar. A cons- ciéncia da superioridade militar e civilizatoria lusita- na estaria profundamente implantada na alma dos povos tupinambas e outros. Algumas das comunida- des “‘descidas” eram originérias do litoral e haviam penetrado nos sertdes para furtarem-se aos ataques lusitanos. Viviam em um ambiente indspito ¢ sonha- vam com os antigos tempos de abundancia que ti- ham conhecido junto ao mar. Receberiam com ale- gria as promessas de poderem voltar para o litoral e ali se estabelecerem com seguranga. 149 Re Como vimos, 0 talvez mais difundido mito messifinico tupi-guarani era a procura da “terra sem males”, reino terreno de abundancia e juventude eterna. O antropélogo A. Métraux lembra: “Reina a respeito da situagao da ‘terra sem mal’ duas opinides divergentes: alguns a localizam no centro da terra, [.-1: Pessoas competentes, entretanto, estio de acor- do em assegurar que a ‘terra sem mal’ fica situada para o oeste, além do mar. A conjuntura dessas iti ‘mas pareceu ter prevalecido, pois foi sempre 0 ocea- no que os tupis, migrando & procura do paraiso, procuraram atingir.” (METRAUX, 1950: 333.) Segundo parece, no minimo a partir da terceira década do quinhentos, pressionadas pela colonize- Go lusitana, grandes migracdes tupinambés parti ram do atual litoral de Pemambuco e da Bahia em diregao do norte e noroeste. A rica varzea do Ama- zonas ¢ de seus tributérios foram um dos palcos destes impressionantes deslocamentos populacio- nais. Em 1538, uma importante vaga migratoria en- contrava-se na regido entre os rios Tefé e Coari, no alto Amazonas e, em 1549, chegava, dizimada, a vila de Chachapoyas, no Peru, Os tupinambas ocuparam, igualmente, a ilha de Tupinambarana, no médio Amazonas, regides do Maranhao, a partir de 1580. (PORRO, 1993: 16,23 et passim.) As comunidades que se embrenhavam nos ser- {es sentiriam a falta da antiga abundancia do litoral. Esta era em verdade a terra da promissio. Eram os pajés que galvanizavam e dirigiam as comunidades tupi-guaranis quando destes movimentos migraté- rios. Numa época de derrota diante dos colonos profunda descresea em suas forgas, sacerdotes e co- lonos certamente assumiriam com facilidade o papel de Moisés americano nesta migrago das comunida- des tupinambas do interior para o desastre & beira- mar. (PAUSTO, 1992: 385,) A dizimagio das comunidades do litoral signi- ficaria, para muitas outras, que viviam no interior, ‘uma excepcional ocasiao para ocuparem terras que cobigavam ou de onde haviam sido expulsas em tempos passados. A medida que desapareciam as 150 comunidades da costa, os portugueses internavam-se nds sert0es a procura de brasis. Milhares de america- nos foram transferidos para o litoral. As expedigies escravizadoras luso-brasileiras que trilhavam os ser- t0es & procura de cativos levavam muitas comunida- des a adearem-se, no litoral, sob a protecao jesuitica, na esperanga de que tal medida as protegessem dos escravizadores. As “aldeias de indios” passaram a abrigar uma crescente e eclética populagdo de brasis de varias procedéncia e culturas. BASTAVA UM PARENTE Frei Vicente do Salvador, em sua Histéria do Brasil, referiu-se as “‘descidas” realizadas, na déca- da de 70, durante a administragao de Luiz de Brito de Almeida, quarto governador-geral e ferrenho es- cravizador: “Mas ordinariamente bastava a lingua do parente mameluco, que hes representava a fartu- ra do peixe e mariscos do mar de que la careciam, a liberdade de que haviam de gozar, a qual nao teriam Se 0S trouxessem por guerra. Com estes enganos com algumas dadivas de roupas e ferramentas que davam aos principais ¢ resgates que Ihes davam pe~ los que tinham presos em cordas para os comerem, abalavam aldeias inteiras, e em chegando a vista do mar, apartavam os filhos dos pais, os irmaos dos irmaos ¢ ainda as vezes a mulher do marido [...].” ‘Ao menos em teoria, os brasis distribuidos entre os colonos nao eram escravos. (SALVADOR, 1982: 181.) As durissimas condigdes de existéncia dos ca- tivos nos engenhos ¢ nas outras atividades coloniais determinavam altissimas taxas de mortalidade Como os habitantes do litoral, as populagdes desci- das acabavam-se com rapidez. Possiveimente em 1587, Anchieta escreveria sobre a hecatombe popu- lacional brasilica: “A gente que de 20 anos a esta parte é gastada, nesta Baia, parece coisa que se no pode crer; porque nunca ninguém cuidou facreditou] ‘que tanta gente se gastasse, nunca, quanto mais em ‘0 pouco tempo [...].” Segundo ele, tao despovoado estaria o litoral que os escravizadores eram obriga- dos a penetrar mais de 250 Iéguas os sertdes para obterem cativos. Devido as distincias, boa parte dos capturados morria durante a viagem. (ANCHIETA, 1946: 47-9, Quando os brasis do interior comegaram a es- cassear, os colonos voltaram-se decididamente para 0 trifico negreiro. As centenas de milhares de brasis, escravizados permitiram a acumulagdo de capitais que financiariam a importacdo de trabalhadores es- cravizados da Africa. Com 0 trafico negreiro, abria- se todo uma nova pagina da histéria do Brasil colo- nial, Em uma carta de 1581, referindo- se & capitania da Baia, o padre José de Anchieta escreveu: *“Cres- ceu tanto 0 trato dos escravos, que de Guiné vém para esta terra, que este ano se tem por certo serem tentrados, s6 nesta cidade, mais de dois mil.” E infor- mava que fora delegado a um jesuita instruir os africanos “nas coisas da 8” e que se fundara para cles a confraria de “Nossa Senhora do Rosirio”. (ANCHIETA, 1984: 312) José de Anchieta acreditava que tais medidas ajudariam a manter os “negros da Guiné” “domésticos”. que - para o jesufta - era deveras necessério. Segundo 0 sacerdote, os africanos mostravam- se rebeldes - ““pouco sofredores de superioridade” ~ €. mesmo quando eram poucos, ja haviam tentado rebelar-se. (ANCHIETA, 1984: 312.) © medo dos colo- ‘nos luso-brasileiros do ‘fndio antropéfago” meta- morfoseava-se no temor ao ‘negro insubmisso’. O historiador norte-americano S.B. Schwartz acredita que, na capitania da Baia, a “transigao para uma forga de trabalho africana” tenha sido “efetuada nas primeiras duas décadas do século XVII", (SCHWARTZ, 1988: 68.) Por estas épocas, jé comesa. vam a pertencer & historia as comunidades tupinam. bas que senhoreavam indémitas o litoral brasileiro quando da descoberta cabralina. 131

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