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PERSPECTIVAS ATUAIS DA EDUCAÇÃO

PERSPECTIVAS ATUAIS DA EDUCAÇÃO

MOACIR GADOTTI
Professor da Universidade de São Paulo e Diretor do Instituto Paulo Freire.
Autor, dentre outras obras, de Perspectivas atuais da educação.

Resumo: O conhecimento tem presença garantida em qualquer projeção que se faça do futuro. Por isso há um
consenso de que o desenvolvimento de um país está condicionado à qualidade da sua educação. Nesse contex-
to, as perspectivas para a educação são otimistas. A pergunta que se faz é: qual educação, qual escola, qual
aluno, qual professor? Este artigo busca compreender a educação no contexto da globalização e da era da
informação, tira conseqüências desse processo e aponta o que poderá permanecer da "velha" educação, indi-
cando algumas categorias fundantes da educação do futuro.
Palavras-chave: política educacional; globalização e ensino; educação e sociedade.

N
as últimas duas décadas do século XX assistiu- rida entre a educação e a catástrofe”. A julgar pelas duas
se a grandes mudanças tanto no campo socio- grandes guerras que marcaram a “História da Humanida-
econômico e político quanto no da cultura, da de”, na primeira metade do século XX, a catástrofe ven-
ciência e da tecnologia. Ocorreram grandes movimentos ceu. No início dos anos 50, dizia-se que só havia uma al-
sociais, como aqueles no leste europeu, no final dos anos ternativa: “socialismo ou barbárie” (Cornelius Castoriadis),
80, culminando com a queda do Muro de Berlim. Ainda mas chegou-se ao final do século com a derrocada do so-
não se tem idéia clara do que deverá representar, para todos cialismo burocrático de tipo soviético e enfraquecimento
nós, a globalização capitalista da economia, das comuni- da ética socialista. E mais: pela primeira vez na história
cações e da cultura. As transformações tecnológicas tor- da humanidade, não por efeito de armas nucleares, mas
naram possível o surgimento da era da informação. pelo descontrole da produção industrial, pode-se destruir
É um tempo de expectativas, de perplexidade e da cri- toda a vida do planeta. Mais do que a solidariedade, esta-
se de concepções e paradigmas não apenas porque inicia- mos vendo crescer a competitividade. Venceu a barbárie,
se um novo milênio – época de balanço e de reflexão, época de novo? Qual o papel da educação neste novo contexto
em que o imaginário parece ter um peso maior. O ano 2000 político? Qual é o papel da educação na era da informa-
exerceu um fascínio muito grande em muitas pessoas. Paulo ção? Que perspectivas podemos apontar para a educação
Freire dizia que queria chegar ao ano 2000 (acabou fale- nesse início do Terceiro Milênio? Para onde vamos?
cendo três anos antes). É um momento novo e rico de pos- Para iniciar, verifica-se o significado da palavra “pers-
sibilidades. Por isso, não se pode falar do futuro da edu- pectiva”. A palavra “perspectiva” vem do latim tardio
cação sem certa dose de cautela. É com essa cautela que “perspectivus”, que deriva de dois verbos: perspecto, que
serão examinadas, neste artigo, algumas das perspectivas significa “olhar até o fim, examinar atentamente”; e
atuais da teoria e da prática da educação, apoiando-se perspicio, que significa “olhar através, ver bem, olhar aten-
naqueles educadores e filósofos que tentaram, em meio a tamente, examinar com cuidado, reconhecer claramente”
essa perplexidade, apesar de tudo, apontar algum cami- (Dicionário Escolar Latino-Português, de Ernesto Faria).
nho para o futuro. A perplexidade e a crise de paradigmas A palavra “perspectiva” é rica de significações. Segundo
não podem se constituir num álibi para o imobilismo. o Dicionário de filosofia, do filósofo italiano Nicola
No início deste século, H. G. Wells dizia que “a Histó- Abbagnano, perspectiva seria “uma antecipação qualquer
ria da Humanidade é cada vez mais a disputa de uma cor- do futuro: projeto, esperança, ideal, ilusão, utopia. O ter-

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mo exprime o mesmo conceito de possibilidade mas de da educação atual, podem ser destacados alguns marcos,
um ponto de vista mais genérico e que menos compro- algumas pegadas, que persistem e poderão persistir na
mete, dado que podem aparecer como perspectivas coi- educação do futuro.
sas que não têm suficiente consistência para serem possi-
bilidades autênticas”. Para o Dicionário Aurélio, muito Educação Tradicional
conhecido entre nós, brasileiros, perspectiva é a “arte de
representar os objetos sobre um plano tais como se apre- Enraizada na sociedade de classes escravista da Idade
sentam à vista; pintura que representa paisagens e edifí- Antiga, destinada a uma pequena minoria, a educação tra-
cios a distância; aspecto dos objetos vistos de uma certa dicional iniciou seu declínio já no movimento renascentista,
distância; panorama; aparência, aspecto; aspecto sob o mas ela sobrevive até hoje, apesar da extensão média da
qual uma coisa se apresenta, ponto de vista; expectativa, escolaridade trazida pela educação burguesa. A educação
esperança”. Perspectiva significa ao mesmo tempo nova, que surge de forma mais clara a partir da obra de
enfoque, quando se fala, por exemplo, em perspectiva Rousseau, desenvolveu-se nesses últimos dois séculos e
política, e possibilidade, crença em acontecimentos con- trouxe consigo numerosas conquistas, sobretudo no cam-
siderados prováveis e bons. Falar em perspectivas é falar po das ciências da educação e das metodologias de ensi-
de esperança no futuro. no. O conceito de “aprender fazendo” de John Dewey e as
Hoje muitos educadores, perplexos diante das rápidas técnicas Freinet, por exemplo, são aquisições definitivas
mudanças na sociedade, na tecnologia e na economia, na história da pedagogia. Tanto a concepção tradicional
perguntam-se sobre o futuro de sua profissão, alguns com de educação quanto a nova, amplamente consolidadas,
medo de perdê-la sem saber o que devem fazer. Então, terão um lugar garantido na educação do futuro.
aparecem, no pensamento educacional, todas as palavras A educação tradicional e a nova têm em comum a con-
citadas por Abbagnano e Aurélio: “projeto” político-pe- cepção da educação como processo de desenvolvimento
dagógico, pedagogia da “esperança”, “ideal” pedagógi- individual. Todavia, o traço mais original da educação
co, “ilusão” e “utopia” pedagógica, o futuro como “pos- desse século é o deslocamento de enfoque do individual
sibilidade”. Fala-se muito hoje em “cenários” possíveis para o social, para o político e para o ideológico. A peda-
para a educação, portanto, em “panoramas”, representa- gogia institucional é um exemplo disso. A experiência
ção de “paisagens”. Para se desenhar uma perspectiva é de mais de meio século de educação nos países socialis-
preciso “distanciamento”. É sempre um “ponto de vista”. tas também o testemunha. A educação, no século XX,
Todas essas palavras entre aspas indicam uma certa dire- tornou-se permanente e social. É verdade, existem ainda
ção ou, pelo menos, um horizonte em direção ao qual se muitos desníveis entre regiões e países, entre o Norte e o
caminha ou se pode caminhar. Elas designam “expectati- Sul, entre países periféricos e hegemônicos, entre países
vas” e anseios que podem ser captados, capturados, siste- globalizadores e globalizados. Entretanto, há idéias uni-
matizados e colocados em evidência. versalmente difundidas, entre elas a de que não há idade
para se educar, de que a educação se estende pela vida e
UM PASSADO SEMPRE PRESENTE que ela não é neutra.

A virada do milênio é razão oportuna para um balanço Educação Internacionalizada


sobre práticas e teorias que atravessaram os tempos. Fa-
lar de “perspectivas atuais da educação” é também falar, No início da segunda metade deste século, educadores
discutir, identificar o “espírito” presente no campo das idéias, e políticos imaginaram uma educação internacionaliza-
dos valores e das práticas educacionais que as perpassa, da, confiada a uma grande organização, a Unesco. Os paí-
marcando o passado, caracterizando o presente e abrindo ses altamente desenvolvidos já haviam universalizado o en-
possibilidades para o futuro. Algumas perspectivas teóri- sino fundamental e eliminado o analfabetismo. Os sistemas
cas que orientaram muitas práticas poderão desaparecer, nacionais de educação trouxeram um grande impulso,
e outras permanecerão em sua essência. Quais teorias e desde o século passado, possibilitando numerosos planos
práticas fixaram-se no ethos educacional, criaram raízes, de educação, que diminuíram custos e elevaram os bene-
atravessaram o milênio e estão presentes hoje? Para en- fícios. A tese de uma educação internacional já existia
tender o futuro é preciso revisitar o passado. No cenário deste 1899, quando foi fundado, em Bruxelas, o Bureau In-

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ternacional de Novas Escolas, por iniciativa do educador nos debates educacionais. Nesta perspectiva, pode-se in-
Adolphe Ferrière. Como resultado, tem-se hoje uma gran- cluir as reflexões de Edgar Morin, que critica a razão
de uniformidade nos sistemas de ensino. Pode-se dizer que produtivista e a racionalização modernas, propondo uma
hoje todos os sistemas educacionais contam com uma estru- lógica do vivente. Esses paradigmas sustentam um prin-
tura básica muito parecida. No final do século XX, o fenô- cípio unificador do saber, do conhecimento, em torno do
meno da globalização deu novo impulso à idéia de uma edu- ser humano, valorizando o seu cotidiano, o seu vivido, o
cação igual para todos, agora não como princípio de justiça pessoal, a singularidade, o entorno, o acaso e outras cate-
social, mas apenas como parâmetro curricular comum. gorias como: decisão, projeto, ruído, ambigüidade,
finitude, escolha, síntese, vínculo e totalidade.
Novas Tecnologias Essas seriam algumas das categorias dos paradigmas
chamados holonômicos. Etimologicamente, holos, em gre-
As conseqüências da evolução das novas tecnologias, go, significa todo e os novos paradigmas procuram centrar-
centradas na comunicação de massa, na difusão do co- se na totalidade. Mais do que a ideologia, seria a utopia
nhecimento, ainda não se fizeram sentir plenamente no que teria essa força para resgatar a totalidade do real, tota-
ensino – como previra McLuhan já em 1969 –, pelo me- lidade perdida. Para os defensores desses novos para-
nos na maioria das nações, mas a aprendizagem a distân- digmas, os paradigmas clássicos – identificados no
cia, sobretudo a baseada na Internet, parece ser a grande positivismo e no marxismo – seriam marcados pela ideo-
novidade educacional neste início de novo milênio. A edu- logia e lidariam com categorias redutoras da totalidade.
cação opera com a linguagem escrita e a nossa cultura Ao contrário, os paradigmas holonômicos pretendem res-
atual dominante vive impregnada por uma nova lingua- taurar a totalidade do sujeito, valorizando a sua iniciativa
gem, a da televisão e a da informática, particularmente a e a sua criatividade, valorizando o micro, a complementa-
linguagem da Internet. A cultura do papel representa tal- ridade, a convergência e a complexidade. Para eles, os
vez o maior obstáculo ao uso intensivo da Internet, em paradigmas clássicos sustentam o sonho milenarista de uma
particular da educação a distância com base na Internet. sociedade plena, sem arestas, em que nada perturbaria um
Por isso, os jovens que ainda não internalizaram inteira- consenso sem fricções. Ao aceitar como fundamento da
mente essa cultura adaptam-se com mais facilidade do que educação uma antropologia que concebe o homem como
os adultos ao uso do computador. Eles já estão nascendo um ser essencialmente contraditorial, os paradigmas
com essa nova cultura, a cultura digital. holonômicos pretendem manter, sem pretender superar,
Os sistemas educacionais ainda não conseguiram ava- todos os elementos da complexidade da vida.
liar suficientemente o impacto da comunicação audio- Os holistas sustentam que o imaginário e a utopia são
visual e da informática, seja para informar, seja para bi- os grandes fatores instituintes da sociedade e recusam uma
tolar ou controlar as mentes. Ainda trabalha-se muito com ordem que aniquila o desejo, a paixão, o olhar e a escuta.
recursos tradicionais que não têm apelo para as crianças Os enfoques clássicos, segundo eles, banalizam essas di-
e jovens. Os que defendem a informatização da educação mensões da vida porque sobrevalorizam o macro-estru-
sustentam que é preciso mudar profundamente os méto- tural, o sistema, em que tudo é função ou efeito das supe-
dos de ensino para reservar ao cérebro humano o que lhe restruturas socioeconômicas ou epistêmicas, lingüísticas
é peculiar, a capacidade de pensar, em vez de desenvol- e psíquicas. Para os novos paradigmas, a história é
ver a memória. Para ele, a função da escola será, cada essencialmente possibilidade, em que o que vale é o ima-
vez mais, a de ensinar a pensar criticamente. Para isso é ginário (Gilbert Durand, Cornelius Castoriadis), o proje-
preciso dominar mais metodologias e linguagens, inclu- to. Existem tantos mundos quanto nossa capacidade de
sive a linguagem eletrônica. imaginar. Para eles, “a imaginação está no poder”, como
queriam os estudantes em maio de 1968.
Paradigmas Holonômicos Na verdade, essas categorias não são novas na teoria da
educação, mas hoje são lidas e analisadas com mais simpa-
Entre as novas teorias surgidas nesses últimos anos, tia do que no passado. Sob diversas formas e com diferentes
despertaram interesse dos educadores os chamados significados, essas categorias são encontradas em muitos in-
paradigmas holonômicos, ainda pouco consistentes. Com- telectuais, filósofos e educadores, de ontem e de hoje: o “sen-
plexidade e holismo são palavras cada vez mais ouvidas tido do outro”, a “curiosidade” (Paulo Freire), a “tolerân-

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cia” (Karl Jaspers), a “estrutura de acolhida” (Paul Ricoeur), temunha o Fórum Paulo Freire, que se realiza de dois em
o “diálogo” (Martin Buber), a “autogestão” (Celestin Freinet, dois anos, reunindo educadores de muitos países.
Michel Lobrot), a “desordem” (Edgar Morin), a “ação co- As práticas de educação popular também constituem-
municativa”, o “mundo vivido” (Jürgen Habermas), a se em mecanismos de democratização, em que se refletem
“radicalidade” (Agnes Heller), a “empatia” (Carl Rogers), a os valores de solidariedade e de reciprocidade e novas
“questão de gênero” (Moema Viezzer, Nelly Stromquist), o formas alternativas de produção e de consumo, sobretu-
“cuidado” (Leonardo Boff), a “esperança” (Ernest Bloch), a do as práticas de educação popular comunitária, muitas
“alegria” (Georges Snyders), a unidade do homem contra as delas voluntárias. O Terceiro Setor está crescendo não
“unidimensionalizações” (Herbert Marcuse), etc. apenas como alternativa entre o Estado burocrático e o
Evidentemente, nem todos esses autores aceitariam mercado insolidário, mas também como espaço de novas
enquadrar-se nos paradigmas holonômicos. Todas as clas- vivências sociais e políticas hoje consolidadas com as
sificações e tipologias, no campo das idéias, são necessa- organizações não-governamentais (ONGs) e as organiza-
riamente reducionistas. Não se pode negar as divergên- ções de base comunitária (OBCs). Este está sendo hoje o
cias existentes entre eles. Contudo, as categorias apontadas campo mais fértil da educação popular.
anteriormente indicam uma certa tendência, ou melhor, Diante desse quadro, a educação popular, como mo-
uma perspectiva da educação. Os que sustentam os pa- delo teórico reconceituado, tem oferecido grandes alter-
radigmas holonômicos procuram buscar na unidade dos nativas. Dentre elas, está a reforma dos sistemas de
contrários e na cultura contemporânea um sinal dos tem- escolarização pública. A vinculação da educação popu-
pos, uma direção do futuro, que eles chamam de pedago- lar com o poder local e a economia popular abre, tam-
gia da unidade. bém, novas e inéditas possibilidades para a prática da edu-
cação. O modelo teórico da educação popular, elaborado
Educação Popular na reflexão sobre a prática da educação durante várias dé-
cadas, tornou-se, sem dúvida, uma das grandes contri-
O paradigma da educação popular, inspirado original- buições da América Latina à teoria e à prática educativa
mente no trabalho de Paulo Freire nos anos 60, encontra- em âmbito internacional. A noção de aprender a partir do
va na conscientização sua categoria fundamental. A prá- conhecimento do sujeito, a noção de ensinar a partir de
tica e a reflexão sobre a prática levaram a incorporar outra palavras e temas geradores, a educação como ato de
categoria não menos importante: a da organização. Afi- conhecimento e de transformação social e a politicidade
nal, não basta estar consciente, é preciso organizar-se para da educação são apenas alguns dos legados da educação
poder transformar. Nos últimos anos, os educadores que popular à pedagogia crítica universal.
permaneceram fiéis aos princípios da educação popular
atuaram principalmente em duas direções: na educação Universalização da Educação Básica e
pública popular – no espaço conquistado no interior do Novas Matrizes Teóricas
Estado –; e na educação popular comunitária e na edu-
cação ambiental ou sustentável, predominantemente não- Neste começo de um novo milênio, a educação apresen-
governamentais. Durante os regimes autoritários da Amé- ta-se numa dupla encruzilhada: de um lado, o desempenho
rica Latina, a educação popular manteve sua unidade, do sistema escolar não tem dado conta da universalização
combatendo as ditaduras e apresentando projetos “alter- da educação básica de qualidade; de outro, as novas matri-
nativos”. Com as conquistas democráticas, ocorreu com zes teóricas não apresentam ainda a consistência global ne-
a educação popular uma grande fragmentação em dois sen- cessária para indicar caminhos realmente seguros numa época
tidos: de um lado ela ganhou uma nova vitalidade no in- de profundas e rápidas transformações. Essa é uma das preo-
terior do Estado, diluindo-se em suas políticas públicas; cupações do Instituto Paulo Freire, buscando, a partir do le-
e, de outro, continuou como educação não-formal, dis- gado de Paulo Freire, consolidar o seu “Projeto da Escola
persando-se em milhares de pequenas experiências. Per- Cidadã”, como resposta à crise de paradigmas. A concep-
deu em unidade, ganhou em diversidade e conseguiu atra- ção teórica e as práticas desenvolvidas a partir do conceito
vessar numerosas fronteiras. Hoje ela incorporou-se ao de Escola Cidadã podem constituir-se numa alternativa vi-
pensamento pedagógico universal e orienta a atuação de ável, de um lado, ao projeto neoliberal de educação, ampla-
muitos educadores espalhados pelo mundo, como o tes- mente hegemônico, baseado na ética do mercado, e, de ou-

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tro lado, à teoria e à prática de uma educação burocrática, uma área ou especialidade para se tornar uma dimensão
sustentada na “estadolatria” (Antonio Gramsci). É uma es- de tudo, transformando profundamente a forma como a
cola que busca fortalecer autonomamente o seu projeto po- sociedade se organiza. Pode-se dizer que está em anda-
lítico-pedagógico, relacionando-se dialeticamente – não mento uma Revolução da Informação, como ocorreram no
mecânica e subordinadamente – com o mercado, o Estado e passado a Revolução Agrícola e a Revolução Industrial.
a sociedade. Ela visa formar o cidadão para controlar o mer- Ladislau Dowbor (1998), após descrever as facilidades
cado e o Estado, sendo, ao mesmo tempo, pública quanto ao que as novas tecnologias oferecem ao professor, se pergun-
seu destino – isto é, para todos – estatal quanto ao financia- ta: o que eu tenho a ver com tudo isso, se na minha escola
mento e democrática e comunitária quanto à sua gestão. não tem nem biblioteca e com o meu salário eu não posso
Seja qual for a perspectiva que a educação contempo- comprar um computador? Ele mesmo responde que será pre-
rânea tomar, uma educação voltada para o futuro será ciso trabalhar em dois tempos: o tempo do passado e o tem-
sempre uma educação contestadora, superadora dos limi- po do futuro. Fazer tudo hoje para superar as condições do
tes impostos pelo Estado e pelo mercado, portanto, uma atraso e, ao mesmo tempo, criar as condições para aprovei-
educação muito mais voltada para a transformação so- tar amanhã as possibilidades das novas tecnologias.
cial do que para a transmissão cultural. Por isso, acredi- As novas tecnologias criaram novos espaços do conhe-
ta-se que a pedagogia da práxis, como uma pedagogia cimento. Agora, além da escola, também a empresa, o es-
transformadora, em suas várias manifestações, pode ofe- paço domiciliar e o espaço social tornaram-se educativos.
recer um referencial geral mais seguro do que as pedago- Cada dia mais pessoas estudam em casa, pois podem, de
gias centradas na transmissão cultural, neste momento de casa, acessar o ciberespaço da formação e da aprendiza-
perplexidade. gem a distância, buscar “fora” – a informação disponível
nas redes de computadores interligados – serviços que res-
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E EDUCAÇÃO pondem às suas demandas de conhecimento. Por outro lado,
a sociedade civil (ONGs, associações, sindicatos, igrejas,
Costuma-se definir nossa era como a era do conheci- etc.) está se fortalecendo não apenas como espaço de tra-
mento. Se for pela importância dada hoje ao conhecimento, balho, em muitos casos, voluntário, mas também como
em todos os setores, pode-se dizer que se vive mesmo na espaço de difusão de conhecimentos e de formação conti-
era do conhecimento, na sociedade do conhecimento, so- nuada. É um espaço potencializado pelas novas tecnolo-
bretudo em conseqüência da informatização e do proces- gias, inovando constantemente nas metodologias. Novas
so de globalização das telecomunicações a ela associa- oportunidades parecem abrir-se para os educadores. Es-
do. Pode ser que, de fato, já se tenha ingressado na era do ses espaços de formação têm tudo para permitir maior
conhecimento, mesmo admitindo que grandes massas da democratização da informação e do conhecimento, por-
população estejam excluídas dele. Todavia, o que se cons- tanto, menos distorção e menos manipulação, menos con-
tata é a predominância da difusão de dados e informa- trole e mais liberdade. É uma questão de tempo, de políti-
ções e não de conhecimentos. Isso está sendo possível cas públicas adequadas e de iniciativa da sociedade. A
graças às novas tecnologias que estocam o conhecimen- tecnologia não basta. É preciso a participação mais inten-
to, de forma prática e acessível, em gigantescos volumes sa e organizada da sociedade. O acesso à informação não
de informações, que são armazenadas inteligentemente, é apenas um direito. É um direito fundamental, um direito
permitindo a pesquisa e o acesso de maneira muito sim- primário, o primeiro de todos os direitos, pois sem ele não
ples, amigável e flexível. É o que já acontece com a se tem acesso aos outros direitos.
Internet: para ser “usuário”, basta dispor de uma linha Na formação continuada necessita-se de maior inte-
telefônica e um computador. “Usuário” não significa aqui gração entre os espaços sociais (domiciliar, escolar, em-
apenas receptor de informações, mas também emissor de presarial, etc.), visando equipar o aluno para viver me-
informações. Pela Internet, a partir de qualquer sala de lhor na sociedade do conhecimento. Como previa Herbert
aula do planeta, pode-se acessar inúmeras bibliotecas em McLuhan, o planeta tornou-se a nossa sala de aula e o
muitas partes do mundo. As novas tecnologias permitem nosso endereço. O ciberespaço não está em lugar nenhum,
acessar conhecimentos transmitidos não apenas por pala- pois está em todo o lugar o tempo todo. Estar num lugar
vras, mas também por imagens, sons, fotos, vídeos (hiper- significaria estar determinado pelo tempo (hoje, ontem,
mídia), etc. Nos últimos anos, a informação deixou de ser amanhã). No ciberespaço, a informação está sempre e per-

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manentemente presente e em renovação constante. O entar criticamente, sobretudo as crianças e jovens, na busca
ciberespaço rompeu com a idéia de tempo próprio para a de uma informação que os faça crescer e não embrutecer.
aprendizagem. Não há tempo e espaço próprios para a Hoje vale tudo para aprender. Isso vai além da “reci-
aprendizagem. Como ele está todo o tempo em todo lu- clagem” e da atualização de conhecimentos e muito mais
gar, o espaço da aprendizagem é aqui – em qualquer lugar – além da “assimilação” de conhecimentos. A sociedade do
e o tempo de aprender é hoje e sempre. A sociedade do co- conhecimento possui múltiplas oportunidades de apren-
nhecimento se traduz por redes, “teias” (Ivan Illich), “árvo- dizagem: parcerias entre o público e o privado (família,
res do conhecimento” (Humberto Maturana), sem hierarqui- empresa, associações, etc.); avaliações permanentes; de-
as, em unidades dinâmicas e criativas, favorecendo a bate público; autonomia da escola; generalização da ino-
conectividade, o intercâmbio, consultas entre instituições e vação. As conseqüências para a escola e para a educação
pessoas, articulação, contatos e vínculos, interatividade. A em geral são enormes: ensinar a pensar; saber comuni-
conectividade é a principal característica da Internet. car-se; saber pesquisar; ter raciocínio lógico; fazer sínte-
O conhecimento é o grande capital da humanidade. Não ses e elaborações teóricas; saber organizar o seu próprio
é apenas o capital da transnacional que precisa dele para trabalho; ter disciplina para o trabalho; ser independente
a inovação tecnológica. Ele é básico para a sobrevivên- e autônomo; saber articular o conhecimento com a práti-
cia de todos e, por isso, não deve ser vendido ou compra- ca; ser aprendiz autônomo e a distância.
do, mas sim disponibilizado a todos. Esta é a função de Neste contexto de impregnação do conhecimento, cabe
instituições que se dedicam ao conhecimento apoiado nos à escola: amar o conhecimento como espaço de realiza-
avanços tecnológicos. Espera-se que a educação do futu- ção humana, de alegria e de contentamento cultural; se-
ro seja mais democrática, menos excludente. Essa é ao lecionar e rever criticamente a informação; formular hi-
mesmo tempo nossa causa e nosso desafio. Infelizmente, póteses; ser criativa e inventiva (inovar); ser provocadora
diante da falta de políticas públicas no setor, acabaram de mensagens e não pura receptora; produzir, construir e
surgindo “indústrias do conhecimento”, prejudicando uma reconstruir conhecimento elaborado. E mais: numa pers-
possível visão humanista, tornando-o instrumento de lu- pectiva emancipadora da educação, a escola tem que fa-
cro e de poder econômico. zer tudo isso em favor dos excluídos, não discriminando
A educação, em particular a educação a distância, é o pobre. Ela não pode distribuir poder, mas pode cons-
um bem coletivo e, por isso, não deve ser regulada pelo truir e reconstruir conhecimentos, saber, que é poder.
jogo do mercado, nem pelos interesses políticos ou pelo Numa perspectiva emancipadora da educação, a tecnologia
furor legiferante de regulamentar, credenciar, autorizar, contribui muito pouco para a emancipação dos excluídos
reconhecer, avaliar, etc. de muitos tecnoburocratas. Quem se não for associada ao exercício da cidadania.
deve decidir sobre a qualidade dos seus certificados não Como diz Ladislau Dowbor (1998:259), a escola dei-
é nem o Estado e nem o mercado, mas sim a sociedade e xará de ser “lecionadora” para ser “gestora do conhecimen-
o sujeito aprendente. Na era da informação generalizada, to”. Segundo o autor, “pela primeira vez a educação tem a
existirá ainda necessidade de diplomas? possibilidade de ser determinante sobre o desenvolvimen-
O que cabe à escola na sociedade informacional? Cabe to”. A educação tornou-se estratégica para o desenvolvi-
a ela organizar um movimento global de renovação cul- mento, mas, para isso, não basta “modernizá-la”, como
tural, aproveitando-se de toda essa riqueza de informa- querem alguns. Será preciso transformá-la profundamente.
ções. Hoje é a empresa que está assumindo esse papel ino- A escola precisa ter projeto, precisa de dados, precisa
vador. A escola não pode ficar a reboque das inovações fazer sua própria inovação, planejar-se a médio e a longo
tecnológicas. Ela precisa ser um centro de inovação. Te- prazos, fazer sua própria reestruturação curricular, ela-
mos uma tradição de dar pouca importância à educação borar seus parâmetros curriculares, enfim, ser cidadã. As
tecnológica, a qual deveria começar já na educação infantil. mudanças que vêm de dentro das escolas são mais dura-
Na sociedade da informação, a escola deve servir de douras. Da sua capacidade de inovar, registrar, sistemati-
bússola para navegar nesse mar do conhecimento, supe- zar a sua prática/experiência, dependerá o seu futuro. Nes-
rando a visão utilitarista de só oferecer informações “úteis” se contexto, o educador é um mediador do conhecimento,
para a competitividade, para obter resultados. Deve ofe- diante do aluno que é o sujeito da sua própria formação.
recer uma formação geral na direção de uma educação Ele precisa construir conhecimento a partir do que faz e,
integral. O que significa servir de bússola? Significa ori- para isso, também precisa ser curioso, buscar sentido para

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o que faz e apontar novos sentidos para o que fazer dos longo de toda a vida (Lifelong Learning) fundada em
seus alunos. quatro pilares que são ao mesmo tempo pilares do co-
Em geral, temos a tendência de desvalorizar o que fa- nhecimento e da formação continuada. Esses pilares po-
zemos na escola e de buscar receitas fora dela quando é dem ser tomados também como bússola para nos orientar
ela mesma que deveria governar-se. É dever dela ser ci- rumo ao futuro da educação.
dadã e desenvolver na sociedade a capacidade de gover-
nar e controlar o desenvolvimento econômico e o merca- Aprender a conhecer – Prazer de compreender, desco-
do. A cidadania precisa controlar o Estado e o mercado, brir, construir e reconstruir o conhecimento, curiosidade,
verdadeira alternativa ao capitalismo neoliberal e ao so- autonomia, atenção. Inútil tentar conhecer tudo. Isso su-
cialismo burocrático e autoritário. A escola precisa dar o põe uma cultura geral, o que não prejudica o domínio de
exemplo, ousar construir o futuro. Inovar é mais impor- certos assuntos especializados. Aprender a conhecer é mais
tante do que reproduzir com qualidade o que existe. A do que aprender a aprender. Aprender mais linguagens e
matéria-prima da escola é sua visão do futuro. metodologias do que conteúdos, pois estes envelhecem
A escola está desafiada a mudar a lógica da constru- rapidamente. Não basta aprender a conhecer. É preciso
ção do conhecimento, pois a aprendizagem agora ocupa aprender a pensar, a pensar a realidade e não apenas “pen-
toda a nossa vida. E porque passamos todo o tempo de sar pensamentos”, pensar o já dito, o já feito, reproduzir
nossas vidas na escola – não só nós, professores – deve- o pensamento. É preciso pensar também o novo, reinventar
mos ser felizes nela. A felicidade na escola não é uma o pensar, pensar e reinventar o futuro.
questão de opção metodológica ou ideológica, mas sim
uma obrigação essencial dela. Como diz Georges Snyders Aprender a fazer – É indissociável do aprender a conhe-
(1998) no livro A alegria na escola, precisamos de uma cer. A substituição de certas atividades humanas por má-
nova “cultura da satisfação”, precisamos da “alegria cul- quinas acentuou o caráter cognitivo do fazer. O fazer dei-
tural”. O mundo de hoje é “favorável à satisfação” e a xou de ser puramente instrumental. Nesse sentido, vale
escola também pode sê-lo. mais hoje a competência pessoal que torna a pessoa apta
O que é ser professor hoje? Ser professor hoje é vi- a enfrentar novas situações de emprego, mas apta a tra-
ver intensamente o seu tempo, conviver; é ter consciên- balhar em equipe, do que a pura qualificação profissio-
cia e sensibilidade. Não se pode imaginar um futuro nal. Hoje, o importante na formação do trabalhador, tam-
para a humanidade sem educadores, assim como não bém do trabalhador em educação, é saber trabalhar
se pode pensar num futuro sem poetas e filósofos. Os coletivamente, ter iniciativa, gostar do risco, ter intuição,
educadores, numa visão emancipadora, não só trans- saber comunicar-se, saber resolver conflitos, ter estabili-
formam a informação em conhecimento e em consci- dade emocional. Essas são, acima de tudo, qualidades
ência crítica, mas também formam pessoas. Diante dos humanas que se manifestam nas relações interpessoais
falsos pregadores da palavra, dos marketeiros, eles são mantidas no trabalho. A flexibilidade é essencial. Existem
os verdadeiros “amantes da sabedoria”, os filósofos de hoje perto de 11 mil funções na sociedade contra aproxima-
que nos falava Sócrates. Eles fazem fluir o saber (não damente 60 profissões oferecidas pelas universidades. Como
o dado, a informação e o puro conhecimento), porque as profissões evoluem muito rapidamente, não basta prepa-
constróem sentido para a vida das pessoas e para a rar-se profissionalmente para um trabalho.
humanidade e buscam, juntos, um mundo mais justo,
mas produtivo e mais saudável para todos. Por isso eles Aprender a viver juntos – a viver com os outros. Compre-
são imprescindíveis. ender o outro, desenvolver a percepção da interdependência,
da não-violência, administrar conflitos. Descobrir o outro,
PARA PENSAR A EDUCAÇÃO DO FUTURO participar em projetos comuns. Ter prazer no esforço co-
mum. Participar de projetos de cooperação. Essa é a tendên-
Jacques Delors (1998), coordenador do “Relatório para cia. No Brasil, como exemplo desta tendência, pode-se citar
a Unesco da Comissão Internacional Sobre Educação para a inclusão de temas/eixos transversais (ética, ecologia, cida-
o Século XXI”, no livro Educação: um tesouro a desco- dania, saúde, diversidade cultural) nos Parâmetros Curricu-
brir, aponta como principal conseqüência da sociedade lares Nacionais, que exigem equipes interdisciplinares e tra-
do conhecimento a necessidade de uma aprendizagem ao balho em projetos comuns.

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

Aprender a ser – Desenvolvimento integral da pessoa: única nação?” Que conseqüências podemos tirar para alu-
inteligência, sensibilidade, sentido ético e estético, res- nos, professores e currículos?
ponsabilidade pessoal, espiritualidade, pensamento autô-
nomo e crítico, imaginação, criatividade, iniciativa. Para Sustentabilidade – O tema da sustentabilidade originou-se
isso não se deve negligenciar nenhuma das potencialidades na economia (“desenvolvimento sustentável”) e na ecolo-
de cada indivíduo. A aprendizagem não pode ser apenas gia, para se inserir definitivamente no campo da educação,
lógico-matemática e lingüística. Precisa ser integral. sintetizada no lema “uma educação sustentável para a so-
Iniciou-se este texto procurando situar o que significa brevivência do planeta”. O que seria uma cultura da susten-
“perspectiva”. Sem pretender fazer qualquer exercício de tabilidade? Esse tema deverá dominar muitos debates edu-
futurologia e muito mais no sentido de estabelecer pontos cativos das próximas décadas. O que estamos estudando nas
para o debate, serão apontados aqui algumas categorias em escolas? Não estaremos construindo uma ciência e uma cul-
torno da educação do futuro, que indicam o surgimento de tura que servem para a degradação/deterioração do planeta?
temas com importantes conseqüências para a educação.
As categorias “contradição”, “determinação”, “repro- Virtualidade – Esse tema implica toda a discussão atual
dução”, “mudança”, “trabalho”, “práxis”, “necessidade”, sobre a educação a distância e o uso dos computadores
“possibilidade” aparecem freqüentemente na literatura nas escolas (Internet). A informática, associada à telefo-
pedagógica contemporânea, sinalizando já uma perspec- nia, nos inseriu definitivamente na era da informação.
tiva da educação, a perspectiva da pedagogia da práxis. Quais as conseqüências para a educação, para a escola,
Essas categorias tornaram-se clássicas na explicação do para a formação do professor e para a aprendizagem? Con-
fenômeno da educação, principalmente a partir de Hegel seqüências da obsolescência do conhecimento. Como fica
e de Marx. A dialética constitui-se, até hoje, no paradig- a escola diante da pluralidade dos meios de comunica-
ma mais consistente para analisar o fenômeno da educa- ção? Eles abrem os novos espaços da formação ou irão
ção. Pode-se e deve-se estudá-la e estudar todas as cate- substituir a escola?
gorias anteriormente apontadas. Elas não podem ser
negadas, pois ajudarão muito na leitura do mundo da edu- Globalização – O processo da globalização está mudando a
cação atual. Elas não podem ser negadas ou desprezadas política, a economia, a cultura, a história e, portanto, tam-
como categorias “ultrapassadas”. Porém, também pode- bém a educação. É um tema que deve ser enfocado sob vá-
mos nos ocupar mais especificamente de outras, ao pen- rios prismas. A globalização remete também ao poder local
sar a educação do futuro, categorias nascidas ao mesmo e às conseqüências locais da nossa dívida externa global (e
tempo da prática da educação e da reflexão sobre ela. Eis dívida interna também, a ela associada). O global e o local
algumas delas a título de exemplo. se fundem numa nova realidade: o “glocal”. O estudo desta
categoria remete à necessária discussão do papel dos muni-
Cidadania – O que implica também tratar do tema da au- cípios e do “regime de colaboração” entre União, estados,
tonomia da escola, de seu projeto político-pedagógico, municípios e comunidade, nas perspectivas atuais da educa-
da questão da participação, da educação para a cidada- ção básica. Para pensar a educação do futuro, é necessário
nia. Dentro desta categoria, pode-se discutir particular- refletir sobre o processo de globalização da economia, da
mente o significado da concepção de escola cidadã e de cultura e das comunicações.
suas diferentes práticas. Educar para a cidadania ativa
tornou-se hoje projeto e programa de muitas escolas e de Transdisciplinaridade – Embora com significados dis-
sistemas educacionais. tintos, certas categorias como transculturalidade,
transversalidade, multiculturalidade e outras como com-
Planetaridade – A Terra é um “novo paradigma” (Leo- plexidade e holismo também indicam uma nova tendên-
nardo Boff). Que implicações tem essa visão de mundo cia na educação que será preciso analisar. Como cons-
sobre a educação? O que seria uma ecopedagogia (Fran- truir interdisciplinarmente o projeto pedagógico da escola?
cisco Gutiérrez) e uma ecoformação (Gaston Pineau)? O Como relacionar multiculturalidade e currículo? É neces-
tema da cidadania planetária pode ser discutido a partir sário realizar o debate dos PCN. Como trabalhar com os
desta categoria. Podemos nos perguntar como Milton Nas- “temas transversais”? O desafio de uma educação sem
cimento: “para que passaporte se fazemos parte de uma discriminação étnica, cultural, de gênero.

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PERSPECTIVAS ATUAIS DA EDUCAÇÃO

Dialogicidade, dialeticidade – Não se pode negar a atu- ção de, com isso, encerrá-lo. Existem muitos outros desa-
alidade de certas categorias freireanas e marxistas, a va- fios para a educação. A reflexão crítica não basta, como
lidade de uma pedagogia dialógica ou da práxis. Marx, também não basta a prática sem a reflexão sobre ela. Aqui,
em O capital, privilegiou as categorias hegelianas “de- são indicadas apenas algumas pistas, dentro de uma visão
terminação”, “contradição”, “necessidade” e “possibili- otimista e crítica – não pessimista e ingênua – para uma
dade”. A fenomenologia hegeliana continua inspirando análise em profundidade daqueles que se interessam por
nossa educação e deverá atravessar o milênio. A educa- uma “educação voltada para o futuro”, como dizia o gran-
ção popular e a pedagogia da práxis deverão continuar de educador polonês, o marxista Bogdan Suchodolski.
como paradigmas válidos para além do ano 2000.
A análise dessas categorias e a identificação da sua pre-
sença na pedagogia contemporânea podem constituir-se, REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
sem dúvida, num grande programa a ser desenvolvido hoje
em torno das “perspectivas atuais da educação”. Não se DELORS, J. Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo, Cortez, 1998.
DOWBOR, L. A reprodução social. São Paulo, Vozes, 1998.
pretende aqui dar respostas definitivas. Com esse peque-
GADOTTI, M. Perspectivas atuais da educação. Porto Alegre, Ed. Artes Médi-
no texto introdutório, procurou-se apenas iniciar um de- cas, 2000.
bate sobre as perspetivas atuais da educação, sem a inten- SNYDERS, G. A alegria na escola. São Paulo, Ed. Manole, 1988.

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

DA LINGUAGEM ORAL
À LINGUAGEM DA HIPERMÍDIA
reflexões sobre cultura e formação do educador

ROSELI FISCHMANN
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo
e da Pós-Graduação da Universidade Mackenzie

Resumo: Reflexões acerca de cultura e de linguagem, procurando direcioná-las à questão da formação de pro-
fessores. Para isso, analisam-se resultados de duas pesquisas: uma conduzida por Betty Mindlin entre diversos
grupos indígenas, publicada no livro Terra grávida; e outra, de cunho interdisciplinar, coordenada por Sérgio
Bairon, publicada em linguagem de hipermídia, em CD-ROM, Hipermídia, psicanálise e história da cultura.
Procura-se demonstrar como a temática das culturas se encontra subjacente à escolha do uso de diferentes
linguagens para expressar diversas visões de mundo e diferentes problematizações sobre o destino humano, do
oral ao para-além-da-escrita.
Palavras-chave: cultura e linguagem; formação do educador; pesquisa e ducação.

A
adoção de conteúdos ligados às questões cultu- Assim define Queiroz (1989:45) o ponto aonde leva-
rais na formação de educadores vem ganhando ram as transformações que sofreram esses conceitos:
cada vez mais espaço nas propostas curricula- “Atualmente, quando estudiosos brasileiros falam de iden-
res. Tal espaço e visibilidade são proporcionais ao avan- tidade cultural ou de identidade nacional, referem-se, pois,
ço da construção do conhecimento no campo da educa- a noções diferentes das utilizadas por seus colegas euro-
ção, em suas relações com o campo da cultura. peus. Nos dois casos, o que há em comum é somente o
É claro que não se pretende discutir, aqui, o percurso do fato de que ambas noções são em geral utilizadas como
conceito de cultura nas pesquisas educacionais, tarefa que instrumentos para diferenciar uma cultura ou uma coleti-
extrapola o escopo deste trabalho. Contudo, é preciso lem- vidade do conjunto das demais. Estas noções podem se
brar, em particular, que a cada momento histórico correspon- tornar também armas para lutar contra qualquer perigo
de certa abordagem do conceito de cultura, com repercussões que ameace com o desaparecimento ou a coletividade, ou
no campo sociopolítico e, em decorrência, educacional. A a nação. O Brasil, cuja independência não teve de ser
produção do conhecimento acadêmico, por sua vez, ora dis- alcançada à força, não voltou sua arma ideológica contra
tancia-se desse movimento dialógico, ora o repercute e, em outras sociedades; ela foi forjada principalmente para
momentos específicos, pode mesmo provocá-lo. propósitos internos. Na Europa, ao contrário, onde as
Um exemplo dessa teia intrincada de relações pode ser guerras constituíram uma realidade constante, compuse-
encontrado no artigo “Identidade cultural, identidade na- ram elas um campo apropriado para que nascessem dois
cional no Brasil”, de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1989). conceitos diversos: um voltado para combater os inimi-
Ali existem duas análises entrelaçadas: uma que se refere gos exteriores, o outro se dirigindo à diferenciação inter-
às relações entre o conceito de identidade cultural e identi- na de coletividades na totalidade nacional.”
dade nacional; e outra que é atinente à posição de cientis- Mais complexo ainda é o trabalho de rastrear como o
tas sociais brasileiros comparativamente à de europeus avanço do conhecimento nas ciências humanas e sociais
quanto aos mesmos conceitos. Tratada desde o século XIX relaciona-se com o campo educacional, em particular nas
pelas ciências sociais no Brasil, essa temática sofreu mu- formas como se reflete, ou não, nas propostas de forma-
danças, vinculadas tanto ao estado do conhecimento em ção de educadores.
cada época, quanto à auto-imagem que os cientistas sociais Sem pretender adentrar esse desafio, também mais am-
faziam de si mesmos enquanto brasileiros e do país. plo que os objetivos deste trabalho, vale, ainda que bre-

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DA LINGUAGEM ORAL À LINGUAGEM DA HIPERMÍDIA: REFLEXÕES SOBRE CULTURA...

vemente, lembrar o caso do tema transversal Pluralidade nas de diversas etnias, notadamente do norte do Brasil,
Cultural, dos Parâmetros Curriculares Nacionais (Bra- fazendo, a seguir, a transposição da narrativa em lingua-
sil, 1997 e 1998) do MEC, por seus vínculos com a ques- gem oral, na maior parte das vezes nas línguas de origem,
tão das relações entre identidade cultural e identidade na- para a escrita, em Português.
cional. Trabalho árduo, que somente tem sido possível em ra-
Ao introduzir como proposta de âmbito nacional a zão da experiência, competência acadêmica, dedicação e
temática da valorização da diversidade, da superação da compromisso da pesquisadora com os indígenas. Traba-
discriminação étno-culturo-racial e da crítica à desigual- lhando com diferentes grupos, vivendo o dia-a-dia das
dade excludente, esse documento apontou a importância aldeias, colaborando na organização de sua defesa quan-
dos conhecimentos originários de diversos campos para do em contato com as novas levas de conquistadores da
sua composição e compreensão. Deixou, portanto, suben- Amazônia, Betty Mindlin desenvolveu pesquisas, tanto a
tendido o caráter indispensável de uma formação subs- partir do Iamá – Instituto de Antropologia e Meio Ambien-
tancial e diversa para os professores, o que posteriormente te, contando com a cooperação de outros antropólogos,
refletiu-se no documento Referenciais para Formação de como Carmen Junqueira e Mauro Leonel, quanto junto
Professores (Brasil, 1999). Ao mesmo tempo, destacou o ao Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São
caráter vivencial da formação específica na temática, en- Paulo. Além disso, a antropóloga mantém processo de
volvendo a convivência intencional e interessada com di- interlocução permanente com pesquisadores de outros
versos grupos humanos. Contudo, a complexidade da pre- países, marcando sua atuação por vivência e abordagem
sença do campo cultural na formação de professores cosmopolita, assim como por valorização plena da diver-
apenas começa a se fazer presente, exigindo ainda mui- sidade cultural (Mindlin, 1998), em suas múltiplas, com-
tos estudos por parte dos pesquisadores no campo educa- plexas e desafiantes faces.
cional. Formada originalmente em Economia, curso no qual
Assim, este artigo busca oferecer algumas reflexões que lecionou por algum tempo na USP e na Fundação Getúlio
cooperem nesse sentido, tendo como proposta apresentar Vargas de São Paulo, Betty Mindlin soube tirar proveito
a contribuição de dois pesquisadores de diferentes áreas, dessa origem em sua ida para a Antropologia. De fato, o
que trabalham o conceito de cultura de formas distintas, olhar acurado para a temática da exploração e a visão crí-
porém com resultado semelhante em termos de sua valo- tica das singularidades do processo de desenvolvimento
rização. Estes autores foram escolhidos por trazerem do Brasil1 foram aspectos que colaboraram em muito para
aportes diferenciados e complementares, oferecendo com que a pesquisadora tivesse certo tipo de posicionamento
isso material de conteúdo altamente heurístico para o cam- em relação à temática indígena.
po da educação. A marca notável desse posicionamento é o respeito pelo
Os autores escolhidos e suas obras são: Betty Mindlin ser de cada indígena, pelo ser de cada grupo, ao mesmo
em sua pesquisa junto a narradores indígenas, com desta- tempo em que convivem, evidentemente justapostas em
que para seu trabalho mais recente, Terra grávida; e Ser- seus trabalhos, a afirmação da capacidade indígena para
gio Bairon, com a pesquisa Hipermídia, psicanálise e his- a autodeterminação e a certeza de que todo o apoio à iden-
tória da cultura, publicada em linguagem de hipermídia. tidade cultural de cada grupo é indispensável nos duros
Será traçada, posteriormente, uma comparação aproxima- processos que o contato com a sociedade não-indígena
tiva entre ambos, apresentando, ao final, algumas reflexões impõe (Mindlin, 1997b). É por isso que sua presença em
voltadas para a formação do educador. Busca-se, assim, prol da causa indígena tem se feito, sobretudo, com os
dar uma contribuição a esse campo tão complexo, cada vez resultados de seu trabalho.
mais relevante e indispensável nos estudos de educação, Em suas pesquisas, sempre respeitando e fortalecendo as
em geral, e da formação do educador, em particular. identidades culturais dos diversos grupos indígenas com os
quais trabalha, Betty Mindlin tem desenvolvido um vasto
PERMANÊNCIA E TRANSFORMAÇÃO levantamento das histórias de cada um desses povos, agru-
pando-as, posteriormente, por temas. Ressalta-se que esses
A antropóloga Betty Mindlin desenvolve há tempos um agrupamentos são apenas uma forma de sistematização, que
trabalho de extrema relevância. Trata-se da coleta de his- outros critérios poderiam ser adotados para classificá-los, tal
tórias, diretamente na fonte que são os narradores indíge- sua riqueza e diversidade. Com isso, a pesquisadora vem

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

compondo um material precioso que permite aos indígenas, guês, sendo o trabalho da pesquisadora mais o de respei-
a um só tempo, o registro da memória e a possibilidade de tar seu estilo e sabor, conforme suas próprias palavras.
compartilhar, cada qual, sua cosmologia com os demais, in- Descrevendo o processo de pesquisa que resultou em
dígenas e não-indígenas. Como lembra Marcos Terena Moqueca de maridos e Terra grávida, o qual envolveu os
(1998:892): “O desenvolvimento, reivindicado em nome dos Suruí, Kampé, Gavião, Kanoé, Zoró, Arara, Macurap,
direitos humanos, tornar-se-á capenga, cremos, caso não Jabuti, Aruá, Arikapu, Ajuru e Tupari, Betty Mindlin as-
esteja acompanhado do desenvolvimento cultural, da auto- sim registra o trabalho realizado: “Gravei, talvez, duas cen-
estima e de uma identidade étnica, compreensível inclusive tenas de horas, quase sempre em língua indígena. As tra-
ao mundo que nos cerca, como um código oral, legado pe- duções foram feitas, não palavra por palavra, seguindo
los velhos aos mais jovens.” transcrições na língua, como no caso Suruí, mas por in-
Na seqüência de um trabalho que já inclui Vozes da térpretes que ouviam as narrativas ao mesmo tempo que
origem, Tuparis e tarupás, Moqueca de maridos, vem se eu (também por outros, uma segunda ou terceira vez, ao
juntar o magnífico Terra grávida, que será tratado aqui ouvirem as fitas), em geral pessoas com dons expressivos
de maneira particular. e criativos. Ao escrever as histórias, levei em conta o seu
Seguindo, primordialmente, a tradição de Lévi-Strauss português e seu estilo e a minha própria imaginação, para
e Franz Caspar,2 as narrativas míticas recolhidas são par- transmitir o clima dos mitos. Algumas histórias, assim, têm
te da história desta Terra que há 500 anos é chamada Bra- uma certa recriação, na forma de escrever, fiel, porém, ao
sil, e que graças a essa pesquisa podem ser afinal conhe- conteúdo, sem invenções novas” (Mindlin, 1999:262).
cidas em português, em linguagem atraente mesmo para O livro Terra grávida, para o qual este artigo volta o
o leitor menos acostumado às leituras antropológicas. olhar mais detidamente, a partir do recorte temático es-
Preocupada em analisar o rico material coletado, a au- colhido, reúne narrativas de sete grupos indígenas de
tora de Terra grávida oferece uma introdução elucidativa Rondônia: Macurap, Jabuti, Aruá, Arikapu, Ajuru, Kanoé
para aqueles que já tenham familiaridade com esse tipo e Tupari. Como já mencionado, o ensaio introdutório não
de produção. Aqui se insere, por exemplo, a análise que só facilita a leitura, como também possibilita perseguir,
Mindlin faz do mito do Gavião, retomando e comple- de maneira mais organizada, pistas para a compreensão
mentando a análise feita por Lévi-Strauss em O cru e o da abordagem desses povos sobre temas universais, como
cozido (Mindlin, 1999:27-30). a vida e a morte, a origem do universo, do mundo, dos
Da mesma forma, esse ensaio introdutório terá, sem seres humanos, o que é permitido, o que é proibido, o bem
dúvida, função motivadora para aqueles que pouco tenham e o mal.
se dedicado a essa verdadeira aventura, de mergulhar em Confrontando o árduo trabalho de pesquisa, com seu re-
mundos de mitos e personagens tão pouco conhecidos sultado, Betty Mindlin declara sua respeitosa forma de re-
como presentes na construção de referências da diversi- criação ou, talvez mais apropriadamente, de transcriação:3
dade constituinte do Brasil. “Procurei usar todos meus conhecimentos, em vez de ficar
É possível avaliar a complexidade do trabalho realiza- ao pé de uma letra que ainda não há. Isso não quer dizer que
do por Betty Mindlin, ao serem observados os distintos eu não tenha sido fiel tanto aos conteúdos quanto às formas
procedimentos metológicos desenvolvidos em cada um – não inventei, segui um clima” (Mindlin, 1999:262).
dos trabalhos citados. Em Vozes da origem, as narrativas Colocando o direito de voz como princípio e o reco-
dos Suruí foram gravadas, transcritas na língua original, nhecimento dos direitos dos narradores,4 reafirma a auto-
mediante uma escrita fonética própria da língua Suruí de- ra: “Trata-se de um trabalho conjunto, feito por muitos
senvolvida pela pesquisadora, para serem então traduzidas contadores” (Mindlin, 1999:263). Por isso, a pesquisadora
para o português, com o auxílio de intérpretes comple- tem um cuidado notável ao traçar os perfis dos narrado-
mentando os próprios conhecimentos de Mindlin. Lem- res indígenas, exalando carinho e afeto pela história de
bra a autora: “É claro que o estilo reflete minha própria cada um, em uma junção preciosa de atitude científica com
maneira de escrever e com freqüência há uma espécie de o mais indispensável humanismo que a construção do co-
tradução cultural, necessária para familiarizar o leitor com nhecimento está a requerer.
aspectos da vida indígena” (Mindlin, 1999:261). Do ponto de vista de contribuição à formação de edu-
Já o livro Tuparis e tarupás foi marcado por uma pe- cadores, torna-se subsídio singular conhecer esses narra-
culiaridade: os narradores Tupari falavam bem o portu- dores-pessoas, indígenas cujos nomes e sagas passam a

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DA LINGUAGEM ORAL À LINGUAGEM DA HIPERMÍDIA: REFLEXÕES SOBRE CULTURA...

ser conhecidos – e então as narrativas ganham vida pró- obras precedentes. Nessa, como nas outras, a se-
pria, porque se sabe de onde vêm. nhora reuniu uma rica mitologia proveniente de po-
Sem dúvida, verá despertar em si sentimentos de respei- vos sobre os quais não se possui quase nada. O con-
to e solidariedade aquele que ler os perfis dos narradores, junto forma um corpus impressionante que guarda
como Galib Pororoca Gurib Ajuru, Awüru Odete Aruá, Ar- relação com as grandes coletâneas clássicas da mi-
mando Moero Jabuti, Pacoré Marina Jabuti, Akükã Francis- tologia ameríndia. Foi muito proveitoso para mim.
co Kanoé (o último de seu povo), Amamoeküb Aningui Com meus agradecimentos, solicito, cara Senho-
Basílio Macurap, Amonãi Manuel Tupari. Dentre todos, ra, que aceite a expressão de minha respeitosa ho-
devido aos limites deste artigo, foi selecionado um dos per- menagem.
fis, que haverá de falar sobre o caráter vívido dos perfis tra-
çados por Mindlin (1999:250): “Aratori Teresa Macurap – Claude Lévi-Strauss
É a viúva inconsolável de Dorodoim, mãe de Sawerô Basí- Professor Emérito
lio Macurap e madastra de Menkaiká Juraci Macurap. Vive Collège de France”
na Baía das Onças, na A. I. Guaporé. Chorando de saudade,
contou histórias em Macurap, traduzidas por Sawerô.” POR UMA NOVA LINGUAGEM
Constituem-se, ainda, em informações relevantes os
dados que a autora traz sobre os povos de onde provêm as O apelo da simplicidade que há no acesso a informa-
histórias e suas línguas, assim como o glossário que ofere- ções via Internet tem se constituído em um caminho per-
ce, material riquíssimo a ser explorado tanto na formação verso de simplificação das potencialidades presentes nas
de professores para Pluralidade Cultural, quanto na aplica- novas tecnologias digitais. Em particular no campo da
ção em sala de aula, nos diferentes níveis de ensino. educação, tal simplificação tem trazido perspectivas de
Observe-se que esse trabalho de Betty Mindlin, como os “ensino a distância”, que são saudadas como “o” poten-
anteriores, complementa trabalhos de outros autores, já antes cial por excelência dessas tecnologias no campo da edu-
dirigidos especificamente a educadores, como os elaborados cação.
a partir do Mari/USP, que já se tornaram clássicos (Silva, Ainda que valorizando as potencialidades comunica-
1987; Silva e Grupioni, 1995), alguns em cooperação com o tivas presentes na Internet como mídia interativa, é ne-
MEC, além de pesquisas de mestrado e doutorado que têm cessário superar essa visão, quando se trata de ampliar o
trazido contribuição específica para a compreensão da horizonte de reflexão e, portanto, de compreensão do al-
temática de professores indígenas (por exemplo, Silva, 1997). cance, dos limites e das possibilidades das tecnologias
Enquanto esses trabalhos trazem informações indispen- digitais como campo de construção de conhecimento,
sáveis para a formação dos professores que atuam no sis- portanto com reflexos diretos na educação. Daí, o cami-
tema de ensino brasileiro, a complementação propiciada nho é buscar o que se tem produzido de pesquisa nesse
pelas obras de Betty Mindlin tem a ver com a possibilida- campo. Contudo, não-pesquisas escritas, que só fazem re-
de de imersão dos professores, assim como de qualquer petir a lógica argumentativa da linguagem verbal racio-
pessoa interessada, em mundos ricos e desconhecidos, que nal, mas sim aquelas que tragam a possibilidade de
o preconceito e os interesses econômicos têm feito calar. vivenciar seus caminhos, provar as marcas que sofreram,
Para finalizar esta parte da reflexão, ressaltando ainda partilhar o sentido e a prática da autoria.
mais a relevância e o caráter indispensável da leitura de É por isso que este artigo trata da obra Hipermídia,
Terra grávida por professores e educadores em geral, é psicanálise e história da cultura, de Sérgio Bairon6 (co-
com grande honra que é aqui apresentada a carta dirigida ordenador geral) e Luis Carlos Petry. Publicado em
por Lévi-Strauss a Betty Mindlin:5 hipermídia, este trabalho rompe os limites que esta ferra-
menta que é aqui usada – palavras, tinta, papel – tem. Tra-
“Paris, 10 de março de 2000 ta-se de trabalho vigoroso de pesquisa, desafiador e ou-
sado na apresentação e na proposta. A pesquisa, seguindo
Cara Senhora, a trilha acadêmica anteriormente aberta pelo coordena-
dor, não se limitou a trabalhar conceitos, dentro dos limi-
Terra grávida, que a senhora houve por bem me tes habituais, porém rompeu barreiras convencionais, in-
enviar, é um complemento muito precioso de suas serindo-se nas tendências mais avançadas da pesquisa atual

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

internacional, com requintes de pioneirismo, ao também afirmação recorrente ao longo de Hipermídia: “todo jo-
produzir, em linguagem de hipermídia, os resultados de gar é um ser jogado”.7 Essa proposta fundamenta a rela-
sua investigação. ção que Gadamer estabelece entre jogo e obra de arte,
Mesmo correndo o risco de reduzir o alcance dessa obra também fundamental para se compreender a proposta, feita
– já que é aprisionada, aqui, regredida aos moldes con- por Bairon, da adoção da estética como via de compreen-
vencionais – é importante o exercício de diálogo, mais são: “O que teria que ser objeto de nossa reflexão não
que um comentário ou síntese (a qual seria mesmo im- seria a consciência estética, mas a experiência da arte (…).
possível). Vale lembrar, em primeiro lugar, que essa obra (…) a experiência da arte não é nenhum objeto frente ao
exige uma imersão em sua proposta, não se entregando a qual se encontre um sujeito que o é para si mesmo. Pelo
um olhar. Trata-se de um contato passivo e ativo ao mes- contrário, a obra de arte tem seu verdadeiro ser no fato de
mo tempo. Passivo, porque, se se pretende conhecê-la, não que se converte em uma experiência que modifica a quem
haverá como não vivenciá-la, será necessário haver uma a experimenta” (Gadamer, 1991:144-145).
entrega à proposta, fruto, provavelmente, da formação Na proposta de Bairon, encontram-se obras de arte tra-
psicanalítica dos autores. Ativo, porque serão os sentidos zendo o uso de diferentes linguagens como busca de com-
do leitor (denominação insuficiente para a relação que se preensão universal. Lá estão fotografias amalgamadas em
estabelece nessa proposta) que guiarão o percurso. colagens digitais, ou então compondo telas, firmamento
Porém, de que caminho se trata? A referência a “mé- iluminado como no laboratório de topologia, ou trazendo
todo” é presente o tempo todo, na própria metáfora do a escuridão permanente por sobre o labirinto (seria o mer-
labirinto. O desvelar das intenções dos autores, contudo, gulho no inconsciente? No desconhecido? No que está a
surge apenas quando se têm em mente suas referências ser conhecido?).
filosófico-teóricas: Heiddeger, Wittgenstein, Gadamer, Jogando (vivendo-se o “ser jogado”) no labirinto, a seta
Lacan, Certeau (este, historiador e psicanalista lacaniano, do “mouse” desliza por sobre uma parede do labirinto sen-
como o coordenador). sibilizada, surgem imagens de Magritte, referência cons-
De fato, da Hermenêutica, a obra traz soberano o concei- tante, que conduzem a outras experiências, nas quais é
to de jogo, conforme já trabalhado pelo coordenador em tra- dada a possibilidade de sair, nas alternativas iconográficas
balho anterior: “Os jogos de linguagem apresentam a idéia que vão sendo desvendadas, ou ficar, e suportar a expec-
de que todo encontro com ela é sempre movediço e de que tativa do que está por vir. O usuário/leitor/jogador encon-
faz parte do seu próprio acontecer a busca da verdade. No trará animações que raptarão sua atenção, envolvendo-o
alemão, por exemplo, o termo Spiel (jogo, interpretação, ris- em um clima impossível de controlar. Um exemplo é a
co, brincadeira) pretende acolher grande parte deste aconte- sarça ardente futurista do desejo, dançando inapreensível
cer. Como técnica, a multimídia radicaliza e ratifica o prin- ao som de um mantra oriental. Ou qualquer outra coisa
cípio de que a linguagem tem seu verdadeiro sentido em toda que seja a mesma representação visual e sonora, que o
ação que se converte numa modificação daquele que a ex- leitor/jogador venha a perceber: assim será.
perimenta. A linguagem multimidiática se apresenta como As citações cinematográficas, de clássicos como Tem-
um jogo, exatamente porque, tal como este, é o ‘sujeito’ de pos Modernos, Metrópolis, 2001 Uma Odisséia no Espa-
si mesma. (…) Brilhantemente explorado por Johan Huizinga ço, entre outros, são um exercício de pesquisa de filmes
em Homo Ludens, a concepção de jogo assume maior res- que têm profundo significado neste século que se encer-
ponsabilidade no encontro entre a cultura e a linguagem. O ra, vinculando-os a conceitos explorados pela Psicologia,
autor apresenta o jogo como elemento fundador das funções pela História, pela Lingüística e pela Antropologia. As-
culturais, do Direito, da Poesia, da Guerra, etc., sobretudo sim, ora a História da Cultura fornece os elos da interdis-
no sentido de impulsionar o jogador (een spelltje doen, em ciplinaridade,8 ora é a arte que o faz. Já afirmara anterior-
holandês), independentemente de ser o resultado da ação de mente o autor: “A livre criação daquele que produz uma
uma consciência lógica. Esta seria, tanto em Huizinga, quanto obra de arte tem o potencial de abertura ao mundo, que
nas propostas hermenêuticas, o principal fascínio no Spiel: jo- nenhuma metodologia científica de tradição iluminista ga-
gar é, sobretudo, ser jogado. O jogo é dono dos jogadores” rante. A liberdade de ação imagética na arte pressupõe,
(Bairon, 1995:83-84). em essência, uma igual liberdade de interpretação e ex-
De fato é de Gadamer (1991:149), autor que perpassa pressão. Longe do domínio técnico ‘conteudístico’, a com-
toda a reflexão e proposta metodológica do trabalho, a preensão pode possibilitar um estar-no-mundo que pro-

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DA LINGUAGEM ORAL À LINGUAGEM DA HIPERMÍDIA: REFLEXÕES SOBRE CULTURA...

mova o encontro daquele que interpreta com o que é in- sentados e compostos em 64 locais de interação que po-
terpretado, ao ponto desta promoção revelar os horizon- dem ser percorridos em diferentes níveis.9
tes envolvidos” (Bairon, 1995:199). Uma vez imerso, o leitor/usuário/jogador vê-se frente
Vale ressaltar que as tecnologias digitais propiciam fa- ao inesperado, ao incompreensível, instigado então a per-
cilidades no uso dos diversos recursos propiciados pela arte, guntar. Atividade essencialmente hermenêutica, perguntar
em suas diversas manifestações. Antecipando a riqueza com é inevitável quando se percorre o labirinto, o qual se mos-
que exploraria esse potencial, Bairon (1995:209) afirmava tra e se esconde; oferece porém não o faz de forma simplista:
em trabalho anterior: “(…) A linguagem da arte é a lingua- provoca e, gentil, permite que se prossiga, ou não, até o
gem do não-sentido, do desapropriar-se de qualquer signi- limite de cada nível sucessivo de imersão. Pelo sistema de
ficado, da valorização da subjetividade, não a kantiana, mas busca de palavras, pode-se pular de um conceito para ou-
a da polifonia bakhtiniana. tro, de uma região para outra do labirinto, assim como se
No mundo contemporâneo, vídeo, animação, colagem, tem a possibilidade de consultar, a qualquer momento, o
efeitos, cinema, artes plásticas, etc., brigam para mante- registro dos próprios passos, pelo navegador.
rem a própria identidade institucional; mas, como vimos O uso de técnicas atualíssimas, envolvendo cálculos e
tudo indica que haverá uma grande hibridação dos meios minucioso trabalho de criação digital, traz a possibilida-
de manifestação artística, a ponto de não conseguirmos de de girar 360º em torno de diferentes objetos, ao que
mais diferenciar o espaço da arte, já que esta está cada parece buscando operar visualmente a noção de “giro onto-
vez mais tornando-se cotidiano.” lógico”,10 propiciado pelo perguntar.
É importante destacar que o uso de trabalhos como Imergir e perguntar complementam-se, como possibi-
Hipermídia, na formação de professores, traz vantagens lidade de compreensão, no projetar. Bairon (1995:199)
de várias ordens. Primeiramente, como experiência de advertia em trabalho anterior: “(…) a compreensão deve
compreensão, incorporando o cognitivo e o sensitivo, ter presente que, tanto o comum, o peculiar, como o cien-
oportunidades de ampliação de horizontes. Talvez alguém tífico e o poético, devem ser o resultado tanto do compa-
indagasse – como é freqüente – de que serviria esse tipo rativo, quanto da adivinhação. A adivinhação é impres-
de vivência, se for posteriormente “condenado” a traba- cindível na arte como na ciência, pois jamais pode ser
lhar em escolas que não dispõem de facilidades da infor- resultado somente da aplicação de regras.”
mática. Trata-se, contudo, de um modo de abordar o co- Se é verdade que tal ação independe de suporte mate-
nhecimento, de lidar com a riqueza das produções culturais rial, é, contudo, extremamente facilitada pela exploração
humanas, não se aprisionando nos limites do impresso em hermenêutica feita pela via da linguagem da hipermídia,
tinta e papel. Uma vez vivenciada essa formação, o pro- enquanto conjunção de diferentes linguagens e mídias,
fessor terá condições de buscar e oferecer recursos varia- propiciada pela compatibilização operada pela digita-
dos a seus alunos. lização. A incompletude que se manifesta a cada intera-
Isto porque, como já foi tratado, os conceitos de jogo ção, a impotência a cada vai-e-vém, resultado do “ser jo-
e estética são estruturadores da proposta analítica de gado” (quando tudo o que se queria era jogar), levam à
Hipermídia. Há três verbos que expressam os objetivos busca de outros conceitos, de outras experiências estéti-
buscados por esse trabalho em hipermídia e que estão cas que projetarão o sujeito/leitor/usuário/jogador, que
voltados para o usuário/leitor/jogador: imergir, pergun- pouco a pouco se percebe autor.
tar, projetar. Nesse ponto ficam evidentes os dois princípios nortea-
Enquanto jogo, Hipermídia convida a uma imersão, após dores da proposta, elaboração e produção de Hipermídia:
a qual não se tem como voltar atrás. O vivido já terá altera- a não-linearidade e a reticularidade.
do algo naquele que o vive, pela percepção, pelo conheci- Ao propor o não-linear como elemento de compreensão
mento, ainda que inapreensível e por vezes indizível. do estar-no-mundo e do permanente recolocar-se, o traba-
A profusão e riqueza de informações oferecidas anun- lho desafia as fronteiras das regionalidades científicas. Con-
ciam, por um lado, o volume e a duração das pesquisas tudo, isto é feito com rigor e destreza, dentro da tradição
prévias realizadas, dentro e a partir de diferentes regiona- proposta há tanto por Fernand Braudel – e aí fica evidente o
lidades científicas e artísticas. Tais pesquisas propiciaram papel da História da Cultura como elo interdisciplinar.
levantamento conceitual e iconográfico ao longo de mui- Ao mesmo tempo, na hipermídia está sendo analisada,
tos anos, permitindo exploração de 30 conceitos, apre- a escolha a cada momento coloca-se tão atraente quanto

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difícil, como criança em frente a vitrine de doces, pois é teresses de dominação, disseminaram a ignorância com
feita uma oferta generosa de conceitos, referências esté- relação à riqueza da diversidade brasileira. Mentalidade
ticas, textos teóricos, notas de rodapé reflexivas, imagens na qual os grupos indígenas, apesar do desaparecimento
pouco freqüentes de autores (seria, aí, um eco da aborda- de muitos pelas políticas históricas de conquista e explo-
gem enciclopédica do Il Seiscento, de Umberto Eco, um ração, ainda permanecem como mais de duas centenas de
dos autores/obra de referência do coordenador?). grupos, falando quase o mesmo tanto de línguas.
Com base nessa oferta generosa se constrói, na práti- Vale também o desafio de jogar o jogo proposto por
ca, a possibilidade de uma produtiva reticularidade que Bairon. Estudar jogando, jogar estudando. Descobrir as
desafia o institucional na ciência e na arte. Todo aquele trilhas das próprias possibilidades de criação, nas múlti-
que se interessar poderá ter o CD-ROM à mão, para a qual- plas formas de percorrer o labirinto e nas idas e voltas
quer momento navegar, experimentar novos caminhos, por entre os níveis. Nos caminhos do labirinto, “dar com
descobrir novas nuances das criações estéticas belíssimas, a cara na parede” pode ser produtivo, porque permite atra-
apresentadas em cores e sons, a fornecer-lhe conteúdo para vessar o limite, por meio da compreensão de novos pla-
ser, também, autor. O que mais poderia buscar a própria nos, com novas experiências estéticas.
educação? Roberto Gambini, fazendo o prefácio de Tuparis e
Imagens cujas texturas são revestidas de conceitos, tarupás, pode ser aqui invocado para auxiliar a compreen-
jogos de criança, como o “jogo da velha”, aplicados a con- são de quão próximas são as abordagens de Betty Mindlin
ceitos extremamente complexos, trilhas musicais sensí- e Sérgio Bairon: “Os mitos revelam o fundo da alma. O
veis, com um quê de épico por vezes, locuções instigantes fundo da alma – não da mente – é repleto de imagens
que exploram as possibilidades sonoras da língua portu- incomuns, bizarras, inesperadas, que chocam e exaspe-
guesa. É a estimulação do campo perceptivo, jogando com ram a mente consciente porque a desafiam, como a pro-
os sentidos de uma nova e distinta maneira, que permite var-lhe que aquilo que chama de realidade é apenas um
apenas concluir com a própria obra: “aqui está uma nova arranjo temporário e artificial das coisas, que tudo é se
série infinita”.11 assim parece, mas que o ser é abismal e inesgotável. A
linguagem mítica – especialmente esta, brasileira, chei-
DO NÃO-ESCRITO AO PARA-ALÉM-DA-ESCRITA rando a mato, inusitada e nova, ainda que milenar – sub-
verte a ordem das coisas, provocando releituras do mun-
Como se o Mar se abrisse do. Um mito contém tanta verdade sobre a natureza do
E nos mostrasse outro Mar – real quanto a mais profunda intuição da psicologia do
E este ainda – ainda outro – e os Três inconsciente. Aí reside seu valor, que ultrapassa os códi-
Fossem só antecipação – gos estéticos da literatura e da arte. Um mito vale não
apenas por ser belo, mas porque contém uma centelha de
De Períodos de outros Mares – conhecimento roubado aos céus como o fogo de Prome-
Por Praias não visitados – teu ou da arara” (Gambini, 1993:12).
Estes também a Beira de Mares indevassados – Embora o cheiro de mato possa aqui ser trocado por cria-
A Eternidade – são os Mares que virão – ção digital impactante, Lúcia Santaella, ao fazer a apresen-
tação de Hipermídia, também explora a temática da profu-
Emily Dickinson (1999:51) são e da quebra da linearidade como fator de subversão e de
compreensão: “Assim como a hipermídia como técnica per-
Ler Terra grávida e outros trabalhos semelhantes de mite a integração sem suturas das diferentes mídias e lin-
Betty Mindlin é descobrir o Brasil para além da informa- guagens, isomorficamente nesta hipermídia integram-se, em
ção que é útil, porém insuficiente como proposta de en- cruzamentos e sobreposições, em vizinhanças e coabitações,
contro de alteridade – indispensável, no caso. É encon- o conceitual e o criador, o intelectual e o estético, as super-
trar o vigor e beleza da diversidade, constituinte do fícies e palimpsestos de textos, imagens, falas e sons, estra-
universal. Trata-se de contribuição para transformar men- das e sinalizações, ícones e pistas de navegação que inter-
talidades construídas a partir de ensinamentos nas esco- mitentemente lançam ao leitor piscadelas secretas para
las, a tantos, por tanto tempo, que criaram um imaginário fisgá-lo nessa aventura intelectual em que pensamento e
do “índio brasileiro”, que, por desinteresse cultural e in- êxtase sinestésico se enlaçam” (Santaella, 2000).

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DA LINGUAGEM ORAL À LINGUAGEM DA HIPERMÍDIA: REFLEXÕES SOBRE CULTURA...

Assim também encontra-se o uso deliberado da pró- pode incorporar esse tipo de leitura/jogo/aventura/auto-
pria imaginação, em que a criatividade transbordada é dis- ria com grandes vantagens, comparativamente ao uso de
ciplinada pelos objetivos buscados: a temática do autor/ meios convencionais.
produtor (Williams, 1992) e o convite ao leitor/autor. Em O que aí se observa é a mesma escolha da possibilida-
Bairon (1995), eis o que propõe, como já foi visto: “A de de viver mais a busca da compreensão que do conhe-
liberdade de ação imagética na arte pressupõe, em essên- cimento, mediante a mesma liberdade de criação, a mes-
cia, uma igual liberdade de interpretação e expressão.” ma imersão no sensível para além do racional, que há na
Em Mindlin (1999:263), essa proposta também afirma- narrativa indígena, e que nesta é marcada pela simplici-
se como convite: “Espero, como no caso de meus traba- dade dos recursos estéticos usados. Assim, o corpo tor-
lhos anteriores, que as traduções sejam refeitas, com base na-se instrumento, pela voz, pelo gesto, pela expressão,
no registro gravado que tenho nas várias línguas ou utili- com o que se garante a permanência e, ao mesmo tempo,
zando novas gravações. Conservo as gravações e as tra- a transformação da mensagem, a cada vez. Em Hipermídia,
duções de cada narrativa e de cada Narrador; minha do- em meio ao percurso, reverbera-se a mesma afirmação:
cumentação é uma espécie de museu ou arquivo para os “Corpo é ferramenta”.
índios ou outros pesquisadores e todo o livro pode ser O trabalho de Bairon também assemelha-se à pesquisa
reescrito por escritores índios ou outras pessoas.” de Betty Mindlin na preocupação da permanência do tra-
A escola, como nossa civilização, tem valorizado de- dicional no novo. Em suas pesquisas, Mindlin colhe mi-
mais o verbal e o racional. A formação de professores se tos de narrativas orais e faz seu registro, como forma de
afirma nessa mesma atitude, fechando um ciclo vicioso, a garantir sua permanência entre os indígenas e de buscá-
transmissão de certo tipo de conhecimento que se pretende la na sociedade brasileira, divulgando-a. A passagem do
linear, que se multiplica e reproduz como se fosse linear, oral ao escrito se faz, assim, pelo bem de ambos.
instaurando facilmente a falta de motivação para o estudo. Bairon faz dialogar entre si conceitos de regionalidades
Acomoda-se, como analisa Bachelard (1984:167): “Chega científicas distintas, explorando ao longo da pesquisa o
uma altura em que o espírito gosta mais daquilo que con- conceito de cultura, fazendo inúmeros exercícios herme-
firma o seu saber do que daquilo que o contradiz, prefere nêuticos no percurso do labirinto, fundindo linguagens ho-
as respostas às perguntas. Passa então a dominar o instinto je tradicionais – escrita, fotografia, cinema, vídeo, som –,
conservativo e o crescimento espiritual cessa.” mediante as possibilidades da linguagem da hipermídia.
O conhecimento veiculado então pela escola parece es- Com isso enriquece o já existente – como as precisas ci-
gotar-se em si, “sem utilidade”, o que de certa forma é ver- tações de cinema – e explora as possibilidades heurísticas
dade, se o que se oferece arrefece qualquer vontade de co- da realização da investigação conceitual com a nova fer-
nhecer mais. Como cessar a capacidade de indagar? Como ramenta, a hipermídia.
romper o fluxo de interesse? Vale lembrar uma vez mais Vale lembrar que Bachelard (1984:171), comentando
Bachelard (1984:166): “O espírito científico proibe-nos de características do “livro do ensino científico moderno”,
ter uma opinião sobre questões que não compreendemos, afirma: “Mal se lêem as primeiras páginas, vê-se que o
sobre questões que não sabemos formular claramente. É senso comum deixa de poder falar; deixam igualmente
preciso, antes de tudo, saber formular problemas.” de se ouvir as perguntas do leitor. A frase Amigo leitor
A oferta de vivências estéticas polissêmicas, muitas vezes seria de bom grado substituída por um aviso severo: Alu-
trazendo o recurso à palinódia como desafio, a possibili- no, toma atenção! O livro põe as suas próprias questões.
dade de aprofundamento por níveis, a ausência de uma O livro comanda.”
estrutura que se bastaria a si, a abertura para a ação – co- Esse ponto oferece possibilidades de se apresentar um
autoria, portanto – do leitor/jogador/navegador ao escolher, dos aspectos que mais diferencia o tipo de ensino a dis-
tudo isso significa, para os padrões até aqui vividos, uma tância que vem se fazendo e as estruturas hipermidiáticas.
mudança substancial nas possibilidades educacionais. Com freqüência, o uso da Internet como suporte tem sido
Do ponto de vista do desenvolvimento curricular na apontado como veículo preferencial dessa modalidade de
escola, em seus diferentes níveis, essa abordagem facilita ensino, beirando freqüentemente um ufanismo tecno-
a própria compreensão da idéia de transversalidade e da lógico, de resto já vivenciado na década de 60 com a idéia
elaboração de projetos desenvolvidos em torno de temas de educação pelo rádio e pela tevê e nos anos 80 com a
com tal característica. Assim, a formação de professores disseminação do vídeo. Todas essas propostas puderam

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ser incorporadas aos processos de ensino, cooperando na ROM é mais adequado, por permitir sua exploração com
difusão de conhecimento. Contudo, recomenda a cautela maior liberdade, sem as pressões presentes quando se
histórica que se evite a empolgação de cunho substitutivo marca, como se faz no Brasil, a duração da consulta pelo
(“nada que não seja isso”). “tempo conectado”.
De fato, o que se tem visto em sua grande maioria ainda Os autores aqui estudados também têm em comum
apresenta limites, seja de ordem técnica, seja de ordem abordar o presente como duradouro, porque mutável, o
conceitual. Do ponto de vista de estruturas, essa condu- ser humano que vive da tradição ao futuro como um úni-
ção, que talvez poderia ser chamada de “heterocondução”, co tempo. Lembram, aí, Grahame Clark, arqueólogo que
freqüentemente apresenta uma lógica pronta, em que mes- ressalta a importância de salvar a tradição, não permitin-
mo as alternativas são evidentemente limitadas. Do ponto do que se fossilize. Reverbera essa atitude, sem dúvida,
de vista conceitual, muitas vezes repete-se, disfarçada, a na preocupação ética de Betty Mindlin, ao recolher as nar-
estrutura linear dos livros tradicionais, pouco havendo, rativas, assim como em Bairon, ao se deter na construção
então, de exploração efetiva da capacidade analítica que o digital de objetos tridimensionais, permitindo ao usuário/
meio digital propicia. jogador conhecer, por exemplo, a sala de Freud em Vie-
Além disso, a restrição imediata de permanência na na, sua cadeira (a girar, em uma das brincadeiras de cria-
Internet, pelo acesso por assinaturas de tempo limitado, ção), o famoso divã, sua vitrine de objetos.
significa a submissão à lógica de mercado; mesmo nos Vale lembrar que a noção de aventura – e aí se inclui a
portais gratuitos, essa lógica está presente pela exposição viagem/navegação pelo tempo e pelo espaço, pelo diver-
a mensagens de patrocinadores, os quais, por sua vez, so e pelo idêntico – encontra-se tanto em Terra grávida
determinam o que é, ou não, relevante. quanto em Hipermídia. São explorações dos conceitos de
Embora pedindo estudo específico, é interessante lem- cultura e de linguagem, que permitem pronunciar viven-
brar, por exemplo, que a divulgação massiva da Internet cialmente a pluralidade presente em ambos.
no Brasil como meio de comunicação, popularizando o O trabalho de Mindlin é evidentemente vinculado à
computador como instrumento, deu-se em uma novela – pluralidade cultural brasileira, cooperando, assim, na cons-
Explode coração (Rede Globo, 1995)12 – onde a cigana trução/transformação da identidade cultural/identidade
Dara trava contato, com aquele por quem se apaixonaria, nacional de que se tratava logo ao início deste artigo. Con-
em um chat. Vale observar a estratégia de marketing tudo, vai além, trata do universal, como lembra Gambini
embutida na novela, em particular por associar a nova (1993:13): “(…) esses contos brasileiros recolhidos no mato
tecnologia ao esoterismo, pela presença cigana, com lei- mereceriam a atenção de exegetas do nível de Antonio
tura do futuro através de mãos, de cartas de baralho, acen- Candido, Joseph Campbell ou Marie Louise von Franz.
tuando o estereótipo, com relação aos ciganos, e, quiçá, a Quem sabe assim nós brasileiros começaríamos a valori-
ilusão de que a Internet seria algo mágico. zar aquilo que diz a alma ancestral de nossa terra e tería-
Não se trata, aqui, de minimizar as facilidades e possi- mos algo que nos enaltecesse para mostrar ao mundo.”
bilidades presentes na Rede. Mesmo a simples dissemina- Da mesma forma, o trabalho de Bairon é também um
ção de “mensagens” em “correntes”, uso entre internautas produto tipicamente brasileiro, a configurar novas per-
atualmente tão corriqueiro quanto envergonhado,13 pode ter cepções/criações que o Brasil propicia, mas se abre tam-
um papel a cumprir, por exemplo, na descoberta maravi- bém para o mundo, de onde igualmente tira inspiração.
lhada que idosos fazem da Internet como meio de comuni- Como afirma Santaela (2000): “Não tenho dúvidas de que
cação, assim como solitários em geral. Ou ainda, vale lem- este magnífico trabalho será um marco na história da
brar as listas de discussão, originariamente praticadas em hipermídia não só no Brasil mas também em um contexto
meios acadêmicos, nos primórdios da Internet, e hoje qua- internacional, pelo hibridismo denso cuja germinação só a
se obrigatórias entre organizações não-governamentais e sopa biótica do sincretismo próprio à cultura brasileira po-
movimentos sociais (Castells, 1999). deria propiciar.”
Sem dúvida há grandes vantagens no uso e na consul- Trazem ambos, Mindlin e Bairon, os desafios de uma
ta à Internet, para fins educacionais, mas ela, em si, ainda realidade complexa, da qual muitas vezes a escola e a for-
não propicia possibilidades de exploração conceitual como mação de professores têm estado distantes – a compreen-
se observa em outros produtos digitais, como no exem- são de como se faz cotidianamente a constituição da iden-
plo de hipermídia aqui analisado – e aí o suporte do CD- tidade cultural e da identidade nacional no Brasil.

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DA LINGUAGEM ORAL À LINGUAGEM DA HIPERMÍDIA: REFLEXÕES SOBRE CULTURA...

Terra grávida, como quer seu nome, traz dessa com- 7. Vale a pena lembrar que Richard Sennett vale-se do conceito hermenêutico de
jogo para analisar as relações entre público e privado, trabalho que já foi utiliza-
plexidade a permanência e o novo, o milenar desconhe- do para uma reflexão sobre a temática da escola pública e da prática do profes-
cido. É, em si, um convite para que o educador repense sor, bem como da equipe escolar (Fischmann, 1994).
8. Em seu trabalho A margem e a linguagem da hipermídia, o título de um dos
suas práticas mediante subsídios efetivos, sendo tocado capítulos é exatamente “História como elo da interdisciplinaridade” (Bairon, s/
pelas histórias e pelos mitos que trazem a vida de grupos data).

indígenas. Indígenas que, ao serem tratados na escola 9. São citados, a seguir, a título de ilustração, alguns dos conceitos oferecidos à
escolha em Hipermídia, por sobre o mapa do labirinto: alteridade, ciência, cul-
como têm sido – ou seja, como se fossem, independente- tura, cultura material, desejo, espelho, fenômeno, fragmentos, hermenêutica,
mente de seus grupos, homogêneos restos de um passado hipermídia, horizonte, incompletude, jogo, lexia, linearidade, linguagem ordi-
nária, não-dito, oralidade, significante, sujeito, techné, inconsciente, verdade.
–, são invizibilizados como parte constituinte deste pre- 10. Ver, por exemplo, Gadamer (1991, parte III).
sente plural e diverso que de fato o Brasil é. 11. Por exemplo, no jogo da velha em Hipermídia.
Para Bairon, a complexidade referida significa avan- 12. Já que se trata de unir teoria e prática, foi necessário consultar a Internet
para se conhecer a autoria, a saber, Glória Perez, e a data exata da estréia da
çar nas possibilidades tecnológicas sem cair num deter- novela: novembro de 1995 (www.members.tripode.com/~korber/novelas.htm).
minismo maquínico aparentemente aberto, mas sem pers- Agradeço a Érica Sacato Tongu pelo levantamento.
pectivas, porque aprisionado na tecnologia como valor em 13. Freqüentemente chegam mensagens encaminhadas de terceiros, com comen-
tários do tipo “esse valia a pena”, “não gosto desse tipo de coisa, mas neste caso
si. Ao invés disso, o que faz é, avançando nas possibili- em particular…”, até o abertamente ambíguo “se disserem que eu mandei, nego”.
dades hipermidiáticas, repercutir as construções culturais É interessante também observar que essas mensagens têm certa característica
adolescente, como de resto a própria estética geral da Internet, lembrando o es-
e científicas, reconstruir e ampliar as possibilidades de tilo “MTV”, o que parece se justificar, em particular, pelo fato de que é comum
criação estética e conceitual, de capacidade de perguntar adolescentes serem os responsáveis por páginas, proliferando “webdesigners”
extremamente jovens, notícia comum em levantamentos da grande imprensa.
e buscar, capacidades especificamente humanas. Hiper-
mídia é, pois, um convite para a aproximação a um meio
que, pela mitificação indevida, é visto por muitos educa- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
dores, pelas condições de nosso país, como futuro ina-
cessível, com o que se perde de vista este presente no qual BACHELARD, G. A epistemologia. Lisboa, Edições 70, 1984.
está entre nós, por toda parte, determinando nossa exis- BAIRON, S. Multimídia. São Paulo, Global, 1995.
tência, à espera de que tomemos as rédeas desse proces- __________ . A margem e a linguagem da hipermídia (no prelo), ex. reprogr.,
s/data.
so. A reiteração hermenêutica de que “o ser se define pelo
__________ . (coord.). Hipermídia, psicanálise e história da cultura. Apresen-
entorno”, soberano no mapa do labirinto, é o convite à tação em hipermídia. São Paulo, produção independente, 2000a.
reflexão e o alerta que os educadores não podem deixar __________ . (coord.). “Making of” de Hipermídia, psicanálise e história da
cultura. São Paulo/Caxias do Sul, Editora Mackenzie/Educs, 2000b.
de perceber.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília, MEC/SEF, 1997.
__________ . Parâmetros Curriculares Nacionais. (5ª à 8ª série). Brasília, MEC/
SEF, 1998.
__________ . Referenciais para formação de professores. Brasília, MEC/SEF,
NOTAS 1999.
CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo, Paz e Terra, 1999.
E-mail da autora: rosefish@usp.br DICKINSON, E. “Como se o Mar se abrisse”. Cinqüenta poemas. Rio de Janei-
A autora é vice-presidente do Júri Internacional do Prêmio Unesco de Educação ro/São Paulo, Imago/Alumni, 1999; seleção e tradução de Isa Mara Lando.
para a Paz, Paris e diretora-presidente do Instituto Plural – SP. FISCHMANN, R. “Escola: espaço de construção da cidadania”. Idéias. São Paulo,
1. Ainda em sua fase de trabalho como economista, Betty Mindlin coordenou a n.24, SE/FDE, 1994, p.153-167.
publicação de uma coletânea que se tornou um clássico, contando com intelec- __________ . “Estratégias de superação da discriminação étnica e religiosa no Bra-
tuais à época – tempos de chumbo – perseguidos pelo governo autoritário, reuni- sil”. Direitos humanos no Século XXI. Parte II. Brasília, MRE/Ipri/Funag, 1998,
dos em torno do Cebrap, logo após sua fundação. Trata-se da obra Planejamento p.959-985 (http://www.mre.gov.br/ipri/SDIREITOSHUMANOS).
no Brasil, publicada pela editora Perspectiva, em 1970.
GADAMER, H.-G. Verdad y método – Fundamentos de una hermenêutica filo-
2. Ainda estão presentes no trabalho de Mindlin, como referências, Pierre Clastres, sófica. 4a ed. Salamanca, Sígueme, 1991.
Roger Bastide, Berta Ribeiro, entre outros.
GAMBINI, R. “Prefácio”. In: MINDLIN, B. e NARRADORES INDÍGENAS.
3. A referência, aqui, é a idéia de transcriação como presente na tradução/ Tuparis e tarupás. São Paulo, Brasiliense/Edusp/Iamá, 1993.
transcriação de Blanco, de Octávio Paz, por Haroldo de Campos (1986).
MINDLIN, B. e NARRADORES SURUÍ. Vozes da origem – Estórias sem es-
4. Em trabalho anterior, Mindlin (1997b) chega a discutir a questão dos direitos crita. Narrativas dos índios Suruí de Rondônia. São Paulo, Ática/Iamá, 1996.
autorais e como a equaciona.
MINDLIN, B. e NARRADORES INDÍGENAS. Tuparis e tarupás. São Paulo,
5. A autora apresenta os mais profundos e sinceros agradecimentos a Betty Mindlin Brasiliense/Edusp/Iamá, 1993.
que lhe possibilitou acesso à carta de Lévi-Strauss, bem como autorizou sua in-
__________ . Moqueca de maridos. Rio de Janeiro, Record/Rosa dos Tempos,
clusão neste artigo preparado especificamente para esta revista.
1997a.
6. Professor no Programa de Pós-Graduação em Semiótica da PUC – São Paulo
__________ . Terra grávida. Rio de Janeiro, Record/Rosa dos Tempos, 1999.
e do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da
Universidade Presbiteriana Mackenzie. MINDLIN, B. Planejamento no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1970.

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

__________ . “Tradição oral, literatura e escrita: um registro voltado para a SENNETT, R. O declínio do homem público – As tiranias da intimidade. São
educação indígena”. In: D’ANGELIS, W. e VEIGA, J. (orgs.). Leitura e Paulo, Companhia das Letras, 1989.
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EDUCAÇÃO E PUBLICIDADE

EDUCAÇÃO E PUBLICIDADE

LUIZ CARLOS CARNEIRO DE FARIA E SOUZA


Sociólogo, Pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC-SP

Resumo: Nesse trabalho, procurou-se analisar a publicidade televisiva dirigida ao público adolescente-juve-
nil. Dentre todas as mídias, escolheu-se a TV, por ser a mais significativa de todas. O objetivo da publicidade,
hoje, além da venda de produtos, serviços e bens simbólicos, é de demonstrar modelos a serem seguidos.
Desta forma, ela apresenta um objetivo explícito, que consiste em oferecer as vantagens de determinados pro-
dutos, e um objetivo implícito, por intermédio do qual flui sua ação pedagógica.
Palavras-chave: publicidade e jovens; televisão e educação.

D
entre todas as mídias veiculadoras de publicida- O universo pesquisado foi o público adolescente-ju-
de na contemporaneidade, a televisão é a mais venil, isto é, na faixa etária entre 12 e 18 anos.2 Em se
significativa de todas. Sua participação na verba tratando de um público que apresenta um grau mais ele-
publicitária, em 1996, atingiu 59% do total dos investi- vado de compreensão dos objetivos da publicidade e se-
mentos feitos no período (Meio & Mensagem, 1997). Por guindo as tendências teóricas vigentes tanto na área da
outro lado, a televisão é o veículo de comunicação que comunicação quanto na área das ciências sociais (sobre-
obtém maior receptividade junto aos jovens. Isto ficou evi- tudo a antropologia), preocupou-se com o receptor em sua
denciado na pesquisa realizada pela agência norte-ameri- interação com a comunicação: um consumidor que pos-
cana D’Arcy, Masius, Benton & Bowles que, juntamente sui seu espaço de produção cultural e, enquanto ator so-
com seus associados, consultou jovens de 26 países, das cial, a partir de seu conhecimento e subjetividade,
classes A e B, em uma amostra de 6.547 adolescentes. reelabora os conteúdos das mensagens oriundas de um
No Brasil, o segmento estudado limitou-se às cidades de emissor. Por outro lado, procurou-se não desvincular o
São Paulo e Rio de Janeiro, abrangendo 448 alunos de estudo da recepção dos processos de produção.
colégios particulares (Veja, 1995). Um dos resultados al- Os questionários foram respondidos por 95 alunos,
cançados pela pesquisa é que não existem praticamente sendo que 88,2% deles estavam na faixa de 15 a 18 anos,
diferenças entre os jovens globais que pertençam ao mes- 43% eram do sexo masculino e 57% do feminino. Das
mo nível socioeconômico, sendo que um dos motivos para três instituições de ensino que participaram dessa pesquisa,
esta situação refere-se ao fato de que a globalização se duas localizam-se no Município de São Paulo, em bair-
opera sobretudo via televisão, que foi apontada como o ros de classe média (Escola Estadual de 2o Grau Brasílio
passatempo de 93% dos pesquisados. Machado) e média-alta (Escola Nossa Senhora das Gra-
Neste sentido, este artigo1 tomou por base de análise ças) e a terceira no município de Carapicuíba, em uma
uma pesquisa cuja finalidade foi caracterizar o adolescente região periférica caracterizada como cidade-dormitório
em sua origem familiar, sua vida cotidiana, seu relacio- (Escola Estadual de 1o e 2o Graus Dr. Benedito de Lima
namento com os meios de comunicação, informação e Tucunduva). As três salas sorteadas para constarem da
mídia, sua interação com a publicidade, bem como o “re- amostra correspondem à primeira série do ensino médio.
conhecimento” que ele faz de alguns filmes publicitários, Quanto à faixa etária, a Escola Brasílio apresenta a me-
após a projeção a que assistiram. nor média de idade (14,1 anos), seguida pela Escola das

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

Graças (14,6 anos), ambas com o menor desvio padrão. Na caracterização da moradia, buscou-se detectar a apro-
Na Escola Tucunduva, a média de idade é de 19,9 anos e priação de bens não apenas enquanto objetos de distinção,
o maior desvio padrão decorre do significativo intervalo no sentido de fator de diferenciação econômica e social, mas
que oscila dos 15 aos 34 anos. No cômputo geral, a mé- também como objetos simbólicos mais valorizados e em
dia é de 15,9 anos. relação à exposição às mensagens audiovisuais.
A quase totalidade dos estudantes (88,2%) situa-se na Os adolescentes da Escola das Graças mantêm eleva-
faixa etária dos chamados adolescentes (15 a 18 anos), da posse de bens, relativamente superior aos da Escola Bra-
7,5% são jovens (19 a 25 anos) e 4,3% adultos (26 anos sílio e muito mais em relação aos da Escola Tucunduva, em
ou mais). Entre os adolescentes, 43% são do sexo mascu- itens como automóvel, fac-símile, computador e TV por
lino e 57% do feminino, sendo que a faixa etária dos ho- assinatura/cabo. Entretanto, no que diz respeito a rádio,
mens alcançou 16,8 anos, contra 15,2 para as mulheres. TV e aparelho de compact disc, os percentuais são eleva-
A Escola Brasílio registrou o menor percentual de estu- dos nas três escolas. Neste aspecto, concorda-se com Hele-
dantes do sexo masculino (38,9%) e a Escola das Graças, na Abramo, que aponta a música como um dos compo-
o mais significativo (48,4%). nentes mais significativos para parcela daquele público.
Dentre os entrevistados, 18 trabalhavam e 75 apenas A música “está presente e acompanha quase todos os
estudavam. Na Escola das Graças, a totalidade dos alu- momentos de lazer: o tempo em que se fica sozinho em
nos não exercia outra atividade, enquanto na Escola casa, o encontro com os amigos, as festas e, principal-
Brasílio e na Escola Tucunduva, 11,1% e 53,8%, respec- mente, os bailes” (Abramo, 1994:66).
tivamente, trabalhavam. Para os jovens de classe média, como os da Escola
No Gráfico 1, foi sobreposta a distribuição dos que tra- Brasílio, ou para aqueles de classe alta, como os da Esco-
balham com o nível de renda de cada instituição. Para a la das Graças, a apropriação de bens – dentre estes os
Escola Tucunduva, o percentual dos que trabalham seria eletroeletrônicos como rádio, TV, aparelho de CD, video-
bem mais elevado se houvesse um número maior de pre- cassete e computadores – decorre de seu nível socioeco-
sença em sala de aula quando do preenchimento dos ques- nômico. Já para o adolescente da Escola Tucunduva, isto
tionários. é propiciado pelo sistema de crediário, que, de acordo com
Abramo, constitui-se, a partir da reforma financeira de
GRÁFICO 1
1968, “fator importante para a inserção das camadas po-
Média do Indicador ABA-Abipeme (1) e Distribuição de
Trabalhadores, por Escola
pulares nesse universo de consumo de bens culturais”, fa-
Região Metropolitana de São Paulo – 1997 cilitando assim “a compra de eletroeletrônicos, principal-
mente aparelhos de televisão e de reprodução sonora”.
Para a autora, “os artigos da indústria cultural, como
discos, fitas, revistas de entretenimento, filmes, têm seu
maior público entre os jovens, para quem passam a ser
preferencialmente dirigidos” (Abramo, 1994:61).
Dada a importância que o lazer desempenha na socia-
bilidade do público adolescente-juvenil, procurou-se iden-
tificar quais das atividades a ele relacionada obteriam suas
escolhas. As três preferências de lazer que tiveram maior
destaque, considerando-se as respostas em relação à amos-
tra, foram: visita à casa de amigos (70,5%); show (42,1%);
e danceteria (37,9%).
A atividade de lazer, em todos os estudos sobre os jo-
vens, é apontada com destaque. Para Abramo (1994: 61-62),
o lazer “aparece como um espaço especialmente importante
para o desenvolvimento de relações de sociabilidade, das
Fonte: Pesquisa realizada pelo autor (Souza, 1997). buscas e experiências através das quais procuram estruturar
(1) O critério ABA-Abipeme varia de 0 a 87 pontos. Baseia-se na posse de bens (banheiro, suas novas referências e identidades individuais e coletivas
rádio, TV, máquina de lavar roupa, aspirador de pó, automóvel), número de empregadas do-
mésticas mensalistas e nível de escolaridade do chefe econômico do domicílio. – e é um espaço menos regulado e disciplinado que os da

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EDUCAÇÃO E PUBLICIDADE

escola, trabalho e da família. O lazer se constitui também Assim, as opções tais como show, danceterias e cinema
como um campo onde o jovem pode expressar suas aspira- aparecem principalmente para as mulheres, enquanto es-
ções e desejos e projetar um outro modo de vida”. paços esportivos são mais citados pelos homens.
Chamou a atenção, nos resultados da pesquisa, a im- A importância do lazer para os jovens fez com que os
portância obtida pelo item visita à casa de amigos. “De salões de dança surgissem nas periferias e as danceterias
fato, para a generalidade dos jovens, os amigos de grupo nos bairros centrais, além das casas de diversões eletrô-
constituem o espelho de sua própria identidade, um meio nicas, lanchonetes, etc. (Abramo, 1994:60).
através do qual fixam similitudes e diferenças em relação Entre os participantes da pesquisa, 61,1% afirmaram
a outros. desenvolver alguma outra atividade nos finais de sema-
Paralelamente, os grupos de amigos aparecem como na, destacando-se estudar e viajar (ambas com 16,1%),
uma instância de proteção de identidades individuais. As prática esportiva (14,3%) e namoro (12,5%). Dos adoles-
socializações a que os jovens se encontram sujeitos são centes da Escola das Graças, nenhum utiliza os fins de
muito diversificadas. Por isso, é possível admitir que uma semana para estudar, sendo uma atividade desenvolvida
das funções essenciais dos grupos de amigos seja não tanto mais pelos alunos da Escola Brasílio. Viajar é mais um
a de desafiar os valores da família ou das gerações mais privilégio dos alunos da Escola das Graças.
velhas, mas assegurar aos jovens uma proteção aos assal- Chamou a atenção, ainda, que apenas um dos pesquisados
tos socializantes a que estão sujeitos” (Pais, 1997:94). afirmou ter como opção de lazer idas aos shoppings. Sabe-
Também destacaram-se, por ordem de preferências, os se que, atualmente, os shoppings transformaram-se em áreas
shows, danceterias e espaços esportivos. A adesão gene- de lazer para os adolescentes e uma das maneiras deles se
ralizada dos jovens a tais atividades deve ser entendida informarem a respeito dos produtos destinados à sua faixa
não apenas do ponto de vista instrumental, mas também etária. Estes centros comerciais, além de apresentarem uma
do simbólico. série de jogos eletrônicos, ringues, boliche, produtos espor-
Quando considerado o lazer separadamente para ho- tivos, lanchonetes, etc., oferecem certa segurança. Por outro
mens e mulheres, verificam-se algumas preferências evi- lado, “a extraterritorialidade do shopping também fascina
dentes para o sexo feminino e outras para o masculino. as pessoas muito jovens ainda, justamente pela possibilida-

GRÁFICO 2
Distribuição de Exposição à Mídia, segundo Veículos de Massa
Região Metropolitana de São Paulo – 1997

Fonte: Pesquisa realizada pelo autor (Souza, 1997).

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

de de uma deriva no mundo dos significantes mercantis” tuário e calçado/tênis salientaram-se na preferência da Es-
(Sarlo,1997:21). Isto, inclusive, foi detectado pelo Estudo cola Brasílio (classe B) e da Escola Tucunduva (classe
qualitativo sobre a imagem da marca Rainha, preparado pela C). Tais resultados reportam, novamente, ao trabalho de
Leo Burnett Publicidade: os jovens tomam contato com as Helena Abramo em dois aspectos detectados pela autora.
novidades em tênis “principalmente através do que vêem nos Primeiro, para os adolescentes dos estratos de baixa ren-
pés dos jovens da sua idade e nas vitrines dos shoppings”,3 da, “a participação na vida urbana, os deslocamentos im-
além da troca de informações entre eles e pelas propagandas postos pelas atividades de trabalho e instrução, a busca
da TV. de diversão para além dos limites do bairro, levaram a
O veículo de comunicação ao qual o jovem tem mais aces- um aumento de circulação dos jovens pelos variados es-
so é o rádio, pois 88,4% afirmaram ouvi-lo diariamente, paços da cidade, intensificando bastante a sua exposição
seguido pela TV convencional (77,9%) e a cabo (40%). Os pública. A importância da roupa está intimamente vincu-
demais meios de comunicação e informação situam-se en- lada a esta exposição, na medida em que dá visibilidade
tre o semanalmente ou raramente. O vídeo aparece com às identidades sociais” (Abramo, 1994:69).
43,2% de assistência semanal e 37,9% raramente. Os maio- Um segundo aspecto seria o aumento, a partir da década
res percentuais de raramente couberam à leitura de livros de 70, de “exposição dos jovens das camadas trabalhadoras
(70,5%), cinema (60%) e leitura de gibi (55,8%). aos meios de comunicação e aos apelos da publicidade. Esse
Do total de entrevistados, 97,9% afirmaram assistir às fenômeno gera, entre outras conseqüências, a absorção dos
publicidades, independentemente, portanto, de classe so- padrões estéticos dos setores mais ricos, baseados no consu-
cial ou gênero. mo de determinados tipos de mercadorias que sinalizam essa
Observando o Gráfico 3, percebe-se que, entre os jovens condição social, cujo modo de vida é almejado e cujos ape-
da Escola das Graças (classe A), as publicidades referentes los encontram eco na pequena – mas real – capacidade aqui-
a refrigerante e alimento obtiveram maior destaque. Ves- sitiva desses jovens” (Abramo, 1994:70/71).

GRÁFICO 3
Publicidades Preferidas, segundo a Escola
Região Metropolitana de São Paulo – 1997

Fonte: Pesquisa realizada pelo autor (Souza, 1997).


Nota: Nas respostas múltiplas foram consideradas as três respostas afirmativas, sem hierarquia.

26
EDUCAÇÃO E PUBLICIDADE

Dentre o total dos pesquisados, 41,5% afirmaram que recer seus produtos como resposta para o descontentamen-
a publicidade contribui para a sua formação, 24,5% dis- to moderno”(Marchand apud Ortiz, 1994:120). Daí Re-
seram que não e 34%, às vezes. O maior percentual de nato Ortiz (1994:120) afirmar que “a publicidade adqui-
respostas afirmativas coube às mulheres (64,1%). Por ins- re assim um valor compensatório e pedagógico”.
tituição, 69,2% dos alunos da Escola Tucunduva, 40% da Por outro lado, para a absorção de um público mais
Escola Brasílio e 21,2% da Escola das Graças afirmaram amplo, tanto os produtores quanto as empresas de propa-
que a propaganda interfere na sua formação. Pelos resul- ganda, destacadamente aquelas voltadas para o mercado
tados, acredita-se que o nível sociocultural seja um fator globalizado, procuram universalizar suas mensagens pu-
determinante para uma postura mais crítica em relação à blicitárias, evitando tudo que é “tópico, local ou étnico
publicidade (Gráfico 4). demais”. No caso da Coca-Cola, deve-se evitar ainda con-
A partir do momento em que a mídia, sobretudo a trariar quaisquer grandes correntes culturais, e para tanto
televisiva, impõe modelos estéticos a serem seguidos, sina- os eventos a serem patrocinados devem ser os que des-
lizando inclusive uma condição socioeconômica, e associa- pertam interesses universais, tais como os de música e es-
dos a um modelo de cidadania, isso torna-se preocupante, porte, visando especialmente o público jovem.
pois, segundo Mattelart (1994:116), “se os homens nascem Em relação à publicidade dirigida ao público adoles-
iguais diante da lei, eles não nascem iguais diante do merca- cente-juvenil, dois outros fatores devem ser acrescenta-
do e essa desigualdade coloca constantemente em perigo o dos: primeiro, os conteúdos transmitidos estão baseados
exercício da soberania do cidadão e dos povos”. em valores, atitudes, comportamentos, padrões estéticos,
Como foi visto, a publicidade é um modelo de refe- etc. detectados, aprioristicamente, por meio de sondagens
rência. Talvez isto seja explicável pelo fato de que “os qualitativas ou mesmo quantitativas, elaboradas pelas
publicitários, consciente ou inconscientemente, gradual- agências publicitárias; segundo, o próprio meio televisivo
mente reconhecem a complexidade do modo de vida ur- possibilita a transmissão de uma mensagem que conta com
bano, especializado, interdependente, que cria um resí- um dos recursos altamente valorizados por eles, ou seja,
duo de necessidades desencontradas. Percebendo o vácuo a imagem, que na pesquisa realizada foi um dos elemen-
na orientação das relações pessoais, eles começam a ofe- tos que mais os atraiu (69,5%). Somem-se a isso a músi-
ca e os sons, ingredientes perfeitos para a obtenção de
uma grande receptividade.
GRÁFICO 4
Verifica-se, portanto, que os executivos das empresas, em
Percepção da Interferência da Publicidade Televisiva na Formação,
consonância com o trabalho das agências publicitárias, efe-
segundo a escola
Região Metroplitana de São Paulo – 1997 tivamente desempenham o papel de “intelectuais”, conside-
rando-se que seus técnicos e profissionais apropriam-se cada
vez mais dos saberes sociológico, antropológico, psicológi-
co, etc., no sentido de produzir “um saber empírico que lhes
permite estabelecer uma mediação entre o pensamento e os
interesses políticos e econômicos de suas empresas” (Ortiz,
1994:148). Exemplificando, pode-se citar a Coca-Cola, que,
criada em 1886 como medicamento de fórmula secreta e com
99% de água açucarada, conseguiu em um século de exis-
tência transformar-se em símbolo ocidental de vida e fazer-
se representar em 185 países.
Deve-se considerar, ainda, que o jovem, enquanto ator
social e consumidor, reelabora as mensagens publicitárias,
em decorrência de sua subjetividade. Entretanto, o que se
nota na pesquisa é que, embora as reinterpretações apre-
sentem algumas nuanças, em face da objetividade e do
“didatismo” colocados na maioria das peças publicitárias,
estas são corretamente interpretadas. Por outro lado, a iden-
Fonte: Pesquisa realizada pelo autor (Souza,1997). tificação com os conteúdos, valores, padrões estéticos das

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

imagens, personagens, música, sons e cenários que com- shes iniciais acelera-se o ritmo da música, em inglês. Um
põem o contexto publicitário não é suficiente para que a coro misto canta: “Agarra ela! Amassa ela! Passa a mão
maioria dos jovens associe-se com os personagens e esti- nela! Fica com ela! etc.” A cada uma destas expressões, a
los de vida retratados nos filmes. Neste aspecto, os repre- garrafa é enfocada com alguém e, ao mesmo tempo, jo-
sentantes da classe social C foram os que mais se identifi- vens casais correspondem em atitudes, embora discreta-
caram (42,3%), além de acharem que a publicidade mente, ao refrão do que é dito. Outros flashes evidenciam
contribui para a sua formação (69,2%). Assim, como já a garrafa saindo de um congelador, esborrifando água e
mencionado, o nível sociocultural é fator importante para gelo. Tudo isto intercalado com cenas juvenis românti-
uma postura crítica em relação às mensagens publicitárias. cas, de namoro e algumas próximas ao erotismo. Encer-
De uma forma geral, entretanto, nota-se que a catego- ra-se o comercial com jovens ladeando uma garrafa de
ria adolescente-juvenil, independentemente da origem de tamanho desproporcional.
classe, de seu nível de renda e de sexo, conforme foi si- Para analisar o texto deste comercial, procurou-se de-
nalizado, é sensível e receptiva à publicidade. No con- tectar a relação entre significantes, significados e sua in-
texto brasileiro, dada a significância deste segmento po- serção no todo publicitário, pois, “se usamos o mesmo
pulacional, as indústrias, destacadamente as de alimento, significante para significar uma realidade diferente da-
refrigerante, vestuário e tênis, têm direcionado seus esfor- quela a que originalmente ela se refere, duas conseqüên-
ços promocionais para este público. cias podem ocorrer: ou se altera o significado, ou se alte-
Na tentativa de se verificar a reelaboração que os jo- ra a realidade” (Soares, 1976:152). Assim, o jogo entre a
vens fazem das publicidades, foram exibidos em vídeo garrafa e os jovens e a utilização de palavras e expres-
12 comerciais selecionados, sendo seis da Coca-Cola e sões como “Sente ela! Pega ela! Beija ela! sofreram
seis do Tênis Rainha. Ressalta-se, porém, que o contexto conotações de significados que representam outra reali-
em que os adolescentes assistiram às peças publicitárias dade. Desta forma, ao se atribuir a determinado “material
é bastante diferente daquele que se vivencia diante de um lingüístico certa intencionalidade, o processo social de
canal televisivo, com um movimento alternado de ima- apropriação da linguagem descarta a rede de significa-
gens ao qual Raymond Williams se referiu como um “fluxo ções dadas ao nível da língua e o enreda por conceito/
irresponsável de sentimentos e imagens (Williams, valores” (Miceli, 1972:76). Parafraseando Miceli, pode-
1975:89/93). No período de uma aula (45 minutos), os se dizer: sofreram “filtragem deformadora” e dispõem de
entrevistados, além de responderem ao questionário, es- “autonomia mítica”.
tiveram também como telespectadores e ainda opinaram Quanto ao comercial citado, cabem duas observações:
sobre os filmes a que assistiram. Diferentemente, portan- a primeira é que, apesar de denotar nele certo erotismo, a
to, de seus hábitos de assistir à TV. Coca-Cola mantém sua tradição de evitar cenas de sexua-
Após a projeção de cada publicidade, os jovens escre- lidade nos anúncios; a segunda diz respeito à embalagem
viam sobre o que acharam ou entenderam do filme. Para descartável, amplamente divulgada em agosto de 1995,
se ter uma idéia de como ocorreu a reelaboração e inter- data em que o comercial fora veiculado, evidenciando a
pretação das mensagens, são descritos dois dos comer- despreocupação da empresa com o lixo sólido. O protesto
ciais analisados, bem como apresentadas as opiniões mais efetuado pelo movimento ecologista em 1970, nos Estados
significativas obtidas junto aos receptores. Unidos, por este mesmo motivo, em frente à sede da com-
Antes de expor as questões levantadas, serão feitos al- panhia, ainda não se constitui em preocupação da empresa,
guns comentários sobre as publicidades selecionadas e pelo menos no Brasil.
uma pequena síntese de cada uma delas. Os títulos dos Retornando à pesquisa, nota-se que a “filtragem
comerciais seguem a mesma designação dada pelo Arqui- deformadora” foi detectada pelos adolescentes e a freqüên-
vo de Propaganda, ou seja, “Nova Coca-Cola 600ml” e cia maior das respostas manteve-se na relação “refrigeran-
“Cabeça (Tênis Rainha)”. te-namoro-sexualidade”. Para exemplificar, citam-se ape-
nas algumas respostas apresentadas: Para você gostar da
Propaganda da Coca-Cola: Nova Coca-Cola 600ml Coca-Cola, fazer com a Coca-Cola o que você faz com sua
namorada (Colégio Brasílio, sexo masc., 15 anos); Que ela
Imagens: um close-up da garrafa da “Nova Coca-Cola é gostosa como a mulher ou o homem, atração entre o ca-
600 ml”. Garrafa girando e a voz do locutor. Após os fla- sal (Colégio Brasílio, sexo fem., 14 anos); Eles comparam

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EDUCAÇÃO E PUBLICIDADE

a Coca-Cola como sendo uma mulher (Colégio das Gra- É de fundamental importância aprofundar as análises
ças, sexo masc., 15 anos); Mostrar que o produto é tão bom da publicidade, uma vez que ela, enquanto modelo cultu-
quanto ficar, abraçar...Compre! (Colégio das Graças, sexo ral, além de apresentar uma produção volumosa e cons-
fem., 14 anos); Juntando a sensualidade da mulher de fi- tante, “tem como projeto ‘influenciar’, ‘aumentar o con-
car com o homem ligado à Coca-Cola (Colégio Tucunduva, sumo’, ‘transformar hábitos’, ‘educar’ e ‘informar’,
sexo fem., 18 anos); Relação namoro (sexo) com o produ- pretendendo-se ainda capaz de atingir a sociedade como
to (Colégio Tucunduva, sexo masc., 34 anos). um todo” (Rocha, 1990:26).

Propaganda do Tênis Rainha: Cabeça EDUCAÇÃO E PUBLICIDADE

Primeira cena: busto de mulher na lateral. Segunda O objetivo da publicidade alterou-se com o tempo.
cena: homem com tórax despido. O foco da câmera retorna Hoje, além da venda de produtos, serviços e bens simbó-
à mulher, que passa sua mão pela cabeça. As imagens se licos, ela demonstra modelos a serem seguidos, apresen-
sucedem, ora com a mulher, ora com o homem, separa- tando, desta forma, um objetivo explícito, que consiste
damente. Olhares lânguidos trocados, belos corpos em mo- em oferecer as vantagens de determinados produtos, e um
vimento. Projeta-se, sobreposta à figura da mulher, a ex- objetivo implícito, por intermédio do qual flui sua ação
pressão “O quê”; em seguida a imagem do homem é pedagógica. Por meio desta ação, a publicidade propõe
encimada por “você tem”; finalmente, vem a expressão transmitir valores sociais e pessoais, penetrando, inclusi-
“na cabeça?”. Não há resposta para a pergunta. Estas ima- ve, no mundo da política e tornando-se um modelo de re-
gens são acompanhadas por um fundo musical. Encerran- ferência, ao veicular um padrão estético sinalizador de um
do o comercial, surge uma cena em que o tênis é focali- status social, bem como um modelo de cidadania – “quem
zado e outra indagação por escrito: “E nos pés? Rainha”. não o ostenta é imediatamente jogado para o campo dos
De todos os comerciais apresentados na Escola Brasílio, desqualificados para o convívio social, sob a suspeita de
este foi o que obteve maior número de críticas (cinco) ou marginalidade ou de delinqüência, ou simplesmente pela
de respostas como Não entendi (cinco); Como se a pes- demonstração de incapacidade para o consumo” (Abramo,
soa só pensasse no prazer, e em ter um bom tênis (idiota) 1994:73).
(sexo fem., 14 anos); Nada a ver com o produto”(sexo Se a publicidade, além de transmitir valores sociais e pes-
fem., 14 anos); O que você tem na cabeça? Muito sem soais e de se constituir em modelo de referência, tem ainda a
sentido, é um absurdo essa associação (sexo fem., 14 função “de demonstração de modelos a serem seguidos, isto
anos); Muito vulgar (sexo fem., 14 anos); Que comercial é, a apresentação de padrões físicos, estéticos, sensuais,
cretino, a cabeça com os pés, não tem nada a ver (sexo comportamentais, aos quais as pessoas devem se amoldar”
fem., 16 anos). Curioso é que, do total de 22 alunas, dez (Marcondes Filho, 1992:77), ela efetivamente desenvolve uma
optaram por tais respostas. Considerando que a referida ação pedagógica. Tais considerações reportam aos resultados
publicidade seja, efetivamente, “apelativa”, mas que muito da pesquisa: 77,9% dos adolescentes assistem TV convencio-
das outras apresentadas também o foram, talvez caiba nal e 40% a cabo, diariamente, em contrapartida aos maiores
indagar se tais afirmativas não estariam relacionadas a uma percentuais de raramente que couberam à leitura de livro
moral conservadora arraigada em parte da cultura femi- (70,5%); 97,9% afirmaram assistir as publicidades, indepen-
nina da classe média. dentemente, portanto, de classe social ou gênero; do total dos
Dentre os demais adolescentes, independentemente do pesquisados, 41,5% (de acordo com o nível socioeconômico,
sexo, a interpretação do filme foi assim: Na cabeça, você têm-se 69,2% nos adolescentes de padrão C; 40% no B e 21,2%
só pensa em mulher, e nos pés no Rainha (sexo masc., no A) disseram que a publicidade contribui para a sua forma-
15 anos); O homem tem a mulher na cabeça e vice-versa. ção e 34% acharam que “às vezes” ela contribui; 18,4% (50%
Nos pés só Rainha (sexo fem., 14 anos); Podemos tam- público B; 35,7% A e 14,3% C) apontaram como aspectos
bém considerar o que usamos no pé, tão importante como negativos dos comerciais televisivos a manipulação; e 27,4%
o que usamos na cabeça, nesse caso, devemos usar Rai- (42,3% para os adolescentes de nível C; 30,8% para os de
nha (sexo fem., 15 anos); Na cabeça uma bela mulher, nível B e 26,9% para os de nível A) acham que os jovens re-
nos pés um tênis Rainha (sexo masc., 28 anos); Mesmo tratados nos filmes publicitários correspondem à sua realida-
nas horas H ele pensa no Rainha (sexo fem., 16 anos). de de vida. Com isso, pode-se afirmar que “(...) a educação

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

não está restrita aos processos desenvolvidos apenas no inte- meios de comunicação de massa. Não se deve procurar
rior da instituição escolar. De maneira mais ampla, compre- igualar, reduzir um ao outro, nem privilegiar um em detri-
ende-se que em toda a sociedade são encontrados mecanis- mento do outro” (Franco, 1999:12).
mos educativos que produzem conhecimentos, pedagogias e A pesquisa foi aplicada junto aos jovens de três níveis
formas de ensinar; muitos desses mecanismos podem ser en- socioeconômicos que freqüentavam a primeira série do
contrados em produções culturais como filmes, novelas, his- ensino médio. O que dizer, entretanto, sobre as mensa-
tórias em quadrinhos, publicidade, só para citar alguns” (Sabat, gens publicitárias recebidas por significativos percentuais
1999:1). A influência da publicidade, entretanto, incide com da população vivendo em condições precárias, em um país
maior intensidade junto aos adolescentes de nível socioeco- marcado pelas desigualdades sociais, no qual o aparato
nômico C. escolar ainda não atingiu a excelência democrática do Pri-
Os jovens das camadas populares, como foi possível meiro Mundo e onde os meios de comunicação, muitas
verificar, são oriundos de famílias que apresentaram tam- vezes, funcionam como uma escola paralela? Finalizan-
bém o menor nível de escolaridade, sendo que, na pesqui- do, afirma-se ser de fundamental importância uma análi-
sa, 50% das mães não completaram o ensino básico e 26,9% se crítica em relação à TV não somente no que diz respei-
eram analfabetas. Neste aspecto, quando se relaciona a in- to às publicidades, “como também em relação aos filmes,
terpretação das publicidades com o poder aquisitivo do jo- telenovelas, noticiários, consumismo esportivo, etc., e,
vem, acredita-se, como Bárbara Freitag (1987:9), que “as inclusive, sobre os outros meios de comunicação (impren-
condições materiais de vida não condicionam apenas os sa, rádio, cinema, etc.)”(Souza, 1997:101). Uma das for-
conteúdos (concepção de mundo), mas as próprias estru- mas de se atingir tais objetivos poderá ser através da ins-
turas formais que possibilitam criar ou assimilar esses con- tituição escolar. A ela competirá um maior e mais
teúdos”. importante papel no processo de formação de um
Deve-se registrar, ainda, que, entre os fatores que mais telespectador crítico em face da mídia televisiva. “Ambas,
atraíram o público juvenil, no que diz respeito às publici- escola e televisão, contribuem para o processo educacio-
dades, destacam-se as imagens, com 69,5% das preferên- nal, já que transmitem uma concepção de homem e so-
cias. Os motivos das escolhas deveram-se, dentre outros, ciedade. A primeira, de modo a apresentar os conheci-
ao fato de apresentarem tudo muito perfeito (41,4%) e às mentos de uma maneira sistematizada e formal, por exercer
personagens (15,7%). Embora “a publicidade não invente uma ação pedagógica especializada e a segunda, não sis-
coisas” e que “seu discurso e suas representações estão tematizada e informal” (Souza, 1997:100).
sempre relacionados com o conhecimento que circula na
sociedade” (Sabat, 1999:5-6), não se pode deixar de ter
claro que: “A construção de imagens que valorizam de- NOTAS
terminado tipo de comportamento, de estilo de vida ou
1. Este trabalho contém partes da tese de doutorado Publicidade e contempo-
de pessoa é uma forma de regulação social que reproduz raneidade: estilos de vida e juventude (Souza, 1998).
padrões mais comumente aceitos” (Sabat, 1999:1-2). 2. As faixas etárias que caracterizam os adolescentes e jovens não apresentam a
Por outro lado, como afirmado anteriormente, as pro- mesma freqüência de idade em todos os trabalhos. Para exemplificar, cita-se pes-
quisa realizada pelo “Research International Observer”, cuja amostra constou
duções culturais, dentre estas, a publicidade, constituem- de 112 grupos de discussão, em 27 países, e foi denominada de “Adolescentes
se em mecanismos educativos. Neste artigo, foram anali- do mundo”, colocando este grupo etário na faixa de 13 a 18 anos. “The Kids are
uptight” (Campaign, 13/05/94). De acordo com o Estatuto da Criança e do Ado-
sadas aquelas publicidades apresentadas no veículo lescente, Lei no 8.069, de 13/jul./90, Livro I, Parte Geral, Título I, Art. 2 o, ado-
midiático de maior recepção junto aos adolescentes, ou seja, lescente é a pessoa “entre doze e dezoito anos de idade”. Para este artigo, consi-
deram-se adolescentes aqueles na faixa etária definida por esse Estatuto.
a televisão. Assim, deve-se “buscar uma complementa- 3. O estudo foi realizado por meio da técnica de discussão em grupo, realizada
ridade entre as diferentes estruturas cognitivas e perceptivas em São Paulo, nos dias 26, 27 e 28 de setembro 1990, com jovens do sexo mas-
culino, entre 11 e 17 anos, das classes AB+ e B-C+ que utilizavam diariamente
que a linguagem da televisão e da escola estimulam: a pri- tênis e que tivessem comprado pelo menos um par, nos últimos quatro meses
meira, audiovisual, estimula mais a percepção intuitiva; a Leo Burnett Publicidade (1990:10).

segunda, predominantemente verbal e escrita, privilegia o


pensamento e a razão. Essas particularidades do espaço cul-
tural televisivo e escolar precisam ser consideradas por REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
aqueles que se preocupam em estabelecer relações entre a
ABRAMO, H.W. Cenas juvenis – punks e darks no espetáculo urbano. 1 a ed.
educação formal e os produtos culturais difundidos pelos São Paulo, Ed. Página Aberta Ltda., 1994.

30
EDUCAÇÃO E PUBLICIDADE

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13/jul./90. São Paulo, Coleção de Leis Rideel, 1991. ORTIZ, R. Mundialização e cultura.1a ed. São Paulo, Brasiliense, 1994.
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FRANCO, A.P. “Televisão, ensino de história e pluralidade cultural: (re)pensando da Moeda, 1997.
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31
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

A TEORIA EDUCACIONAL NO OCIDENTE


entre modernidade e pós-modernidade

PAULO GHIRALDELLI JR.


Professor de Filosofia Contemporânea e Filosofia da Educação da Unesp.
Autor de Richard Rorty – a filosofia do Novo Mundo em busca de mundos novos.

Resumo: O artigo trata das principais forças em filosofia da educação no Ocidente Moderno e Contemporâ-
neo. Particularmente, destaca a posição do Brasil nos últimos anos, dado que localiza na contribuição de Pau-
lo Freire, junto com o alemão Herbart e com o norte-americano Dewey, a formulação das linhas mestras da
pedagogia moderna. O texto também faz menção ao trabalho atual do neopragmatismo, sob o qual nasce a
filosofia da educação inspirada nos filósofos norte americanos Richard Rorty e Donald Davidson, que revolu-
cionam atualmente não só a filosofia mas seus campos aplicados, como o direito, a religião, a política e, como
não poderia deixar de ser, a educação.
Palavras-chave: filosofia da educação; história da educação; modernidade.

N
os séculos XIX e XX, no Ocidente, ocorreram algo vivo: não passaria pela intenção da maioria dos filó-
três grandes revoluções em teoria educacional. sofos da educação no Ocidente preferirem a educação
Na transição do século XX para o XXI, está-se autoritária no lugar da educação democrática, e talvez
assistindo uma quarta revolução. As três primeiras, segun- poucos ainda acreditem que poderia haver verdadeira
do historiadores da filosofia da educação, têm seus me- educação em uma situação social não dinâmica e não li-
lhores representantes nos nomes de Herbart, Dewey e vre. Fora alguns ressentidos da direita e da velha guarda
Paulo Freire. Já a quarta revolução, da maneira como está marxista, a maioria dos filósofos da educação considera
ocorrendo, pode encontrar justificativas em Richard Rorty a democracia um chão necessário para toda e qualquer
e Donald Davidson. As três primeiras foram revoluções educação. Paulo Freire, por sua vez, está presente quando
modernas em teoria educacional, enquanto a quarta é pós- se considera que os países ricos tornaram-se mais ricos e os
moderna. pobres mais pobres e que o fenômeno do aparecimento do
Cada uma dessas revoluções girou em torno da emer- “desenraizado”, seja ele o pobre ou o pertencente a grupos
gência de um elemento-chave na discussão entre os filó- minoritários, é agora também visível mesmo onde estava
sofos da educação: em Herbart, a emergência da mente;. prometido que desapareceria ou não surgiria: nas demo-
em Dewey, a emergência da democracia; em Paulo Freire, cracias ricas da América do Norte e Europa. As três pri-
a emergência do oprimido. A quarta revolução, por sua meiras revoluções, portanto, não se distinguem da revo-
vez, segue em torno da emergência da metáfora – enten- lução pós-moderna em teoria da educação por um pretenso
dida segundo as novas visões de Davidson estudado por fato de que esta última teria superado tudo o que foi pen-
Rorty. sado em educação anteriormente. O que ocorre é que a
As revoluções anteriores não perderam a importância revolução pós-moderna em teoria educacional está
diante daquela que está ocorrendo agora, pois pertencem acoplada a uma maneira de conversar, em termos técni-
ao passado em um sentido cronológico e não valorativo, cos de filosofia e filosofia da educação, que desloca as
pelo qual teriam visto a perda de relevância de seus ele- filosofias da educação que justificavam as teorias educa-
mentos-chave. Afinal, hoje em dia, avançou-se muito em cionais modernas, nomeadas aqui por Herbart, Dewey e
filosofia da mente e não seria possível fazer teoria educa- Freire.
cional sem considerá-la. Assim, a herança de Herbart está O que se pretende dizer com isto é que as teorias edu-
viva. No caso de Dewey, mais ainda tem-se a sensação de cacionais modernas estiveram articuladas à filosofia da

32
A TEORIA EDUCACIONAL NO OCIDENTE: ENTRE MODERNIDADE E ...

QUADRO 1
Teorias Educacionais

Passos Teorias Educacionais

Herbart Dewey Freire Pós-Moderna

1º Passo Preparação Atividade e Pesquisa Vivência e Pesquisa Apresentação de Problemas

2º Passo Apresentação Problemas Temas Geradores Articulação entre os Problemas Apresentados e os


Problemas da Vida Cotidiana

3º Passo Associação Coleta de Dados Problematização Discussão dos Problemas através de


Narrativas Tomadas sem
Hierarquização Epistemológica

4º Passo Generalização Hipóteses e/ou Heurística Conscientização Formulação de Novas Narrativas

5º Passo Aplicação Experimentação e/ou Julgamento Ação Política Ação Cultural, Social e Política
Fonte: Elaboração do autor.

educação pré-linguistic turn. Por sua vez, a teoria da edu- progressista”. Este entendimento, pior que o anterior, cri-
cação que melhor se insere no campo pós-moderno, e tal- vou alguns livros que abordavam a didática nos anos 80,
vez possa vir a manter o nosso apreço pela democracia, trazendo mais confusão que acerto e favorecendo o pen-
está articulada às formas de conversação adquiridas, em samento esquemático que, no fundo, é sempre o anti-
filosofia, após a virada lingüística e neopragmática. Po- pensamento.
rém, as teorias educacionais diferem não apenas em suas A seguir, comentam-se em uma dialética conjunta, as
justificativas filosóficas, mas também em seus aconselha- três primeiras partes do Quadro 1, deixando para abordar
mentos e procedimentos didáticos. Segundo o pensamento em separado a teoria educacional pós-moderna.
rortyano, a filosofia da educação não é o fundamento da
teoria educacional, mas apenas uma forma de discurso Passo 1 – O processo de ensino-aprendizagem, para
ad hoc que permite melhorar nossa coerência prática e, Herbart, começa com a preparação, que consiste na ativi-
talvez, potencializar o que se está fazendo. Sendo assim, dade que o professor desenvolve recordando ao aluno o
não serão expostas aqui as filosofias para depois derivar assunto anteriormente ensinado ou algo que o aluno já
delas as teorias educacionais. Ao contrário, serão apre- sabe. Dewey, por sua vez, não vê necessidade de tal pro-
sentadas as diferenças entre elas e, só então, demonstra- cedimento, pois acredita que o processo de ensino-apren-
do, de modo breve, que é possível encontrar diferentes dizagem tem início quando, pela atividade dos estudan-
filosofias da educação para cada uma dessas teorias edu- tes, eles se defrontam com dificuldades e problemas, tendo
cacionais. então o interesse aguçado. Paulo Freire vê o processo de
O Quadro 1 apresenta as quatro teorias educacionais ensino-aprendizagem se iniciando em um momento es-
aqui citadas, em seus passos didáticos, em comparação. pecial, quando o educador está vivendo na comunidade
Antes de qualquer comentário explicativo dos passos dos educandos, observando suas vidas e participando de
citados no Quadro 1, vale fazer um alerta: nenhuma des- seus apuros – pesquisando sobre a comunidade, deixan-
sas formulações deve ser entendida através da dualidade do de ser educador para ser educador-educando.
“diretividade versus não-diretividade”. O grande erro dos
livros em teoria da educação e didática é o de apelarem Passo 2 – Segundo a teoria herbartiana, o professor, após a
para essa divisão e, então, não mais entenderem sobre o preparação, já pode apresentar aos alunos o novo assunto,
que estão falando. Todas as teorias educacionais apresen- os conceitos morais, históricos e científicos que serão a
tadas envolvem uma exaustiva participação do professor matéria do processo de ensino-aprendizagem, constituindo-
e do estudante. Muito menos tais teorias devem ser con- se no carro-chefe do processo mental despertando interes-
sideradas através da dualidade “progressista versus não- ses. A teoria deweyana, ao contrário, acredita que o carro-

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

chefe da movimentação psicológica são os interesses e que Passo 5 – Nesta última fase, na teoria herbartiana, o alu-
estes são despertados pelo encontro entre dificuldades e a no deve ser posto na condição de aplicar as leis, abstra-
delimitação de problemas. Assim, para Dewey, da atividade ções e generalizações a casos diferentes, ainda inéditos
seguem-se a enumeração e a eleição de problemas. Paulo na sua situação particular de ensino-aprendizagem. Na
Freire concorda com Dewey, mas acredita que os proble- última fase, na teoria deweyana, opta-se por uma ou duas
mas não são tão motivantes quanto os “temas geradores” – hipóteses em detrimento de outras, uma vez que há con-
as palavras-chave colhidas no seio da comunidade de edu- firmação destas por processos experimentais. Tem-se,
candos e que podem despertar a atenção destes, uma vez que então, ou uma tese ou opta-se por uma heurística e, as-
fazem parte de suas atividades vitais. sim, por uma conclusão, na medida em que a plausibilidade
das outras formulações heurísticas caiu por terra diante
Passo 3 – Para Herbart, uma vez que o novo assunto foi das exigências de coerência lógica, etc. O passo final na
introduzido, isto é, apresentados novas idéias e conceitos teoria freireana é a tentativa de solução do problema apon-
morais, históricos e científicos, estes serão assimilados tado desde o tema gerador através da ação política, que
pelos alunos à medida que forem induzidos a uma asso- pode inclusive ter desdobramentos práticos de ação polí-
ciação com as idéias e conceitos já conhecidos. Dewey, tico-partidária.
por sua vez, nesta fase do processo de ensino-aprendiza- Nos três casos, está-se diante de teorias educacionais
gem, está preocupado em ajudar os alunos na atividade modernas, que poderiam muito bem se sentirem confortá-
de formulação de hipóteses ou caminhos heurísticos para veis – e assim o fizeram – uma vez que tinham uma boa
enfrentar os problemas admitidos na fase anterior. Para justificativa filosófica para assim procederem. Justificativas
Paulo Freire, uma vez que os temas geradores já tenham filosóficas que foram montadas pelos grandes movimentos
sido trabalhados, começa-se a problematizá-los, desen- do Iluminismo e do Romantismo entre os séculos XVII e
volvendo-se uma atividade de diálogo horizontal entre XX e pelo movimento keynesiano de construção do Welfare
educador e educando e vice-versa, de modo que os temas State, no pós-Segunda Guerra Mundial.
geradores possam ser entendidos como problemas – mas Herbart e Freire pretendiam, na formulação humanista,
problema, neste caso, quer dizer problema político. A criar o homem enquanto ser capaz de se autodeterminar. É
“problematização” ocorre se o tema gerador é visto nas claro que Herbart pensava isso em termos iluministas clás-
suas relações com o poder, com a perversidade das insti- sicos, ou seja, o homem enquanto ser que sai da menoridade
tuições, com a demagogia das elites, etc. e passa a julgar as coisas pela própria razão é o homem que
se autodetermina – o verdadeiro indivíduo (Kant) – enquanto
Passo 4 – Nesta fase, segundo a teoria herbartiana, o alu- Freire considerava essa idéia em termos das várias filosofi-
no já aprendeu o novo por associação com o velho, ne- as contemporâneas, com inspiração mais romântica, na vaga
cessitando agora sair do caso particular exposto e traçar do existencialismo (marxista e/ou cristão): o homem deve-
generalizações, abstrações, leis. O professor, é claro, pode ria deixar de ser objeto e tornar-se sujeito de sua própria his-
insistir para que o aluno faça inferências e chegue então a tória. Dewey, por sua vez, queria o bípede sem penas como
adotar leis, na moral e na ciência. A teoria deweyana, nesta ser capaz de enfrentar a mudança contínua própria da vida
fase, pretende alimentar as hipóteses formuladas na fase livre, a vida democrática. Assim, para Dewey, haveria ain-
anterior. Sendo assim, a atividade do professor e do estu- da um sexto passo: o próprio conjunto dos cinco passos era
dante agora é a de buscar nas bibliotecas e outros meios, mais importante que a conclusão indicada pela hipótese que
inclusive na própria memória, os dados capazes de dar havia se mostrado correta. Para ele, aprender os cinco pas-
uma arquitetura mais empírica às hipóteses ou uma me- sos, isto é, aprender o que ele chamava de “procedimento
lhor razoabilidade aos caminhos heurísticos. Na teoria científico” para a resolução de problemas era, na verdade,
freireana, este é o momento em que educador-educando “aprender a aprender” e, assim, estar preparado para qual-
e educando-educador, ao traçarem as relações entre suas quer eventualidade da vida moderna. Mais que Paulo Freire
vidas e o poder, através da problematização dos temas e muito mais ainda que Herbart, Dewey propôs uma filoso-
geradores, percebem o que acontece com eles enquanto fia da educação que consistia na consideração da contingên-
seres sociais e políticos, chegando, então, à “cons- cia em um mundo completamente naturalizado e
cientização” – passam a ter consciência de suas condi- historicizado. Paulo Freire também acreditava, como Dewey,
ções na pólis. que a educação deveria preparar para a eventualidade, só

34
A TEORIA EDUCACIONAL NO OCIDENTE: ENTRE MODERNIDADE E ...

que as eventualidades do “desenraizado” seriam mais estavam inseridos os problemas e a discutir a pertinência
repetitivas: sempre seriam problemas políticos nos quais o delas com os colegas, com o professor e, enfim, com os
“desenraizado” estaria sendo oprimido. livros e outros meios. Este é o momento de criação, de
imaginação e, portanto, o auge do processo de criação de
TEORIA EDUCACIONAL PÓS-MODERNA metáforas.

Passo 1 – O início do processo de ensino-aprendizagem, Passo 5 – Por fim, o que se tem é o recolhimento das idéias
segundo a postura pós-moderna, se dá pela apresentação e sugestões vindas das narrativas e suas redescrições para a
direta de problemas e situações problemáticas, ou mesmo condução intelectual, moral e estética no campo cultural,
curiosas e difíceis – questões culturais, éticas, étnicas, de con- social e político de cada um. Cabe aqui a ação política orga-
vivência entre gêneros, mentalidades e modelos políticos nizada, inclusive a ação política partidária. Porém, é neces-
diferentes –, que são demonstradas por diversos meios: do sário lembrar que a própria formulação de uma narrativa e
cinema ao romance, passando pelo conto, pelos comic books, sua divulgação – a criação de uma nova metáfora que não
pela música, pela poesia e teatro, etc. só garanta direitos democráticos mas que invente outros di-
reitos – já constituem uma ação política.
Passo 2 – Na seqüência, o processo de ensino-aprendiza- Se os professores pós-modernos e os teóricos da edu-
gem visa relacionar as situações problemáticas e os pro- cação quiserem uma justificativa para esses procedimen-
blemas propriamente ditos com aqueles presentes na vida tos, vão facilmente encontrá-la, no passado, em germe,
cotidiana dos estudantes, dos seus avós e pais e, enfim, nas formulações da filosofia da linguagem e do pragma-
do seu grupo social ou familiar ou de amigos e até mes- tismo de Nietzsche e William James. Afinal, foram eles
mo do seu país – presente, passado e futuro. Aqui, o estu- os pioneiros na argumentação que borrou a nítida linha
dante é convidado a ser um personagem da narrativa con- que separava o que é metafórico do que é literal. Foi
tada no passo anterior e, ao mesmo tempo, um filósofo, Nietzsche quem, no final do século XIX, colocou a lin-
isto é, segundo Nietzsche, um juiz dos desdobramentos guagem em um plano articulado ao plano social e definiu
internos da narrativa. a própria verdade como metáfora. No entanto, se os pro-
fessores pós-modernos e os teóricos da educação quise-
Passo 3 – É feita a redescrição das narrativas nas quais os rem elaborar uma filosofia da educação mais adequada
problemas estavam inseridos, através de outras narrati- aos procedimentos dos cinco passos anteriores, e, para tal,
vas de ordem ficcional, histórica, científica e filosófica. quiserem utilizar a linguagem atual da filosofia, a leitura
O importante é o estudante perceber que essas narrativas dos textos de Donald Davidson é suficiente, principalmen-
que redescrevem aquelas não estão hierarquizadas epis- te na formulação que é dada por Richard Rorty.
temologicamente. Não há uma narrativa que aprende a O segredo aqui, para se entender a postura pós-moder-
realidade como ela é, mas há, em cada uma, jogos de lin- na, é questionar o que é a metáfora para Davidson.
guagem distintos que estão aptos, pragmaticamente, para A metáfora, na sua definição tradicional, pode ser en-
uma coisa e não outra. Quando se pretende saber como tendida como apenas a cobertura de um bolo. Ela seria a
uma nave espacial funciona, um bom vocabulário é o dos maneira de descrever as coisas de uma forma que, uma
físicos, porém, se a intenção é dizer para a namorada como vez clarificada, analisada, traria a verdade, o essencial.
a nave atravessa os céus em uma noite estrelada, seria A metáfora teria uma mensagem a ser decodificada, que
melhor um vocabulário ficcional – seria pedante e inútil poderia ser apreendida por investigação da semântica.
para o namoro a explicação física! Entretanto, o erro se- Assim, a metáfora teria um conteúdo cognitivo, podendo
ria considerar que, no segundo caso, está-se no campo ser explicada.
metafórico e, no primeiro, no campo literal e que ambos Uma terrível objeção a essa formulação aparentemen-
os campos estão nitidamente delimitados. Eles são voca- te tranqüila da metáfora, dada por Davidson, é a de que a
bulários incomensuráveis, cuja distinção ocorre pela uti- metáfora não pode ser parafraseada. Ao se tentar expli-
lização lingüística que o bípede sem penas faz deles. car uma metáfora, certamente corre-se o risco de fazer
alguma construção teórica sofrível, de mal gosto. Para
Passo 4 – Neste estágio, o estudante é convidado a pro- Davidson, a metáfora não é uma mensagem, não tem um
por sua narrativa de redescrição das narrativas em que conteúdo cognitivo a ser decodificado, sendo um ato inu-

35
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

sitado no meio do processo comunicacional que, embora rio, os potencializa. Quem faz metáforas em prol da cria-
tenha efeitos de grande impacto sobre o ouvinte, não pre- ção de novos direitos está, certamente, colaborando com
tende lhe dizer coisa alguma. É claro que uma metáfora, a idéia humanista de que a educação é aquisição de auto-
depois de algum tempo, se for saboreada e não cuspida e determinação, como em Herbart. Também está favorecen-
esquecida, pode então se adaptar a um jogo de linguagem do a diversidade e a liberdade e, portanto, alinhando-se
existente ou forjar um novo jogo de linguagem e, então, com Dewey na valorização da democracia. Além disso,
se literalizar, ou seja, ganhar valor de verdade. Aliás, como pode fornecer “autoridade semântica” para os grupos
Rorty lembra, nossa linguagem é, na sua maioria, um oprimidos redescreverem-se e, assim, ganharem vez e voz
monte de metáforas mortas. Entretanto, em um primeiro na sociedade à medida que puderem colocar seus voca-
momento, ela não é uma explicação e não tem valor de bulários alternativos, seus jogos de linguagem
verdade, uma vez que não está nos quadros do jogo se- secundarizados, como elementos também contáveis na
mântico tradicional. Por isso mesmo, seu lançamento em sociedade. Com isso, colabora-se com Paulo Freire na luta
uma conversa é muitas vezes espontâneo, e quem a lan- por uma educação em favor do oprimido pelo fim da opres-
çou pouco sabia o que ela significava (ela não significa- são. A teoria educacional pós-moderna, nesta filosofia da
va!). Assim, é provável que o movimento negro, na épo- educação, é a busca de realização dos melhores ideais
ca de seu auge, não saberia explicar o que era black is modernos.
beautiful! Do mesmo modo, agora seria uma péssima idéia
tentar explicar o que é gay is good. Não há paráfrase nem
explicações para gay is good, e qualquer tentativa destrói NOTA

rapidamente a metáfora e todo o movimento de impacto Editor do site Filosofia e Filosofia da Educação – www.filosofia.pro.br
que ela causa na mentalidade conservadora. Todavia, ape-
sar de não ter mensagem, ela é forte o suficiente para es-
tar envolvida com a busca de criação de novos direitos REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
democráticos, como, por exemplo, a discussão, em vá-
rios países, sobre a legitimidade do casamento entre pes- GHIRALDELLI Jr., P. Richard Rorty – a filosofia do Novo Mundo em busca de
mundos novos. Petrópolis, Vozes, 1999.
soas do mesmo sexo, pois, afinal, gay is good!
__________ . O que é Filosofia da Educação? Rio de Janeiro, DPA, 2000.
Essa nova filosofia da educação em nada solapa os __________ . O que você precisa saber em Filosofia da Educação em tempos
ideais das filosofias da educação modernas; pelo contrá- pós-modernos. Rio de Janeiro, DPA, 2000.

36
AMERICANISMO E EDUCAÇÃO: UM ENSAIO NO ESPELHO

AMERICANISMO E EDUCAÇÃO
um ensaio no espelho

MIRIAN JORGE WARDE


Professora e Coordenadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade da PUC-SP

Resumo: O artigo tem como questão principal como e por que, a partir de meados do século XIX, os Estados Unidos
representam um espelho no qual o Brasil deveria se mirar. Sem suspender as especulações em torno do que o Velho
Mundo poderia oferecer ao nosso futuro, a cultura norte-americana se apresenta como o melhor dos horizontes
possíveis, porque além de ser a expressão de uma sociedade que constrói a sua própria identidade, oferece a todos
as chances de uma vida de progresso e democracia. Ao mesmo tempo, porém, que passamos a alimentar o imaginá-
rio de um dia construirmos em nosso país o laborioso homem norte-americano, desenvolvemos, por outro lado, a
nossa imagem como feia e atrasada.
Palavras-chave: americanismo; homem novo; educação.

E
ste artigo é um desdobramento dos estudos regu- tados Unidos cedo constituíram o espelho onde o Brasil
lares sobre educação no período que vai de mea- tinha de se mirar, e não os “pares” latino-americanos. É
dos do século XIX às primeiras décadas deste sé- provável que não tenhamos levado suficientemente a sério
culo, com a atenção voltada, especialmente, ao processo as lucubrações geo-ideológicas da França de Napoleão III,
de inserção da escola nos intentos de construção da que quase quatro séculos após a descoberta das Índias Oci-
modernidade no Brasil. Em incursões de pesquisa, foram dentais, para conferir uma suposta unidade lingüística, cul-
registrados deslocamentos discursivos que vão se dando tural e “racial” dos povos latinos, em contraposição aos
mediante a passagem do foco do “regime de governo” para germânicos, anglo-saxões e eslavos, resolveu inventar a
o “sujeito” ou o “homem novo” necessário à modernidade. expressão “América Latina” (Morse, 1988:14).
Mais recentemente, foram retomados os antigos ensaios A partir de meados do século XIX, portanto duas a três
do e sobre o período e outras peças documentais que le- décadas somente após a declaração da independência,
vam a pensar num outro deslocamento chamado metafo- começaram a circular no Brasil, particularmente nos e a
ricamente de “troca de espelhos”. partir dos centros urbanos do Sudeste (São Paulo, em es-
São deslocamentos ora flagrantes ora sutis, ora confli- pecial), teses segundo as quais as chances do Brasil tri-
tuosos ora pacíficos em que nunca se deixou de fazer refe- lhar o caminho do progresso estavam em se espelhar não
rência ao Velho Mundo como fonte de uma cultura na qual mais no Velho Mundo, mas no Novo Mundo, ou seja, nos
os brasileiros deveriam incessantemente se banhar caso Estados Unidos.
quisessem conquistar o status de civilizados, mas os Esta- Mas, o que do Novo Mundo era preciso extrair para que
dos Unidos vão se afigurando nos ensaios utópicos das eli- a civilização e a modernidade pudessem ser plantadas na
tes intelectuais e no imaginário social como a terra prome- terra brasilis? É isso exatamente o que se busca e, supõe-
tida, sem as mazelas da Europa envelhecida e conflituosa. se, permitirá flagrar alguns dos elementos que passaram a
Desde a Proclamação da Independência política do Brasil alimentar o imaginário nacional sobre o passado brasilei-
do jugo português, em 1822, a representação de um Brasil ro, para que possa ser organizada a cozinha do futuro.
como parte constitutiva da América Latina não compôs o Antes de serem apresentados os argumentos e exatamen-
imaginário nacional; os projetos de construção da identi- te para torná-los inteligíveis, apresentamos dois comentá-
dade e unidade nacional foram alimentados por referên- rios preliminares. Em primeiro lugar, ao se vasculhar a
cias ao mundo extracontinental; a Europa e depois os Es- chamada historiografia brasileira do século XIX e início

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do século XX, constatou-se que o uso da expressão “Amé- sa como Chicago e Manchester juntas. A referência a
rica Latina” ocorre sempre que é preciso afirmar que o Brasil Manchester seria em breve abandonada, da mesma manei-
faz parte do continente sul-americano, portanto para afir- ra que os débitos com a Inglaterra iam sendo esquecidos,
mar a inserção geográfica do Brasil num continente que se junto com os juros dos empréstimos jamais saldados. Mas
situa na parte sul das Américas. Esse uso reporta-se direta- ficou Chicago como referência. Lá pela década de 50 era
mente à afirmação de que o Brasil não faz parte da Améri- comum encontrar nos bondes que circulavam por São Paulo
ca do Norte, mais do que a afirmação de que ele faz parte a frase: “São Paulo, a Chicago da América do Sul” (Ortiz,
de uma outra América. No Brasil, usam-se livremente os 1990 e Morse, 1988). Não havia na cidade mais do que
termos “americano” e “americana” para se referir ao que é “três ou quatro prédios com cem anos de idade”; a arquite-
dos Estados Unidos. Nas traduções de impressos oriundos tura de São Paulo já era no mínimo caótica, em que se mis-
dos Estados Unidos ou da Europa esses termos não são al- turavam o colonial, a art nouveau, o moderno e tudo o mais
terados, isto é, adota-se a metonímia pela qual a parte se que carecia de estilo. Assim, é provável que a analogia da-
identifica com o todo (fórmula recentemente adotada por quele antigo prefeito fizesse algum sentido no que se refe-
Renato Janine Ribeiro em debate na grande imprensa). ria aos percursos efetuados pelas duas cidades entre mea-
Foi feita uma consulta mais ou menos ampla sobre as dos do século XIX até as primeiras décadas do século XX.
possibilidades lingüísticas oferecidas pelo idioma portu- Nos anos 50, a analogia já havia se tornado um tanto for-
guês praticado no Brasil para se referir ao que é, origina- çada; de Chicago, talvez, o que São Paulo guardava de mais
se ou está nos Estados Unidos e a conclusão foi pela ine- próximo era a sua escola de estudos sociológicos, composta
xistência de um termo que substitua, com força, os termos de um número grande de acadêmicos que absorveram, atra-
usuais: “americano”, “americanismo” e assemelhados. vés dos seus mentores americanos sediados no Brasil ou
Em segundo lugar, trabalhou-se com os termos “espe- de viagens de estudos, o padrão das pesquisas empíricas
lho”, “espelhar” e correlatos, uma metáfora retirada de da Universidade de Chicago.
um dos grandes estudiosos da história cultural brasileira, Mas as iniciativas de espelhar o Brasil nos Estados Uni-
Richard Morse, um “americano” que por anos dedicou- dos antecedem o prefeito ufanista. Pouco tempo depois
se a estudar a América Latina e de forma muito particular de proclamada a Independência do Brasil e instituído o
o Brasil, onde residiu por certo tempo. Morse publicou regime monárquico, em 1822, começaram a circular pro-
em 1988 um livro com o título Prospero’s mirror: a study jetos de organização do Estado, ora associando-o ao re-
in new world dialetic, já traduzido no Brasil. Em seu pre- gime republicano, ora vinculando-o à definição de fron-
fácio, o autor explica os termos próspero e “espelho”, e é teiras, ora postulando a necessidade de se produzir o povo
este último que nos interessa. Diz ele: “É sabido que um brasileiro para que dele brotasse a nação. Qualquer des-
espelho dá uma imagem invertida. Embora as Américas ses projetos remetia a algum modelo imaginado como
do Norte e do Sul se alimentem de fontes da civilização vitorioso, bem-sucedido.
ocidental que são familiares a ambas, seus legados espe- Seguramente, no Brasil, como em boa parte do mundo
cíficos correspondem a um anverso e um reverso. Assim, ocidental, a França alimentou utopias políticas e projetos
a metáfora do espelho parece apropriada ao caso. Em suas de modernidade. No Brasil, ela já vinha servindo de refe-
vidas domésticas os seres humanos aceitam rotineiramente rência desde as últimas décadas dos setecentos; dos bra-
a inversão do espelho, quando fazem a barba sem se cor- dos de liberdade à sofisticação da belle époque, da moda
tar ou aplicam cosméticos sem deixar manchas. Em sua à organização disciplinar do ensino médio; é com Paris
vida nacional coletiva, porém, sentem mais dificuldade que a intelectualidade brasileira e os socialmente emer-
de realizar a transposição” (Morse, 1988:13). gentes aprendiam a adquirir lustro e tornar menos enfa-
Apesar da dificuldade, a metáfora é profícua. donhos os seus dias provincianos. Mas foi com a própria
França napoleônica e suas erupções regressivas que aque-
O IMAGINÁRIO SOCIAL TEM UMA las elites brasileiras começaram a assimilar a crença de
LÓGICA PECULIAR que elementos da utopia revolucionária e modernizadora
francesa estavam sendo realizados não lá, muito menos
Em 1914, o então prefeito da cidade de São Paulo de- no resto da Europa, mas basicamente nos Estados Uni-
clarava em seu relatório oficial que a cidade estava se apa- dos. A viagem de Tocqueville aos Estados Unidos em 1831
relhando para ser um grande centro industrial, alguma coi- é emblemática. Ele arranjou uma desculpa para a viagem,

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AMERICANISMO E EDUCAÇÃO: UM ENSAIO NO ESPELHO

mas, em verdade, foi movido pelas inquietações que fer- profugos e degredados; ser organizado pelas Ordenações
vilhavam na França quanto aos rumos que a utopia de- portuguesas bárbaras e góticas; nosso regime foi o mais
mocrática tomava naquele país, ao mesmo tempo que foi duro colonialismo, com mandonismos, caprichos e tra-
cotejá-la com o outro lado do Atlântico. Dessa viagem, paças dos todo-poderosos. Em lugar de trabalho e indús-
sabidamente resultou a obra A democracia na América. tria, calaçaria e fausto.
Mas, retornando ao Brasil, quaisquer que fossem os Essa fala é paradigmática; nela, estão contidos pratica-
projetos nacionais ou as imagens de nação em circula- mente todos os elementos que alimentarão o imaginário de
ção, para todos os lados as possibilidades de construí-la que no Novo Mundo do Norte instaurava-se a terra prome-
esbarravam na questão da construção do povo brasileiro tida, mas também a descrença de que pudéssemos atingi-
como condição mesma da nação. Essa era a questão mais la, por vício de origem. Nosso pecado era original!
presente nos ensaios de pensar o Brasil, que vai alimen- Uns tantos anos depois, em 1869, o jovem engenheiro
tando o imaginário social. O que estava em jogo era o Paula Souza, que fora aperfeiçoar-se nos Estados Unidos
que Todorov chamaria de a questão entre “nós” e “os ou- e acabou por trabalhar nesse país temporariamente, envia
tros”, enfrentada a partir da periferia do Império Ociden- uma carta de Chillicothe, Missouri, para um amigo no Bra-
tal (Todorov, 1993a e 1993b). sil, em que expressa seu entusiasmo com o padrão de edu-
Em 1835, portanto, 13 anos após a independência bra- cação que ele observava: “Nós, míseros cidadãos brasi-
sileira do jugo português, um jornal que circulava na cida- leiros, não temos idéa, nem podemos ter, do immenso
de de São Paulo, O novo farol paulistano, publicava em apreço em que o yankee tem a eschola. É uma das
editorial: “Quanto mais attento para o Brasil, mais me con- principaes, sinão a principal questão, do condado, da ci-
venço de que não está preparado para a republica. Todos dade. Os homens mais activos e conceituados são eleitos
reconhecem que esta forma de Governo, onde o povo é tudo, para fazer parte do conselho de educação (...) É que a
exige, para se manter, que o mesmo seja proporcionalmente educação é para o americano do norte como a carne e o
instruído; e tenha muita morigeração, muito amor ao tra- pão de que necessitam todos os dias. Por isso é também o
balho, finalmente muitas virtudes. E está por acaso n’estas povo o mais instruído, o mais activo, o mais livre e o mais
circunstancias a população do Brasil? ... Não macaquee- poderoso do mundo.
mos os Estados Anglo-Americanos, que tiverão outros prin- Pudéssemos nós imitá-lo! Pudéssemos esquecer as
cípios, outra educação, outro regimen: sim, os Estados- velhas e corruptas fórmulas a que vivemos subjugados,
Unidos forão povoados e educados por Filosofos; o Brazil olvidando-nos de que vivemos também no continente
por criminosos profugos e degredados. Os Estados-Unidos americano!” (Sousa apud Morse, 1970:188).
começarão logo com a Constituição Ingleza; o Brasil com A situação era grave: os brasileiros, apegados aos pra-
as barbaras e goticas Instituições de Portugal, com a Orde- zeres do corpo, subjugados pela corrupção, inautênticos,
nação do Livro 5o, &c. Os Estados-Unidos tiverão, desd’o não podiam nem imaginar o que era viver da espiritualidade!
seu começo, suas Assembleias Provinciaes, e forão cria- Em contraste com os brasileiros, a representação popular
dos com o leite da Liberdade; o Brasil estabeleceo-se sob descentralizada, a escola disseminada, o povo industrioso,
o mais duro regimen colonial, nem conheceo outros direi- livre, honesto, enfim, americanos autênticos. Nem mimesis
tos senão os caprichos de seus Verres, chamados Capitães podia nos salvar! Espelho perverso, nele nos víamos não
Generaes, e a trapaça do Foro. Nos Estados-Unidos só invertidos, mas deformados. No imaginário das elites
introduzio-se logo o trabalho e a industria; no Brasil a cravava-se o sentimento de erro e de fracasso.
calaçaria e fausto dos mandões” (apud Morse, 1988:91-92). Sentimento que colidia com a visão paradisíaca que os
Ao Brasil, então, faltava povo, pois que esse se faz com primeiros viajantes e colonizadores trouxeram para a ter-
instrução, trabalho e muitas virtudes. Porque faltaram fi- ra brasilis. Quando aportaram nas novas terras traziam
lósofos, diz o nosso editorialista, filósofos que nos tives- na bagagem a esperança de encontrar a Terra Prometida.
sem dado princípios e educação. Aí estava todo o abismo Estudiosos da cartografia e das missivas dos navegado-
que nos separava! Além disso, o ponto de partida dos res dos primeiros tempos de colonização encontraram cla-
Estados Unidos fora a Constituição Inglesa, desde o iní- ras sobrevivências das representações teológicas medie-
cio tiveram Assembléias Provinciais e beberam da fonte vais para as quais o Paraíso Terreal era acessível; realidade
da Liberdade. Por fim, começaram pelo trabalho e pela ainda presente em sítio recôndito, mas porventura acessí-
indústria. E o Brasil, foi fadado a quê? A ser povoado por vel (Holanda, 1994:IX-X). Nas cartas enviadas aos pa-

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rentes, amigos e aos reis, as menções aos desejos de en- minerais, recursos hídricos... Nesses relatos, aqueles via-
contrar a Terra Prometida, o Paraíso Terreste são tão rei- jantes em missões ditas científicas demarcaram com toda
teradas quanto o desejo de encontrar o ouro. a nitidez a grandiosidade da natureza em contraposição à
“Não admira se, em contraste com o antigo cenário fa- pequenez humana. Tudo o que permanecia tal qual saído
miliar de paisagens decrépitas e homens afanosos, sem- das mãos do criador era imponente, rico, dadivoso; o que
pre a debater-se contra uma áspera pobreza, a primavera eles viram como produto da ação humana era feio, sujo,
incessante das terras recém-descobertas devesse surgir aos insalubre, incivilizado...
seus primeiros visitantes como uma cópia do Éden. En- Foi dessa forma que as representações brasileiras com-
quanto no Velho Mundo a natureza avaramente regatea- pareceram às Exposições Internacionais. Inauguradas em
va suas dádivas, repartindo-as por estações e só benefician- 1851, em Londres, estendendo-se com regularidade até
do os previdentes, os diligentes, os pacientes, no paraíso as primeiras décadas do século XX, as Exposições
americano ela se entregava de imediato em sua plenitu- Internacionais produziram e foram produzidas como ex-
de, sem a dura necessidade – sinal de imperfeição – de pressão acabada da civilização moderna. Funcionaram
ter de apelar para o trabalho dos homens. Como nos pri- como espelhos mediante os quais as nações podiam olhar-
meiros dias da Criação, tudo aqui era dom de Deus, não se, olhando as demais. Eram “festas didáticas” (Kuhlmann
era obra do arador, do ceifador e do moleiro. Jr., 1996) e carregavam o método de constituição das
Dessa espécie de ilusão original, que pode canonizar- nações. Ensinavam que criar uma nação exige compara-
se a cobiça e banir o labor continuado e monótono, have- ção. Essa regra de método passa também a alimentar os
riam de partilhar indiferentemente os povoadores de toda imaginários sociais (Turazzi, 1995).
a nossa América hispânica, lusitanos, não menos do que Marx e Engels denominaram a Primeira Exposição de
castelhanos... Marcando tão vivamente os começos da 1851, em Londres, de Panteão da moderna Roma, onde a
expansão das nações ibéricas no continente, era inevitá- burguesia exibia seus deuses!
vel, não obstante, que o mesmo tema paradisíaco chegas- Na Exposição de Paris de 1889, o guia publicado para
se a imprimir traços comuns e duradouros à colonização orientar os visitantes do evento explicava aos potenciais
das várias regiões correspondentes à atual América Lati- visitantes: “Com que espírito é preciso visitar a Exposi-
na” (Holanda, 1994:X). ção? É preciso vê-la com o mesmo espírito que presidiu a
Do paraíso ao inferno? Os brasileiros eram anjos decaí- sua organização: é preciso vê-la para se instruir e para se
dos? Como havia se produzido e disseminado o descrédi- divertir. Ela é para todo mundo, para todas as idades, para
to, o sentimento de falta e de atraso? Não se tratava ape- os sábios, assim como para os menos instruídos, uma in-
nas de um desacerto quanto ao regime político; por toda comparável ‘lição de coisas’. O industrial aí encontra os
a parte, as sociedades se dividiam na busca da forma de modelos dos quais ele saberá aproveitar. O simples
organização do governo das coisas e dos homens. Esse passante aí toma uma idéia geral e suficiente das maravi-
não era exatamente o problema, pois as lutas políticas e lhas, sempre em progresso, da indústria moderna. Um pode
as saídas políticas que as sociedades apresentavam eram aí encontrar o caminho da fortuna, pelo estudo dos pro-
a expressão mesma do que elas eram e podiam ser; se cada cessos aperfeiçoados de fabricação; outro aí encontra, com
sociedade é a medida das suas próprias possibilidades, os objetos usuais colocados sob seus olhos, a satisfação
então cabia avaliar se a sociedade brasileira era constituída econômica do seu gosto” (apud Pesavento, 1997:13.)
de seres que suportariam a sua própria utopia. Para Baczko Benjamin (1975) viu as Exposições como “lugares de
(1984:7), esse seria o grande dilema político e social da peregrinação ao fetiche que é a mercadoria”. Michelle Perrot
modernidade: “comment imaginer et penser la société as estudou como “...grande espetáculo que o capitalismo
comme auto-instituée, ayant la pleine maîtrise de soi et oferece ao mundo, essa ‘vitrine’ gigantesca que celebra as
ne reposant sur aucun ordre extérieur à elle-même?”. maravilhas da Indústria e das Fábricas, catedrais da nova
humanidade, desempenharam um papel decisivo na forma-
ESPELHO, ESPELHO MEU... ção de uma mentalidade técnica e na difusão de uma ideo-
logia da Ciência e do Progresso” (Perrot, 1988:91).
São inúmeros os relatos de viajantes estrangeiros que Ensinavam, festivamente, a ciência de se exibir, a pe-
penetraram no território brasileiro entre fins dos séculos dagogia de se mostrar e a didática de bem-ver. Deixar-se
XVIII e o século seguinte para esquadrinhar fauna, flora, ver e ver; essa era a via de construir compositamente a

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AMERICANISMO E EDUCAÇÃO: UM ENSAIO NO ESPELHO

identidade e a alteridade das nações. Em obra publicada beça de animal (burros e gansos), acompanhada de uma le-
por ocasião da participação do Brasil na Exposição de Paris genda depreciativa: “Do give the good man a chance!”.
de 1889, diz o autor: “As exposições universais, que fo-
ram tão criticadas, têm pelo menos a vantagem incontes- COMPARAR, CLASSIFICAR E EVOLUIR...
tável de permitir aos diferentes Estados que aí tomam parte
estabelecer uma espécie de balanço oficial para a maior As Exposições Internacionais desempenharam papel
parte dos ramos de sua produção. Quão rico ou quão po- fundamental na difusão e “confirmação” das teses evolu-
bre que seja, é sempre útil conhecer exatamente o ponto cionistas. Ali, mostravam-se, ordenadamente, as diferen-
de prosperidade ou de decadência em que se acha. Para tes fases pelas quais a humanidade havia passado. E para
isso, é suficiente aos indivíduos colocar em linha de con- os modernos que jamais poderiam acessar seus anteceden-
ta o seu ativo e o seu passivo. Não se passa assim da mes- tes primitivos, o Brasil oferecia exemplares do homem pri-
ma forma quando se trata dos povos. A fim de apreciar mitivo. Aliás, cada país apresentava-se sob a forma de pro-
(...) seu estado econômico, é preciso dizer que eles o com- tótipos: de máquinas, de produtos, de tecnologias, de
parem a aquele de seus vizinhos, porque, na luta interna- plantas, de animais, de seres humanos. Tudo devidamente
cional do comércio e da indústria, tudo não é senão negó- selecionado e classificado. Uns compareciam com mais
cio de relações” (Nery, 1889 apud Pesavento 1997:13). materialidade do que outros, que se apresentavam com mais
Comparar e classificar, esse era o método na sua integra- espiritualidade; uns vinham com mais natureza, outros com
lidade. A exposição de 1876, realizada na Filadélfia, come- mais cultura; uns com gente, outros com coisas. Mas cada
morativa da Independência dos Estados Unidos, é conside- um ao seu jeito compunha o concerto hierarquizado segundo
rada paradigmática nas regras da classificação; o responsável as leis da evolução que se apresentava como expressão de
pela distribuição dos produtos – William P. Blake, geólogo um vetor único do progresso: a máquina.
e engenheiro de minas – fixou dez, depois oito grupos, divi- No Brasil, as teorias evolucionistas, positivistas, darwi-
didos em 350 classes. A proposta de Blake era “colocar as nistas começaram a circular contemporaneamente e atra-
matérias-primas como primeiro degrau do progresso, e as- vés das Exposições Internacionais. Misturaram-se nas
sim sucessivamente até apresentar, no final, as mais altas mentes das elites intelectuais, mas não circularam apenas
conquistas do intelecto e da imaginação”. Nessas exposições, entre elas. Especialmente o positivismo e o evolucionismo
os países aprendiam a organizar os seus registros educacio- spenceriano circularam amplamente e penetraram no ima-
nais, a fazer relatórios minuciosos, a elaborar estatísticas, a ginário social; serviram de lente, ou se quisermos de cri-
apresentar novos dispositivos, tecnologias e métodos de en- vo mediante o qual as teses de cientificismo e racionali-
sino. O alcance ordenador desse sistema classificatório foi zação da cultura foram lidas, interpretadas e assimiladas
grande (Mevil Dewey teria usado o sistema de Blake como em fins do século XIX e primeiras décadas do século XX.
base para sua classificação decimal na organização dos li- A menção aos aparelhos de psicometria, antropometria
vros nas bibliotecas públicas). e criminalística serve tão-somente para indiciar que na
E lá estava o Brasil, no concerto das nações, com seus segunda metade do século XIX as teorias racistas passa-
stands de produtos naturais: café, madeiras, minérios, ram a circular no Brasil, alimentadas pelas sociedades ci-
plantas exóticas, e com o folclore de seus negros e índi- entíficas recém-criadas e pelas Faculdades de Medicina e
os. Mas, através dos seus representantes oficiais, pronto Direito que controlavam com quase absoluta exclusivi-
a encomendar lotes de cadeiras ergométricas, aparelhos dade a cena cultural do final do século. Mas, não é sobre
para estudos de frenologia, criminalística, antropometria elas que interessa projetar mais luz, mas sim sobre os dis-
e... e cartilhas para alfabetização das crianças. positivos pedagógicos que são extraídos das idéias de
Assim, através das suas elites políticas e intelectualizadas, comparação, classificação e evolução.
os brasileiros aprendiam a “introjetar” (o verbo é intencio- Em 1904, Oscar Thompson participa da Exposição In-
nal) sua identidade: olhando no espelho, representavam-se ternacional de St. Louis. Thompson, de professor primá-
pelos olhos dos “outros”. O que viam era invertido, mas não rio, chegaria, pouco depois, a Diretor-Geral da Instrução
era mais deformado; era feio mesmo. O número de 27/5/ Pública de São Paulo, e visita a Exposição Internacional
1876 da Harper’s Bazar, dedicado à Exposição Internacio- de onde traz exemplares da cartilha The Arnold Primer,
nal de Filadélfia, apresenta uma caricatura do então impera- de Sarah Louise Arnold, que ele posteriormente traduz e
dor brasileiro, D. Pedro II, ladeado por brasileiros com ca- adapta para a língua portuguesa. Dessa visita, que durara

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muitos meses, Thompson volta absolutamente convenci- retamente na constituição dos sistemas de ensino em ou-
do das enormes vantagens de organizar a formação do tros estados da federação, como também para difundir a
magistério nos moldes “americanos” e de aplicar o méto- idéia de que a nova ordenação social só seria conquistada
do de ensino analítico adotado naquele país. Quando se se fosse operada a mudança intelectual e moral em cada
torna Diretor-Geral da Instrução Pública, Thompson con- indivíduo. As crenças de Thompson rebatem o pessimis-
verte o método analítico em obrigatório a todas as esco- mo do editorialista de 1835 e do engenheiro de 1869. Ele
las de São Paulo. Logo depois, o método se difunde por é contemporâneo do prefeito ufanista de 1914: no Brasil,
outros estados brasileiros, mediante assessoria de quadros se o maquinista era inferior à máquina, era preciso im-
do magistério paulista (Monarcha, 1999). portar a máquina e adaptar o maquinista a ela.
Qual a hipótese que embala Thompson? O que ancora Essas últimas considerações são propositadamente
a difusão das suas crenças para muito além do seu cargo gramscianas, pois, através delas, evidencia-se que se está
de mando? pensando o “americanismo” com débito especial ao lega-
Quanto às hipóteses: a ontogênese repete a filogênese; do conceitual gramsciano.
e a organização lógica dos programas de ensino devem Embora Gramsci tenha deixado registrados em vários pon-
seguir a ordem do desenvolvimento do espírito. Nas suas tos dos seus Cadernos ensaios interpretativos sobre o papel
palavras: “Se o método analítico sob o ponto de vista ge- que os Estados Unidos vinha ocupando na configuração de
ral e filosófico é o método por excelência, por isso que novos padrões de cultura, ou como ele preferiria dizer, no-
parte da idéia geral do conjunto – para suas partes, do vos padrões intelectuais e morais, é sabidamente nos apon-
concreto para o abstrato, do todo – que impressiona cla- tamentos sobre o Americanismo e Fordismo1 que se encon-
ramente a imaginação – para o abstrato, do indizível, que tram as idéias mais sistematizadas sobre o assunto.
é monótono, árido e insignificativo; não é de estranhar O que de central Gramsci oferece como base prelimi-
que ele tenha a sua primeira aplicação pedagógica no nar para se pensar o americanismo diz respeito, de um
ensino da leitura, a qual é inquestionavelmente uma ope- lado, ao fato de que ele de maneira absolutamente origi-
ração essencialmente analítica do espírito. nal e contrariando leituras prevalecentes apreendeu o
Daí a razão de a escola moderna, essencialmente pro- americanismo como o fenômeno de maior envergadura
gressista e científica, preconizar os métodos de ensino no momento pelo qual o capitalismo estava passando, ou
indiretos ou naturais, que obedecem em toda sua marcha seja, Gramsci viu no americanismo um acontecimento
os mesmos passos seguidos pelo espírito humano na aqui- “supraestrutural”, melhor dizendo um acontecimento de
sição de conhecimentos” (Thompson, 1910:1-9). mudança radical de toda uma cultura cujo peso jamais
Thompson fazia parte de uma elite de intelectuais que poderia ser minimizado, posto que exercia a função de
vinha, desde o final do século XIX, postulando a conver- cimentar as reformas econômicas em curso (diria ele, o
são das idéias e métodos da ciência em princípios de or- nome da reforma econômica é reforma intelectual e mo-
ganização de um sistema público de ensino, de sorte a ral); de outro lado, Gramsci viu nessa cultura a operação
pautá-lo nas leis da evolução natural, e mediador entre de recriação do sujeito; ou seja, nos termos da época, o
elas e as exigências de constituição de uma nação. Ou seja, americanismo estava produzindo um “homem novo”. E a
Thompson estava traduzindo para o Brasil aquilo que ima- eficácia do americanismo era devida, e muito, às condi-
ginava ter visto nos Estados Unidos da América: leis da ções históricas diferençadas dos Estados Unidos que não
natureza sendo respeitadas, porque convertidas em mé- precisavam carregar como camada de chumbo as velhas
todo de seleção, classificação, diferenciação, ordenação. tradições européias (culturais, demográficas, políticas,
Ou seja, convertidas em método de intervenção. estatais, etc., etc.); mas devia-se antes de mais nada ao
Thompson é representativo da nova empolgação repu- fato de que o americanismo era a filosofia que se afirma-
blicana: não adiantava continuar chorando as mazelas do va na ação; tão poderosamente afirmada na ação que es-
passado nem lamentar o povo brasileiro “miscigenado”. tava conseguindo produzir uma nova conformação
Era preciso industriosamente intervir. Operar sobre os in- psicofísica, estava inventando um “homem novo”
divíduos. Durante os últimos anos do século XIX até a (Gramsci, 1978:375-413).
década de 20 do século XX, o grupo do qual Thompson Foi essa genial (pre)visão que Gramsci enunciou sobre o
fazia parte investiu em muitas frentes para não só consti- americanismo que o fez capaz de entender que o pragmatismo
tuir o sistema público de ensino paulista e influenciar di- não era uma tola e menor filosofia do senso comum, despre-

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AMERICANISMO E EDUCAÇÃO: UM ENSAIO NO ESPELHO

zível em face da longa tradição da filosofia européia, nem coletiva e para manipulá-la. Mirabeau, com sua intuição
da suposta superioridade “práxica” do marxismo. Para política habitual, dizia à época da Revolução Francesa, que
Gramsci (1978: 401), o pragmatismo era a única filosofia não basta “mostrar a verdade: o ponto fundamental é fazer
cuja eficácia prática media-se pelo grau de adesão/conven- com que o povo a ame”, é necessário apoderar-se da sua
cimento que conquistava. Tratava-se de convencimento não imaginação. O ponto fundamental para Mirabeau era o que
no “vocabulário”, mas de convencimento na “ação”. Não é ele denominava de “formação das almas” (Baczko, 1984:
também casual que Gramsci (1999) tenha centrado suas ener- 53; na mesma direção Carvalho, 1990).
gias críticas em Croce, ou seja, no pragmatismo croceano.
Cabe reforçar, também, que Gramsci ajuda a pensar o
americanismo como “mudanças do modo de ser e viver”, NOTAS

e como tal é processo de configuração subjetiva. Aí está E-mail da autora: warde123@pucsp.br


um elemento fundamental sobre o qual o projeto se enca- 1. Gramsci, nos apontamentos sobre o Americanismo e Fordismo, utiliza
freqüentemente o primeiro termo associado ao segundo, o que se explica no con-
minha: o americanismo como processo educacional, ao texto em que ele está discutindo a questão. Sem distorcer a perspectiva gramsciana,
mesmo tempo que fez da educação o seu apanágio. O que utiliza-se aqui americanismo no sentido amplo que ele confere e por isso mesmo
passível de ser mencionado sem o complemento do fordismo; ou seja, o
pretende-se verificar é como, através de que mecanismos americanismo contém o fordismo; embora o fordismo tenha sido indispensável
– discursivos e não-discursivos – o americanismo pene- para a construção e difusão do americanismo, este antecede aquele e o extravasa.

trou no Brasil e constituiu-se em cultura, moldou formas


de pensar, sentir e viver; tornou-se parâmetro de progres-
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
so, felicidade, bem-estar, democracia, civilização; de que
modo o americanismo moldou as esperanças em torno da BACZKO, B. Les imaginaires sociaux: mémories et espoirs collectifs. Paris,
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cidade e da indústria, projetou padrões de arquitetura;
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redimensionou espaços e acelerou os tempos; plantou nos dernos. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975.
corações e nas mentes a silhueta do “homem novo” – ra- CARVALHO, J.M. de. A formação das almas: o imaginário da República no
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COMENTÁRIO FINAL __________ . Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, v.1, 1999.
HOLANDA, S.B. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e
colonização do Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1994.
Destaca-se, ao término desta exposição, que se prefe- KUHLMANN Jr., M. As grandes festas didáticas: a educação brasileira e as
riu trabalhar com indícios para construir os argumentos. exposições internacionais (1862-1922). Tese de Doutorado. São Paulo, USP,
1996.
Ou seja, não houve interesse nos fatos pirotécnicos que
MONARCHA, C. Escola Normal da Praça: o lado noturno das luzes. São Pau-
poderiam servir de prova inconteste e universal de uma lo, Ed. Unicamp, 1999.
tese. Assim, há a disposição em se pensar a reconstrução MORSE, R. O espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas. São Paulo,
Companhia das Letras, 1988.
de um imaginário social, supondo-se que ele tenha sido
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constituído de uma vez para sempre e seus elementos cons- do Livro, 1970.
tituintes fossem necessariamente mitos, símbolos, alego- ORTIZ, R. “Notas sobre as ciências sociais no Brasil”. Novos Estudos Cebrap.
n.27, julho 1990, p.163-175.
rias, ideologias coerentes e exclusivas. Ao contrário, a pes-
PERROT, M. Os excluídos da História: operários, mulheres, prisioneiros. Rio
quisa desenvolve-se sobre o “americanismo e educação” de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
a partir de elementos mais discretos, menos dramáticos, PESAVENTO, S.J. Exposições universais: espetáculos da modernidade do sé-
culo XIX. São Paulo, Hucitec, 1997.
que permitem verificar como foi sendo produzido o con- SCHWARCZ, L.M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão
vencimento que o Brasil – atrasado, faltoso, errado no seu racial no Brasil 1870-1930. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
itinerário – poderia passar para o moderno, o civilizado, THOMPSON, O. “Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Secretário do Interi-
or”. Annumario do Ensino do Estado de São Paulo: 1909-1910. São Paulo,
pela intervenção da educação e da maquinaria. Typographia do “Diario Official”, 1910.
Para trabalhar com o imaginário como âncora para a di- TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América. São Paulo, Martins Fontes,
1998.
fusão do americanismo, Bronislaw Baczko, autor referido
TODOROV, T. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade huma-
anteriormente, oferece poderosas ferramentas. Ele tem feito na – I. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1993a.
pensar que as elites políticas se dão conta muito rapida- __________ . A conquista da América: a questão do outro. São Paulo, Martins
Fontes, 1993b.
mente de que o dispositivo simbólico constitui um instru- TURAZZI, M.I. Poses e trejeitos: a fotografia e as exposições na era do espetá-
mento eficaz para influenciar e orientar a sensibilidade culo (1839-1889). Rio de Janeiro, Funarte/Rocco, 1995.

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

PARA ENTENDER A RELAÇÃO


ESCOLA-FAMÍLIA
uma contribuição da história da educação

LUCIANO MENDES DE FARIA FILHO


Professor da FaE-UFMG, Coordenador do GT História da Educação/ANPEd

Resumo: O texto pretende contribuir com as discussões sobre a relação entre a escola e a família, analisando
a forma como nas páginas de um periódico mineiro, a Revista do Ensino, cujos responsáveis se auto-reconhe-
ciam como escolanovistas, um grupo bastante diversificado de sujeitos (professores, técnicos de ensino, dire-
tores de instrução...) concebia e colocava em circulação a temática das relações entre essas duas instituições.
Palavras-chave: educação e sociedade; história da educação; imprensa no Brasil.

A
relação entre a escola e a família é, sobretudo nos escolas e famílias variam enormemente, estando relacio-
dias de hoje, uma das mais palpitantes questões nadas aos mais diversos fatores (estrutura e tradição de
discutidas por pesquisadores e/ou gestores dos escolarização das famílias, classe social, meio urbano ou
sistemas e unidades de ensino em quase todo o mundo. rural, número de filhos, ocupação dos pais, etc.).
Este fato é evidenciado, por um lado, pelo expressivo Constata-se, também, um outro elemento: seja devido
número de pesquisas e publicações especializadas sobre a mudanças pelas quais nas últimas décadas têm passado
o assunto, e, por outro, pela preocupação manifestada nos a família, seja em face das constantes e, às vezes, radicais
mais diversos fóruns (de reuniões escolares a fóruns na- alterações observadas na escola, bem como da conseqüente
cionais e internacionais) pelos profissionais responsáveis discussão (e incertezas) acerca do lugar dessas institui-
por gerir simples unidades escolares ou complexos siste- ções na formação das novas gerações, observa-se hoje uma
mas nacionais de ensino. exaltação da necessidade de se estabelecer um efetivo
No campo das pesquisas acadêmicas, talvez a área diálogo entre a escola e a família.
que mais tem se voltado para o estudo e entendimento Os professores e os gestores das unidades escolares
das relações entre escola e família seja, não por acaso, alimentam, ainda, a ilusão de uma maior participação dos
a Sociologia e, subalternamente, os estudos de políti- pais na escola, que seria resultado de uma ação formativa
cas de educação. Discutindo seja temas clássicos, como da escola em relação à família. Centrados em uma visão
o fracasso escolar, seja questões recentemente incor- escolarizada do problema, eles não põem em dúvida o
poradas, como as trajetórias escolares, os sociólogos lugar construído para e pela escola, em relação às demais
da educação têm continuamente chamado a atenção para instituições sociais, dentre elas a família.
a implicação da instituição familiar com a escola. Como É no interior deste debate, antigo e muito mais com-
dizem Montandon e Perrenoud (1987:7), “de uma plexo do que aqui apresentado, que se inscreve a preocu-
maneira ou de outra, onipresente ou discreta, agradá- pação dos historiadores da educação com o tema. No Bra-
vel ou ameaçadora, a escola faz parte da vida cotidia- sil, ao longo do século XIX, a instituição escolar vai lenta,
na de cada família”. mas inexoravelmente, se fortalecendo como o locus fun-
Todos estes estudos e, mais ainda, a prática pedagógi- damental e privilegiado de formação das novas gerações,
ca dos professores e gestores da escola põem em evidên- estando diretamente relacionados a este fato a expansão
cia um fato: a forma e a intensidade das relações entre da escolarização, o processo de profissionalização do

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PARA ENTENDER A RELAÇÃO ESCOLA-FAMÍLIA: UMA CONTRIBUIÇÃO...

magistério primário, dentre outros fatores (Faria Filho, ção (1925) até o momento em que o principal mentor da
1999). Neste processo, ela desloca, como já foi observa- reforma de ensino que ocorre em Minas Gerais, em 1927,
do por diversos autores (Alvares-Uria e Varela, 1991; Francisco Campos, deixa o cargo de secretário do Inte-
Vicent, 1994), outras instituições (família, igreja, etc.) de rior (1930). O período começa, portanto, antes de uma
seus lugares tradicionais de socialização, considerando- grande reforma de educação, tida pelos escolanovistas bra-
as, na maioria das vezes, incapazes de bem educar diante sileiros como uma das principais do período, e termina
de uma sociedade que se urbaniza e se complexifica, que quando as referências da reforma estão plenamente pos-
supõe novas dinâmicas e padrões de comportamento. tas em circulação através da revista.
Por outro lado, estudos têm detectado também que, nas A escolha por se trabalhar este periódico, no entanto,
primeiras décadas do século XX, o afastamento da famí- não se deve somente a estas razões. Por um lado, está se
lia da escola, resultante em boa parte da ação dos defen- assumindo aqui a posição, de forma exemplar explicitada
sores e instituidores da escolarização, é uma preocupa- e trabalhada por Marta Carvalho (1994), quanto à impor-
ção constante destes mesmos agentes (Faria Filho, 2000). tância de se estudar os impressos pedagógicos para o en-
Postados no interior de um campo que ganhava cada vez tendimento das diversas dimensões do fazer pedagógico
mais especificidade e legitimidade, os professores e ou- e da atuação dos agentes no campo educativo. Por outro
tros agentes da educação passam a reclamar do desinte- lado, no projeto pesquisa está sendo desenvolvido na
resse dos pais, principalmente das camadas populares, para Universidade Federal de Minas Gerais,2 duas pesquisa-
com a educação dos filhos. A partir de diagnósticos os doras estão trabalhando com esta revista: Maurilane Biccas
mais variados, baseados na premissa de que, embora seja (1999), que trata do lugar ocupado pela revista na “for-
fundamental a participação das famílias na educação dos mação de professores e na conformação do campo peda-
filhos, estas demonstravam, naquele momento, um pro- gógico em Minas Gerais”, compreendendo o período de
fundo desinteresse e despreparo para lidar com o assun- 1925 a 1940; e Rita de Cássia de Souza (1999), que está
to, buscava-se projetar e desenvolver ações que visavam estudando as representações e as práticas a respeito da
reaproximar a família da escola. No seu conjunto, em suas disciplina escolar dos alunos, postas em circulação e le-
mais diversas elaborações, estas ações mostram uma in- gitimadas pelo periódico. De forma direta, este trabalho
tenção colonizadora da escola em relação à família, en- beneficia-se de ambos, assim como das produções recen-
tendida esta tarefa como um momento fundamental da tes sobre a escola nova no Brasil e na América Latina
ação reformista da escola em face da realidade social mais (Carvalho, 1998; Nunes, 1993; Gvirts, s.d.), principalmen-
ampla. te nas discussões sobre as propostas e estratégias de re-
Este trabalho trata de um período em que ocorre uma forma social postas em ação pelos movimentos escolano-
intensificação das discussões na área, procurando verifi- vistas.
car como os escolanovistas mineiros enfocavam a ques-
tão da relação entre escola e família. O interesse por ESCOLA E FAMÍLIA NA REVISTA DO ENSINO
desenvolvê-lo deve-se, mais especificamente, ao fato de
que em Minas Gerais, ao longo do primeiro quartel do Em trabalho recente, Marcus Vinicius da Cunha
século XX, ao fazerem referências à escola nova, alguns (1996:318) “analisa o discurso educacional renovador vei-
professores e intelectuais dão maior relevo a experiên- culado no Brasil, entre 1944 e 1960, com vistas a discutir
cias que exaltam a importância da instituição familiar na os referenciais utilizados para compreender as relações
educação moral, intelectual e física das crianças.1 entre escola e família”, tomando como base de sua pes-
Para tanto, optou-se não por analisar toda a vasta pro- quisa os artigos veiculados pela Revista Brasileira de
dução do que aqui está sendo chamado, de forma dema- Estudos Pedagógicos, no período em questão. Cunha
siadamente elástica e imprecisa, de “movimento escola- observa que há uma predominância do enfoque de cunho
novista mineiro”, mas tão-somente por enfocar o assunto histórico-sociológico no início do período analisado, o
a partir do que foi posto em circulação no principal peri- qual dá lugar a um claro psicologismo ao final.
ódico mineiro à época, a Revista do Ensino, órgão oficial Entretanto, em outra pesquisa (Faria Filho, 1999), que
da Diretoria de Instrução Pública do Estado de Minas trata de um período anterior ao analisado por Cunha, não
Gerais, e principal divulgador das idéias escolanovistas se observou tal movimento, nem a presença de refinadas
no Estado, abrangendo o período que vai desde sua cria- discussões como aquelas encontradas por ele nos artigos

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

analisados.3 Percebeu-se, inicialmente, que para os auto- para, ao comentar o texto traduzido, externar seu ponto
res, dentre eles professores, dos textos publicados pela de vista sobre o assunto:
Revista do Ensino – e, portanto, para os próprios respon- “O lar forma, no estreito âmbito da casa, um mundo à
sáveis pela mesma –, há uma clara consciência da impor- parte, independente, regido talvez por leis reacionárias e
tância da família na educação, que aparece das mais di- dispersivas. E é bem por isso que a rua impressiona An-
versas formas e no interior de textos que tratam de assuntos gelo Patri. A escola deve completar a tarefa do lar, o aper-
variados. Há, no entanto, uma constante: a relação entre feiçoamento do caráter, encaminhando as tendências in-
escola e família é, sempre, relacionada às mudanças so- dividuais para a harmonia e a estabilidade sociais” (Ano
ciais em curso, à vida na cidade e à necessidade do con- IV, 36, 1929, p.22).
curso de ambas para a formação do cidadão-trabalhador, A ação da família é, no entanto, uma ação complemen-
higiênico e ordeiro. tar à da escola e a ela subordinada, porque se desconfia
Num artigo sobre o “Calendário Escolar”, o professor da competência da família para bem educar; na verdade,
Firmino Costa, diretor técnico do Curso de Aplicação, afir- no mais das vezes, afirma-se que a família não consegue
ma: mais educar os seus filhos. A esse respeito, o grande pro-
“A vida social completa está na cidade. A família e a blema, detectado nas páginas da revista, é que os pais não
escola são suas partes mais importantes. A cidade há de se interessam em participar da escola, pois dela estão afas-
interessar-se por elas, cooperando em seu desenvolvimen- tados.
to, pois que de outra forma não podem progredir. Onde Como fazer, então, para interessar ou envolver a famí-
não houver famílias bem constituídas, onde não existir lia na escola? Várias ações são propostas, as quais estão
escolas bem organizadas, aí não se encontrará a civiliza- articuladas pela idéia de que cabe à escola um papel pre-
ção. (...) ponderante na reforma social visada. Essa perspectiva
A família, a escola e a cidade hão de ver no menino aparece em artigos como o intitulado “A missão da esco-
uma esperança da pátria, donde deve brotar um cidadão la é criar valores socialmente utilizáveis – Vigorosos tra-
digno e prestante. Elas têm de oferecer para esse fim um ços de ensino moderno – ‘Método de problemas e méto-
ambiente favorável, cuja formação compete aos profes- dos de projeto’”(grifos no original), em que se afirma que
sores e a todos aqueles que forem modelos da vida so- “à escola moderna cabe a obra de assistência social, no
cial” (Ano IV, 35, 1929, p.57-58). ponto de vista econômico, higiênico, cívico, moral” (Ano
No número posterior da revista, a publicação de uma II, n.15, 1926, p.238-239), em que se alude ao comentá-
tradução de um capítulo do livro Vers l’école de demain, rio do prof. José Escobar referente ao inquérito sobre ins-
de Angelo Patri, é ocasião para se retomar a questão da trução realizado em São Paulo.
cidade, da rua, da violência nos processos de socializa- Porém, é sobretudo quando se trata da “reforma” das
ção. Na parte traduzida, referente ao capítulo III do livro camadas mais pobres da sociedade, particularmente no que
de Patri, e publicada sob o título de “Fora da Escola”, traz se refere à higiene e à alimentação, que a dimensão
uma reflexão do autor sobre as dificuldades enfrentadas reformadora da escola adquire maior consistência. No ar-
no trato com a violência do “em torno” à sua escola. Di- tigo “Escola Nova – problemas a resolver”, o assistente
zia, finalmente, desanimado: técnico do Ensino, Oscar Arthur Guimarães, depois de
“Então, pensava – será que minha escola é de fato di- discorrer longamente sobre a importância de a escola con-
ferente das outras? Não, por certo, continua a ser sempre tribuir para a garantia de um corpo saudável para seus
a velha escola. Professores e meninos, ruas e desordens, alunos, dizendo ser este o grande problema a ser resolvi-
têm aqui outros nomes, mas sãos os mesmos em toda par- do pela escola nova, conclui afirmando:
te. A família fecha-se em casa e ao mesmo tempo se se- “A escola não poderá ir diretamente auxiliar as classes
para do mundo. A escola fecha-se sobre si mesma, e não pobres, facilitando-lhes meios de vida e provendo-as de
se incomoda pelo que vai fora. Mas a rua continua a agi- alimentos. Mas poderá suavizar o mal, fornecendo regras
tar a multidão estrepitosa de sua vida, arrastando nossos de economia e de rendimento maior no trabalho” (Ano
filhos diante de nossas portas fechadas” (Ano IV, 36, 1929, IV, 35, 1929, p.45).
p.19). Nessa cruzada reformista dos costumes e das pessoas,
Também o tradutor, o assistente técnico de ensino a mulher é identificada como a grande responsável por
Levindo Furquim Lambert, aproveita essa oportunidade garantir a boa ordem no lar e, sobretudo, por possibilitar

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PARA ENTENDER A RELAÇÃO ESCOLA-FAMÍLIA: UMA CONTRIBUIÇÃO...

que a família passe a incorporar, cada vez mais, referên- em que nos grupos escolares se organize conferências de
cias escolares/escolarizadas de gerir o mundo doméstico vulgarização pedagógica, a fim de esclarecer os pais so-
e a educação dos filhos. Para isso, também, e principal- bre os problemas da psicologia infantil, o papel da escola
mente, as mulheres precisam ser reeducadas, pois, para e a colaboração necessárias entre a família e o mestre?”
bem educar, não basta amar, é preciso conhecer e com- (Ano II, 22, 1927:480).
preender as necessidades infantis. A resposta foi, evidentemente, afirmativa, reforçando-
Assim, ao comentar uma conferência realizada na Ale- se a perspectiva da educação dos pais pela escola. No
manha, com o objetivo de interessar os pais pela educa- entanto, no decorrer da propaganda da reforma, que teve
ção dos filhos (no lar e junto aos professores), a revista, na revista e no órgão oficial do Estado, o jornal Minas
pondo em circulação o artigo “A cooperação das famílias Gerais, seus principais meios, alguns professores obser-
na educação”, ao mesmo tempo em que reafirma que, para vam a necessidade de explicá-la às próprias famílias, e
orientar e conduzir a criança, é preciso ter-lhe amor e sa- não apenas aos professores. É com este intuito que na seção
ber compreendê-la, explicita o grande problema detecta- “Daqui e dali”, do número 35 da revista (1929), aparece
do nas relações com os pais: um artigo com o significativo título de “A reforma do
“É impossível educar nas escolas quando os pais de ensino primário revelada aos leigos”, que tem como epí-
nossas alunas são eles próprios mal educados; por conse- grafe o seguinte enunciado, debitado a Camões: “Quem
guinte, qualquer tentativa nossa para educar estas crian- não conhece a arte, não n’a estima.” No texto, fruto de
ças as poriam em atrito com os pais e parente, e, por meio uma Conferência realizada pelo professor Waldemar de
destes, conosco educadores” (Ano II, n.15, 1926, p.207). Almeira Barbosa, da escola Normal de Dores do Indaiá,
Visando superar o problema, os legisladores e a pró- o autor principia por dizer que não tem “a pretensão de
pria revista serão pródigos na proposição de instituições trazer luzes ao professorado primário”, pois este já esta-
escolares que incentivem e permitam as famílias aproxi- va sendo alvo de outras ações, e continua:
marem ou participarem da escola, as quais possibilitariam “Mas os senhores pais de família, que não estão na
a educação dos pais (principalmente, das mulheres). obrigação de a examinar a fundo, mas que se não furtam
Previstas já no Regulamento do Ensino Primário, de a julgamentos muitas vezes falsos e errôneos sobre ela,
1925, às Associação de Mães e organizações congêneres merecem que se lhes dêem algumas explicações, que se
será dada grande atenção. Nas matérias que versam sobre lhes esclareçam as dúvidas.
o assunto, será reafirmado, sempre, o lugar sagrado da Já ouvi de pais e mães de família esta queixa: ‘No meu
mulher/mãe na educação da criança. Sobre isso, seria in- tempo ensinavam isso no 2o ano’; ou então: ‘No primeiro
teressante citar uma conclamação do próprio presidente ano eu já sabia aquilo’.
do Estado, Melo Viana, às mães mineiras, publicada no E com toda sua lógica vão deduzindo: o ensino antigo
número 02 da revista. Dizia ele: era melhor.
“O governo ouvirá, sempre, sobre a eficiência e mora- Não! Julguemos com mais prudência.”
lidade da família (...) para promover ou inspecionar o Depois de explicitar as complexas mudanças pelas
ensino, enfatizando a ‘missão educador’ e o importante quais passava a educação mineira, o professor conclui
papel desempenhado pelas mães, nas ‘democracias’, ‘de que “esta queixa dos pais se justifica pela ignorância
formadoras do caráter dos cidadãos’, ressaltando que o dos métodos atuais do ensino”. Em seguida, o profes-
manancial mais puro das energias cívicas e das virtudes sor Waldemar expõe ser natural tais incompreensões,
morais – é hoje verdade universal proclamada – brota da citando Decroly como exemplo de quem, também, foi
educação do lar pela palavra materna. (...) é na obediên- incompreendido em suas propostas por reformar a es-
cia à doce autoridade das mães e nos conselhos constan- cola.
temente derramados do seu coração que os homens apro- Em outra parte do texto, o autor chama a atenção para
fundam o culto da lei, para respeitar e obedecer aos seus o processo de formação de professores, instaurado prin-
verdadeiros representantes”(apud Borges, 1993:62-3). cipalmente pela Escola de Aperfeiçoamento de professo-
Com este espírito, no ano seguinte, por ocasião da pre- res, organizada no bojo da reforma, dizendo o quanto ela
paração e realização do Congresso de Instrução Primá- irá incidir sobre a melhoria da ação docente junto aos alu-
ria, a revista publica as teses discutidas, sendo que uma nos. No entanto, como que dialogando com os pais, ele
delas levanta a seguinte questão: “10a) Haverá vantagem adianta:

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

“Mas não precisamos esperar. Agora mesmo: observai Não vos esqueçais nunca que a primeira educação é a
se vossos filhos ou vossos netos têm aquele horror que das mães” (Ano IV, 35, 1929:103).
tínheis à escola. Além de trazer os pais até a escola, é preciso que a
Notai que não é mais preciso obrigá-lo a ir à escola. escola vá até as famílias, que as conheça. Num longo tex-
Eles amam a escola. to que trata do Ensino da língua portuguesa, no subtítulo
Será que a mentalidade infantil do vosso tempo e a de que trata da Escola ativa, o professor Firmino Costa, ci-
agora tenham se transformado inteiramente? tado anteriormente, chama a atenção para o que seria a
Não, a escola é que foi transformada. nossa escola ativa. Dizia ele:
A escola antiga era freqüentada com repulsa. “A nossa escola ativa será aquela, cujo professor co-
A escola de hoje, é um gozo freqüentá-la. nheça cada um de seus alunos; a família do menino; o
O que não há é perfeita compreensão de parte dos que ambiente familiar; a casa de residência; suas condições
se queixam da reforma do ensino. higiênicas; grau de inteligência do aluno; qual o seu ca-
E é o que precisa haver. ráter; se é sadio e asseado; se tem boa alimentação; a que
É necessário que os pais de família se acostumem a horas se deita e se levanta; se dorme em quarto arejado;
visitar freqüentemente as escolas onde seus filhos são se fuma ou se tem outro vício; se é feliz ou infeliz (...).
educados. Em outras palavras, os professores hão de tornar-se
É o Estado que abriu estas escolas para vossos filhos. profissionais do ensino, verdadeiros advogados da causa
É o Estado que deseja que visiteis os estabelecimentos dos alunos” (Ano IV, 35, 1929).
onde se educam vossos filhos.” Já no artigo “Instituições escolares”, que é “suposta-
É interessante observar o teor e a estrutura do discurso mente” o relato de uma aula da professora Amélia de
escolhidos pelo professor para “dirigir-se” às famílias. Há Castro Monteiro, na Escola de Aperfeiçoamento, em 1929,
como que um diálogo, em que apenas uma das partes ex- ao discorrer sobre a importância do Clube de Leituras, da
põe seu ponto de vista, no qual busca mostrar, ou cons- comemoração das datas nacionais, das atividades nas fé-
truir, no ato mesmo do discurso que a institui, que a mu- rias, das excursões e da merenda na escola, a autora evi-
dança pretendida na escola já se realizou. Observa-se, dencia a necessidade de se atuar, também, no tempo de
também, que o autor lança mão, desde o título, de refe- férias dos alunos, alargando, assim, o tempo da educação
rências claramente religiosas – leigos, revelada, luzes... –, escolar e acompanhando a criança, indiretamente, no pró-
as quais, sem dúvida, são uma marca do processo de re- prio ambiente familiar.4 Ao justificar a utilidade de vári-
forma mineiro. Construir e mostrar uma imagem de es- as ações sugeridas para as férias escolares dos alunos, ela
cola como um lugar agradável, saudável, alegre, onde as afirma que as mesmas são: “(...) 8o Meio de se evitar féri-
crianças gostam de ir e ficar, e, mais ainda, demonstrar as mal gozadas, passadas em geral em tropelias, más com-
que esta é fruto da ação do Estado, é uma operação em panhias, depredações e vagabundagem; 9o Meio de se
curso desde os finais do século XIX, e que tem, no mo- conservarem os hábitos e atitudes seguidos e inculcados
mento estudado, uma grande relevância. Porém, não bas- na escola” (Ano IV, 35, 1929:68).
tava isso. Era preciso intensificar a educação dos pais. Se, como está sendo observado, boa parte dos discursos
“Para isso criou a instituição admirável que é o incide sobre a necessidade de educação dos pais, não menos
‘auditorium’ quinzenal, a fim de que as famílias indo as- importância foi dada à estratégia de se utilizar o próprio alu-
sisti-lo, conheçam o método atual de ensino, tão diferen- no como intermediário entre a escola e a família. Conquan-
te daquele pelo qual aprenderam, e exclamem como tan- to esta perspectiva não seja nova, uma vez que que dá con-
tas pessoas já têm exclamado: Oh! Se ensinassem assim tinuidade a práticas já existentes, como, por exemplo, os
no meu tempo! Como o ensino é alegre, atraente, como boletins escolares instituídos em Minas Gerais alguns anos
prende a atenção dos meninos! O que compete aos pais antes, no caso verificado há uma inovação no sentido de que
de família, com especialidade, às mães é continuar em casa é a própria ação educativa do aluno que é enfatizada.
a obra de educação que se processa na escola. No mesmo artigo de Firmino Costa citado anteriormen-
Estais vendo o grande interesse que os poderes públi- te, há uma interessante reflexão sobre isto: “A escola ati-
cos estão tendo com a instrução. va precisa da colaboração dos pais e das mães de família.
Deveis contribuir com vossa parte não desfazendo o tra- A reforma do ensino quer que a escola seja uma socie-
balho dos professores; pelo contrário, colaborando com eles. dade em miniatura. Dando outro sentido à expressão, posso

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PARA ENTENDER A RELAÇÃO ESCOLA-FAMÍLIA: UMA CONTRIBUIÇÃO...

dizer que, além do professor e dos alunos, são sócios des- A ação da criança, aspecto dos mais centrais da escola
sa sociedade os pais e as mães de família. Ora, não se ativa, tal qual a compreende e divulga a Revista do Ensi-
admite deixarem os sócios de concorrer para o bem da no, extrapola a própria escola e as atividades de ensino e
sociedade a que pertencem. Ao gerente da sociedade, que aprendizagem para incidir diretamente sobre os pais, so-
é o professor, incumbe fazer dos alunos intermediários bre suas famílias. Revela-se, aqui, toda uma problemáti-
junto das famílias, para granjear a colaboração delas. Por ca que extrapola as possibilidades dessa pesquisa e, mes-
meio dos filhos, que são os alunos, educados na escola mo, de pesquisas com este tido de fonte: as diversas
ativa, esta conseguirá a referida operação. modalidades e intensidade das relações estabelecidas en-
A escola ainda não se faz reconhecida dos alunos, por- tre as famílias e as escolas, tendo o aluno como eixo
que tem estado fora o circuito de seus interesses, quando articulador ou, nas palavras de Perrenoud (1987), como
somente por intermédio deles poderá aproximar-se das go-between, ou seja, o aluno como mensageiro e mensa-
família, sendo este o primeiro passo para a colaboração” gem na relação escola e família.
(Artigo “Língua Portuguesa”, Ano IV, 35, 1929:84). No caso da reforma mineira, e mesmo de outros pro-
Esta mesma ênfase aparece no artigo “A criança tam- cessos reformistas em curso no período, o estudo do lu-
bém pode ter influência na educação dos pais. Como se gar reservado e das ações projetadas para as próprias crian-
exerce esta influência. Observações interessantes”, tradu- ças na reeducação de suas famílias talvez pudesse nos
zido do L’école et la vie. Nele a referência à França pare- revelar facetas interessantes das concepções acerca da
ce indicar, ao mesmo tempo, a importância e a atualidade própria infância no interior do pensamento escolanovista,
do tema. Dizia o texto: bem como nos possibilitar de acompanhar um momento
“Recentemente um inspetor escolar da França salien- pretendido como privilegiado de ação da escola sobre a
tou, em conferência pública, a parte que a criança desem- sociedade.
penha na educação de seus pais. Pode-se afirmar, sem Assim, uma boa pista para estudar a relação entre a
hesitação, disse o zeloso propagandista, que no estado escola e a família no interior dos movimentos e das expe-
presente do marasmo social e do afrouxamento dos laços riências escolanovistas seja a de trabalhar num duplo
familiares que a criança é o agente mais eficaz da recons- movimento: verifica a amplitude das práticas que recor-
tituição ou da reeducação da família” (Ano II, n.13, tam, identificam, dão relevo e sentido ao tema e por in-
1926:126). vestigar os lugares reservados aos sujeitos – especialmente
Em seguida, o autor lembra que este expediente havia sido à mulher e à criança – no interior da cruzada reformista
largamente utilizado pela igreja, explicitando a apropriação, desenvolvida pelos escolanovistas em relação à família e
por parte da escola, de mecanismos utilizados por aquela: ao conjunto da sociedade.
“Outrora, os educadores religiosos souberam aprovei-
tar a influência da criança sobre os pais, para conduzir
NOTAS
estes à submissão mais completa às prescrições eclesiás-
ticas ou evangélicas. O menino católico na época da pri- E-mail do autor: lucianom@fae.ufmg.br
meira comunhão faz, muitas vezes ainda, obra de prose- 1. Este é o caso, por exemplo, das referências sempre elogiosas à École des Roches,
litismo inspirado, que não é indiferente às mães e às irmãs, organizada por E. Demoulins, na França.
2. Trata-se do projeto “Escolarização, culturas e práticas escolares”, que conta
às vezes aos pais e irmãos. Como, pois, não há de conse- com o apoio do CNPq, da Fapemig e da UFMG.
guir o educador leigo fazer penetrar na família idéias de 3. Isto, do que parece, pode ter várias razões, dentre estas as diferenças marcantes
moral, de civismo, de higiene ou mesmo de noções de entre os dois veículos: enquanto a Revista do Ensino é claramente um órgão de
divulgação e de formação dos professores, a RBEP tem como objetivo a divul-
ordem científica e técnica? A criança é, naturalmente, gação de artigos e estudos de fundo, cujos autores e destinatários são, em tese,
comunicativa; faz alarde de um pequeno conhecimento pesquisadores e especialistas em educação.
4. Esta questão, bem como a necessidade de educação da mulher para lidar com
recentemente adquirido; possui, às vezes, admiráveis ap- os filhos, é observada por Gouvêa (1997), ao trabalhar com outras fontes, nota-
tidões educativas (...). damente com a literatura infantil.
Nem sempre, entretanto, os pais escutam com atenção
a criança tagarela; mas esta não se deixa vencer com fa-
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
cilidade: a palavra do mestre tem mais autoridade do que
a dos pais, cuja ignorância é manifesta” (Ano II, n.13, ALVARES-URIA, F. e VARELA, J. Arqueologia de la escuela. Madrid, Las
1926:126-7). Ediciones de la Piqueta, 1991.

49
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

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50
PORTADORES DE DEFICIÊNCIA: A QUESTÃO DA INCLUSÃO SOCIAL

PORTADORES DE DEFICIÊNCIA
a questão da inclusão social

MARIA REGINA CAZZANIGA MACIEL


Presidente da Associação do 3º Milênio – Centro de Democratização das Ciências da Informação

Resumo: A questão da inclusão de pessoas portadoras de necessidades especiais em todos os recursos da so-
ciedade ainda é muito incipiente no Brasil. Movimentos nacionais e internacionais têm buscado um consenso
para formatar uma política de inclusão de pessoas portadoras de deficiência na escola regular.
Passos fundamentais devem ser dados para mudar o quadro de marginalização dessas pessoas, como: altera-
ção da visão social; inclusão escolar; acatamento à legislação vigente; maiores verbas para programas sociais;
uso da mídia, da cibercultura e de novas tecnologias.
Cabe a todos os integrantes da sociedade lutar para que a inclusão social dessas pessoas seja uma realidade
brasileira no próximo milênio.
Palavras-chave: deficiência e exclusão social; educação e economia; política educacional.

H
oje, no Brasil, milhares de pessoas com algum nacionais, em assembléia geral, na cidade de Salamanca,
tipo de deficiência estão sendo discriminadas nas na Espanha, em junho de 1994.
comunidades em que vivem ou sendo excluídas Este evento teve como culminância a “Declaração de
do mercado de trabalho. O processo de exclusão social Salamanca”, da qual transcrevem-se, a seguir, pontos
de pessoas com deficiência ou alguma necessidade espe- importantes, que devem servir de reflexão e mudanças
cial é tão antigo quanto a socialização do homem. da realidade atual, tão discriminatória.
A estrutura das sociedades, desde os seus primórdios, “Acreditamos e Proclamamos que:
sempre inabilitou os portadores de deficiência, margina- - toda criança tem direito fundamental à educação
lizando-os e privando-os de liberdade. Essas pessoas, sem e deve ser dada a oportunidade de atingir e manter
respeito, sem atendimento, sem direitos, sempre foram alvo o nível adequado de aprendizagem;
de atitudes preconceituosas e ações impiedosas. - toda criança possui características, interesses, ha-
A literatura clássica e a história do homem refletem bilidades e necessidades de aprendizagem que são
esse pensar discriminatório, pois é mais fácil prestar aten- únicas;
ção aos impedimentos e às aparências do que aos poten-
- sistemas educacionais deveriam ser designados
ciais e capacidades de tais pessoas.
e programas educacionais deveriam ser imple-
Nos últimos anos, ações isoladas de educadores e de
mentados no sentido de se levar em conta a vasta
pais têm promovido e implementado a inclusão, nas es-
diversidade de tais características e necessidades;
colas, de pessoas com algum tipo de deficiência ou ne-
cessidade especial, visando resgatar o respeito humano e - aqueles com necessidades educacionais especiais
a dignidade, no sentido de possibilitar o pleno desenvol- devem ter acesso à escola regular, que deveria
vimento e o acesso a todos os recursos da sociedade por acomodá-los dentro de uma Pedagogia centrada na
parte desse segmento. criança, capaz de satisfazer tais necessidades;
Movimentos nacionais e internacionais têm buscado o - escolas regulares, que possuam tal orientação in-
consenso para a formatação de uma política de integra- clusiva, constituem os meios mais eficazes de com-
ção e de educação inclusiva, sendo que o seu ápice foi a bater atitudes discriminatórias, criando-se comu-
Conferência Mundial de Educação Especial, que contou nidades acolhedoras, construindo uma sociedade
com a participação de 88 países e 25 organizações inter- inclusiva e alcançando educação para todos; além

51
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

disso, tais escolas provêem uma educação efetiva - as Nações Unidas e suas agências especializadas,
à maioria das crianças e aprimoram a eficiência e, em particular a ILO, WHO, Unesco e Unicef;
em última instância, o custo da eficácia de todo o - a reforçar seus estímulos de cooperação técnica,
sistema educacional. bem como reforçar suas cooperações e redes de
Nós congregamos todos os governos e deman- trabalho para um apoio mais eficaz à já expandida
damos que eles: e integrada provisão em educação especial;
- atribuam a mais alta prioridade política e finan- - a reforçar sua colaboração com as entidades ofi-
ceira ao aprimoramento de seus sistemas educacio- ciais nacionais e intensificar o envolvimento cres-
nais no sentido de se tornarem aptos a incluírem cente delas no planejamento, implementação e
todas as crianças, independentemente de suas di- avaliação de provisão em educação especial que
ferenças ou dificuldades individuais; seja inclusiva;
- adotem o princípio de educação inclusiva em for- - Unesco, enquanto a agência educacional das Na-
ma de lei ou de política, matriculando todas as ções Unidas;
crianças em escolas regulares, a menos que exis- - a assegurar que educação especial faça parte de
tam fortes razões para agir de outra forma; toda discussão que lide com educação para todos
- desenvolvam projetos de demonstração e enco- em vários foros;
rajem intercâmbios em países que possuam expe- - a mobilizar o apoio de organizações dos profis-
riências de escolarização inclusiva; sionais de ensino em questões relativas ao aprimo-
- estabeleçam mecanismos participatórios e descen- ramento do treinamento de professores no que diz
tralizados para planejamento, revisão e avaliação respeito a necessidades educacionais especiais;
de provisão educacional para crianças e adultos - a estimular a comunidade acadêmica no sentido
com necessidades educacionais especiais; de fortalecer pesquisa, redes de trabalho e o esta-
- encorajem e facilitem a participação de pais, co- belecimento de centros regionais de informação e
munidades e organizações de pessoas portadoras documentação e, da mesma forma, a servir de
de deficiências nos processos de planejamento e exemplo em tais atividades e na disseminação dos
resultados específicos e dos progressos alcançados
tomada de decisão concernentes à provisão de ser-
em cada país no sentido de realizar o que almeja a
viços para necessidades educacionais especiais;
presente Declaração;
- invistam maiores esforços em estratégias de iden-
- a mobilizar Fundos através da criação (dentro de
tificação e intervenção precoces, bem como nos
seu próximo Planejamento a Médio Prazo 1996-2000)
aspectos vocacionais da educação inclusiva;
de um programa extensivo de escolas inclusivas e pro-
- garantam que, no contexto de uma mudança gramas de apoio comunitário, que permitiriam o lan-
sistêmica, programas de treinamento de professo- çamento de projetos-piloto que demonstrassem no-
res, tanto em serviço como durante a formação, vas formas de disseminação e o desenvolvimento de
incluam a provisão de educação especial dentro das indicadores de necessidade e de provisão de edu-
escolas inclusivas. cação especial”.
Nós também congregamos a comunidade inter- A inclusão escolar, fortalecida pela Declaração de
nacional; em particular, nós congregamos gover- Salamanca, no entanto, não resolve todos os problemas
nos com programas de cooperação internacional, de marginalização dessas pessoas, pois o processo de ex-
agências financiadoras internacionais, especial- clusão é anterior ao período de escolarização, iniciando-
mente as responsáveis pela Conferência Mundial se no nascimento ou exatamente no momento em aparece
em Educação para Todos, Unesco, Unicef, UNDP algum tipo de deficiência física ou mental, adquirida ou
e o Banco Mundial: hereditária, em algum membro da família. Isso ocorre em
- a endossar a perspectiva de escolarização inclu- qualquer tipo de constituição familiar, sejam as tradicio-
siva e apoiar o desenvolvimento da educação es- nalmente estruturadas, sejam as produções independen-
pecial como parte integrante de todos os progra- tes e congêneres e em todas as classes sociais, com um
mas educacionais; agravante para as menos favorecidas.

52
PORTADORES DE DEFICIÊNCIA: A QUESTÃO DA INCLUSÃO SOCIAL

O nascimento de um bebê com deficiência ou o apare- fesos, sem direitos, sempre deixados para o segundo lu-
cimento de qualquer necessidade especial em algum mem- gar na ordem das coisas. É necessário muito esforço para
bro da família altera consideravelmente a rotina no lar. superar este estigma.
Os pais logo se perguntam: por quê? De quem é a culpa? Essa situação se intensifica junto aos mais carentes, pois
Como agirei daqui para frente? Como será o futuro de a falta de recursos econômicos diminui as chances de um
meu filho? atendimento de qualidade. Tem-se aí um agravante: o po-
O imaginário, então, toma conta das atitudes desses pais tencial e as habilidades dessas pessoas são pouco valoriza-
ou responsáveis e a dinâmica familiar fica fragilizada. dos nas suas comunidades de origem, que, obviamente, pos-
Imediatamente instalam-se a insegurança, o complexo de suem pouco esclarecimento a respeito das deficiências. Onde
culpa, o medo do futuro, a rejeição e a revolta, uma vez estão as causas da exclusão dessas pessoas no Brasil?
que esses pais percebem que, a partir da deficiência ins- No plano de governo, o que se vê são programas, pro-
talada, terão um longo e tortuoso caminho de combate à postas, projetos, leis e decretos com lindas e sonoras si-
discriminação e ao isolamento. glas, que ficam, na maioria das vezes, só no papel. Pro-
O quadro fica mais sério, tendo em vista que a tendên- gramas similares e simultâneos são lançados em duas ou
cia dos profissionais da saúde é sempre ressaltar, no diag- três pastas, sem que haja integração de objetivos e metas
nóstico, os aspectos limitantes da deficiência, pois inva- entre eles.
riavelmente são eles que primeiro são chamados para dar Muitas vezes acontecem ações paralelas entre o gover-
o diagnóstico conclusivo. Os médicos raramente esclare- no e a iniciativa privada, que ficam desintegradas, super-
cem ou informam, aos familiares de portadores de defi- postas, sem consistência e dirigidas a pequenos grupos,
ciência, as possibilidades de desenvolvimento, as formas gastando verbas sem mudar o quadro de exclusão exis-
de superação das dificuldades, os locais de orientação tente.
familiar, os recursos de estimulação precoce, os centros Essas ações não são permanentes, pois a cada mudan-
de educação e de terapia. ça de governo são interrompidas, esvaziadas, perdendo a
A esses familiares pede-se que aceitem uma realidade continuidade e a abrangência, sendo que outras aparecem
que não desejam e que não é prevista, uma realidade em em seus lugares para “fixar” a plataforma de quem está
que os meios sociais e a mídia pouco abordam e, quando no poder.
o fazem, é de maneira superficial, às vezes preconceituosa Nos estados e municípios, não existe uma política efe-
e sem apresentar os caminhos para a inclusão social. tiva de inclusão que viabilize planos integrados de urba-
Os pais ou responsáveis por portadores de deficiência, nização, de acessibilidade, de saúde, educação, esporte,
por sua vez, também se tornam pessoas com necessida- cultura, com metas e ações convergindo para a obtenção
des especiais: eles precisam de orientação e principalmente de um mesmo objetivo: resguardar o direito dos portado-
do acesso a grupos de apoio. Na verdade, são eles que res de deficiência.
intermediarão a integração ou inclusão de seus filhos junto As dificuldades são imensas para sensibilizar executi-
à comunidade. vos de empresas privadas, técnicos de órgãos públicos e
Cada deficiência acaba acarretando um tipo de com- educadores sobre essa questão. Um sentimento de omis-
portamento e suscitando diferentes formas de reações, são aparece, consciente ou inconscientemente, em técni-
preconceitos e inquietações. As deficiências físicas, tais cos, executivos e burocratas, quando necessitam decidir
como paralisias, ausência de visão ou de membros, cau- sobre o atendimento às necessidades dos portadores de
sam imediatamente apreensão mais intensa por terem deficiência.
maior visibilidade. Já a deficiência mental e a auditiva, Essas reações preconceituosas, de omissão e descaso,
por sua vez, são pouco percebidas inicialmente pelas pes- já podem ser classificadas:
soas, mas causam mais estresse, à medida que se toma - nos órgãos públicos, as solicitações e reivindicações de
consciência da realidade das mesmas. pessoas portadoras de deficiência logo se transformam nos
A falta de conhecimento da sociedade, em geral, faz famosos processos “Ao-Ao”, em que cotas endereçadas
com que a deficiência seja considerada uma doença crô- “Ao” Dr. Fulano, “Ao” departamento tal e “Ao” setor de
nica, um peso ou um problema. O estigma da deficiência Sicrano só criam volume, burocracia e não apontam para
é grave, transformando as pessoas cegas, surdas e com soluções, pois todos transferem o “problema” para ter-
deficiências mentais ou físicas em seres incapazes, inde- ceiros, eximindo-se, assim, da necessidade de propor al-

53
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

ternativas de atendimento. Nesses processos, quase todos Em nome da igualdade de atendimentos, muitos teóri-
se omitem de tomar decisões em benefício dos portado- cos radicais defendem a inclusão escolar de forma sim-
res de deficiência; plista: é só colocar esse aluno na classe comum e tudo se
- na área de atendimento e serviços à população, a res- resolve. Entretanto, suas teses não refletem a realidade
posta mais freqüente é a “NTV” – “não temos vaga”; de que as pessoas com deficiência possuem necessidades
educativas especiais e, assim, pouca contribuição têm tra-
- há, também, a adoção, tão popular para as pessoas de
zido para todos os envolvidos na questão. Também em
baixa renda, do sistema “ENFE” de atendimento, ou seja,
nome da igualdade de atendimentos, muitos deles negam
“entre na fila de espera”.
veementemente as experiências positivas de escolas e de
Por outro lado, a idéia de modelos únicos para todos, classes especiais, que souberam desenvolver o potencial
preestabelecidos, tem excluído pessoas com necessidades
de seus alunos e, dessa forma, contribuíram para a sua
especiais dos recursos da sociedade, como comprovam
inclusão junto à sociedade. Negar os trabalhos positivos
as barreiras arquitetônicas, sociais e educacionais. No do passado é esquecer que a construção do conhecimento
plano dos atendimentos específicos, a realidade é a se-
está baseada no acúmulo de experiência adquirida.
guinte:
Deve-se lembrar, sempre, que o princípio fundamen-
- saúde: os locais de atendimentos na área de saúde são
tal da sociedade inclusiva é o de que todas as pessoas
pequenos, superlotados e sem infra-estrutura. As políti-
portadoras de deficiência devem ter suas necessidades
cas de prevenção, às vezes, ficam restritas a algumas cam-
especiais atendidas. É no atendimento das diversidades
panhas de vacinação e os programas de diagnóstico pre-
que se encontra a democracia. O que fazer diante deste
coce são insuficientes. Os testes com aparelhos de última
quadro? O primeiro passo é conseguir a alteração da vi-
geração são destinados a poucos; as de terapias e fisiote-
são social através:
rapias oferecem poucas vagas em relação à demanda; a
- de um trabalho de sensibilização contínuo e permanen-
obtenção de próteses e órteses é difícil e as filas de espe-
te por parte de grupos e instituições que já atingiram um
ra são enormes para quem não tem poder aquisitivo;
grau efetivo de compromisso com a inclusão de portado-
- área social: os programas para as pessoas com alguma res de necessidades especiais junto à sociedade;
deficiência são, em geral, os que possuem as menores
- da capacitação de profissionais de todas as áreas para o
verbas, não existe trabalho efetivo junto às comunidades
atendimento das pessoas com algum tipo de deficiência;
mais carentes e os grupos de orientação e atendimento
estão sempre superlotados; - da elaboração de projetos que ampliem e inovem o aten-
dimento dessa clientela;
- mercado de trabalho: poucos são os empregadores que
se dispõem a absorver esse segmento. O portador de de- - da divulgação da Declaração de Salamanca e outros do-
ficiência é o último a ser contratado e o primeiro a ser cumentos congêneres, da legislação, de informações e
demitido, sendo que sua faixa salarial é, em média, me- necessidades dos portadores de deficiência e da impor-
nor que a de seus colegas de profissão; tância de sua participação em todos os setores da socie-
dade.
- nas áreas de lazer, esportes, cultura e transportes não
existem projetos abrangentes que atendam a todos os ti- A reestruturação das instituições não deve ser apenas
pos de deficiência e, nas áreas de comércio, indústria e uma tarefa técnica, pois depende, acima de tudo, de mu-
serviços, a acessibilidade inexiste ou é inconsistente; danças de atitudes, de compromisso e disposição dos in-
- na educação também não é diferente, pois só as grandes divíduos. O segundo passo no processo de inclusão so-
cidades possuem algum tipo de atendimento. A realidade cial é o da inclusão escolar.
tem mostrado que os ciclos do ensino fundamental, com Ao entrarem para a escola, as crianças que possuem
sua passagem automática de ano, e a falta de formação de alguma necessidade educativa especial terão que se inte-
professores, de recursos técnico-pedagógicos, de estímu- grar e participar obrigatoriamente de três estruturas dis-
lo suplementar, de acompanhamento de equipe multidis- tintas da dinâmica escolar: o ambiente de aprendizagem;
ciplinar – fonoaudiólogos, assistentes sociais, psicólogos, a integração professor-aluno; e a interação aluno-aluno.
terapeutas ocupacionais –, de salas e de professores de A partir da análise e adequação destas estruturas e do
apoio deixam a questão da inclusão escolar sem estrutura levantamento de alternativas que favoreçam o desenvol-
eficiente, bonita apenas na teoria. vimento dos alunos, em geral, e dos portadores de neces-

54
PORTADORES DE DEFICIÊNCIA: A QUESTÃO DA INCLUSÃO SOCIAL

sidades educativas especiais, em particular, é que a in- questão da deficiência e as formas de convivência que
clusão escolar deve ter início. Assim, é necessário anali- respeitem as diferenças, o que não é tarefa fácil, mas pos-
sar se o ambiente de aprendizagem é favorecedor, se existe sível de ser realizada. Levar os alunos de classes regula-
oferta de recursos audiovisuais, se ocorreu a eliminação res a aceitarem e respeitarem os portadores de deficiên-
de barreiras arquitetônicas, sonoras e visuais de todo o cia é um ato de cidadania.
próprio escolar, se existem salas de apoio pedagógico para Cabe a todos profissionais de escolas especiais, de clas-
estimulação e acompanhamento suplementar, se os currí- ses especiais, de salas de apoio a portadores de necessi-
culos e estratégias de ensino estão adequados à realidade dades especiais, aos teóricos da educação inclusiva, aos
dos alunos e se todos os que compõem a comunidade es- profissionais das escolas regulares e às equipes multi-
colar estão sensibilizados para atender o portador de de- disciplinares e de saúde a função primordial da integra-
ficiência com respeito e consideração. ção de ações, da otimização dos recursos e dos atendi-
Para que haja a verdadeira integração professor-alu- mentos, da criação de canais de comunicação que
no, é necessário que o professor da sala regular e os espe- considerem a questão da inclusão social como prioritária
cialistas de educação das escolas tenham conhecimento e anterior à inclusão escolar.
sobre o que é deficiência, quais são seus principais tipos, O futuro é outra dimensão que também não pode ser
causas, características e as necessidades educativas de cada esquecida, pois é preciso estar preparado para a rápida
deficiência. O professor precisa, antes de tudo, ter ampla evolução tecnológica destes novos tempos, que influen-
visão desta área, que deve ser proveniente de sua forma- cia e modifica o processo educativo e a nossa relação com
ção acadêmica. Hoje, poucas escolas e universidades, que a construção do conhecimento.
formam professores, abordam adequadamente a questão Para a estimulação da pessoa com deficiência, a
da deficiência em seus currículos. Urge mudar essa reali- tecnologia da informação é fundamental, pois a veloci-
dade. A atualização periódica também é indispensável, dade da renovação do saber e as formas interativas da
devendo ocorrer por meio de cursos, seminários e forma- cibercultura trazem uma nova expectativa de educação
ção em serviço. para essa clientela. É necessário, portanto, criar serviços
É importante que os professores tomem ciência do diag- e propostas educativas abertas e flexíveis que atendam às
nóstico e do prognóstico do aluno com necessidades edu- necessidades de mudanças.
cativas especiais, entrevistem pais ou responsáveis para A cibercultura não só demonstra que a maior parte dos
conhecer todo o histórico de vida desse aluno, a fim de conhecimentos adquiridos por uma pessoa no início de
traçar estratégias conjuntas de estimulação família-esco- sua vida educacional estará ultrapassada ao final de um
la, peçam orientações e procurem profissionais – como certo tempo, como também aponta novas formas de habi-
psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos – que estejam litação e reabilitação de pessoas com necessidades edu-
atendendo ou que já atenderam esses alunos, solicitando cativas especiais. Esse fenômeno de captação de trans-
relatórios e avaliações, e pesquisem várias técnicas, mé- formações constantes deve ser posto ao alcance das
todos e estratégias de ensino, em que variáveis como o pessoas com necessidades especiais.
desenvolvimento da linguagem, o desenvolvimento físi- O terceiro passo para a inclusão social de portadores
co e sobretudo as experiências sociais estejam presentes. de deficiência é a instituição de mecanismos fortalecedores
A integração professor-aluno só ocorre quando há uma desses direitos, tais como destinação de maiores verbas
visão despida de preconceito, cabendo ao professor fa- públicas para os projetos que atendam esse segmento e
vorecer o contínuo desenvolvimento dos alunos com ne- participação de entidades de defesa de deficientes e para
cessidades educativas especiais. Não é tarefa fácil, mas é deficientes nos processos decisórios de todas as áreas di-
possível. Quando ocorre, torna-se uma experiência ines- retamente envolvidas no atendimento dessa população.
quecível para ambos. A mídia não pode ser esquecida, pois possui um papel
A interação aluno-aluno traz à tona as diferenças fundamental na promoção de atitudes positivas no senti-
interpessoais, as realidades e experiências distintas que do da inclusão de pessoas portadoras de deficiência na
os mesmos trazem do ambiente familiar, a forma como sociedade. A criação de equipes de mediação de sistemas
eles lidam com o diferente, os preconceitos e a falta de e a presença de ombudsmen junto aos conselhos de defe-
paciência em aceitar o outro como ele é. Todos os alunos sa da pessoa deficiente, que mostrem ao governo, à so-
das classes regulares devem receber orientações sobre a ciedade e à mídia os acertos e desacertos da inclusão so-

55
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

cial e escolar e seus prognósticos para curto, médio e longo deficiência e outras minorias tornam-se cidadãos produ-
prazos, devem ser consideradas. tivos, participantes, conscientes de seus direitos e deve-
A prática da desmarginalização de portadores de defi- res, diminuindo, assim, os custos sociais. Dessa forma,
ciência deve ser parte integrante de planos nacionais de lutar a favor da inclusão social deve ser responsabilidade
educação, que objetivem atingir educação para todos. A de cada um e de todos coletivamente.
inclusão social traz no seu bojo a equiparação de oportu-
nidades, a mútua interação de pessoas com e sem defi-
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ciência e o pleno acesso aos recursos da sociedade. Cabe
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medida de ordem econômica, uma vez que o portador de UNICEF, OMS, UNESCO. Medidas vitais. Brasília, Seguradoras, s/d.

56
EDUCAÇÃO E PSICOLOGIA SOCIAL: UMA PERSPECTIVA CRÍTICA

EDUCAÇÃO E PSICOLOGIA SOCIAL


uma perspectiva crítica

ODAIR SASS
Psicólogo, Professor de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Resumo: O presente artigo analisa a relação da psicologia com a educação a partir da perspectiva da psicolo-
gia social. Procura evidenciar que a exigência de uma ciência psicológica, na configuração do campo educativo,
é desenvolvida, desde o início do século XX, como psicologia social, tais como: John Dewey e George Mead,
em contraposição à psicologia intelectualista.
Palavras-chave: psicologia educacional; educação e sociedade; teorias da educação.

U
ma visão de conjunto das influências da psico- em discursos ou em escritos, o desenvolvimento do pensa-
logia, presentes e pretéritas, sobre o pensamen- mento crítico e a formação para o exercício da cidadania.
to e a prática educacionais indica regularida- Isso posto, este artigo tem duas finalidades: apresen-
des importantes: tar dados e informações acerca das tendências anterior-
- a concentração acentuada na psicologia da criança e da mente apontadas, que permitam extrair as conseqüênci-
aprendizagem, seguida à distância de estudos e pesquisas as, nem sempre positivas, da intromissão da Psicologia
em torno de jovens e adolescentes no contexto escolar; no campo educativo; e indicar, sob a ótica da psicologia
- a primazia de estudos, pesquisas e orientadores legais social, uma perspectiva crítica da relação entre a psicolo-
acerca do desenvolvimento cognitivo (estágios ou fases gia e a educação.
do desenvolvimento psicológico) e/ou afetivo; De distintas maneiras, levantamentos sobre a pesquisa
em educação, realizados em anos recentes, trazem à tona
- em conseqüência, a subordinação dos fins da educação,
informações importantes a respeito da relação entre a psi-
outrora estabelecidos em termos políticos, éticos e cultu-
cologia e a educação. Assim, a análise da produção dis-
rais, aos estágios pretensamente universais do desenvol- cente (dissertações e teses defendidas) na pós-graduação
vimento psicológico, especialmente de acordo com a se- em Educação do país, entre 1982 e 1991, revelou, segun-
qüência estipulada pela psicologia genética de Jean Piaget do a autora do estudo (Warde, 1993:53-81), um montan-
e seus seguidores. te de 3.533 dissertações e teses distribuídas em 15 grupos
Às vezes identificadas em balanços da produção cien- temáticos. Um desses grupos, denominado Temas de Psi-
tífica em educação, outras vezes explicitamente postula- cologia, concentrou 334, ou 9,5% do total. Cada grupo
das por seus proponentes, outras, ainda, implicitamente temático foi, por sua vez, subdividido em temas específi-
assumidas, tais tendências marcam os vínculos da psico- cos de estudo. Adotando a denominação apresentada pela
logia com a educação. autora do referido estudo e agrupando em qüinqüênios os
A concentrada preocupação com o desenvolvimento da dados referentes ao grupo Temas de Psicologia, verifica-
inteligência e da cognição não significa, é certo, que ou- se, através da Tabela 1, que o desenvolvimento cognitivo
tras dimensões da vida do indivíduo em sociedade sejam é acentuadamente preferido como tema de pesquisa, atin-
simplesmente ignoradas. É pouco provável que atualmen- gindo 120 do total de 334 dissertações e teses, ou seja,
te alguém deixe de incluir como finalidade da educação, abrangendo 36% da produção discente no período. Além

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

TABELA 1 pragmatistas norte-americanos John Dewey (1859-1952)


Dissertações e Teses Difundidas em Educação, e George Herbert Mead (1863-1931) e o materialista fran-
segundo Temas de Psicologia
Brasil – 1982-1991
cês Henri Wallon (1873-1962), extraídas de momentos di-
ferentes, são suficientes para evidenciar a pretensão de uma
Temas de Psicologia 1982-1986 1987-1991 Total psicologia social voltada à educação, de preferência a uma
psicologia da inteligência ou cognitiva.
Total 113 163 (1) 276 Em um breve texto, publicado pela primeira vez em 1901
Desenvolvimento Cognitivo 35 85 120 (terceira reimpressão em 1916), intitulado Psychology and
Psicologia/Psicanálise/Psicoterapia 12 14 26 social practice, Dewey (1916:7), depois de argumentar a
Comportamentos Psicológicos 49 46 95 favor da relacão entre a psicologia e a educação, admitin-
Psicologia da Educação 17 18 35 do que esta, por ser primariamente de natureza social, im-
Fonte: Modificada de Warde (1993): tabela 18.5, em anexo. plica aceitar que a ciência educacional é antes de tudo uma
(1) Não incluem 58 trabalhos classificados, pela autora, em duas categorias denominadas Mãe
e Educação Sexual, porque a primeira refere-se quase exclusivamente à educação especial e ciência social, desenvolve a tese de que a psicologia pode
a segunda é em geral relacionada a aspectos da saúde física e mental; isto é, não se relacio-
nam propriamente com a educação.
ser uma importante auxiliar da educação, à medida que
contribuir para identificar as condições que potencializem
as aquisições intelectuais e ético-morais, desde que não
disso, observa-se o interesse crescente pelo tema, que pretenda ela mesma fornecer tais conteúdos; isto é, Dewey
passou de 35 dissertações e teses, no período 1982-86, o (1916:11 e ss.) já criticava o psicologismo que ameaçava
que equivale a cerca de 25% da produção, para 85 no perío- impregnar a educação, ao pretender impor a aquisição dos
do 1987-91, ou 43% da produção. Este crescimento é de- próprios mecanismos psicológicos como os fins da edu-
nominado pela autora do estudo de vertiginoso (Warde, cação.
1993:63). Insistindo sobre o papel específico da escola, conclui
Duas breves inferências merecem ser destacadas em o autor: “A escola é um lugar especialmente favorável
decorrência dos dados apresentados. A primeira refere- para estudar a eficácia da psicologia na prática social;
se ao significado das informações coligidas. Não somen- porque na escola a formação de um certo tipo de perso-
te porque se trata de um estudo de natureza censitária, nalidade social, com certas atitudes e capacidades men-
mas porque é plausível supor que as dissertações e teses tais produtivas, é o objetivo expresso. Idealmente, pelo
refletem as perspectivas dos programas de pós-gradua- menos, nenhum outro propósito deve restringir ou com-
ção que as produziram, é razoável afirmar que as infor- prometer a predominância do propósito único [single
mações sistematizadas revelam uma boa “fotografia” do purpose]. Tal não é o caso dos negócios, da política e das
que é produzido, no período, pela psicologia no campo profissões. Todos eles têm sobre sua superfície, tomada
da educação. A segunda inferência é relativa ao período diretamente, outros fins que devem servir. Em muitos
posterior ao estudo, isto é, de 1992 em diante. Mesmo exemplos essas outras finalidades têm, de longe, a mais
sem recorrer a atualizações do levantamento citado, para imediata importância; o resultado ético é subordinado ou
cotejar com dados empíricos, é bastante razoável admitir mesmo casual” (Dewey, 1916:35).
que o interesse pelo desenvolvimento cognitivo continuou Desnecessário é comentar o evidente entendimento da
o mesmo, se é que não aumentou, no decorrer dos anos psicologia como ciência social por parte de Dewey, há cerca
90, em virtude da forte influência dos construtivismos por de um século atrás. Apenas vale frisar que o autor ainda
estas paragens, que permanece pelo menos até a elabora- denomina a ciência psicológica simplesmente de Psicolo-
ção dos Parâmetros Curriculares Nacionais1. gia e não de Psicologia Social; denominação que será ado-
A forte influência das teorias cognitivistas e da psicolo- tada somente anos mais tarde (Mc Dougall, 1912:228 e ss.).
gia do desenvolvimento sobre a Educação, ao longo deste De George Mead, observe-se o excerto extraído de um
século, não deve ocultar outra perspectiva que, no mesmo artigo, publicado em 1910, sob o título “Psychology of
período, de maneira mais tímida, menos evidente e menos social consciouness implied in instruction”: Se nos vol-
elaborada, propugnava uma visão nada intelectualista da tamos para o nosso sistema de educação verificamos que
psicologia no campo educativo. A título de exemplo, as os componentes do currículo têm sido apresentados como
referências transcritas a seguir de autores que difundiam perceptos [percepts] capazes de ser assimilados, pela na-
idéias bastantes distintas sobre a educação, tais como os tureza de seu conteúdo, por outros conteúdos da consciên-

58
EDUCAÇÃO E PSICOLOGIA SOCIAL: UMA PERSPECTIVA CRÍTICA

cia, e o método indicado tem sido aquele que esses com- Ora, a escola é um desses campos, um campo privilegia-
ponentes podem ser mais favoravelmente preparados para do, porque se trata da obra mais fundamental na sociedade
tal assimilação. Este tipo de tratamento psicológico do dos nossos dias: a educação das crianças. Pela gravidade das
material e da aula é imediatamente reconhecido como responsabilidades que assume, pela complexidade dos inte-
Herbartiano. É um tipo de psicologia associacionista. Seus resses que representa, faz contrapeso às perfeições por ve-
críticos acrescentam que é intelectualista. Em todo caso zes bizantinas do laboratório” (Wallon, 1975: 201-202).
não é uma psicologia social, visto que a criança não é con- A defesa da especificidade da escola, considerada pelo
siderada originalmente como uma personalidade [self] en- autor a obra mais fundamental da sociedade moderna, soa
tre outras personalidades [selves]; é considerada como uma como um vaticínio contra certos artifícios e normatizações
massa aperceptiva [apperceptions masse]. As relações da que a psicologia quer impor à educação. Por isso arrema-
criança com os outros membros do grupo a que pertence ta ainda o autor: “Até agora os educadores e psicólogos
nem encontram sustentação imediata no material, nem com interessaram-se sobretudo pelo desenvolvimento intelec-
o aprendizado dele. O banimento pela escola tradicional tual da criança. Considerou-se que a instrução prevalecia
das atividades de jogos e de quaisquer atividades adultas sobre a educação propriamente dita e os psicólogos inte-
em que a criança poderia tomar parte como uma criança, ressaram-se sobretudo pelo estudo das capacidades inte-
isto é, o banimento do processo em que a criança pode ter lectuais inerentes à infância.
consciência de si mesma a partir das relações com os ou- Foi assim que, em França, Binet estabeleceu uma es-
tros, significa que o processo de aprendizagem tem tão cala de desenvolvimento segundo a idade (...) Outros au-
pouco conteúdo social quanto possível (Mead, 1910:689, tores, e em particular nos países de língua francesa, psi-
grifo nosso). cólogos como Piaget tentaram determinar, de um modo
Duas considerações sobre o texto anterior. Uma de ca- que se diria qualitativo, os progressos sucessivos feitos
ráter geral: como se vê, faz tempo que os próprios psicó- pela inteligência da criança.
logos encetam críticas sobre o intelectualismo da psico- Mas tornar este problema sob o aspecto unicamente
logia que invade a educação, bem como sobre a conseqüência intelectual é fazer necessariamente uma obra um pouco
nefasta de subtrair, tanto quanto possível, a experiência abstrata e um pouco superficial. O desenvolvimento da
social do aluno, em seu processo de formação; as posi- inteligência está ligado na criança ao desenvolvimento de
ções dos autores clara e consistentemente sustentadas, no sua personalidade total. Para falar de sua personalidade
início do século, fazem parecer vazias expressões não podemos ignorar as suas condições de existência. Estas
hodiernas do tipo “a criança como um todo”, “desenvol- variam com a idade. Com a idade variam as relações da
ver o pensamento crítico”, “formar para o exercício da criança com o seu meio. De idade para idade torna-se di-
cidadania”, entre outras. ferente o meio da criança” (Wallon, 1975:202).
A outra consideração de natureza específica, pode ser Vale registrar que as posições de Walon, como essas
assim apresentada: é de se notar que a crítica de Mead, a aqui transcritas, são sustentadas em vastas pesquisas em-
respeito da cisão-intelecto e personalidade, é dirigida con- píricas, relatadas ao longo de toda a sua obra; aliás, mais
tra a psicologia herbartiniana; se a cisão entre o desen- acessível hoje no Brasil, mais ainda pouco relevada pelos
volvimento intelectual/cognitivo e a formação do indiví- educadores e psicólogos.
duo permanece nas teorias cognitivas contemporâneas, é Em diversos de seus escritos e conferências, Wallon, sem
uma questão que deve ser tratada concretamente.2 ironia, dizia que o desvio intelectualista da psicologia le-
Ainda, acerca da cisão entre o intelecto e a pessoa, vava certos psicólogos a enxergarem a criança efetuando
vale mencionar um outro autor, Henri Wallon, que em operações de reversibilidade, ao manipular material flexí-
“As etapas da sociabilidade na criança”, publicado em vel (massa, argila, etc.), ou quando aprende a somar e a
1952, argumentava, a propósito da indispensável liga- subtrair, mas estes profissionais têm enorme dificuldade
ção entre a psicologia e a pedagogia, o que se segue: em visualizar operações de reversibilidade nas relações de
“Julgo que é sobretudo indispensável para o psicólo- reciprocidade que a criança estabelece com outras crian-
go, porque a psicologia só se alimentaria de abstrações ças ou com o adulto; por exemplo, quando se exclui de um
e de simples verbalismo se não se encontrasse campos grupo para ser incluída em outro, e assim por diante.
de aplicação dos seus princípios, campos de controle, A esta altura, consideram-se suficiente o rol de autores
campos de observação. e a amostra de suas posições sobre a relação entre a psico-

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

logia e a educação, ainda que tanto o rol de autores quanto crítica ao objeto da teoria. Como teoria social, a crítica
suas elaborações pudessem ser bastante ampliados. deve ser voltada para a sociedade, caso contrário, serve
Do que foi até aqui exposto, espera-se ter evidenciado apenas à reprodução. Na história moderna das ciências,
que a tendência atual, na área da educação, de privilegiar encontra-se essa perspectiva crítica, a partir das obras de
estudos sobre o desenvolvimento cognitivo, repousa na Marx e Freud, dentre outros, na teoria da sociedade ela-
separação que as próprias teorias psicológicas, especial- borada pelos autores da Escola de Frankfurt.
mente aquelas de vocação cognitivista, promovem entre Em conseqüência da resposta à primeira pergunta,
o desenvolvimento intelectual e a formação do sujeito. depreende-se que reivindicar a perspectiva da psicologia
Apesar da supremacia da visão intelectualista, ao longo social no campo educativo é uma condição necessária, mas
deste século, há o esforço de uma crítica a essa tendência não suficiente. Em suma, defende-se que a teoria crítica
por autores que reivindicam uma relação mais profícua da sociedade é condição indispensável para o desenvol-
se estabelecida em termos de uma psicologia social. Tal vimento de uma psicologia social, crítica; ambas são
contraponto é sustentado, como visto, por autores tão dis- destinguíveis tanto quanto indissociáveis.
tintos quanto John Dewey, George Mead e Henri Wallon. Para corrigir possíveis ambigüidades de entendimento
Essas evidências, contudo, provocam outras indagações quanto às questões ou posições assumidas ao início deste
que precisam ser respondidas: por que autores de posições tópico, julga-se conveniente tratá-las uma por vez.
teóricas tão distintas quanto, por exemplo, George Mead e Primeiro o problema da cisão real entre indivíduo e so-
Henri Wallon, além de cada um estar em seu lugar em seu ciedade em lugar da suposição de mero erro cognitivo dos
tempo, convergem no que se refere à crítica da função ide- teóricos. A respeito desse assunto, Theodor Adorno
ológica exercida pelas teorias psicológicas que, aplicadas (1986:39) contrapõe-se tanto à independência perniciosa
à educação, fomentam a cisão entre o plano intelectual e a que prospera entre as ciências sociais e as ciências da psi-
personalidade individual? É tal cisão produzida por desvio que quanto à fusão conceitual entre tais ciências – propo-
de óptica dos autores que elaboram tais teorias? sição derivada mais da vontade de seus elaboradores do
A título de antecipação do que é discutido em detalhes que extraída das reais possibilidades de algum wholistic
no próximo tópico, a posição aqui assumida é a de que se approach. Especificamente, sobre a tentativa de Talcolt
trata de uma cisão real entre indivíduo, sociedade e cul- Parsons de unificar a sociologia e a psicanálise, o autor
tura; entre sujeito e objeto; portanto, não se trata de uma pondera: “As ciências da sociedade e da psique, enquanto
simples falha teórico-conceitual dos teorizadores, contor- correm desunidas e paralelas, sucumbem por regra geral à
nável pelos artifícios engenhosos dos arranjos e rearranjos sugestão de projetar sobre seu substrato a divisão de traba-
de conceitos. lho do conhecimento. A separação da sociedade e psique é
Constatar que a cisão entre indivíduo e sociedade, en- falsa consciência; eterniza categorialmente a cisão entre o
tre inteligência e personalidade, é real implica admitir que sujeito vivente e a objetividade que governa os sujeitos,
as teorias psicológicas nada mais fazem do que refletir mas provém, todavia, deles mesmos. Contudo, desta falsa
aquela cisão. Porém, nesse caso restam duas outras ques- consciência não se pode retirar, por decreto metodológico,
tões que imediatamente emergem: tal entendimento não o solo em que pisa. Os homens não conseguem reconhecer
traz como conseqüência o descarte da teoria, qualquer que a si mesmo na sociedade, nem esta tampouco neles, por-
seja? Se as teorias refletem o que está na realidade cindido, que encontram-se alienados entre si e frente ao todo (...) A
por que reivindicar que a relação da psicologia com a edu- falsa consciência tem, ao mesmo tempo, razão: a vida inte-
cação seja estabelecida em termos de psicologia social, rior e a exterior estão desgarradas entre si. Somente em
que também é teoria, não? virtude da determinação da diferença, não mediante con-
A primeira pergunta contém apenas a aparência de uma ceitos ampliados, se expressa adequadamente sua relação.
radicalidade lógica; a rigor é destituída de todo o conteú- A verdade do todo descansa na unilateralidade, não em uma
do histórico que a ciência moderna carrega, pois, se há síntese pluralista” (Adorno, 1986:38-39).
teorias sociais que tão somente reproduzem as estruturas Da incisiva análise de Adorno, parece plausível extra-
sociais que as fundamentam, cumprindo apenas o desíg- ir a seguinte conseqüência: uma teoria crítica da socieda-
nio ideológico de deixar intocadas tais estruturas, é exa- de não pode prescindir de uma ciência da psique, por ele
tamente porque estão esvaziadas do componente decisi- denominada de psicologia social analiticamente orienta-
vo que está na origem da acepção moderna da teoria: a da (Adorno, 1986:36), o que equivale a dizer que aquela

60
EDUCAÇÃO E PSICOLOGIA SOCIAL: UMA PERSPECTIVA CRÍTICA

teoria há de se desenvolver em estreita conexão com o as especializadas”. Dentre as diversas passagens do refe-
desenvolvimento das disciplinas particulares, por exem- rido texto que esclarecem a posição do autor, destaca-se
plo, a psicologia social. aquela em que, ao circunscrever o pensamento crítico, ele
Há de se evitar a independência da teoria crítica e as assim se expressa: “A meta que este quer alcançar, isto é,
demais ciências sociais, posto que isso significaria a realização do estado racional, sem dúvida tem suas raízes
desvinculá-la dos objetos particulares em que se realiza o na miséria do presente. Contudo, o modo de ser dessa
todo, na mesma medida em que há de se evitar entendê-la miséria não oferece a imagem de sua superação. A teoria
seja como uma filosofia “guardadora de lugar”, para usar que projeta essa imagem não trabalha a serviço da reali-
uma expressão de Habermas, seja como uma pretensa te- dade existente; ela exprime apenas o seu segredo. Por mais
oria integradora de teorias particulares, o que implicaria, exatamente que os equívocos e confusões possam a qual-
no mínimo, cometer erro semelhante ao de Parsons, ou quer momento ser mostrados, por mais desastrosas que
aderir à palavra de ordem da integração das ciências que possam ser as conseqüências de erros a direção do em-
é, ainda segundo Adorno (1986:44), “expressão de de- preendimento, o próprio labor intelectual, por mais repleto
samparo, não de progresso”. de êxito que prometa ser, não sofre sanção do senso co-
É importante, em segundo lugar, argumentar sobre os mum nem pode se apoiar nos hábitos” (Horkheimer,
nexos entre a teoria crítica e a psicologia social. 1980a:137).
Se, como visto anteriormente, a admissão da psicolo- Uma teoria que mereça de fato receber tal denomina-
gia social representa um importante passo para superar a ção, isto é, uma teoria que seja crítica, tem o compromis-
separação entre a inteligência de tudo ou mais que cons- so de exprimir os segredos da realidade existente sem que
titui o indivíduo, considera-se, aqui, que resta dar mais isso signifique trabalhar a favor dessa realidade. Ao con-
um passo decisivo, capaz de lhe proporcionar a dimensão trário, sua pretensão de transcender ao que está disposto,
imprescindível e ausente: relacioná-la com uma teoria da projetando a sociedade futura, impulsiona-a à negação das
sociedade, que seja crítica. condições sociais vigentes. Para escapar do idealismo e
Em outras palavras, voltar-se para o indivíduo, dando do materialismo vulgar, no entanto, a teoria não pode sim-
as costas à sociedade, não pode levar a psicologia social a plesmente pautar-se na “liberdade sem freios do pensa-
prescindir de uma teoria crítica da sociedade, que contri- mento”, para usar uma expressão de Horkheimer e Ador-
bua para estabelecer seus princípios, formular seus proble- no. A rigidez da sociedade atual exige o rigor dos métodos
mas de investigação, delinear seus métodos subordinando- e procedimentos desenvolvidos até agora pelas ciências
os às exigências dos objetos de estudo, proporcionando-lhe especializadas.
estrutura conceitual que potencialize a interpretação críti- Em suma, a teoria crítica não é uma filosofia, embora
ca de seus resultados. Dar as costas à sociedade sob a óptica seja indissociável da Filosofia clássica (cf. Horkheimer,
da psicologia social significa encontrá-la no indivíduo, não 1980b), não se confunde com a sociologia, a psicologia
como um reflexo mas reflexivamente. ou a história, ao mesmo tempo em que se aproximaria de
Aliás não é outro o entendimento, sustentado com todas qualquer teoria tradicional caso não incorporasse em si
as letras, de Max Horkheimer, em seu clássico ensaio “Teo- os resultados dessas disciplinas. A essa perspectiva de de-
ria tradicional e teoria crítica”, de 1937, ao discutir as rela- senvolvimento da teoria crítica em consonância com aque-
ções entre a teoria crítica e as ciências especializadas: “Se a la das disciplinas especializadas deveriam prestar mais
teoria crítica se restringisse essencialmente a formular res- atenção, inclusive, aqueles que a defendem.
pectivamente sentimentos e representações próprias de uma A terceira questão que exige comentários é aquela re-
classe, não nos traria diferença estrutural em relação à ciên- lativa aos nexos que se pretende estabelecer entre a edu-
cia especializada; nesse caso haveria uma descrição de con- cação, a psicologia social e a teoria crítica da sociedade.
teúdos psíquicos, típicos para um grupo determinado da so- Mesmo que tenha ficado claro o que até aqui se expôs,
ciedade, ou seja, tratar-se-ia de psicologia social. A relação vale recapitular os seguintes pontos: a escola, admitida como
entre ser e consciência é diferente nas diversas classes da uma complexa instituição social moderna, é determinada
sociedade” (Horkheimer, 1980a:135). pela sociedade em que se inscreve e, por isso mesmo, re-
Em virtude da importância do argumento, vale a pena tém contradições, ambigüidades, problemas e perspectivas
procurar o sentido preciso que o autor quis dar à expres- específicas; em decorrência, para se enfrentar os proble-
são “diferença estrutural entre a teoria crítica e as ciênci- mas da educação escolar, especialmente aqueles relacio-

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

nados com a formação do aluno, do professor e de todos se quer aqui tornar indiferentes as necessidades, os inte-
que direta ou indiretamente da escola fazem parte, é ne- resses, as vontades e as possibilidades reais de uma crian-
cessária ciência – se se tratar não apenas de reproduzir exi- ça de sete anos daqueles de um adolescente de 15 anos. A
gências da sociedade atual, mas, ao contrário, de a ela re- ponderação que aqui se apresenta incide sobre o seguinte
sistir e apontar para a sua transformação que garanta a ponto: não há justificativa razoável para tomar o convívio
liberdade, a igualdade, a fraternidade e a autonomia do in- de crianças de diferentes faixas etárias como um mal ou
divíduo, então, uma teoria crítica inexoravelmente se im- um bem em si. Essa convivência pode propiciar o exercí-
põe a par das ciências especializadas. Por isso, a psicolo- cio do poder dos mais fortes sobre os mais fracos, dos
gia social é aquela que melhor possibilita o enfrentamento maiores sobre os menores, dos grupos sobre os indivíduos,
dos grandes problemas que atingem a educação, bem como mas pode também favorecer o respeito mútuo, o desenvol-
potencializa o desenvolvimento da própria teoria crítica da vimento da solidariedade entre os mais velhos com os mais
sociedade. jovens, a redução da frieza. Não é necessário relembrar
Este não é um texto pragmático. Ainda assim, consi- exemplos extraídos da história da pedagogia, recente e pre-
dera-se imprescindível mencionar alguns daqueles pro- térita, para corroborar que essa possibilidade é real.
blemas julgados aqui cruciais da educação atual. Outro problema que deve ser mencionado refere-se ao
O primeiro é relativo à recente reorganização das es- preconceito e à violência que se manifestam na escola.
colas dos ensinos fundamental e médio em São Paulo, que Infelizmente, a famosa expressão de Adorno quanto à ne-
resultou na separação dos alunos das primeiras quatro cessidade de que toda a educação deveria, como exigên-
séries de todos os outros alunos da educação básica sob cia primeira, trabalhar para que Auschwitz não se repita
os argumentos de racionalização dos recursos e de bene- ressoa hoje provavelmente de maneira tão aguda quanto
fícios psicológicos que tal separação propiciaria às crian- a que foi proferida há quase 40 anos (Adorno, 1995:119).
ças menores. As posições contrárias à reorganização in- As transformações do Estado e as relações deste com a
cluíram desde exigências dos organismos financeiros sociedade, e o crescente progresso tecnológico – pai do
internacionais e intenções políticas de desmobilizar os tra- incremento dos mecanismos de exclusão social e da mi-
balhadores da educação, até os prejuízos reais causados séria – têm levado populações inteiras, grupos sociais e
às crianças e às famílias, visto que a separação de escolas indivíduos à desesperança e à regressão. Vive-se uma nova
separou também irmãos e colegas, dificultando ainda mais farsa: sob a ilusão de que finalmente as decisões são li-
o deslocamento das crianças. O que poucos educadores e vres e democráticas, o Estado mínimo impõe-se como
quase nenhum psicólogo disseram refere-se ao caráter Estado forte, eliminando regras sociais estabelecidas, se
duplamente regressivo da reorganização nos termos em necessário for, com um grau de autoritarismo que não
que foi efetivada; regressivo em relação à estrutura esco- deixa nada a dever aos regimes militares. Os homens po-
lar, porque põe em risco a escolaridade fundamental de dem escolher aquilo que o mercado livre lhe impuser; o
oito anos – risco que a organização das oito séries em dois apelo ao consumo desenfreado é seguido pela impossibi-
ciclos não atenua – devido à terminalidade implícita que lidade de consumir e de desfrutar dos bens sociais e cul-
admite após as quatro primeiras séries; regressivo em re- turais produzidos em larga escala.
lação pedagógica, porque a separação das crianças mais A persistência com que é difundida a regra de que sobre-
novas das mais velhas é justificada, apesar de não ser vivem o mais forte e o mais ousado tem levado, especial-
nomeada, pela conhecida noção de contágio, noção a que mente, crianças e jovens a agirem, regressivamente, como
tanto Gustave Le Bon recorreu, entre fins do século XIX um adulto franco-atirador, que está sempre pronto para eli-
e início do século XX, para explicar a conduta das mas- minar a caça. Tudo isso leva-nos a repetir: trata-se não de
sas. A idéia é simples: indivíduos de caráter fraco, em si- um possível retorno à barbárie, mas sim da intensificação
tuações coletivas, são conduzidos pelos líderes de acordo da barbárie existente e que expressa a irracionalidade do todo.
com os seus desejos em decorrência da disponibilidade Afirmar que problemas cruciais como esses não são
presente naqueles de espírito fraco que, pelo mecanismo estritamente psicológicos e, portanto, seria inútil a psico-
do contágio, deixam-se levar. logia querer resolvê-los isoladamente, não equivale dizer
É desconhecida qualquer teoria psicológica que reco- que a psicologia social pode omitir-se de investigá-los,
mendasse seriamente a separação, nos termos propostos, com todo o rigor que dispuser, se pretende ser uma psi-
de crianças mais novas das mais velhas. Obviamente não cologia social crítica. Sem que seja preciso aqui delinear

62
EDUCAÇÃO E PSICOLOGIA SOCIAL: UMA PERSPECTIVA CRÍTICA

projetos de investigação sobre esses problemas ou indi- cial entendida como um disciplina autônoma com princí-
car pesquisas importantes já realizadas, vale registrar que pios e métodos, que descobre leis próprias e cujos resul-
tanto a produção do preconceito no âmbito escolar, des- tados podem ser aplicados indistintamente a qualquer ins-
de o período da educação infantil, quanto a reprodução tituição social.
da violência na escola não são temas inéditos nas pesqui- Para não estender a multiplicidade de referências,
sas da psicologia social.3 mencionam-se apenas, na seqüência temporal de pu-
Por certo, poder-se-ia arrolar um elenco de temas es- blicação das obras, os seguintes autores: Fleming
pecíficos que mereceriam maior atenção dos educadores (1966); Asch (1977:519 e ss.); Backman e Secord
e que poderiam receber importante contribuição da psi- (1971) e Rodrigues (1983:63-77). Esses autores, cada
cologia social: desde as conseqüências para os alunos das um à sua maneira, entendem a educação e a escola como
atividades de grupo ou individuais às interações sociais um local de aplicação das leis científicas obtidas pela
entre a extraclasse, até as funções que podem ser exercidas psicologia social, concebida como ciência experimen-
pela arte, ciência e esportes individuais e coletivos.4 Con- tal. Entendimento, ressalve-se, bastante distinto daquele
tudo, tal empreendimento desviaria dos objetivos estabe- manifestado por autores mencionados anteriormente
lecidos neste artigo. (Dewey, Mead e Wallon), para os quais a escola e a
Considera-se que tenha ficado suficientemente escla- educação implicam práticas sociais específicas que
recido o ponto principal: a possibilidade de uma contri- exigem conhecimentos específicos e, por isso, não po-
buição crítica da psicologia com a educação escolar, sob dem ser entendidas apenas como lugar de aplicação de
a perspectiva da psicologia social, voltada para a forma- conhecimento abstratamente adquirido.
ção do indivíduo autoconsciente e autônomo. Por último, é importante elucidar a relação entre a
Há duas implicações importantes das posições aqui teoria crítica da sociedade e a educação. Sem dúvidas,
assumidas que merecem ser explicitadas, de sorte a cum- os autores da Escola de Frankfurt analisaram os temas
prir integralmente os propósitos mencionados no início, da cultura, da formação e da educação. Entretanto, não
e que incidem novamente sobre a relação psicologia so- por acaso, recusaram-se a elaborar uma teoria crítica
cial, teoria crítica e educação. da educação; nem por isso deixaram de tomar posições
É certo que propugnar a perspectiva da psicologia sobre problemas, diría-se, estritamente pedagógicos, es-
social na educação resolve apenas uma parte do pro- pecialmente Theodor Adorno (1995), para não menci-
blema formulado inicialmente. Contudo, esse proble- onar Walter Benjamin (1993).
ma não fica completamente resolvido pela vinculação Esse aspecto é importante de ser ressaltado porque uma
dessa ciência especializada com a teoria crítica da so- educação contrária à barbárie, uma educação para a eman-
ciedade, tal como foi apresentado anteriormente, quan- cipação do indivíduo, uma educação voltada para resis-
do as perguntas são: qual psicologia social? Toda e tência do sujeito àquilo que o impede de se realizar, ex-
qualquer produção dessa ciência independente de cor- pressões utilizadas por Adorno (1995), em suas incisivas
rente teórica? Deve-se privilegiar a produção de uma análises, não é tarefa, stricto sensu, de uma teoria crítica
dessas correntes teóricas? da sociedade aplicada à educação ou transportada para a
As questões não comportam respostas simples, mas o educação. Tal empreendimento carrega uma positivização
entendimento, ainda que provisório, aqui adotado pode capaz de aplacar as tensões entre a teoria crítica e as ci-
ser assim resumido: parece precipitado recusar ou aceitar ências especializadas, em particular aquelas com a psico-
de antemão uma ou outra teoria da psicologia social, até logia social.
porque há uma diversidade acentuada de objetos de estu- Se foram razoavelmente entendidas as teses centrais
do. Daí, como foi admitido, a cisão real entre indivíduo e da teoria crítica, vale concluir que não se trata de querer
sociedade; diferentes teorias acentuam momentos ou as- realizá-la no campo da educação ou em qualquer outro.
pectos distintos que falam, de ângulos diferenciados, so- A tarefa prática a que ela impõe é a de persistir, com todo
bre a verdade da relação entre sujeito e objeto. o rigor científico e reflexivo que a rigidez atual da socie-
Entretanto, evitar a recusa não quer dizer aceitar toda dade e dos homens exige, na negação determinada dessa
a produção, teórica e empírica, dessa ciência. Assim, não sociedade, visando a sua transformação em uma socieda-
há como simplesmente absorver, da perspectiva aponta- de que promova de fato a democracia, a liberdade e a
da, produções teóricas originadas de uma psicologia so- emancipação do indivíduo.

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

NOTAS BACKMAN, C.W. e SECORD, P.F. Aspectos psicossociais da educação. Rio


de Janeiro, Zahar, 1971.
1. A leitura atenciosa dos PCN para o ensino fundamental indica problemas di- BENJAMIN, W. La metafísica de la juventud. Barcelona, Paidós Ibérica, 1993.
versos de ordem pedagógica (a própria noção de parâmetro em detrimento do CROCHIK, J.L. Preconceito: indivíduo e cultura. 2a ed. São Paulo, Robe, 1997.
conceito de currículo, a organização dos conteúdos em áreas em vez de discipli-
DEWEY, J. Psychology and social practice. 3a ed. Chicago, The University of
nas, a inserção de valores sociais – há muito considerados universais e, a um só
Chicago Press, 1916.
tempo, condição e fim da educação – sob a forma de temas transversais, dentre
outros) e de ordem psicológica (a permanência do vezo psicologista que, ao fim FLEMING, C.M. Psicologia social da educação: introdução e guia de estudo.
e ao cabo, quer fazer repousar sobre o próprio aluno a possibilidade de realizar a 3a ed. São Paulo, Editora Nacional, 1966.
“escola-cidadã) (PCN, 1999). HORKHEIMER, M. “Teoria tradicional e teoria crítica”. In: BENJAMIN, W. et
2. A obra mais importante de Mead, publicada pela primeira vez em 1934, até hoje alii. Textos escolhidos. São Paulo, Abril Cultural, 1980a, p.117-154.
inacessível em português, é Mind, self and society (Mead, 1972). Um esforço de __________ . “Filosofia e teoria crítica”. In: BENJAMIN, W. et alii. Textos es-
atualização e crítica ao autor pode ser encontrado em Sass (1992). Uma análise im- colhidos. São Paulo, Abril Cultural, 1980b, p.155-161.
portante das disputas teóricas entre a sociologia e a psicologia como expressão da
McDOUGALL, W. Psychology: the study of behavior. New York, Henry Holt
cisão real entre indivíduo e sociedade foi efetuada, em 1955, por Adorno (1986).
and Company, 1912.
3. Uma importante atualização sobre o tema do preconceito, sob a ótica da teoria
MEAD, G.H. “Psychology of social consciousness implied in instruction”.
crítica, incluindo, ao final, um conjunto de ponderações e sugestões do autor
Science, XXXI, 1910, p.688-93.
voltadas para a resistência ao preconceito, foi elaborada por Crochik (1997).
__________ . Mind, self and society. 18a ed. Chicago, The University of Chica-
4. Várias sugestões temáticas, ainda que pontuais, podem ser encontradas, por go Press, 1972.
exemplo, em Adorno (1995).
PCN – PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS (1a à 4a e 5a à 8a séries).
Brasília, MEC, 1999.
RODRIGUES, A. Aplicações da psicologia social: à escola, à clínica, às orga-
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS nizações, à ação comunitária. 2 a ed. Petrópolis, Vozes, 1983.
SASS, O. Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead.
Tese de doutoramento. São Paulo, PUC-SP, 1992.
ADORNO, T.W. “Acerca de la relación entre sociología y psicología.” In:
HENNING, J. Teoria crítica del sujeto: ensayos sobre psicoanálisis y ma- WALLON, H. Psicologia e educação da infância. Lisboa, Estampa, 1975.
terialismo histórico. México, Siglo Vinteuno, 1986, p.37-85. WARDE, M.J. “A produção discente nos programas de pós-graduação em edu-
cação no Brasil (1982-1991): avaliação & pespectiva”. Avaliação e pers-
__________ . Educação e emancipação. São Paulo, Paz e Terra, 1995.
pectivas na área da Educação: 1982-91. Porto Alegre, Anped/CNPq, 1993,
ASCH, S.E. Psicologia social. 4a ed. São Paulo, Editora Nacional, 1997. p.51-73.

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EDUCAÇÃO, TRABALHO E CIDADANIA: A EDUCAÇÃO BRASILEIRA E O DESAFIO...

EDUCAÇÃO, TRABALHO E CIDADANIA


a educação brasileira e o desafio da formação
humana no atual cenário histórico

ANTÔNIO J. SEVERINO
Professor de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da USP

Resumo: O texto desenvolve uma reflexão filosófico-educacional sobre a condição da educação como
prática mediadora da existência histórica dos homens, explicitando seus desafios e compromissos diante
da sua situação concreta no contexto social brasileiro da atualidade.
Palavras-chave: educação e sociedade; educação e trabalho; educação e realidade brasileira.

A
humanidade vive, hoje, um momento de sua his- Sem dúvida, a existência real dos homens é profunda-
tória marcado por grandes transformações, de- mente marcada pelos aspectos econômicos, até porque
correntes sobretudo do avanço tecnológico, esta dimensão econômica, devidamente entendida, cons-
nas diversas esferas de sua existência: na produção eco- titui mesmo uma referência condicionante para as outras
nômica dos bens naturais; nas relações políticas da vida dimensões da vida humana, uma vez que ela se liga à pró-
social; e na construção cultural. Esta nova condição pria sobrevivência da vida material.
exige um redimensionamento de todas as práticas medi- Porém, a significação dos processos sociais e, no seu
adoras de sua realidade histórica, quais sejam, o traba- âmbito, dos processos educacionais não se restringe a essa
lho, a sociabilidade e a cultura simbólica. Espera-se, pois, sua funcionalidade operatória. Se, de um lado, é a realida-
da educação, como mediação dessas práticas, que se tor- de dos fatos que permite que a educação tenha alguma
ne, para enfrentar o grande desafio do 3o milênio, inves- incidência social, de outro, essa eficácia só ganha legiti-
timento sistemático nas forças construtivas dessas prá- midade humana se se referir a significações que ultrapas-
ticas, de modo a contribuir mais eficazmente na sem sua mera facticidade e seu desempenho operacional.
construção da cidadania, tornando-se fundamentalmen- Buscar explicitar esses valores e significações é o que cabe
te educação do homem social. a uma abordagem filosófica da educação e tal é o objeti-
A educação, como processo pedagógico sistematizado vo deste texto, ainda que nos restritos limites de espaço
de intervenção na dinâmica da vida social, é considerada de que dispõe.
hoje objeto priorizado de estudos científicos com vistas à Refletir filosoficamente sobre a educação não é dispen-
definição de políticas estratégicas para o desenvolvimen- sar os dados e análises que as ciências especializadas
to integral das sociedades. Ela é entendida como media- podem trazer e fazer; ao contrário, uma abordagem filosó-
ção básica da vida social de todas as comunidades huma- fico-educacional precisa levar em consideração esse retra-
nas. Esta reavaliação, que levou à sua revalorização, não to de corpo inteiro que a ciência faz da educação nos dias
pode, no entanto, fundar-se apenas na sua operacionalidade de hoje. O pensar filosófico não parte de referências abs-
para a eficácia funcional do sistema socioeconômico, como tratas e idealizadas, aprioristicamente colocadas, mas sim
muitas vezes tendem a vê-la as organizações oficiais, gran- da própria realidade de seu objeto. Assim ela toma em conta
des economistas e outros especialistas que focam a ques- as conclusões das ciências, procurando clarear os objeti-
tão sob a perspectiva da teoria do capital humano. vos e finalidades que precisam ser selecionados e privile-

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

giados, até mesmo na definição dos meios, para que elas No entanto, este modo de ver e existir atuais, de perfil
possam subsidiar as políticas sociais. É neste plano das assumidamente neoliberal, com suas decorrências e expres-
finalidades que se estabelece o diálogo entre as perspec- sões no plano cultural, com sua exacerbação do individu-
tivas científica, filosófica e política, sendo esta última pers- alismo, do produtivismo, do consumismo, da indústria cul-
pectiva entendida como o planejamento e a execução de tural, da mercadorização até mesmo dos bens simbólicos,
ações que interferem diretamente na dinâmica social. não instaura nenhuma pós-modernidade. Com efeito, o que
Portanto, o objetivo do presente texto é aduzir algumas está de fato acontecendo é a plena maturação das premis-
considerações sobre a significação da educação, como sas e promessas da própria modernidade. Nada mais mo-
mediação concreta da existência real da sociedade brasi- derno do que esta expansão e consolidação do capitalis-
leira, no quadrante histórico atual. Para tanto, parte de uma mo, envolvido numa aura ideológica de liberalismo
configuração da situação em que se encontram as relações extremado; nada mais moderno do que esta tecnicização,
entre educação e sociedade, desenvolvendo em seguida viabilizada pela revolução informacional. Finalmente, a
considerações sobre o necessário redimensionamento de modernidade está realizando as promessas embutidas em
seu papel, em face das exigências postas pela significação seu projeto civilizatório. Nada mais moderno do que o in-
da condição humana, fundada na iminente dignidade dos dividualismo egoísta dos dias de hoje. No fundo, é a mes-
seres humanos como pessoas. ma racionalidade que continua dirigindo os rumos da his-
tória humana, em que pesem as críticas que são feitas à
A NOVA ORDEM MUNDIAL: A PROMESSA sua forma de expressão até o século 19.
Que tal situação configure um contexto novo, não há
De acordo com um senso comum atualizado, vigente nos como negar nem recusar. E que obviamente exige reequa-
meios acadêmicos, nos meios de comunicação e até mesmo cionamentos por parte de todos nós, quaisquer que sejam
nos meios populares, estaríamos vivendo hoje um mundo os lugares que ocupemos na dinâmica sociocultural. Isso
totalmente diferente daquele projetado pela visão iluminista não está em questão. Porém, o que cabe aqui é uma rigoro-
da modernidade, constituindo uma nova ordem mundial. sa atenção a essa especificidade do momento histórico, não
Estaríamos vivendo um momento de plena revolução se deixando levar nem por uma atitude de mera
tecnológica, capaz de lidar com a produção e transmissão anatematização moralizante ou saudosista, nem por um
de informações em extraordinária velocidade, num proces- deslumbramento alienante. Análise detida e vigilância crí-
so de globalização não só da cultura, mas também da eco- tica, isto é o que se impõe.
nomia e da política. Tratar-se-ia de um momento marcado Da mesma forma, é preciso não perder de vista a
pelo privilegiamento da iniciativa privada, pela minimalização historicidade da existência humana, não se deixando iludir
da ingerência do Estado nos negócios humanos, pela pela idéia de que o fim das utopias do progresso humano
maximalização das leis do mercado, pela ruptura de todas as possa significar igualmente o fim da história. Portanto,
fronteiras. Tal situação leva Octavio Ianni (1998:28) a afir- deve-se ter bem presente que a atual situação possui tam-
mar que “o que está em causa é a busca de maior e crescen- bém uma configuração histórica.
te produtividade, competitividade e lucratividade, tendo em Além disso, é necessário considerar a dura realidade do
conta mercados nacionais, regionais e mundiais. Daí a im- contexto histórico latino-americano, em que as marcas da
pressão de que o mundo se transforma no território de uma exclusão humana continuam com presença muito forte. A
vasta e complexa fábrica global e, ao mesmo tempo, em gravidade da situação desmente qualquer veleidade de que
shopping center global e disneylândia global”. já se teria encontrado o caminho certo para a construção
No plano mais especificamente filosófico, estaria em de uma sociedade amadurecida, justa e democrática. O
pauta uma crítica cerrada às formas de expressão da razão processo de modernização pelo qual passou e continua
teórica da modernidade, propondo-se a desconstrução de passando o continente está acontecendo a um preço mui-
todos os discursos por ela produzidos, todos colocados to alto. A organização econômica, de lastro capitalista, sob
sob suspeita, até mesmo aqueles da própria ciência. To- um clima político de mandonismo interno das elites nacio-
dos os grandes sistemas teóricos interpretativos da reali- nais e da dominação externa dos grupos internacionais,
dade humana são caracterizados como metanarrativas e, impõe uma configuração socioeconômica na qual as con-
como tal, desconsiderados. Já teríamos entrado então em dições de vida da imensa maioria da população continuam
plena pós-modernidade.1 extremamente precárias. Na verdade, o aclamado proces-

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EDUCAÇÃO, TRABALHO E CIDADANIA: A EDUCAÇÃO BRASILEIRA E O DESAFIO...

so de globalização da economia parece universalizar as O retrato da existência real da população brasileira é o se-
vantagens do capital produtivo e as desvantagens do tra- guinte: 17% vivem na miséria, ou seja, 26 milhões de pesso-
balho assalariado. Dada essa situação, o conhecimento, em as; 17.600.000 de pessoas morrem antes de atingir os 40 anos;
geral, e a educação, em particular, são interpelados com 24.480.000 são analfabetos; 36.720.000 não contam com água
relação a seu papel histórico. potável; e 45.900.000 não dispõem de esgoto.
A América Latina vem sendo considerada, por todos os No caso das condições das mulheres, medidas pelo IDH,
especialistas, a região do planeta que apresenta as maio- verificou-se ligeira melhora do desempenho do país, mas,
res desiguadades, que ademais são submetidas a intensos como observa o jornal O Estado de S. Paulo (11/07/99),
processos de piora contínua. Aqui está ocorrendo um “ex- “isso ocorre mais pelos problemas dos outros países do
cesso de pobreza”, responsável pela magnitude e profun- que pelas virtudes brasileiras”. O Brasil ocupa o 67o lugar,
didade dos impactos negativos decorrentes da situação devido sobretudo à longevidade feminina. A expectativa
(Kliksberg, 2000:14). de vida das mulheres é de 71 anos, ao passo que a dos
homens é de 63 anos. Na educação, pequena vantagem para
DESORDEM E FRUSTRAÇÃO os homens: alfabetização e matrícula de meninos cor-
DA PROMESSA respondem a, respectivamente, 84,1% e 82% contra 83,9%
e 77% para as meninas. No entanto, na renda, o PIB per
Entretanto, qual a realidade histórico-social encontrada capita refaz a diferença: o homem leva R$ 9.035,00 contra
no Brasil, neste atual momento? Como andam essas media- R$ 3.863,00 das mulheres, portanto, uma diferença de 2,4
ções nas quais cabe a educação investir? Segundo o Rela- vezes, lembrando-se que a diferença média mundial é de
tório das Nações Unidas, com a avaliação do IDH – Índice apenas 1,8 vez. No exercício do poder institucionalizado, a
de Desenvolvimento Humano –, recém-lançado, o Brasil situação das mulheres torna a cair, arrastando o Brasil para
regride para o rol dos países de desenvolvimento médio, o 70o lugar entre 102 países: só 5,9% das vagas parlamen-
passando a ocupar o 79o lugar entre 174 países avaliados. tares e 17,3% dos cargos diretivos cabem às mulheres.
Parece até uma boa colocação, não fosse o fato de que essa Apesar de ter índice de 100% de imunização contra a
posição não decorre da carência de recursos objetivos. Se tuberculose, em 1997, o país registrou 54 casos da doen-
estes fossem levados em conta, o país precisaria estar colo- ça por 100 mil habitantes. A média dos países desenvol-
cado entre os 30 primeiros países do planeta. O trágico é vidos é de 19,6 casos.
que esta posição representa termos de selvageria na distri- A mortalidade infantil, no Brasil, atinge 37 casos por
buição dos bens materiais e culturais de que o país dispõe, mil nascimentos; as mortes de crianças até 5 anos sobem
provocando um grave nível de desumanização. para 44 casos por mil nascimentos. A mortalidade mater-
Com efeito, o país está com uma das mais altas concen- na alcança 220 casos por cem mil partos. Os médicos, no
trações de renda do mundo, medida pelo índice de Gini e país, são 134 por cem mil habitantes.
que se expressa da seguinte maneira: enquanto os 20% mais No Relatório Progresso das Nações 1999, publicado
pobres precisam distribuir entre si apenas 2,5% da renda pela Unicef, o Brasil ocupa o 102o lugar no ranking de
do país, os 20% mais ricos se locupletam com 63,4%, ou risco para a infância, entre 142 países pesquisados (Fo-
seja, no Brasil, 30 milhões de pessoas precisam sobreviver lha de S.Paulo, 23/07/99). Para essa classificação, foram
com a pequena fatia de 2,5% e outros 30 milhões dispõem levados em conta o índice de mortalidade infantil, o índi-
de 63,4% para o mesmo fim. O PIB anual per capita dos 20% ce de amamentação integral e o índice de crianças fora da
mais ricos é de US$ 18.563,00, enquanto o dos 20% mais escola.
pobres é de apenas US$ 578,00, portanto, 32 vezes menor. Por outro lado, é alta a incidência de trabalho escravo
Embora o país tenha enriquecido nos últimos anos, não no país. De 1966 a 1996, foram constatados 21.826 tra-
conseguiu transformar esta riqueza em maior expectativa balhadores escravizados (Folha de S.Paulo, 05/07/99).
de vida e em educação.2 Já de acordo com a PNAD, de 1995, das crianças em
Esta situação particular do Brasil é pior do que a do idade de 7 a 14 anos, 3% só trabalham e 6,8% não traba-
conjunto da América Latina, que já é péssima: os 20% lham mas também não estudam, o que corresponde a cer-
mais ricos dispõem de 52,94% da renda e os 20% mais po- ca de 2.800.000 crianças fora de qualquer ambiente formal de
bres, de 4,52%. Na África do Norte e no Oriente Médio, estudo; e 10,5% estudam e trabalham simultaneamente, o que
essa correlação é 45,35% e 6,90% (Kliksberg, 2000:34). deixa, em 1995, 79,7% da população desta faixa etária ape-

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

nas estudando, atendida pelos serviços da educação, ain- tica. Só se é algo mediante um contínuo processo de agir, só
da que de forma muitas vezes precária. se é algo mediante a ação. Assim, diferentemente do que pen-
Atualmente, embora tenham melhorado esses índices savam os metafísicos clássicos, não é o agir que decorre do
de desempenho da educação nacional, tanto no ensino ser, mas é o modo de ser que decorre do agir. É a ação que
médio como no fundamental, uma vez que, entre 1996 e delineia, circunscreve e determina a essência dos homens. É
1997, diminuíram os índices de retenção e de evasão no na e pela prática que as coisas humanas efetivamente acon-
sistema, os níveis ainda são muito altos. A taxa de promo- tecem, que a história se faz.
ção no ensino fundamental, em 1997, foi de 77,5% e a de Este é o sentido da historicidade da existência humana,
evasão, 11,1%. No ensino médio, estas taxas correspondem, ou seja, os homens não são a mera expressão de uma es-
respectivamente, a 78,8% e 13%. O país continua com 16% sência metafísica predeterminada, nem a mera resultante
de analfabetos, ou seja, 24.480.000 pessoas. de um processo de transformações naturais que estariam
Outro aspecto que merece atenção diz respeito à situa- em evolução. Ao contrário, naquilo em que são especifi-
ção dos professores. Segundo o MEC, o país tem 1.380.000 camente humanos, eles são seres em permanente proces-
professores, dos quais 779.000 não possuem curso supe- so de construção. Nunca estão prontos e acabados, nem
rior; destes, 124.000 não concluíram o nível médio e 63.700 no plano individual, nem no plano coletivo, como espé-
nem mesmo o ensino fundamental. Dos cerca de 600 mil cie. Por sobre um lastro de uma natureza físico-biológica
com ensino superior, 81 mil têm licenciatura incompleta e prévia, mas que é pré-humana, compartilhada com todos
quase 23.000 bacharéis lecionam mas não têm formação os demais seres vivos, eles vão se transformando e se re-
pedagógica. Este quadro mostra que uma grande massa de construindo como seres especificamente humanos, como
professores não possui formação específica para o magis- seres “culturais”. E isso não apenas na linha de um ne-
tério. Mostra também como o trabalho está degradante; cessário aprimoramento, de um aperfeiçoamento contí-
como a sociabilidade está deteriorada e opressiva; como a nuo ou de progresso: ao contrário, estas mudanças trans-
cultura está alienante e precariamente dividida; como an- formativas, decorrentes de sua prática, podem ser
dam as mediações da existência humana no Brasil, acenan- regressivas, nem sempre sinalizando para uma eventual
do para os desafios que a educação brasileira precisa en- direção de aprimoramento de nosso modo de ser. O que é
frentar para cumprir sua missão intrínseca que é a de investir importante observar é que os seres humanos vão sendo
nas forças construtivas das práticas relacionadas ao tra- aquilo que se vão fazendo e este fazer-se, este constituir-
balho, à vida social e à cultura simbólica. se só se dá mediante a ação e não pelos seus desejos, pe-
O que se constata, no entanto, com relação à educação los seus pensamentos e teorias.
brasileira, é que ela está significativamente deficitária. Assim, a educação não poderá mais ser vista como
Como se viu, o déficit educacional expressa-se em nú- processo mecânico de desenvolvimento de potencia-
meros muito elevados. Tal situação cobra de todos os bra- lidades. Ela será necessariamente um processo de cons-
sileiros sensíveis ao valor da dignidade da pessoa huma- trução, ou seja, uma prática mediante a qual os homens
na, e portanto de sua postura ética, o seu decisivo estão se construindo ao longo do tempo.
compromisso de estar fazendo com que sua prática polí-
tico-educativa se transforme em investimento competen- Conservação e Reposição da Existência pelo Trabalho
te na consolidação das condições de trabalho, na constru-
ção da cidadania (no plano das pessoas) e da democracia Porém, quando se analisa a realidade humana em sua
(no plano da sociedade) e na expansão da cultura simbó- historicidade, percebe-se logo que a esfera básica da exis-
lica, utilizando-se de todos os recursos disponíveis, de tência humana prática e histórica dos homens é aquela do
modo especial, a ferramenta do conhecimento. trabalho propriamente dito, ou seja, prática que alicerça
e conserva a existência material dos homens, já que a vida
EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO DO HOMEM SOCIAL depende radicalmente dessa troca entre o organismo e a
natureza física.
Ao contrário do que sempre alegaram a metafísica tradi- Trabalho é entendido aqui não como mera operação
cional e a ciência moderna, todas as formas de manifestação técnica sobre a natureza, mas como a densa relação dos
concreta da existência humana se realizam mediante a ação homens com ela. Daí a sua caracterização como a esfera
real, o agir prático. Com efeito, a substância do existir é a prá- produtiva, a esfera da prática econômica, mediante a qual

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EDUCAÇÃO, TRABALHO E CIDADANIA: A EDUCAÇÃO BRASILEIRA E O DESAFIO...

os homens podem prover a conservação de sua existên- uma sociedade política, uma cidade. Este coeficiente que
cia física. marca as nossas relações sociais como relações políticas e
Como bem o mostram as ciências econômicas, o pro- que caracteriza nossa prática social envolve os indivíduos
cesso produtivo, de bens naturais e do próprio sujeito pro- na esfera do poder.
dutor, envolve, obviamente, não só o investimento da Deste ponto de vista, uma estrutura social na qual o
energia dos organismos humanos. Está implicada nesse poder seja mais equitativamente distribuído é condição
processo a apropriação pelos homens dos recursos da ter- básica para que os homens se humanizem. É condição
ra, bem como dos meios tecnológicos da produção. Por mínima para que haja cidadania. É neste sentido que se
isso, estão em pauta a saúde corporal das pessoas, a dis- implicam as situações de democracia e de cidadania. É
posição de alimentos, de habitação, as formas e valores por isso que, no sentido mais restrito, cidadania se repor-
de remuneração do trabalho, enfim, as condições objeti- ta ao gozo dos direitos políticos e sociais, embora não se
vas da produção, que são igualmente as fontes objetivas limitando a eles, num sentido mais amplo.
da existência real. Estas condições precisam estar equita- A prática política responsável pela constituição his-
tivamente distribuídas, pois a desigualdade dessa distri- tórica do existir humano se dá mediante o exercício das
buição é que resulta na pobreza, na doença, no desem- relações sociais, modalidade de intercâmbio entre pes-
prego, na baixa qualidade de vida, na privação também soas: mas estas relações se humanizam na relação direta
dos bens sociais e culturais. da minimização da dominação e na razão inversa da maxi-
Assim, de um primeiro ângulo, os homens estabele- malização da opressão de uns sobre os outros. Trata-se
cem relações com a natureza material, da qual recebem de garantir para todos a participação nas tomadas de de-
seu organismo físico-biológico e da qual retiram, direta cisão sobre o destino do todo social, ainda que a partir
ou indiretamente, todos os elementos e recursos para a de núcleos específicos em que este todo se realiza parci-
manutenção de sua existência material e para sua sobre- almente.
vivência, tanto como indivíduos quanto como espécie. O
conjunto das atividades desenvolvidas no âmbito destas Educação e Instauração da Cultura Simbólica
relações constitui o universo do trabalho, a esfera da pro-
dução técnica e econômica. Porém, se a prática econômica e política são prioritárias
e fundamentais na configuração do modo de existir hu-
Organização da Sociedade para a mano, é necessário considerar que o agir humano tem suas
Construção da Cidadania especificidades, não se reduzindo nem ao determinismo
onto-essencialista da metafísica, nem ao mecanicismo
Entretanto, a prática produtiva dos homens não se dá como naturalista da ciência, nem ao seu decorrente pragmatismo
trabalho individual: ela é, antropologicamente falando, ex- funcionalista. A prática tipicamente humana, que delineia
pressão necessária de um sujeito coletivo, ou seja, a espécie seu modo de ser, não é a prática mecânica, transitiva; ao
humana só é humana à medida que se efetiva em sociedade. contrário, é uma prática intencionalizada, marcada des-
Não se é propriamente humano fora de um tecido social, que de suas origens pela simbolização. É que, instaurando-se
constitui o solo de todas as relações sociais, não apenas como como prolongamento das forças energéticas instintivas,
referência circunstancial, mas como matriz, placenta que a subjetividade constitui-se como um novo equipamento,
nutre toda e qualquer atividade posta pelos sujeitos indivi- próprio da nova espécie, transformando-se num instru-
duais. Porém, é preciso observar que essa trama de relações mento de ação dos homens.
sociais que tece a existência real dos homens não se caracte- Vai ocorrer então que tanto a prática produtiva quan-
riza apenas como coletividade gregária dos indivíduos, como to a prática política só se tornam práticas humanas por-
ocorre nas “sociedades” animais: um elemento específico que são atravessadas por uma terceira dimensão específi-
interfere aqui, mais uma vez marcando uma peculiaridade ca do agir humano: trata-se da simbolização, da prática
humana: a sociedade humana é atravessada e impregnada simbolizadora. Com efeito, a atividade técnica de trans-
por um coeficiente de poder, ou seja, os sujeitos individuais formação da natureza só se torna viável à medida que os
não se justapõem, uns ao lado dos outros, em condições de homens, graças a seu equipamento de subjetividade, são
simétrica igualdade, mas se colocam hierarquicamente, uns capazes de duplicar simbolicamente os objetos de sua ex-
sobre os outros, uns dominando os outros. Torna-se assim periência, lidando com eles para além de sua imediatez.

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

Esse contexto, como que um tecido que vai se comple- fecundada pela significação simbólica, mediando a integra-
xificando pela contínua articulação de novas experiências, ção dos sujeitos educandos nesse tríplice universo das
já tornadas possíveis pelas experiências passadas e acu- mediações existenciais: no universo do trabalho, da pro-
muladas, é a cultura uma das mediações concretas da exis- dução material, das relações econômicas; no universo das
tência dos homens. E a cultura é o universo do saber. Isto mediações institucionais da vida social, lugar das relações
é válido tanto no plano da experiência epistêmica do indi- políticas, esfera do poder; no universo da cultura simbóli-
víduo – trata-se sempre de uma experiência que vai se cons- ca, lugar da experiência da identidade subjetiva, esfera das
truindo, acumulando, sintetizando, reorganizando, sistema- relações intencionais. A educação só se legitima intencio-
tizando dados – quanto no plano da própria humanidade, nalizando a prática histórica dos homens.
tanto na perspectiva ontogenética como na perspectiva Com efeito, se se espera, acertadamente, que a educa-
filogenética. ção seja de fato um processo de humanização, é preciso
que ela se torne mediação que viabilize, que invista na
EDUCAÇÃO COMO MEDIADORA DA construção dessas mediações mais básicas, contribuindo
EXISTÊNCIA HISTÓRICA para que elas se efetivem em suas condições objetivas
reais. Ora, esse processo não é automático, não é decor-
Pode-se então equacionar a existência humana como rência mecânica da vida da espécie. É verdade que, ao
se dando mediada pelo tríplice universo do trabalho, da superar a transitividade do instinto e com ela a univocidade
sociedade e da cultura. Como os três ângulos de um triân- das respostas às situações, a espécie humana ganha em
gulo, esses três universos se complementam e se impli- flexibilidade, mas, ao mesmo tempo, torna-se vítima fá-
cam mutuamente, um dependendo do outro, a partir de cil das forças alienantes, uma vez que todas as mediações
sua própria especificidade. são ambivalentes: constituem, simultaneamente, o lugar
É nesse contexto que se pode entender as relações do da personalização, e o lugar da desumanização, da
conhecimento com o universo social. Com efeito, o co- despersonalização. Assim, a vida individual, a vida em
nhecimento pressupõe um solo de relações sociais, não sociedade, o trabalho, as formas culturais e as vivências
apenas como referência circunstancial, mas como matriz, subjetivas podem estar levando não a uma forma mais
como placenta que nutre todo seu processamento. Entre- adequada de existência, da perspectiva humana, mas
tanto, essa trama de relações sociais em que se tece a exis- antes a formas de despersonalização individual e cole-
tência real dos homens, como se viu antes, não se carac- tiva, ao império da alienação. Sempre é bom não per-
teriza apenas pelas relações de gregaridade dos indivíduos, der de vista que o trabalho pode degradar o homem, a
tal qual ocorre nas “sociedades” animais, mas sobretudo vida social pode oprimi-lo e a cultura pode aliená-lo,
por relações de hierarquização, envolvendo o elemento ideologizando-o.
específico a interferir no social humano, o poder, que torna Daí se esperar da educação que ela se constitua, em
política a sociedade. sua efetividade prática, um decidido investimento na con-
O saber aparece, portanto, como instrumento para o solidação das forças construtivas dessas mediações. É por
fazer técnico-produtivo, como mediação do poder e como isso que, ao lado do investimento na transmissão aos edu-
ferramenta da própria criação dos símbolos, voltando-se candos, dos conhecimentos científicos e técnicos, impõe-
sobre si mesmo, ou seja, é sempre um processo de inten- se garantir que a educação seja mediação da percepção
cionalização. Assim, é graças a essa intencionalização que das relações situacionais, que ela lhes possibilite a apre-
nossa atividade técnica deixa de ser mecânica e passa a ensão das intrincadas redes políticas da realidade social,
se dar em função de uma projetividade, o trabalho ganhan- pois só a partir daí poderão se dar conta também do sig-
do um sentido. Do mesmo modo, a atividade propriamente nificado de suas atividades técnicas e culturais. Por ou-
política se ideologiza e a atividade cultural transfigura a tro lado, cabe ainda à educação, no plano da intencio-
utilidade pragmática imediata de todas as coisas. nalidade da consciência, desvendar os mascaramentos
Como entender então a educação nesse contexto das ideológicos de sua própria atividade, evitando assim
mediações histórico-sociais que efetivamente manifestam que se instaure como mera força de reprodução social
e concretizam a existência humana na realidade? Ela deve e se torne força de transformação da sociedade, contri-
ser entendida como prática simultaneamente técnica e buindo para extirpar do tecido desta todos os focos da
política, atravessada por uma intencionalidade teórica, alienação.

70
EDUCAÇÃO, TRABALHO E CIDADANIA: A EDUCAÇÃO BRASILEIRA E O DESAFIO...

CONCLUSÃO 12 da revista São Paulo em Perspectiva, números 2 e 3, de 1998. Trata-se de


volume dedicado ao capitalismo atual, esclarecendo a situação do Brasil no con-
texto mundial. “No interior da internacionalização econômica, são apresentadas
e discutidas as repercussões do processo de globalização, o significado da ide-
O quadro da realidade social e educacional do Brasil ologia neoliberal e os efeitos das reformas políticas para alguns países da Amé-
mostra bem o quanto a existência histórica dos brasilei- rica Latina (...)”, situando “de forma geral a economia brasileira em face das novas
características da economia internacional” (São Paulo em Perspectiva, v.12, n.3,
ros está longe de atingir um patamar mínimo de qualida- 1998:1).
de. Mostra também o quanto é ainda grave o déficit edu- 2. O coeficiente de Gini é a medida dos graus de desigualdade na distribuição da
cacional em termos quantitativos e qualitativos e como é renda. Ele é igual a 0 quando a eqüidade é máxima, a renda sendo eqüitativamente
distribuída entre todas as pessoas que integram uma população. Vai de 0 a 1.
ainda grande o desafio para os gestores da educação no Países altamente eqüitativos, como Suécia e Espanha, têm o índice de Gini entre
Brasil. Exigem-se deles uma avaliação mais crítica da si- 0,25 a 0,30. A média mundial é 0,40. A média da América Latina é de 0,57, enquan-
to o Brasil está com 0,69, após ter passado de 0,59 em 1980, para 0,63 em 1989,
tuação real da nossa sociedade e uma maior vigilância o que mostra a continuidade do agravamento da concentração de renda nas últi-
mas décadas (Kliksberg, 2000:84).
diante do mavioso canto das sereias do neoliberalismo.
Sem dúvida, a educação não é a alavanca da transfor-
mação social. No caso da sociedade brasileira, ainda sob
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
o império da formação econômica capitalista, o núcleo
substantivo de todas as relações sociais é a relação pro- ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. São Paulo, Martins
dutiva. Porém, a educação, como também outras formas Fontes, s/d.
BELLUZO, L.G. “Fim de século”. São Paulo em Perspectiva. São Paulo, Fun-
de ação sociocultural, está diretamente relacionada com dação Seade, v.12, n.2, abr./jun. 1992, p.21-26.
as condições da economia. É por isso que Gramsci FERREIRA, N.T. Cidadania: uma questão para a educação. Rio de Janeiro,
(1976:9) sempre insistiu que nenhuma reforma intelec- Nova Fronteira, 1993.
FRIGOTTO, G. A produtividade da escola improdutiva. São Paulo, Cortez/Au-
tual e moral pode estar desligada da reforma econômica. tores Associados, 1984.
Porém, se, por um lado, a educação pode contribuir para GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro, Civi-
disfarçar, legitimando-as ideologicamente, e abrandar as lização Brasileira, 1968.
__________ . Maquiavel, a política e o estado moderno. 2a ed. Rio de Janeiro,
contradições e os conflitos reais que acontecem no pro- Civilização Brasileira, 1976.
cesso social, por outro, pode também desmascarar e agu- IANNI, O. “Globalização e neoliberalismo”. São Paulo em Perspectiva. São Pau-
lo, Fundação Seade, v.12, n.2, abr./jun. 1998, p.27-32.
çar a consciência dessas contradições, contribuindo para
KLIKSBERG, B. Desigualdade na América Latina: o debate adiado. São Pau-
sua superação no plano da realidade objetiva. Se a educa- lo, Cortez/Unesco, 2000.
ção pode ser, como querem as teorias reprodutivistas, um __________ . Repensando o Estado para o desenvolvimento social. São Paulo,
Cortez, 1998.
elemento fundamental na reprodução de determinado sis-
MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã. Lisboa, Presença, v.2, 1976.
tema social, ela pode ser também elemento gerador de
ORTIZ, R. Mundialização e cultura. São Paulo, Brasiliense, 1994.
novas formas de concepções de mundo capazes de se con- RODRIGUES, N. Estado, educação e desenvolvimento econômico. São Paulo,
traporem à concepção de mundo dominante em determi- Cortez/Autores Associados, 1982.

nado contexto sociocultural (Severino, 1986:96). SEVERINO, A.J. Educação, ideologia e contra-ideologia. São Paulo, EPU, 1986.
__________ . Filosofia da educação. São Paulo, FTD, 1994 (Col. Ensinar &
Aprender).
__________ . “A escola e a construção da cidadania”. Sociedade civil e educa-
ção. Campinas, Papirus, 1992, p.9-14 (Coletânea CBE).
NOTAS
__________ . “A formação profissional do educador: pressupostos filosóficos e
implicações curriculares”. Revista da Ande, n.17, jun. 1991, p.29-40.
E-mail do autor: ajsev@uol.com.br
SINGER, P. “Para além do neoliberalismo: a saga do capitalismo contemporâ-
1. Esta nova condição e suas conseqüências econômicas, sociais e políticas es- neo”. São Paulo em Perspectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.12, n.2,
tão bem caracterizadas e analisadas em diversos artigos publicados no volume abr./jun. 1992, p.3-20.

71
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

EDUCAÇÃO E TRABALHO
uma relação tão necessária quanto insuficiente

LILIANA ROLFSEN PETRILLI SEGNINI


Professora do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas à Educação da Faculdade de Educação na Universidade Estadual de Campinas.
Autora do livro Mulheres no Trabalho Bancário. Difusão Tecnológica, Qualificação e Relações de Gênero, entre outros.

Resumo: Este artigo estabelece relação entre educação, trabalho e desenvolvimento. Para tanto, são construídos
argumentos na contra-corrente dos discursos e políticas observadas neste momento, formulados com freqüên-
cia pelos organismos internacionais reguladores, pelo Estado e outras instituições.
Palavras-chave: educação e trabalho; educação no Brasil; mercado de trabalho.

Cabe acrescentar que, mesmo independentemente desse ideal desigualdades presentes na sociedade em que vivemos;
de cultura, a simples alfabetização em massa não constitui talvez de nossas especificidades culturais (sobretudo através do
um benefício sem par. Desacompanhada de outros elementos
fundamentais da educação, que a completem, é comparável, em conhecimento do outro); das profundas desigualdades
certos casos, a uma arma de fogo posta na mão de um cego. sociais existentes, concentração da terra e da renda, altas
taxas de analfabetismo ao lado de violência e não-direito
Holanda, 1995:166
à saúde, ausência de valores éticos que sustentam a soli-
dariedade. Educação que não estabelece relação direta com
o mundo do trabalho. É muito mais ampla, possibilitan-

O
objetivo deste trabalho é indagar se a relação di- do o desenvolvimento de políticas e ações concretas que
reta, com ou sem pálidas mediações, que tem sido rompam definitivamente o quadro social e econômico
estabelecida entre educação, trabalho e desen- apontado. Não é esse o resultado da relação educação,
volvimento, tão apregoada nos últimos tempos, não se trabalho e desenvolvimento que este trabalho analisa.
constitui muito mais de um processo social de legitimação Seu objetivo, portanto, é chamar a atenção para a rela-
das mudanças no mercado de trabalho, via desemprego e ção educação, trabalho e desenvolvimento, percorrendo
precariedade social, do que uma real e concreta exigên- caminhos na contra-corrente dos discursos e políticas
cia dos processos de produção de bens e serviços. Num observados neste momento, formulados com freqüência
país de 157 milhões de habitantes, onde a taxa de analfa- pelos organismos internacionais reguladores (Banco Mun-
betismo atinge 20,1% da população de 15 anos ou mais dial, FMI, e outros), pelo Estado, instituições represen-
(Fundação IBGE, Informe estatístico de 1996), é neces- tantes de interesses patronais, instituições representantes
sário ter cautela e restringir a argumentação para ela não dos interesses dos trabalhadores, empresas, imprensa e
correr o risco de ser irresponsável ou interpretada de for- um grande número de pesquisas científicas. Parece haver
ma equivocada. uma névoa que encobre essa relação, ou melhor, não é
Nesse sentido, é bom salientar que este trabalho não possível enxergá-la bem porque é portadora de excesso
se refere à educação compreendida como um fim em si de luminosidade e formava um dos elementos que cons-
mesma, educação-processo, que nos permite tomar cons- troem o consenso, no interior de conflitos e interesses
ciência de nós mesmos, de nossa trajetória histórica en- antagônicos. Ou, como afirma Tanguy, essa relação apa-
quanto indivíduos, nação ou mundo; das contradições e rece como uma “ideologia conservadora de nosso tem-

72
EDUCAÇÃO E TRABALHO: uma relação tão necessária quanto insuficiente

po” no sentido analisado por Karl Mannhein, ou seja, as- novas formas de ocupação. A flexibilização da força de
segura coesão social, legitima e dissimula a ordem social trabalho (contratos de tempo parcial, subcontratação, ter-
existente (Tanguy, 1998). ceirização, etc.) inscreve-se no mesmo processo que arti-
cula o discurso por maiores níveis de escolaridade para
CONTEXTO SOCIAL E ECONÔMICO os trabalhadores que permanecem empregados e ocupam
DA RELAÇÃO EDUCAÇÃO, TRABALHO postos de trabalho considerados essenciais para os pro-
E DESENVOLVIMENTO cessos produtivos nos quais se inserem.
Nesse sentido, a educação e a formação profissional
Observando a dinâmica dos mercados quer seja de bens aparecem hoje como questões centrais pois a elas são
e serviços, financeiros ou de trabalho, apreende-se que conferidas funções essencialmente instrumentais, ou seja,
algo significativo se alterou nos últimos 30 anos nas so- capazes de possibilitar a competitividade e intensificar a
ciedades capitalistas que se reorganizam e se reestruturam concorrência, adaptar trabalhadores às mudanças técni-
no sentido de introduzir novas formas de racionalização cas e minimizar os efeitos do desemprego. O papel de or-
do trabalho e da vida social. Esse parece ser o único pon- ganismos internacionais reguladores tem sido fundamen-
to comum no intenso debate que acompanha o esforço para tal para tanto, como é possível apreender a partir de
compreender o processo observado há 30 anos, mas ain- prescrições do Banco Mundial: “Detalhados estudos
da em curso (Arrighi, 1997; Harvey, 1992:176); mesmo econométricos indicam que as taxas de investimentos e
que, para alguns, essas mudanças signifiquem tão-somente os graus iniciais de instrução constituem robustos fatores
a intensificação de um processo observado desde os de previsão de crescimento futuro. Se nada mais mudar,
primórdios do próprio capitalismo, questionando os as- quanto mais instruídos forem os trabalhadores de um país,
pectos ideológicos das novas formas de racionalização maiores serão suas possibilidades de absorver as tecnolo-
aplicadas (Pollert, 1988; Gordon, 1988 e Sayer, 1989 apud gias predominantes, e assim chegar a um crescimento rá-
Harvey, 1992). pido da produção. (...) O desenvolvimento econômico
Compreende-se que esse processo revela característi- oferece aos participantes do mercado de trabalho oportu-
cas e contradições específicas, da mesma forma que, em nidades novas e em rápida mudança” (Banco Mundial,
outros momentos históricos, outras tantas foram observa- 1995:26-35).
das. Portanto, não se fala de “impactos” mas de processos Essas tendências, observadas mundialmente, expres-
expressos, neste atual contexto, pela globalização dos sam-se de forma heterogênea em diferentes contextos
mercados de bens e fluxos financeiros e o acirramento da nacionais; no Brasil, mesclam-se com problemas sociais
concorrência; difusão do ideário neoliberal que, contradi- jamais resolvidos como a profunda desigualdade da dis-
toriamente, requer políticas estatais que garantam a tribuição da renda, o analfabetismo e os baixos índices
desregulamentação de normas de concorrência e direitos de escolaridade que atingem grande parte da população,
sociais. Nesse sentido, a concentração de capital – fusões, a saúde, tudo com implicações perversas nas parcas con-
incorporações, privatizações – ocorre ao mesmo tempo que dições para o exercício da cidadania.
a força de trabalho fragiliza-se pela flexibilização, quer
seja das estruturas produtivas, das formas de organização ESPECIFICIDADES DA REESTRUTURAÇÃO
do trabalho, da própria força de trabalho, por meio do NO MERCADO DE TRABALHO
emprego/desemprego. É dentro dessa nova correlação de
forças que se concretiza a lógica do “livre mercado”, sob É possível observar, após terem decorrido quase três
a coordenação do sistema financeiro global. décadas de mudanças nas formas de racionalização do
Difundem-se, cada vez mais intensamente, tecnologias capitalismo, que o desenvolvimento econômico não
produtivas apoiadas na microeletrônica como a automação, mais significa desenvolvimento social, como ocorreu
a informática, a telemática. A opção política do uso des- em países hoje considerados desenvolvidos por um lon-
sas tecnologias tem sido direcionada para intensificar a go período (Castel, 1998). O desemprego já não é re-
produtividade e a supressão do emprego. sultado da ausência de crescimento econômico, mas se
A estrutura do mercado de trabalho também tem pas- tornou inerente ao próprio crescimento econômico. No
sado por mudanças: altas taxas de desemprego são acom- Brasil, essa relação nunca havia se dado de forma in-
panhadas da crescente insegurança e precariedade das tensiva; talvez a melhor expressão do avanço do capi-

73
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

talismo no Brasil seja justamente o registro de profun- de trabalho eram necessárias para a compra da ração es-
da heterogeneidade produtiva e desigualdade das rela- sencial. O país se urbanizou e algumas conquistas sociais
ções de trabalho. foram observadas, como o crescimento da esperança mé-
O mercado de trabalho brasileiro não conseguiu esta- dia de vida, que passou de 45,9 anos em 1950 para 60 em
belecer uma situação em que o emprego formal (aquele 1980, indicando melhorias nas condições gerais de saúde
que possibilita garantias e direitos sociais) tenha se tor- e atendimento médico. Também as taxas de analfabetis-
nado algo generalizado para o conjunto da população; ao mo foram decrescendo constantemente, passando de
contrário, criou-se um mercado “altamente flexível” com 53,9% entre os homens e 60,6% entre as mulheres em
situações completamente diferenciadas e, em grande me- 1950, para 34,9% e 35,2%, respectivamente, em 1980
dida, precárias. (Fausto, 1998).
No entanto, como bem salienta Pochmann, ao se to- O conjunto de medidas de ajustes macroeconômicos,
mar como medida o período 1940-1980, é possível ob- a partir dos anos 80, diante do crescimento da dívida
servar um crescimento das relações formais de trabalho externa e do colapso do financiamento da economia bra-
no Brasil, que ocorreu, sobretudo, por força da introdu- sileira, concorreu para fortes e rápidas oscilações econô-
ção do projeto de industrialização nacional (de forma in- micas, estagnação e hiperinflação. Nesse contexto obser-
tensa entre 1950 e 1980), bem como devido à insti- va-se que a tendência à frágil estruturação do mercado de
tucionalização das relações de trabalho por meio de um trabalho no Brasil foi rompida (Pochmann, 1998).
conjunto de normas legais estabelecidas pela Consolida- Sistematizando dados produzidos pelo Ministério do
ção das Leis do Trabalho (CLT), em junho de 1943. No Trabalho (Rais e Caged) e pelo IBGE, Pochmann registra
período, o trabalho assalariado, com registro em carteira que, a partir dos anos 80, a progressiva desestruturação
profissional, cresceu de 12,1% para 49,2%, o que signifi- do mercado de trabalho foi marcada pelo desassalariamento
ca, em termos absolutos, uma variação anual de 484,2 mil de parcela crescente da PEA, crescimento do desemprego
trabalhadores. Isso permite observar que, de acordo com e do trabalho informal precário. Os postos de trabalho
dados do IBGE, de cada dez ocupações geradas, oito eram abertos passaram a ser sobretudo de assalariados sem re-
assalariadas, sendo sete com registro e uma sem registro gistro e por conta própria.
(Pochmann, 1998). O trabalho assalariado decresceu de 62,8% para 62,6%
Apesar desses dados, sabe-se que sua homogeneização no período 1989-1991, sendo que esse índice de redução
não se deu nos níveis observados nos países desenvolvi- refere-se àqueles trabalhadores que já possuíam registro
dos, onde 80% da PEA urbana eram assalariados; nos em carteira – de 49,2% para 36,6% (Tabela 1). O traba-
quais, através de muitas lutas, o trabalho assalariado se lho assalariado sem registro cresceu de 13,6% para 25,7%.
tornou um pilar, no qual o trabalho significava bem mais No período 1989-1995, o mesmo movimento continua a
que um trabalho, significava ter direitos que se expan- ser observado, intensificando-se: o trabalho assalariado
diam e “que a vulnerabilidade e a precariedade eram acom- decresceu de 62,8% para 58,2%, enquanto o trabalho com
panhadas pela certeza que amanhã será melhor” (Castel, registro passou de 49,2% para 30,9%; o trabalho assala-
1998). riado sem registro voltou a crescer de 13,6% para 27,3%
No Brasil, a PEA urbana de ocupados assalariados (Pochmann, 1998).
passou de 42%, em 1940, para 62,8%, em 1980. Nesse
contexto, é importante salientar, a sociedade permaneceu TABELA 1
desigual, a renda continuou sendo concentrada e perma- Trabalho Assalariado com e sem Registro em Carteira
neceram os problemas de informalidade, subemprego, Brasil – 1989-1995
baixos salários e desigualdades de rendimentos (Pochmann, Em porcentagem

1998). Em 1983, os 50% mais pobres da população se Trabalho Assalariado 1989 1991 1995
apropriavam de apenas 13,6% da renda total do país, en-
Total 62,8 62,6 58,2
quanto os 10% mais ricos detinham 46,2%.
Com Registro 49,2 36,6 30,9
No período analisado, o salário mínimo foi perdendo
poder de compra ao mesmo tempo que elevados índices Sem Registro 13,6 25,7 27,3
de crescimento econômico eram registrados pelo Produ-
Fonte: Ministério do Trabalho (Rais e Caged); Fundação IBGE/PNADs ajustadas (Pochmann,
to Interno Bruto; ao mesmo tempo, cada vez mais horas 1998).

74
EDUCAÇÃO E TRABALHO: uma relação tão necessária quanto insuficiente

Mesmo nos períodos de recuperação econômica (1984- Nesse sentido, os dados sistematizados pelos economis-
86 e 1993-95), o desemprego e a precariedade no traba- tas Marcelo Ikeda, do Programa das Nações Unidas para
lho continuaram a crescer. Assim, a expansão das ocupa- o Desenvolvimento Econômico (PNUD) e Sheila Najberg,
ções no período 1989-1996 foi de 11,4%, enquanto a PEA do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
total aumentou 16,5%, influenciando no crescimento do Social (BNDES), a partir dos dados do Cadastro Geral de
desemprego em 179,1% (Tabela 2). Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do
Pochmann relaciona essas tendências ao abandono do Trabalho, informam que no ano de 1996 os trabalhadores
projeto de industrialização nacional, à implementação do da indústria com ensino superior completo foram desem-
programa neoliberal oriundo do Consenso de Washington, pregados (6,1%) mais intensamente que os analfabetos
às políticas macroeconômicas de inserção do país (que (4,4%) (Tabela 3). No ano seguinte, a taxa de desemprego
permanece subordinado) no processo de globalização; dos trabalhadores com superior completo (2,9%) perma-
porém, acompanhadas de uma abertura comercial indis- neceu maior que a daqueles que não haviam completado a
criminada, ausência de políticas setoriais defensivas, oitava série do ensino fundamental (2,6%) (Tabela 4).
sobrevalorização da moeda e elevados juros. Nesse con-
texto, o processo de reestruturação produtiva no Brasil é TABELA 3
introduzido, resguardando a característica do próprio Trabalhadores Formais da Indústria Admitidos e Desligados,
segundo Grau de Instrução
mercado brasileiro, ou seja, a heterogeneidade produtiva Brasil – 1996
e a desigualdade no mercado de trabalho.
Saldo % Sobre
TABELA 2 Grau de Instrução Admitidos Desligados
Líquido 1995
População Economicamente Ativa (PEA), Ocupada e Desempregada
Brasil – 1989-1996 Analfabeto 87.118 94.272 -7.155 -4,4
4a Série Incompleta 297.277 328.327 -31.050 -5,2
4a Série Completa 457.146 527.440 -70.298 -6,8
1989 1996 8a Série Incompleta 626.331 651.293 -24.962 -2,0
PEA Nos
Nos Variação 8a Série Completa 456.858 462.903 -6.044 -0,7
Abs. % Abs. % 2o Grau Incompleto 213.984 205.753 8.231 1,8
2o Grau Completo 257.327 245.727 11.601 1,8
Total 60.120 100,0 70.040 100,0 16,5 Superior Incompleto 45.800 49.832 -4.032 -2,7
Ocupada 58.300 97,0 64.960 92,7 11,4 Superior Completo 68.665 83.582 -14.916 -6,1
Desempregada 1.820 3,0 5.080 7,3 179,1 Ignorado 19.494 15.868 3.626 11,1

Fonte: Fundação IBGE/PNADs ajustadas (Pochmann,1998:6). Fonte: Ministério do Trabalho – MTb/Caged. Elaboração Marcelo Ikeda e Sheila Najberg.

TRABALHO E ESCOLARIDADE
TABELA 4

Várias contradições foram observadas e serão toma- Trabalhadores Formais da Indústria Admitidos e Desligados,
segundo Grau de Instrução
das aqui como argumentos para questionar o consenso que Brasil – 1997
a relação entre trabalho e educação parece ser portadora.
Em primeiro lugar, aponta-se o crescente desemprego de
Saldo % Sobre
trabalhadores escolarizados, mesmo em um contexto como Grau de Instrução Admitidos Desligados
Líquido 1996
o brasileiro, no qual a educação ainda não é um direito
Analfabeto 82.344 97.555 -15.211 -9,8
conquistado por todos; e, em seguida, questiona-se essa
4a Série Incompleta 251.374 304.837 -53.462 -9,5
relação a partir das desigualdades geracionais, raciais e 4a Série Completa 405.370 478.126 -72.755 -7,5
de gênero. 8a Série Incompleta 609.746 640.951 -31.204 -2,6
O desemprego crescente de trabalhadores escolariza- 8a Série Completa 485.650 467.778 17.872 2,0
2o Grau Incompleto 233.725 218.677 15.047 3,2
dos, sobretudo nos setores mais modernos da sociedade, 2o Grau Completo 300.709 273.780 26.929 4,1
é tomado como um dos argumentos para tornar relativa Superior Incompleto 50.526 51.322 -796 -0,6
essa perspectiva instrumental da educação que se expres- Superior Completo 87.146 93.719 -6.573 -2,9
Ignorado 14.409 11.256 3.153 8,7
sa como se fosse capaz de garantir o emprego ou, até
mesmo, o trabalho. Fonte: Ministério do Trabalho – MTb/Caged. Elaboração Marcelo Ikeda e Sheila Najberg.

75
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

O desemprego de trabalhadores, em decorrência do Também deve ser apontada a desigualdade entre ho-
processo de reestruturação, acrescenta uma nova dimen- mens e mulheres, brancos e negros com o mesmo tempo
são aos problemas sociais que marcam há muito o Brasil, de escolaridade, no mercado de trabalho, tanto em rendi-
até então, miséria, pobreza, não-acesso à educação e à mentos como em condições de trabalho. A Pesquisa de
saúde. Trata-se do desemprego de trabalhadores escola- Padrão de Vida (IBGE) divulgada em agosto de 1998,
rizados como, por exemplo, ocorreu intensamente na úl- realizada em 5 mil domicílios nas regiões Sudeste e Nor-
tima década com os bancários no país, categoria que deste, de março de 1996 a março de 1997, registra a desi-
vivenciou o desemprego de 600 mil trabalhadores gualdade salarial entre trabalhadores chefes de família com
(Segnini, 1999). 12 anos ou mais de estudo (Tabela 6).
As pesquisas recentes sobre reestruturação em vá-
rios setores estão apontando para a intensificação do TABELA 5
trabalho e não para conteúdos mais sofisticados e ela- Taxas de Desemprego e Produto Interno Bruto
Brasil e Região Metropolitana de São Paulo – 1983-97
borados das atividades ou, para maior autonomia dos
trabalhadores, que justificariam efetivamente maior
escolaridade e qualificação (Rizek e Leite, 1998; Taxas de Desemprego (%)
Anos PIB Real
Segnini, 1998). O número reduzido de trabalhadores Seade-Dieese (RMSP) (Índice)
IBGE
atingidos por essas mudanças, com alguma positividade (Brasil) Aberto Oculto Total
expressa pela democracia industrial, está inserido no
chamado setor de ponta, essencialmente nos segmen- 1983 6,7 - - 100,0
tos nobres das empresas multinacionais de acordo com 1984 7,1 105,3
1985 5,2 7,6 4,6 12,2 113,6
dados da Organização Internacional do Trabalho, em
1986 3,6 6,0 3,6 9,6 122,2
1996. São 73 milhões de pessoas, das quais 12 milhões 1987 3,7 6,3 2,9 9,2 126,6
no Terceiro Mundo; sendo que a PEA do Terceiro 1988 3,8 7,0 2,7 9,7 126,4
Mundo é da ordem de 2,2 bilhões de pessoas (Dowbor, 1989 3,3 6,5 2,2 8,7 130,6
1998). 1990 4,9 7,4 2,9 10,3 124,9
No mesmo processo, mas de outro lado, estão 800 mi- 1991 6,0 7,9 3,8 11,7 125,3
1992 7,1 9,2 6,0 15,2 124,3
lhões de desempregados no mundo (OCDE apud Dowbor,
1993 6,1 8,6 6,0 14,6 129,5
1998), sendo 18,1 milhões na União Européia (Eurostat 1994 5,8 8,9 5,3 14,2 137,1
apud Dowbor, 1998), como resultado de um crescimento 1995 5,5 9,0 4,2 13,2 143,2
econômico perverso, que cada vez mais concentra renda 1996 6,7 10,0 5,1 15,1 148,3
(fusões, incorporações, privatizações) aprofundando o fos- 1997 7,3 10,3 5,7 16,0 152,4

so entre dois pólos. Em um contexto de produtividade cres-


Fonte: Fundação IBGE. Pesquisa Mensal de Emprego; SEP. Convênio Seade-Dieese. Pes-
cente, o Brasil insere-se nessa perspectiva de desenvolvi- quisa de Emprego e Desemprego – PED.
mento, triplicando o número de desempregados no período
1989-97, chegando a 5,1 milhões de pessoas, o que equi-
vale a 7,3% da PEA (Fundação IBGE, 1997). Em 1995, TABELA 6

28,7% da população brasileira vivia com menos de um Rendimento Médio Mensal dos Trabalhadores Chefes de Família com 12
Anos ou Mais de Estudo, segundo Sexo e Cor
salário mínimo (Banco Mundial, 1997:224) (Tabela 5). Regiões Sudeste e Sudoeste – 1997
Os jovens no Brasil, assim como em outros países do Em reais
mundo, constituem o grupo social mais escolarizado e mais Sexo e Cor Rendimento Médio Mensal
desempregado, ou, mesmo, inserido em trabalhos precá-
Branco
rios. Por exemplo, para os mais escolarizados, observa-
Homem 881,00
se a proliferação do subemprego com a denominação es- Mulher 559,00
tágio (Tanguy, 1998). Em São Paulo, de acordo com o
Seade/Dieese, 800 mil jovens entre 15 e 24 anos estão Negro
sem ocupação, representando metade dos desempregados Homem 423,00
Mulher 266,00
da Região Metropolitana de São Paulo, estimada em 1,6
milhão.1 Fonte: Fundação IBGE. Pesquisa de Padrão de Vida, 1998.

76
EDUCAÇÃO E TRABALHO: uma relação tão necessária quanto insuficiente

A qualificação (escolaridade e formação profissional) se 36,9%, em 1985, para 53,4%, em 1995; no mesmo período,
transformou no fetiche capaz de romper esse processo. So- a taxa de atividade masculina registrou discreto crescimen-
mas vultosas estão sendo gastas no mundo inteiro para re- to de 76,0% para 78,3%. Dessa forma, em 1995, a propor-
qualificar trabalhadores. Os resultados são pífios se ção de mulheres entre os trabalhadores era de 40,4 % (1985
mensurados a partir da reinserção no mercado de trabalho, = 33,5%), enquanto para os homens foi registrado um de-
como atestam pesquisas em vários países. Também no Bra- créscimo de 66,5%, em 1985, para 59,6%, em 1995.
sil, através do Programa Nacional de Qualificação do Tra- Considerando a distribuição da PEA masculina e femini-
balhador (Planfor), com verbas do Fundo do Amparo ao na por escolaridade, observou-se que os índices de escolari-
Trabalhador (FAT), constituído pelas contribuições do PIS dade das mulheres, a partir do 8o ano de estudo, superam a
e Pasep, foram despendidos 596,3 milhões de reais (45% na escolaridade masculina (Tabela 8).
região Sudeste do país) para atender a 3,3 milhões de traba- No entanto, a análise dos dados apontados não permi-
lhadores. Em São Paulo, de acordo com dados da Secretaria tem a afirmação que esse crescimento refere-se tão-somente
do Trabalho, 11% dos trabalhadores que cursaram progra- a uma conquista social das mulheres na busca de oportu-
mas de formação conseguiram se inserir no mercado de tra- nidades iguais às dos homens. Em alguns aspectos, para
balho, em 1997 (Unitrabalho, 1997). algumas mulheres, uma minoria, sim; mas não apenas.
A segregação sexual no trabalho persiste como um fe-
ESCOLARIDADE E DESIGUALDADE nômeno mundial. O inegável crescimento da participação
NO MERCADO DE TRABALHO: das mulheres no mercado de trabalho e a escolaridade ele-
UM ENFOQUE DE GÊNERO vada alteram pouco suas condições socioeconômicas. A
desigualdade entre homens e mulheres se expressa de di-
Um argumento substantivo apontado para tornar relativa ferentes formas, como a posição ocupada pelas mulheres
a relação entre escolaridade e inserção no mercado de traba- no mercado de trabalho (17,2% de trabalhadoras domésti-
lho é encontrado na condição desigual vivida pela mulher. cas, 13,1% de não-remuneradas, 9,3% de trabalhadoras
No Brasil, as mulheres também vivenciaram, nos últi- para auto-consumo), perfazendo um percentual de 40% de
mos 30 anos, inegáveis ganhos sociais, políticos e econô- postos de trabalho precários enquanto para os homens esse
micos observados em vários estudos referentes a outros índice é de 10,7%. Mesmo entre as mulheres empregadas
contextos nacionais, sobretudo nos países desenvolvidos. (41,9%) é possível observar que vários indicadores (rendi-
Nesse sentido, o crescimento da participação das mu- mento, jornada de trabalho, registro em carteira e direitos
lheres no mercado de trabalho, após a década de 60 até no trabalho) apontam para a precária condição da maioria
1995, é um dos indicadores mais elucidativos para acom- das mulheres na ocupação de postos de trabalho que de-
panhar este processo em decorrência do significado so- mandam menor qualificação reconhecida efetivamente pela
cial que expressa (Tabela 7). remuneração, como no setor de prestação de serviços onde
No período enfocado (1985-1995), o crescimento da par- trabalham 29,8% das mulheres e 12% dos homens. Entre
ticipação da mulher no mercado de trabalho (63,0%) é sig- esses(as) trabalhadores(as), 78% das mulheres e 43% dos
nificativamente superior ao do homem (20,8%). Isso quer homens incluem-se na classe de rendimento mensal de até
dizer que a porcentagem de mulheres na PEA elevou-se de R$ 240,00 (Bruschini, 1998). O movimento das desigualda-

TABELA 7
Indicadores de Participação Econômica, segundo Sexo
Brasil – 1985-1995

Proporção de Mulheres entre


Sexo PEA (Em milhões) Variação Taxa de Atividade (%) os Trabalhadores (%)
1985/95
1985 1990 1995 (%) 1985 1990 1995 1985 1990 1995

Homem 36,6 41,6 44,2 20,8 76,0 75,3 78,3 66,5 64,5 59,6
Mulher 18,4 22,9 30,0 63,0 36,9 39,2 53,4 33,5 35,5 40,4

Fonte: Fundação IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 1985, 1990 e 1995 (Bruschini, 1998).

77
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

des é registrado tanto pelo IBGE como pelo Seade/Dieese, TABELA 10

mesmo com a utilização de metodologias diferenciadas para Rendimentos dos Ocupados, por Sexo
Brasil – 1985-1995
suas coletas de dados e números diferentes entre si.

TABELA 8 Rendimento dos Ocupados


(Em salários mínimos) Diferença
População Economicamente Ativa, por Sexo, segundo Anos de Estudo
Anos (%)
Brasil – 1993-1995
Mulheres Homens

1993 1995 1985 1,9 3,7 51,0


Anos de Estudo
Homens Mulheres Homens Mulheres 1986 2,7 5,3 51,0
1987 2,1 4,0 53,0
Total (Em milhões) 42,9 28,0 44,2 30,0 1988 2,1 4,0 53,0
Total (%) 100,0 100,0 100,0 100,0 1989 2,5 4,7 53,0
Sem Instrução e 1990 2,2 3,8 58,0
Menos de 1 Ano 17,0 14,4 16,3 13,2 1992 1,7 3,1 55,0
1 a 3 Anos 20,0 17,4 19,0 16,5
1993 1,8 3,5 51,0
4 a 7 Anos 34,1 32,0 34,1 31,9
8 a 10 Anos 12,7 13,0 13,4 13,6 1995 2,4 4,4 55,0
11 a 14 Anos 11,6 16,9 12,2 18,1
Fonte: Fundação IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 1995 (Bruschini, 1998).
15 Anos ou Mais 4,5 6,0 4,8 6,5
Nota: Não estão incluídos os rendimentos da população da zona rural de Rondônia, Acre,
Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. Valores inflacionados pelo INPC com base em setembro
Fonte: Fundação IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 1993 e 1995 de 1995 e expressos em salários mínimos de setembro de 1995.
(Bruschini, 1998).

TABELA 9 Observa-se a intensa participação da mulher como


Distribuição dos Ocupados, por Sexo, segundo Posição na Ocupação empregada doméstica no mercado de trabalho, entre as
e Classes de Rendimento Mensal no Trabalho Principal quais 90,4% recebem até dois salários mínimos, e a irri-
Brasil – 1993-1995
sória participação como empregadora (0,5%). No entan-
to, em qualquer ocupação, as mulheres recebem salários
Posição na Ocupação e 1993 1995
Classes de Rendimento menores que os homens.
Mensal do Trabalho Principal Homens Mulheres Homens Mulheres Dados produzidos pelo Seade/Dieese registram que o
Empregados (Em milhões) 23,7 11,1 23,8 11,5 rendimento médio das mulheres em 1996 (R$ 585,00)
(Em %) 100,0 100,0 100,0 100,0 correspondia a 60% do obtido pelos homens (R$ 995,00).
Até 2 Salários Mínimos 56,5 62,8 45,7 50,5 Se o rendimento for considerado por hora trabalhada a
Mais de 2 a 5 Salários Mínimos 28,2 25,5 33,9 32,3
Mais de 5 Salários Mínimos 14,6 11,0 20,5 17,2 diferença persiste, invalidando o argumento de que elas
Sem Declaração 0,7 0,6 - - estariam, eventualmente, trabalhando uma quantidade
Trabalhadores Domésticos menor de horas.
(Em milhões) 0,3 4,2 0,3 4,7 Precariedade no trabalho é um processo social que atin-
(Em %) 100,0 100,0 100,0 100,0
Até 2 Salários Mínimos 89,4 96,6 79,5 90,4
ge homens e mulheres no atual momento do mercado de
Mais de 2 a 5 Salários Mínimos 9,5 2,8 17,3 8,9 trabalho; porém, as mulheres já estavam em maior núme-
Mais de 5 Salários Mínimos 0,3 0,1 3,2 0,6 ro nas ocupações precárias e continuam a vivenciar taxas
Sem Declaração 0,8 0,6 - -
maiores de informalidade e precariedade, apesar dos ín-
Conta-Própria (Em milhões) 10,2 4,1 10,8 4,5
dices de escolaridade mais elevados.
(Em %) 100,0 100,0 100,0 100,0
Até 2 Salários Mínimos 53,3 74,9 50,4 70,1 Nesse sentido, pode-se afirmar que as mulheres foram
Mais de 2 a 5 Salários Mínimos 28,9 15,5 29,6 19,5 pioneiras em ocupar postos de trabalho precários, que
Mais de 5 Salários Mínimos 14,7 6,9 20,0 10,3 estavam por vir para ambos os sexos, no contexto da re-
Sem Declaração 3,4 2,8 - -
estruturação produtiva. Mesmo assim, elas continuam
Empregadores (Em milhões) 2,0 0,4 2,1 0,5 campeãs em informalidade e precariedade e começam a
(Em%) 100,0 100,0 100,0 100,0
Até 2 Salários Mínimos 13,4 18,9 9,7 10,5 ser mais atingidas pelo desemprego em vários setores.
Mais de 2 a 5 Salários Mínimos 26,8 33,9 22,0 24,8 Essas questões precisam ser pesquisadas intensamente,
Mais de 5 Salários Mínimos 57,6 43,7 68,4 64,6 mesmo porque possibilitam melhor compreensão dos pro-
Sem Declaração 2,3 3,4 - -
cessos de mudanças sociais a partir da reestruturação eco-
Fonte: Fundação IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 1993 e 1995
(Bruschini, 1998). nômica, que ainda está em curso.

78
EDUCAÇÃO E TRABALHO: uma relação tão necessária quanto insuficiente

TABELA 11 Nos últimos anos, as taxas de desemprego vêm apre-


Taxas de Informalidade e Precariedade do Emprego Urbano, por Sexo sentando crescimento acentuado para os trabalhadores de
Brasil – 1990-1993
Em porcentagem ambos os sexos, com elevação mais intensa para os ho-
Homem Mulher mens. No entanto, historicamente, as taxas relativas às
Taxas mulheres são mais altas, independentemente da região do
1990 1993 1990 1993
país.
Informalidade (1) 39,09 44,63 45,90 54,22
Precariedade (2) 10,51 19,70 15,50 26,50
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fonte: Atlas Regional das Desigualdades, Ipea-Dipes/IBGE, 1996. Lavinas e Barsted, 1996.
(1) Proporção de trabalhadores conta-própria e empregados sem carteira sobre a população
ocupada. As contradições apontadas neste trabalho sobre a rela-
(2) Proporção de trabalhadores que trabalham mais de 40 horas por semana e ganham me-
nos de um salário mínimo por mês sobre o total da população ocupada.
ção entre escolaridade e formas de inserção no mundo do
trabalho (e do desemprego) possibilitam, em primeiro
TABELA 12 lugar, reafirmar que qualificação para o trabalho é uma
Médias Anuais das Taxas de Desemprego, por Sexo relação social (de classe, de gênero, de etnia, geracional),
Regiões Metropolitanas de São Paulo, Porto Alegre,
Curitiba e Distrito Federal – 1985-97 muito além da escolaridade ou da formação profissional,
Em porcentagem que se estabelece nos processos produtivos, no interior
São Paulo Distrito Federal Porto Alegre Curitiba de uma sociedade regida pelo valor de troca e fortemente
Anos (1) (1) (2)
marcada por valores culturais que possibilitam a forma-
Mulher Homem Mulher Homem Mulher Homem Mulher Homem ção de preconceitos e desigualdades. Isso quer dizer que
1985 15,5 10,1
os conhecimentos adquiridos pelo trabalhador através de
1986 12,7 7,6 diferentes processos e instituições sociais – família, es-
1987 12,2 7,3 cola, empresa, etc. – somados às suas habilidades, tam-
1988 12,1 8,1 bém adquiridas socialmente e acrescidas de suas caracte-
1989 10,6 7,5
rísticas pessoais, de sua subjetividade, de sua visão de
1990 12,1 9,1
mundo, constituem um conjunto de saberes e habilidades
1991 13,0 10,8
1992 17,1 13,9 17,8 13,7 16,4 12,5 que significa, para ele, trabalhador, valor de uso, que só
1993 16,3 13,4 17,6 13,0 14,3 10,7 se transforma em valor de troca em um determinado mo-
1994 16,4 12,7 17,0 12,6 13,2 10,0 mento histórico se reconhecido pelo capital como sendo
1995 15,3 11,8 17,3 14,4 12,9 9,2 12,2 9,8 relevante para o processo produtivo.
1996 17,2 13,5 19,1 15,0 14,1 12,4 14,4 12,1
O reconhecimento do grau de qualificação do trabalha-
1997(3) 18,8 13,8 19,9 15,6 16,1 12,8 16,5 13,1
dor pelas empresas se dá através de sua particular inclu-
Fonte: SEP. Convênio Seade-Dieese, Ipardes, Sert/Sine-PR, FEE, FGTAS/Sine-RS e GDF
(Codeplan e STB). Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED. são em diferentes níveis hierárquicos e salariais, em dife-
(1) A pesquisa inicia-se em 1992.
(2) A pesquisa inicia-se em 1995. rentes formas de relações empregatícias como trabalho
(3) Dados referentes ao mês de junho. assalariado (com ou sem registro), trabalho terceirizado,
contratos temporários, trabalho sem remuneração. A qua-
TABELA 13 lificação assim compreendida expressa relações de poder
Taxas de Desemprego, segundo Sexo e Tipo de Desemprego no interior dos processos produtivos e na sociedade; im-
Região Metropolitana de São Paulo – 1989-1997 plica também o reconhecimento que escolaridade e for-
Em porcentagem mação profissional são condições necessárias, mas insufi-
Sexo e Tipos de Desemprego 1989 1996 1997 cientes, para o desenvolvimento social. Isso porque se sabe
que somente políticas e ações concretas, que possibilitem
Mulheres 10,6 17,2 48,3 real desenvolvimento social e econômico (distribuição de
Desemprego Aberto 8,2 12,5 12,9 renda, reforma agrária, reforma do sistema de saúde e edu-
Desemprego Oculto 2,5 4,7 5,4 cacional), podem estar superando desigualdades e cons-
Homens 7,5 13,5 14,2 truindo condições sociais que redundam em cidadania. E
Desemprego Aberto 5,4 8,1 8,4
só encontram sentido social no interior de um projeto de
Desemprego Oculto 2,1 5,4 5,8
desenvolvimento econômico que possibilite direitos so-
Fonte: SEP. Convênio Seade-Dieese. Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED. ciais, entre eles, o trabalho. Nesse contexto, educação tor-

79
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

na-se fundamental como um fim em si mesma, como con- DOWBOR, L.; IANNI, O. e RESENDE, E.A. (orgs.). Desafios da globalização.
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lhe uma outra característica, menos espetacular porém mais importante, sem Paris, 1997.
dúvida. (...) Não para banalizar a gravidade do desemprego. Contudo, enfatizar
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81
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

AÇÕES EMPRESARIAIS
E FORMAÇÃO PROFISSIONAL
Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial

CARMEN SYLVIA VIDIGAL MORAES


Professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

Resumo: Examinam-se as ações institucionais de ajuste do “modelo de educação profissional” do Sistema


Nacional de Aprendizagem Industrial - Senai às mudanças em curso na economia e no sistema educacional
brasileiro. As reformulações na política interna da agência estão definidas no seu Plano Estratégico para o
qüinqüênio 1996-2001. Embora a análise priorize as modalidades de cursos ofertados aos trabalhadores do
ramo metalúrgico, a abrangência das informações levantadas permite abordar o panorama geral da formação
profissional realizada na instituição e apontar problemas comuns às políticas formativas.
Palavras-chave: ensino-aprendizagem; formação docente; educação e trabalho.

N
as últimas décadas, em um contexto de crise eco- cação nacionais. Esse novo paradigma, alinhado ao qua-
nômica e globalização dos mercados, de mudan- dro mais geral das reformas de Estado e ao modelo de
ças nos padrões tecnológicos e organizacionais, desenvolvimento em curso, propõe como objetivo prio-
a educação readquire importância central nas políticas go- ritário da educação nacional o investimento na melhoria
vernamentais e no discurso do empresariado. da qualidade da mão-de-obra para o mercado, ao mesmo
Não só no Brasil ou em outros países periféricos, mas tempo que concebe a formação profissional como elemen-
também nos países centrais do capitalismo, a educação to constitutivo de uma política de emprego.
aparece relacionada a um conjunto de preocupações de No Brasil, no que diz respeito às modalidades de edu-
ordem particularmente econômica e é convertida em res- cação para o trabalho não vinculadas aos sistemas públi-
posta estratégica às necessidades impostas pelas acelera- cos de ensino, consolidou-se historicamente o monopó-
das mudanças tecnológicas, pela nova ordem de compe- lio do ensino profissional pelo empresariado. O Serviço
tição internacional. Nacional de Aprendizagem Industrial – Senai, institui-
A emergência dos “novos modelos produtivos” susci- ção criada há 58 anos, constitui, hoje, ao lado do treina-
tou acirrado debate sobre os novos requisitos de qualifi- mento nas empresas, a principal opção nacional para tra-
cação para o trabalho, provocou reformulações no con- balhadores jovens e adultos empregados.1
ceito tradicional de formação profissional e tem levado a O artigo examina as ações institucionais de ajuste do
tentativas de redefinição das atribuições sociais da edu- “modelo de educação profissional” do Senai às mudan-
cação escolar, ao estabelecimento de “relações orgânicas ças em curso na economia e no sistema educacional bra-
entre escola e empresa” (Tanguy, 1986). sileiro. As reformulações na política interna da agência
No caso dos países latino-americanos, em processo de estão definidas no seu Plano Estratégico para o próximo
ajustamentos econômicos ao novo padrão de acumulação, qüinqüênio (1996 a 2001).
um “novo” paradigma educacional, construído a partir das Embora a análise privilegie as modalidades de cursos
orientações de organismos internacionais, como o Banco ofertados aos trabalhadores do ramo metalúrgico, a abran-
Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento gência das informações levantadas permite abordar o pano-
(Bird), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) rama geral da formação realizada na instituição e, resguar-
e a Cepal/Unesco, conforma as agendas dos governos da dadas as especificidades das áreas de profissionalização,
região, definindo metas e objetivos aos sistemas de edu- apontar problemas comuns às políticas formativas.

82
AÇÕES EMPRESARIAIS E FORMAÇÃO PROFISSIONAL: SERVIÇO NACIONAL...

SENAI: ESTRUTURA E ORGANIZAÇÃO que a maior proporção de atendimentos se realiza no setor


metalmecânico, seguido do eletroeletrônico.
Projeto longamente acalentado por importante facção Apresenta duas vertentes de “atendimento às empresas
da elite empresarial paulista, o Senai é criado no governo e à comunidade”: a Educação Profissional e a Prestação de
de Getúlio Vargas, através do Decreto-Lei de 20 de janei- Serviços Técnicos e Tecnológicos direcionada também para
ro de 1942, 30 anos após a instalação das escolas profissi- empresas e comunidade. As diferentes modalidades de
onais oficiais, federais e estaduais. Suas atividades se ini- “educação profissional” – cursos regulares e livres, técni-
ciam em São Paulo, no mesmo ano, e tem como diretor o cos e de especialização – são ofertadas em suas próprias
engenheiro e professor da Escola Politécnica, Roberto unidades, nas empresas e nos sindicatos e organizadas de
Mange.2 Em 1946, o Decreto-Lei no 9.576 determinou que acordo “com o domínio de conhecimentos, habilidades e
o Conselho Nacional do Senai fixasse o número de apren- atitudes compatíveis com um determinado posto de traba-
dizes entre 5% e 15% dos trabalhadores das empresas as- lho qualificado” (Senai, 1997a).
sociadas, conforme as necessidades da indústria. Para a efetivação de seus serviços, o Senai dispõe de
O Senai é, desde sua fundação, financiado com recur- uma vasta rede escolar que inclui centros de tecnologia,
sos públicos: contribuição parafiscal de 1% sobre o total centros de educação profissional, centros de treinamen-
da folha de pagamento mensal das empresas, vinculadas to, unidades de treinamento operacional, agências de trei-
por lei à instituição. Empresas com mais de 500 empre- namento, agências de educação profissional, unidades mó-
gados recolhem um adicional de 0,2% sobre a folha de veis e unidades difusoras de informações, totalizando 934
pagamentos diretamente ao Departamento Nacional do unidades operacionais (627 administradas com recursos
Senai.3 próprios e 307 em parceria com empresas), distribuídas
As empresas contribuintes do Senai totalizam, em todo pelas diferentes regiões do país (Senai, 1997a; 1997b)5.
o Brasil, 359.446 estabelecimentos. Só no Estado de São Para atender às diversas demandas educacionais, o
Paulo, estão localizadas 91.953 empresas contribuintes que Senai, além do corpo administrativo e gerencial consti-
empregam 2.591.880 trabalhadores, aproximadamente 50% tuído de 5.765 pessoas, possui 6.275 professores e 2.311
do total da força de trabalho empregada no setor industrial técnicos, dos quais aproximadamente 60% estão na re-
do país.4 gião Sudeste. 6
Embora mantido com recursos públicos, a gestão do Apesar de, recentemente, ter iniciado reformas para
Senai é de natureza privada. Apenas as federações e con- implantação de uma administração mais participativa, tra-
federações empresariais têm ingerência efetiva na defini- ta-se de uma organização de gestão altamente centraliza-
ção de suas políticas de formação e em sua gestão admi- da nos processos decisórios. As orientações pedagógicas
nistrativa. são deliberadas no plano da Administração Central, ou-
Ele organiza-se em dois blocos fundamentais: de um vidas as escolas e com base em pesquisas realizadas sis-
lado, os órgãos normativos da instituição, compostos pelo tematicamente pelo Centro Internacional para a Educa-
Conselho Nacional e pelos conselhos regionais; de outro ção, Trabalho e Transferência de Tecnologia (Ciet) e
lado, os órgãos de administração, representados pelo De- alguns departamentos regionais (São Paulo e Rio de Ja-
partamento Nacional e 27 departamentos regionais. É fun- neiro, por exemplo), incluindo-se os Cenatecs, que dis-
ção do Departamento Nacional coordenar a execução da ponibilizam informações para todo o sistema Senai. É
política e das normas definidas pelo Conselho Nacional, importante observar que o Senai dispõe do único obser-
organizando/orientando o conjunto dos departamentos re- vatório de situações de emprego e formação profissional
gionais que, por sua vez, são os responsáveis diretos pela do país, ainda que dirigido para o estudo e atendimento
implementação dos programas de educação profissional. das demandas pontuais de suas empresas contribuintes.
Considerado a maior rede de ensino privado do país, em
termos de formação, especialização e aperfeiçoamento da O SENAI E AS MUDANÇAS
mão-de-obra, atua em diversas áreas, entre as quais desta-
cam-se: alimentos, artes gráficas, cerâmica, confecção, As alterações nos perfis dos trabalhadores provocadas
construção civil, eletroeletrônica, informática, instrumen- pelas mudanças nos processos produtivos e na organiza-
tação, mecânica, mobiliário, petroquímica, plásticos, refri- ção do trabalho e, em decorrência, as novas e crescentes
geração, soldagem, têxtil e outras. É importante assinalar demandas pela reformulação dos programas e currículos

83
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

da formação profissional induzem o Senai a realizar uma mos multilaterais “podem apoiar a mudança mas não
série de reformulações internas com o objetivo de resguar- promovê-la”, o que “requer um diálogo íntimo e cons-
dar “a sintonia com o mercado de trabalho”.7 tante por parte dos interessados”. É essencial “estabele-
É importante ressaltar as tensões provenientes das críti- cer confiança entre o Banco e seus sócios” e, em espe-
cas realizadas pelos organismos internacionais – como o cial, “prestar mais atenção no papel dos Ministérios do
Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento Trabalho, que na maioria dos países exercem função re-
(Bird), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), guladora dos institutos de formação”. Mas, uma vez cons-
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe truída a legitimidade da reforma, os empréstimos estarão
(Cepal) e seus consultores brasileiros sobre o “envelheci- precedidos da realização, pelas instituições tradicionais
mento” e desatualização da instituição ante as novas “con- de formação profissional, de “uma análise institucional
dições do mercado”. Cláudio Moura Castro, um dos princi- cuidadosa” e do “estudo da factibilidade política de dife-
pais representantes do “pensamento único” na educação rentes cenários para efetuar mudanças. Não menos im-
brasileira, ex-consultor do Bird e, hoje, conselheiro-chefe portante é a análise do mercado de capacitação...”.
do BID, avalia em documento recente sobre as estratégias João Batista de Oliveira, outro conhecido consultor do
do Banco na área da capacitação a necessidade urgente e Bird,8 ainda em 1995, no seminário internacional organi-
inadiável da reforma do Senai, no Brasil, e de suas congêne- zado pela Fiemg, afirma a impossibilidade de o governo
res latino-americanas: “Há 20 anos eram o orgulho da Amé- ser capaz de resolver “todos os problemas da nação”, até
rica Latina; um sistema de instituições ricas e bem adminis- mesmo “problemas tão agudos como o da educação bási-
tradas, em agudo contraste com a pobreza e mediocridade ca”. Na área da educação e da formação profissional, “que
das escolas de ensino acadêmico. Entretanto, a partir das cri- se tornaram imbricadas”, cabia à sociedade organizada e,
ses econômicas da década de 70 começaram a experimentar de modo particular, ao setor empresarial, um papel fun-
dificuldades para colocar seus egressos e foram lentas em damental: “não se trata apenas de gerenciar recursos do
adaptar-se às novas circunstâncias. Além do mais envelhe- governo, trata-se de participar coletivamente na defini-
ceram, não reagiram com rapidez e, em alguns casos, foram ção de políticas, no custeio e também na gestão desses
infiltradas pela politização e sindicalização de seus empre- sistemas” (Oliveira, 1995).
gados. Desmoralizaram-se cada vez mais e passaram a ser Evidencia-se claramente uma reconceituação da for-
percebidas mais como um problema do que uma solução. A mação profissional e a redefinição das atribuições da edu-
terceirização e outras mudanças econômicas provocaram cação escolar no seu conjunto. E, nesse processo de ajus-
erosão nas suas fontes financeiras. Não há soluções fáceis tamento do ensino a necessidades do mercado do trabalho,
para as instituições que enfrentam os problemas mais gra- propõe-se a aproximação entre a empresa e a escola pelo
ves, pois conservam força política e resistem a toda tentati- envolvimento ampliado do empresariado tanto na defini-
va de modificá-las ou fechá-las. Sua reforma constitui um ção dos rumos e do financiamento da formação profissio-
grande desafio para o BID” (Moura Castro, 1999). nal, no acompanhamento das escolas do Senai, como nas
No mesmo documento, indicando a “experiência con- demais questões sobre educação básica – fundamental e
siderável do Banco em formação profissional e técnica”, média. Considera-se vital “oferecer subsídos ao governo
esse consultor salienta o apoio da agência financeira aos federal para a reformulação da legislação de aprendiza-
“sistemas tradicionais” de formação profissional do tipo gem e financiamento da formação profissional” (Olivei-
Senai/Sena/INA como uma linha de projetos prioritários, ra, 1995).9
ao lado do apoio às escolas técnicas, consideradas como Como é possível verificar, as propostas dos organis-
“uma área tradicional que cresceu em importância com a mos internacionais que orientam tendencialmente as re-
ênfase recente colocada no ensino secundário pelos paí- formas educacionais dos países latino-americanos e, em
ses membros”. Nessa medida, o financiamento da refor- particular, as do nosso país incidem sobre o conjunto do
ma dessas instituições é considerado prioridade estraté- sistema educacional, integrando e definindo as atribuições
gica “número um” para a consecução do “objetivo das instituições de diferentes tipos, níveis e modalidades
comum” de ajustamento da formação profissional às ne- de ensino, das redes públicas e privadas. Ou seja, mais
cessidades do mercado. especificamente, só podemos apreender o significado das
Assim, para o conselheiro do BID, é preciso delimitar mudanças nas políticas públicas se analisarmos sua rela-
as táticas e os espaços de atuação do Banco. Os organis- ção com as mudanças desenvolvidas no Senai.

84
AÇÕES EMPRESARIAIS E FORMAÇÃO PROFISSIONAL: SERVIÇO NACIONAL...

Nessa perspectiva, o referido consultor aprecia positi- ministração pelo Estado. Se o primeiro é inevitável, o se-
vamente as diretrizes propostas pelo Ministério da Edu- gundo pode, para garantir a eficiência da gestão, ser evi-
cação e Cultura para a “reconversão das escolas técnicas”, tado. Ao contrário dos EUA, onde grandes empresas como
as quais seriam regulamentadas pelo Decreto no 2.208/97 a Boeing, Caterpillar e os principais fabricantes de auto-
que introduziu na rede pública as principais inovações já móveis estão passando cada vez mais suas atividades de
adotadas pelo Senai no seu sistema de aprendizagem. Ou formação a instituições públicas, “não há dúvida de que
seja, seguindo a direção apontada por essa agência, as na maioria dos países latino-americanos a formação pro-
escolas técnicas iriam, por um lado, separar o ensino aca- fissional deve continuar sendo administrada privadamen-
dêmico do ensino técnico-profissional e, de outro, intro- te”. Nesse sentido, segundo o autor, “o BID favorece di-
duzir o ensino modularizado: “repensar seu ensino pro- versas pautas organizativas para a ‘capilaridade’ dos
fissional a partir de categorias diferentes, tendo como sistemas”, a extensão do alcance da capacitação – ONGs,
parâmetros o perfil ocupacional e a demanda dos merca- instituições com fins lucrativos, etc. Para isso, sugere “a
dos de trabalho – e não os currículos montados a partir de liberação de licenças ou franquias (franchising), formal
disciplinas acadêmicas ou da disponibilidade de profes- ou metaforicamente”, como uma das possibilidades de
sores especializados”. Ao mesmo tempo, essas escolas, “combinar a perícia técnica das instituições tradicionais
excessivamente dispendiosas, deveriam “estabelecer par- com uma descentralização radical da formação e uma re-
cerias com o setor privado e ouvi-lo na determinação de dução de custos” (Moura Castro, 1999).
seus rumos”. Enfim, para “ajustar o currículo ao merca- Em resumo, na situação atual, “onde há maior exigên-
do”, é preciso “ajustar o corpo docente ao currículo” e cia de qualidade e quantidade”, “a marca Senai, Senac ou
“ajustar as escolas ao mercado” – e, nesse aspecto, tal das escolas técnicas” não é suficiente para sinalizar a qua-
como no Senai, “as escolas deverão passar a ter conse- lidade da formação profissional, tornando-se então neces-
lhos de administração formados pelos empresários da re- sário o desenvolvimento de mecanismos externos de ca-
gião”, para que possa “orientar seus rumos de maneira libração, como os sistemas de certificação profissional.
mais ajustada à realidade”, isto é, às demandas das em- Ou seja, multiplicam-se as habilidades requeridas, flexi-
presas locais (Oliveira, 1995).10 bilizam-se os currículos, programas e formas de treina-
A desvalorização do público passa pela sua redefinição mento. Daí a necessidade de “padronizar os mecanismos
conceitual, pela sua distinção do que é estatal. No entanto, de avaliação, aferição e de controle de qualidade”. No
na “nova” acepção, originária das teorias liberais conser- conjunto, “era necessário fazer uma revolução nas políti-
vadoras que elegem o mercado como instância estrita de cas, na filosofia e no financiamento e nas organizações
regulação da vida social, o público reduz-se basicamente responsáveis pela formação profissional e ensino técni-
aos interesses privados. Tal posição, na verdade, opõe-se co” (Oliveira, 1995).
àquela outra, defendida por setores sociais comprometidos A adoção de pressupostos dos organismos multilaterais
com a democratização da sociedade, que, no processo de na ordenação das políticas educacionais do país é, pois,
novo significado do público, critica justamente a privati- bastante clara. As preocupações com a identidade do ensi-
zação da esfera pública e reivindica a sua divulgação, isto no médio e a otimização da relação custo-benefício dire-
é, a existência de transparência nas políticas públicas, a cionaram o processo de reorientação desse nível do ensi-
participação dos coletivos sociais na sua definição, a ges- no básico que culminou na proposta de sua flexibilização.
tão pública dos fundos públicos, de modo a empreender Referenciando-se no Senai, o MEC promoveu a “deses-
uma forma de regulação democrática, negociada, pela qual colarização” do ensino técnico e determinou, nas institui-
os interesses econômicos e os direitos sociais são arbitra- ções públicas de ensino profissional, a oferta de cursos mo-
dos em seu próprio princípio público (Paoli, 1999). dulares de qualificação, de curta duração e completamente
Conforme o conselheiro-chefe do BID, em uma eco- dissociados da educação básica, destinados à população
nomia moderna, a soma das iniciativas privadas e disper- adulta de baixa escolaridade. Abre-se para as escolas téc-
sas – incluindo ONGs, cursos por correspondência, TV e nicas a perspectiva de, como o “Sistema S”, transformar
vídeos, “com alcances ilimitados ao ensino” – poderia ser suas atividades educativas em serviços a serem vendidos
várias vezes mais importante que a capacitação pública especialmente às empresas. Em resumo, a reforma não só
oficial. Na sua concepção, é preciso distinguir entre o fi- promove o desmonte do sistema público de ensino técni-
nanciamento público da formação profissional e sua ad- co como também estimula sua privatização.11

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

No caso específico do Senai, “instituição que provê pra- conhecem explicitamente que os recursos são públicos,
ticamente todos os cursos de aprendizagem no país”, Oli- provenientes de contribuição parafiscal da mesma nature-
veira (1995) enfatiza, entre as estratégias propostas: “ajus- za que o Salário Educação – outro dos recursos públicos
tar melhor os cursos ao mercado de trabalho, maior voltados para o ensino (fundamental). A grande discussão
flexibilidade institucional, ajustar melhor a dosagem de desloca-se, agora, para a questão da mudança na contri-
conteúdos teórico-práticos e desenvolver, no ensino prá- buição compulsória, “mudança interpretada como amea-
tico, habilidades básicas de que carece a grande maioria ça à sobrevivência do Sistema”, e para o desenvolvimento
da força de trabalho formal e informal”. Para isso, torna- de outras formas de financiamento da instituição.
se fundamental “uma profunda revisão no conceito e uti- Apesar das incertezas que cercam o debate do tema, o
lização das séries metódicas”, além da “capacidade de pro- Senai considera que, entre os empresários, prevalece a
duzir cursos de alta qualidade associada a uma distribuição idéia da permanência do atual sistema de contribuição
de ensino cada vez mais próxima da clientela”. O consul- compulsória, baseado na folha de pagamentos. A auto-
tor sugere, então, “uma cadeia de franchising de produ- sustentação, total ou parcial, já é considerada como meta
tos padronizados de alta qualidade sobretudo para os cur- da instituição e algumas medidas são indicadas para sua
sos mais simples”, o que implica “importantes mudanças implementação: cobrança pelos cursos, assistência técni-
na forma de conceber a função e estrutura de órgãos como ca, consultoria, serviços em laboratórios, emissão de cer-
o Senai, Senac e Sesi”. tificados de qualidade, aluguel de instalações, entre ou-
Nessas condições, seguindo as sugestões dos bancos, tras (Senai, 1997a).
o Senai realizou, no mesmo ano de 1995, uma ampla son- Quanto à educação para o trabalho há, no plano discur-
dagem para verificar, junto aos funcionários, as perspec- sivo, consenso sobre o Senai das prioridade à educação
tivas das mudanças a serem realizadas na instituição. Fo- profissional e a rede pública/privada, inclusive o Sesi, pri-
ram ouvidas, também, opiniões de “seus interlocutores vilegiar a educação geral. Entretanto, o Senai deve ter um
externos” – empresários, representantes do governo, re- papel ativo na definição das políticas educacionais, tanto
presentantes das organizações de trabalhadores, da uni- nacionais (com ênfase na atuação junto aos Ministérios
versidade, ex-alunos e agências financiadoras da forma- da Educação, do Trabalho e da Ciência e Tecnologia) quan-
ção profissional. Segundo a instituição, os resultados da to estaduais (onde as relações com as Secretarias de Edu-
sondagem subsidiaram a elaboração de um plano de re- cação devem ser estreitadas) (Senai, 1996).
formas que começou a ser implementado em 1996.12 Recomenda-se, com o objetivo de “estreitamento das
relações entre os sistemas de educação básica e de educa-
A REFORMULAÇÃO DO MODELO DE ção profissional”, a realização de parcerias que dêem pri-
FORMAÇÃO PROFISSIONAL DO SENAI oridade ao Sesi e entidades públicas e privadas. Propõe-
se, também, a participação do Senai nos Conselhos
A discussão interna realizada pelo Senai sobre o(s) Estaduais de Educação e nos Conselhos Universitários.
modelo(s) de formação profissional aponta, como já se Ao mesmo tempo, considera-se a necessidade da criação
observou, a necessidade de ampliação dos seus campos de comissões temáticas sobre educação na Federação das
de atuação. Ante a tendência do setor industrial em ter- Indústrias.
ceirizar suas atividades, propõe-se que “os setores não- A reestruturação do Modelo de Formação do Senai –
industriais sejam atendidos quando estiverem relaciona- prioridade estratégica apontada por todos os departamen-
dos com a produção industrial”. Nesses casos, “seriam tos regionais em função das “transformações socio-
efetuadas parcerias e seriam cobrados os serviços presta- econômicas e educacionais do país” – torna-se diretriz do
dos pelo Senai” (Senai, 1997a). Departamento Nacional e integra projetos de âmbito na-
A prioridade é atribuída às empresas contribuintes, mas cional e regional. Tendo em vista a multiplicidade de de-
o atendimento às demais é visto como “fonte de receitas mandas, considerou-se fundamental, para dinamizar e dar
alternativas”. Nessa mesma perspectiva, inclui-se o aten- flexibilidade ao atendimento da instituição, “a realização
dimento às micros e pequenas empresas. periódica de estudos e pesquisas para identificar e inter-
Embora ainda perdure a polêmica sobre a origem dos pretar as demandas por educação profissional, assistên-
recursos que mantêm o Senai, documentos elaborados pelo cia técnica e tecnológica e para análise de tendências de
seu Departamento Nacional e por várias regionais já re- mercado, conferindo, dessa forma, maior rigor e precisão

86
AÇÕES EMPRESARIAIS E FORMAÇÃO PROFISSIONAL: SERVIÇO NACIONAL...

na identificação da demanda”. Os canais considerados gundo o Relatório do Senai, de um projeto estratégico do


privilegiados foram: sistema de acompanhamento de ex- Departamento Nacional, de âmbito regional (Sudeste), que
alunos junto ao mercado; pesquisa baseada em dados se- tem como objetivo “aperfeiçoar o modelo de formação
cundários; estudo de mercado com foco nas empresas e profissional da instituição, proporcionando aos alunos,
auto-emprego. Nessa direção, os estudos desenvolvidos além da qualificação técnica, o domínio de determinadas
pelo Senai-SP, Senai-RJ e Ciet, pela importância e abran- qualificações-chave necessárias para os desafios do mundo
gência qualitativa dos resultados obtidos, são particular- do trabalho” (Senai, 1997b).
mente relevantes para a compreensão da natureza da re-
formulação empreendida nos processos formativos da O SISTEMA DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL
instituição (Moraes e Ferretti, 1999). DO SENAI-SP
No âmbito dos aspectos metodológicos, em sintonia
com as recomendações dos consultores do Bird e BID, as A partir dos resultados da pesquisa/diagnóstico sobre
indicações foram no sentido de “adaptar a educação pro- o mercado de trabalho em São Paulo, o Senai-SP elabo-
fissional às demandas do mercado”, para: “reestruturar o rou projeto de organização do Sistema de Formação Pro-
conteúdo programático; reformular a metodologia; requa- fissional que pretende, basicamente, articular as ações de
lificar docentes e técnicos; atualizar material didático e formação já realizadas numa nova dinâmica e numa nova
equipamentos”. Considerou-se fundamental “deixar de estrutura curricular.
agir com visão de tarefa e atuar/agir com visão de pro- A pesquisa, realizada com o objetivo de complementar
cesso”, desenvolvendo currículos modularizados que tor- as informações levantadas pela Pesquisa Industrial de
nem viáveis “entradas e saídas entre escola/mercado, iti- Amostragem (Piam),14 forneceu subsídios para a constru-
nerários individualizados e atendimento a toda uma família ção dos novos perfis profissionais e a revisão dos cursos e
ocupacional”. Enfatiza-se a necessidade de mudança “na- currículos na área metalmecânica, de eletroeletrônica e de
quela que seria a mais importante metodologia da insti- metalurgia e exigiu aprofundamento e revisão do referen-
tuição – as Séries Metódicas Ocupacionais (SMOs)”. cial teórico.15 Em consonância com o processo de refor-
Conforme os relatórios do Senai, “atualizadas e revistas, mulação conceitual orientado pela Secretaria Nacional de
as séries metódicas ocupacionais constituir-se-iam em Formação (Sefor), do Ministério do Trabalho, redefiniu-se
recurso de grande significação para a formação profissi- o conceito tradicional de formação profissio-nal, revisou-
onal, notadamente na formação de trabalhadores dotados se noções como ocupação, qualificação e competência, ao
de habilidades de manipulação de máquinas e ferramen- mesmo tempo que se introduziu o uso de novas expressões
tas. Atualizadas, portanto, com base em novos estudos para designar as novas relações de trabalho em curso, tais
ocupacionais, seriam reeditadas mediante a utilização de como empregabilidade e trabalhabilidade.
novos recursos didáticos” (Senai, 1996). O Senai entende que um modelo de formação profissio-
Com o objetivo de “elevar a competência técnica dos nal adequado a uma realidade em constante mutação é aque-
seus recursos humanos e a capacidade de assimilar e di- le que responde às exclusividades regionais e à necessida-
fundir novas tecnologias”, o Senai tem ampliado as par- de de os indivíduos poderem construir sua formação no
cerias no plano internacional. Essas parcerias, estabele- decorrer do tempo, “agregando novos conteúdos que am-
cidas por cooperação entre governos, envolvem, entre pliem suas competências e que facilitem sua inserção e
outros, países como Alemanha, Canadá, França, Espanha, permanência no mercado de trabalho” (Senai, 1997b:3).
Israel, Japão, Portugal, Suécia e Suíça (Senai-SP, 1997b). Dessa maneira, conforme documentos analisados e en-
Na França, as relações com a Association Nationale pour trevistas realizadas, a reformulação do modelo Senai-SP
la Formation Professionnelle des Adultes (AFPA), do Mi- de formação profissional objetiva propiciar e aumentar as
nistério do Trabalho, Emprego e Formação Profissional, condições de empregabilidade dos trabalhadores por meio
o principal instituto de formação daquele país, propicia- de educação continuada. As novas condições do mercado
ram o aprendizado da organização de cursos modulariza- de trabalho deveriam impor uma mudança de foco do em-
dos para a construção de itinerários formativos. Outro prego para a empregabilidade. A instituição entende em-
desses programas, destinado prioritariamente aos docen- pregabilidade como “a capacidade de um profissional con-
tes de formação especial, consiste na disseminação do tinuar apto a permanecer no mundo do trabalho, mesmo
Modelo Petra de formação profissional.13 Trata-se, se- com as mudanças contínuas que o têm afetado. Esse con-

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

ceito está muito ligado à idéia de que “a competência é o Ferretti, 1999; Deluiz, 1996; Moraes et alii, 1998). Ori-
capital do trabalhador”, significando que só quem é capaz ginária do discurso empresarial e, portanto, marcada
de aprender continuamente terá, no futuro, trabalho e re- política e ideologicamente por sua origem, substitui –
muneração (Senai, 1997b:3). num contexto de crise do modelo taylorista/fordista –
Baseado nos pressupostos teóricos fornecidos pela Te- o conceito de qualificação (um dos conceitos-chave da
oria do Capital Humano, uma exclusividade das Teorias sociologia do trabalho francesa). Há alguns anos, nos
(marginalistas) do Desenvolvimento, em voga no final dos países onde se desenvolveu o Estado do Bem-Estar –
anos 60 e 70 e, hoje, retomada com particular ênfase nas como a França, Inglaterra e Alemanha, por exemplo –
análises econômicas da educação, o conceito de emprega- falava-se de qualificação. E essa noção se relacionava
bilidade remete ao trabalhador a responsabilidade pela sua àquela de negociação social, de convenção coletiva de
situação de emprego ou desemprego. Nessa abordagem, a trabalho. Agora, com os novos modelos de organiza-
educação/formação profissional é vista como o instrumen- ção industrial e a introdução da automatização de base
to de construção da empregabilidade, da conformação das microeletrônica, fala-se de competência e se considera
competências – capital humano valorizável no mercado. o indivíduo no trabalho. Nesse quadro, as empresas pas-
De acordo com o Senai, empregabilidade “não é um sam a usar e adaptar as aquisições individuais de for-
conceito fechado”. Ao contrário, vem passando por refor- mação, sobretudo escolar, em função de suas exigên-
mulações constantes: “Para alguns, o que se impõe é ir além cias. A aprendizagem é orientada para a ação, e a
da empregabilidade e garantir a trabalhabilidade aos indi- avaliação das competências baseia-se nos resultados
víduos, isto é, torná-los aptos ao desempenho de ativida- observáveis, verificáveis. A tendência é lhe atribuir o
des com ou sem vínculo empregatício” (Senai, 1997b). Em sentido de performance individual, de desempenho ve-
outras palavras, em um mercado onde a ênfase é dada à rificável em situações e trabalhos específicos, o que
redução dos custos do capital e se flexibilizam as relações indica um deslocamento importante em direção à indi-
de trabalho, a orientação é a de se construir um modelo vidualização crescente de apreciação dos assalariados.
aberto, não apenas direcionado para o emprego. Para apreciar a extensão dessa problemática, seria opor-
Nessa mesma direção, as mudanças no mercado tornam tuno citar o Livro Branco da Comissão Européia que apre-
indispensável a reformulação do conceito de “ocupação”, senta uma alternativa ao modelo atual, ainda vigente na
base do planejamento educacional do Senai. Se, tradicio- grande parte dos países da União Européia, distinguindo
nalmente, ele é definido como “um conjunto de postos de um sistema voltado para o passado e outro voltado para o
trabalho agrupados por semelhanças de suas tarefas prin- futuro. Ele opõe, assim:
cipais”, atualmente, a partir das novas demandas do mer- - qualificação concebida como um conjunto de compe-
cado por um trabalhador “versátil”, “com livre trânsito tanto tências fortemente articuladas entre elas, ligadas a iden-
intra como interempresas”, não mais formado “para exer- tidades profissionais fortes e a uma lógica de ramos e de
cer qualificações fixas”, o novo conceito de ocupação pas- níveis formativos, à qualificação como combinatória in-
sa a ser entendido como: “um conjunto de competências dividual de competências construídas graças às formações
comuns mobilizadas no desempenho de atividades para a modulares;
elaboração de um produto ou serviço” (Defune, 1997). - a autonomia profissional, ligada a um certo tipo de or-
Tal compreensão informa a metodologia da pesquisa. Na ganização do trabalho, à autonomia como faculdade de
análise da estrutura ocupacional do mercado de trabalho em adaptação permanente por iniciativa pessoal;
que o Senai atua, utilizaram-se os dados reorganizados de - uma transmissão essencialmente estruturada de conhe-
maneira a constituir famílias ocupacionais, “conceito mais cimentos à aquisição de saberes em situação.
abrangente que o de posto de trabalho”. O profissional pro- Em resumo, o livro opõe um modelo do passado, base-
curado hoje “tem de ter competências diversas para atuar em ado na dimensão coletiva da competência, ao modelo do
diversos postos de trabalho e é condição que ele conheça, se futuro, apoiado na sua dimensão individual. De acordo com
possível, todo o processo produtivo...”.16 certos autores (Merle, 1997; Joubier, 1997), essa oposição
A conformação das famílias ocupacionais pressupõe, sistemática parece excessiva e coloca problemas para o meio
por sua vez, clara definição do que seja competência. sindical: como integrar as competências dos trabalhadores
A noção de competência não é originária do campo da de uma empresa em uma lógica coletiva? Como combinar
educação, mas dos negócios (Hirata, 1994, 1997; o aumento desejável da autonomia dos indivíduos e a ne-

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AÇÕES EMPRESARIAIS E FORMAÇÃO PROFISSIONAL: SERVIÇO NACIONAL...

cessidade crescente de referências obrigatoriamente cole- balho, em São Paulo, informa o novo modelo de forma-
tivas? Em outras palavras, como as competências são cons- ção profissional.18 De acordo com o Relatório do Senai,
truídas e avaliadas? Quais são os critérios de julgamento? os dados indicam, em termos tendenciais, que a configu-
Como e por quem as competências são validadas, certifi- ração tradicional do mercado de trabalho paulista não se
cadas? As empresas não correm o risco de julgar os indiví- alterou substancialmente e que o processo em curso de
duos em função de seus objetivos próprios? reestruturação produtiva apresenta-se de forma bastante
O Senai-SP não ignora a polêmica conceitual. Mas en- parcial e heterogênea, estando longe de corresponder a
tende que há convergências nessas posições: “a noção de uma transformação radical e sem contradições, rumo ao
competência no mundo do trabalho se situa ‘entre os sa- paradigma “pós-fordista”. Com base nessas indicações,
beres e as habilidades concretas; a competência é insepa- o Senai-SP concluiu, por um lado, que todas as modali-
rável da ação, mas também exige conhecimento’. Ou seja, dades de formação devem ter seu lugar no âmbito da ins-
competência é saber fazer e também saber por que fazer”. tituição: se as inovações não acontecem igual e simulta-
Considera importante, na elaboração de currículos e pro- neamente em todos os segmentos do sistema produtivo e
gramas educacionais, diferenciar competências do traba- tampouco em todas as regiões, “modalidades mais anti-
lho de competências pedagógicas ou, como preferem al- gas de formação profissional podem estar superadas em
guns, competências reais de típicas: “Estudos, pesquisas certos segmentos, mas permanecem atuais em outros”. Por
e observações da realidade das empresas trarão informa- outro lado, sobre o conteúdo dos programas, traduz como
ções sobre as competências reais ou do trabalho. As com- expectativa das empresas “que o foco da formação deixe
petências típicas ou pedagógicas são a tradução que os de concentrar-se em uma ocupação específica e propicie
especialistas fazem delas de modo a estruturar se ensino uma formação mais geral, trabalhando atitudes, relações
e aprendizagem” (Senai, 1997c) . humanas, capacidade de análise, modelos de organização
Nesse ponto, o Senai indica que assimilou o modelo do trabalho, ampliando os conhecimentos de informática
escolar da competência. Desde os anos 80, uma série de e diluindo as fronteiras entre as áreas ocupacionais”. De
iniciativas nos países centrais e, que chegam agora ao Bra- acordo com o Senai-SP, “o cliente não está preocupado
sil, dão forma a uma pedagogia da competência. Ou, como com que o profissional seja portador de um acúmulo de
bem descreve Tanguy (1994), a passagem de um ensino informações técnicas específicas, mas sim que ele conheça
centrado sobre saberes disciplinares a um ensino defini- o básico do processo”. Segundo a instituição, são três os
do para produzir competências verificáveis em situações aspectos ressaltados pelos entrevistados para aperfeiçoar
e trabalhos específicos. Assinala o momento das grandes a formação dos alunos: ampliação da formação básica;
avaliações nacionais, como o que estamos vivendo, todas ampliação e atualização do conhecimento técnico; desen-
com a mesma preocupação de proceder a partir de critéri- volvimento de atitudes pessoais.
os objetivos e de medir a capacidade dos alunos em efe- Para o Senai-SP, a elevação do nível dos cursos de for-
tuar uma operação ou um trabalho determinado em uma mação profissional deve provocar a elevação formal do
situação dada. No caso do ensino técnico, o diploma se requisito de escolaridade para sua realização; os pré-re-
apresenta como uma longa lista de competências a adqui- quisitos de ingresso definem o perfil de quem entra nos
rir, quer este certificado seja preparado em uma escola cursos. Baseiam-se em exigências educacionais que têm
técnica ou resultado de uma aprendizagem na empresa. como pressupostos os conhecimentos mínimos necessá-
Finalmente, afirma que nessa revisão de conceito, o rios para o ensino da teoria e das práticas profissionali-
de flexibilidade não está claro tanto na literatura especi- zantes. O processo de seleção é visto como indispensável
alizada como na fábrica. Se, para alguns, trabalhadores para que a agência garanta a oferta de formação compatí-
flexíveis e polivalentes seriam os multifuncionais, “ca- vel com o padrão de qualidade que o mercado de trabalho
pazes de executar alternadamente diferentes tarefas/ope- exige. Entretanto, segundo o Senai, a medida não provoca
rações”, para outros, “como Salm e Fogaça, a polivalên- maior elitização dos cursos, uma vez que a diversificação
cia refere-se ao maior envolvimento direto do trabalhador de programas formativos atenua a seletividade. Outros
em decisões que antes não lhe competiam” (Salm e Fogaça grupos da população (os de baixa escolaridade e os exclu-
apud Senai, 1997b).17 ídos do mercado formal) são atendidos em programas
Essa (re)definição conceitual e a leitura que ela per- menos caros e de curta duração, desenvolvidos em parce-
mite dos resultados da pesquisa sobre o mercado de tra- ria com empresas e a comunidade. A flexibilidade organi-

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

zacional que rege esses programas permite, a seu ver, do o Certificado de Aprendizagem Industrial. Após a rea-
compatibilizá-los com o nível educacional da demanda e, lização do período de prática profissional nas empresas o
assim, os objetivos e conteúdos curriculares são ajustados aluno receberá a Carta de Ofício. A próxima etapa para
ao nível socioeconômico e cultural dos participantes. Afir- alunos que completaram a formação básica pode ser a es-
ma que a ação do Senai nessa faixa é considerável, pois colha de uma qualificação ou a do percurso da formação
entende que os cursos/treinamentos industriais ministra- de técnico, no nível médio (ou 2o grau).
dos nas empresas e na comunidade teriam essas caracte- Na formação do técnico, assim como na formação bá-
rísticas e constituiriam 87% das matrículas em programas sica, estão previstas oportunidades de formação em de-
formativos em 1996 (Senai, 1997b). terminada profissão e em profissões correlatas, “sempre
Com base nas informações levantadas, estruturou-se o na busca da polivalência profissional”.
sistema de educação profissional do Senai-SP, cuja dinâ- O modelo prevê os chamados subsistemas de suporte
mica está baseada em três aspectos considerados inova- à educação profissional. No Sistema de Educação a Dis-
dores e que visam em conjunto uma economia da forma- tância, o candidato que demonstrar falta de algum tipo
ção profissional: o aproveitamento de estudos e de de conhecimento no exame de comprovação de compe-
experiências anteriores; a certificação de competências; tências poderá tentar adquiri-lo através da realização de
a modularização das programações (Senai, 1997d).19 estudos individualizados com material instrucional, sob
Afirmando atribuir prioridade à formação de pessoas que monitoria de uma escola da rede. O aluno poderá, por
ainda não ingressaram no mercado de trabalho, privilegian- exemplo, seguir o curso profissionalizante do Telecurso
do, portanto, a formação de jovens, define a educação con- 2000, desenvolvendo a prática profissional em oficinas e
tinuada como o eixo de sustentação do modelo, que ofere- laboratórios de escolas da rede. No Sistema de Certifi-
ce, também, a possibilidade de reconversão e requalificação cação, responsável por fornecer atestados de conclusão
a trabalhadores adultos, além das oportunidades de atuali- de cada módulo cursado, o aluno poderá ir colecionando
zação, aperfeiçoamento e especialização profissional. os certificados para compor seu percurso profissional no
Segundo o Senai, o modelo proposto, estruturado em ritmo que lhe for mais adequado.
currículos modulares, pretende oferecer programações Não é necessário enfatizar que a implementação do Sis-
que, num crescendo de formação, elevem o nível de com- tema de Educação Profissional pela Regional São Paulo
petência dos trabalhadores, desde um patamar em que tem implicações relevantes para todo o Sistema Senai, uma
ainda não dominaram habilidades básicas consideradas vez que, se tiver êxito, deverá referenciar a montagem do
pré-requisitos para a aprendizagem de competências pro- processo de formação em outras regionais, senão em to-
fissionais (Pré-formação), passando por uma formação das elas. No que se refere especificamente ao método de
considerada geral e introdutória para o desenvolvimento certificação ocupacional, definido pelo Senai como o re-
profissional posterior e permanente (Formação Básica) e conhecimento formal da qualificação profissional do tra-
atingindo patamar de sua formação em nível técnico (For- balhador, destinado a validá-la independentemente da for-
mação do Técnico). A proposta importante da formação ma como foi adquirida, a experiência de São Paulo poderá
básica é o oferecimento, ao aluno, de módulos destina- contribuir para ampliar a ação do Senai no atendimento
dos não apenas à formação em uma determinada profis- às demandas de mão-de-obra com programas de reconhe-
são, mas que enriqueçam essa formação com saberes, sa- cimento e validação de competências de trabalhadores não
ber fazer e saber ser, de outras profissões a ela só empregados, mas subempregados e desempregados,
relacionadas, as chamadas famílias ocupacionais. Na conforme seus objetivos.
verdade, a idéia central, de acordo com a instituição, é Nos últimos 20 anos, a OIT e o Cinterfor realizaram
permitir percursos de formação que visem a polivalên- inúmeros estudos sobre Certificação Ocupacional para de-
cia profissional. linear uma política para a América Latina sobre a maté-
Os concluintes da etapa de formação básica e de mais ria. Com a difusão de normas de qualidade como a série
um módulo, pelo menos, do nível de qualificação recebe- ISO 9000 e a ISO 14000, a certificação passou a ser uma
rão certificados que poderão valer como créditos nas eta- exigência internacional, e, como se viu, alguns países da
pas subseqüentes. Àqueles que possuírem a condição de Europa e os Estados Unidos realizam programas de edu-
empregado-aprendiz, nos termos da CLT, e que compro- cação profissional que já conduzem os egressos à certifi-
varem a conclusão do ensino fundamental, será concedi- cação profis-sional, uma vez que organismos oficiais li-

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AÇÕES EMPRESARIAIS E FORMAÇÃO PROFISSIONAL: SERVIÇO NACIONAL...

gados aos empregadores e empregados participam de todo nal de Certificação Profissional. A Secretaria de Forma-
o processo (Senai, 1995). ção Profissional (Sefor/Mtb) realizou, com o apoio da OIT
O modelo oficial de certificação de conformidade, e da assessoria do Cinterfor, um seminário internacional
utilizado hoje no Brasil, surgiu em 1973, a partir da sobre o tema que resultou na proposta de organização de
Lei no 5.966, que criou o Sinmetro. Nesse modelo, cabe um grupo tripartite, isto é, formado por representantes dos
ao Inmetro conceder a marca nacional de conformida- empresários, dos trabalhadores e do governo, com o ob-
de aos produtos. No entanto, diversos órgãos da socie- jetivo de elaborar um projeto piloto. A estratégia defini-
dade já praticavam, e ainda praticam, a atividade de da “seria partir das experiências de certificação já exis-
certificação fora do âmbito do governo. De acordo com tentes, basicamente as da Abraman, F. Odebrecht, Senac,
o Senai, apesar dos vários esforços realizados, o número Senai, as desenvolvidas no campo dos trabalhadores, ob-
de ocupações profissionais certificadas no Brasil é muito servatórios de emprego e se poderia incluir, também, o
pequeno se comparado aos países do Primeiro Mundo. Sine. Essas experiências iriam progressivamente sendo
Para essa instituição, o Programa Brasileiro de Qualida- harmonizadas até constituírem um sistema homogêneo,
de e Produtividade (PBQP), através do Subprograma IV mantendo as devidas diferenças e particularidades de cada
– Adequação dos Serviços Tecnológicos para a Qualida- setor” (Brigido, 1998).
de e Produtividade, o qual ela integra, propiciou a prepa- Apesar do mérito da proposta em organizar um grupo
ração de um sistema brasileiro de certificação, cujas nor- tripartite e procurar reunir experiências provenientes dos
mas dispõem sobre a conformidade de produtos, diferentes sujeitos sociais, sabe-se que essas iniciativas são
serviços, sistemas e pessoal, que considera coerente escassas na área governamental e que os trabalhadores pra-
com a atualidade. ticamente iniciaram o debate a respeito. Além disso, é im-
O Senai se coloca como um agente certificador cuja portante enfatizar que a elaboração negociada do projeto
experiência deve ser usada na montagem do sistema na- piloto de certificação não foi concretizada até agora, quase
cional de certificação. Nessa direção, segundo o De- três anos após ser anunciada. Nessas circunstâncias, não é
partamento Nacional, a instituição vem contribuindo difícil deduzir que as referências para o desenvolvimento
com o processo de Certificação Ocupacional, oferecen- do Sistema Nacional de Certificação serão provenientes das
do apoio à Associação Brasileira de Manutenção ações empresariais e, principalmente, do “Sistema S”.
(Abraman), à Associação Brasileira de Ensaios Não- Como tivemos a oportunidade de salientar, as matri-
Destrutivos (Abende), e à Fundação Brasileira de zes que orientam a revisão do modelo de formação/certi-
Tecnologia de Soldagem (FBTS) na certificação de ficação profissional realizada pelo Senai inspiram-se em
pessoal nas áreas respectivas. experiências européias, particularmente alemãs e france-
Hoje, o Sistema Senai tem implantado cinco Centros sas. Atualmente, após o programa Petra, na Alemanha, e
de Exame de Qualificação (Cequal), nas áreas de caldei- o ensino modular, na França, o modelo inglês de certifi-
raria, mecânica, eletricidade e ensaios não-destrutivos, dis- cação das competências tem atraído a atenção da institui-
tribuídos nos departamentos regionais do Senai do Rio de ção. A parceria, estabelecida com o British International
Janeiro e Bahia. Desde 1996 estão sendo implantados mais Training (BIT), intermediada pelo Conselho Britânico, tem
12 Centros de Exame de Qualificação, abrangendo tam- como principal objetivo “dotar o Senai-SP de condições
bém as áreas de soldagem, instrumentação e eletrônica e a metodológicas e técnicas para implantar o seu sistema
participação dos departamentos regionais de Minas Ge- institucional na área de certificação profissional e ser um
rais, Rio Grande do Sul, São Paulo e Espírito Santo. pólo difusor e multiplicador da concepção do modelo”.
Conforme o disposto no artigo 7o do Decreto 2.208/ Inclusive, “a instituição poderá colaborar com o Ministé-
97, que reformulou o ensino técnico de nível médio, a rio da Educação tanto na implantação do Sistema Nacio-
certificação por competências exigirá, para sua implan- nal de Certificação, quanto na definição da forma como
tação, que sejam realizados estudos de identificação do esse sistema pode se articular com os países-membros do
perfil e das competências necessários à atividade reque- Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai)”. O pro-
rida e que sejam ouvidos os setores interessados, traba- jeto piloto em desenvolvimento privilegiou a área de te-
lhadores e empregadores incluídos. lecomunicações (Senai, 1999).
Recentemente, o governo, impulsionado pelo Mercosul, Não deixa de despertar interesse essa recente opção do
iniciou o processo para elaboração de um Projeto Nacio- Senai em se aproximar do sistema inglês de formação pro-

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

fissional. Se, por um lado, sua procura e aproximação de aos operários progredir por etapas. Ao contrário de ou-
diversas experiências, particularmente dos países euro- tros sistemas de qualificação, o processo de aprendiza-
peus, baseadas em concepções teóricas e dinâmicas soci- gem não é considerado como central e seu conteúdo não
ais distintas, indicam um momento de insegurança e im- é preciso, levando-se em conta a capacidade de realizar
precisão conceitual, por outro lado, a escolha final do uma tarefa conforme a norma. A experiência profissional
modelo britânico sugere que essa busca pode estar termi- pode ser igualmente avaliada e contribuir para validar
nada, que a instituição, mais definida teórica e politica- unidades de competência, o que é designado como “vali-
mente, encontrou afinal os referenciais desejados. De fato, dar saberes adquiridos”. Em outros termos, tal como se
o desenho institucional de formação daquele país está, considera na França e é proposto pelo Senai aqui no Bra-
hoje, muito mais próximo, em termos de concepção, das sil, a competência pode ser legitimada na ausência de toda
metas empresariais e dos propósitos da agência que a fran- ação formativa ou de escolaridade. Na Inglaterra, há ain-
cesa ou alemã, por exemplo. da o agravante de não existir exames escritos e de estar
A partir dos anos 80, sob o governo conservador de delegada às hierarquias empresariais a atribuição de ava-
Margareth Thatcher, ocorreram importantes mudanças nas liar, além do “caráter extremamente inferior do primeiro
relações industriais acompanhadas de uma reforma radi- nível de competências certificado pelo sistema National
cal nas instituições de formação, consideradas bastante Council for Vocational Qualifications (NVCQ), sem equi-
polêmicas por sindicalistas (em particular, o sindicato ge- valente em outros países da Europa” (Rainbird, 1995).
ral da metalurgia Amalgamed Engineering Union (AEU), De acordo com Rainbird, os novos modos de repre-
com 700 mil associados) e pesquisadores britânicos. Se- sentação instaurados fizeram prevalecer o ponto de vista
gundo alguns dos especialistas, “as instâncias de regula- do patronato na elaboração das normas (oficiais) de com-
ção existentes foram suprimidas e o governo parou de petência e essas normas “estão mais adaptadas às exigên-
intervir diretamente nas políticas de formação das empre- cias a curto prazo que às necessidades futuras da produ-
sas, marcando assim a passagem de um sistema paritário ção”. Além disso, são utilizados procedimentos da análise
a um regime neoliberal”. E, “as novas instituições, cria- funcional (e behavioristas) na definição e na validação
das na escala local, extinguiram um modelo fundado so- das competências, o que acentua, ainda mais, os seus li-
bre a ‘negociação social’ para dar mais peso ao patrona- mites. E, uma vez que o taylorismo repousa sobre méto-
to” (Rainbird, 1995). dos da análise funcional, a autora considera, juntamente
Tal como no Brasil, as formas, os lugares e os conteú- com Fuller, que “a adoção, na empresa, de um sistema de
dos da formação permanecem variáveis e muito depen- avaliação fundado na competência vem reforçar os méto-
dentes das características do mercado de trabalho e das dos de gerência científica muito mais que contribuir para
condições locais da oferta de formação. Em sua maioria, suprimi-los em benefício de um sistema de qualificações
os programas são definidos pelos empregadores (na es- mais elevadas” (Fuller apud Rainbird, 1995).20
cala individual ou de suas organizações). Em cada setor Não é difícil concluir que essa incorporação de mode-
industrial, as normas têm sido definidas pelas instâncias los não pode ignorar as especificidades da sociedade bra-
de dirigentes industriais (Training Agency), em que as po- sileira, cuja dramaticidade do alcance ou qualidade das
sições dos empregadores dominam fortemente, ainda que políticas sociais, da inexistência de relações democráti-
os professores e os sindicatos possam, quando convida- cas de trabalho e de negociações coletivas entre patrões e
dos, emitir seu ponto de vista (Tanguy e Rainbird, 1995). empregados nos diferentes setores econômicos e catego-
As formas de autoridade locais, fundadas na cooperação rias de trabalhadores, produziu, no caso da educação, al-
entre instâncias administrativas, Local Educationnal tos índices de analfabetismo e de baixa escolaridade, além
Authorities (LEA), em matéria de educação e nos acor- de um sistema previdenciário incapaz, entre outras coi-
dos entre empregadores/empregados sobre aprendizagem, sas, de tornar viável o seguro-desemprego tanto aos tra-
foram substituídas por quadros regulamentares nacionais balhadores desempregados de mais longa duração,21 como
em termos de certificação, notadamente (Rainbird, 1995). aos jovens com problemas de colocação profissional.
Para alguns autores, críticos do modelo, a instauração Nesses termos, em primeiro lugar a implantação do sis-
do novo sistema de qualificações profissionais visou au- tema de certificação de competências é, na Inglaterra, parte
mentar sua transparência para os empregadores e erguer do processo em curso de enfraquecimento dos sindicatos,
um sistema de unidades de competências que permitam de encolhimento das instâncias de negociação social, e de

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AÇÕES EMPRESARIAIS E FORMAÇÃO PROFISSIONAL: SERVIÇO NACIONAL...

crescimento do poder de decisão das representações em- em modalidades não-contempladas pela Lei do Fundo de Ma-
presariais, particularmente das grandes corporações. Em nutenção e Desenvolvimento do Ensino e Valorização do
nosso país, onde os trabalhadores sempre foram impedi- Magistério (Fundef). Em síntese, a desvalorização do certi-
dos pelas empresas e pelo Estado de participar da defini- ficado escolar e sua substituição pelo sistema nacional de
ção de políticas de formação profissional, no momento em validação de competências, definido a partir de interesses
que – apesar das coibições neoliberais – se abrem pers- empresariais, pode significar, ao mesmo tempo, a desis-
pectivas de formalização de alguns espaços de participa- tência do poder público em promover a efetivação do di-
ção social nessa área, o fato de o Senai referenciar-se no reito à educação ao conjunto da população, a introdução
modelo inglês provoca certo estranhamento pois, certamen- de maior seletividade e elitização no acesso à formação, e,
te, introduz alguns riscos para o recém-iniciado processo conseqüentemente, a criação de uma nova hierarquia ocu-
de construção do novo sistema de certificação, como o do pacional acompanhada do aumento da exclusão social.
alijamento dos trabalhadores e o da manutenção da pre-
dominância do poder patronal nas decisões. Nesse caso, o CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE AS
sistema não estará voltado para as necessidades do con- MUDANÇAS NO MODELO DE FORMAÇÃO
junto da economia em matéria de qualificação, mas cen-
trado sobre demandas pontuais do mercado ou, mais exa- Dados recentes fornecidos em documentos publicados
tamente, das grandes empresas, reforçando o processo de pelo Senai-SP permitem visualizar, pelo movimento do
segmentação do mercado de trabalho que só permite o aces- montante de matrículas e conclusões nos cursos, e pelo
so à formação para certos trabalhadores assalariados. E, atendimento do número de alunos/hora, o processo de im-
mesmo para esses, a possibilidade e qualidade da forma- plantação da reforma no período entre 1996 e 1998.
ção, capazes de tornar viável a construção de sua poliva- Reafirmando a tendência geral apontada nos últimos
lência/competência, permanecem no âmbito do poder de anos em todas as regionais, o item “Aprendizagem Indus-
decisão da gestão empresarial e da sua disposição em trans- trial” vem perdendo peso no conjunto da carga horária
formar, de fato, os processos produtivos em organizações do Senai-SP: -25,23% de matrículas entre 1998/95
qualificantes. Por sua vez, a organização dos conteúdos (-17,3% entre 1998/97); -2,6% de conclusões no mesmo
curriculares em módulos certificáveis, além dos aspectos período (-5,0% entre 1998/97). O número de alunos/hora
críticos já mencionados, pode originar um mercado “lu- caiu de 25.209.751 para 19.725.664, o que equivale a
crativo” de certificações pela iniciativa privada, de con- -21,13% de alunos/hora nesses quatro anos (entre 1998/
seqüências previsíveis. 97, -16,8%).
Em segundo lugar, se, por um lado, no Brasil, a valida- No caso do “Ensino Técnico”, reestruturado para aten-
ção de conhecimentos adquiridos pela experiência pode der às determinações da nova LDB, é interessante obser-
ser vista como uma via possível de democratização da edu- var que embora as matrículas e as conclusões venham cres-
cação e da formação, uma vez que possibilitaria aos traba- cendo desde 1995, se analisarmos o ano de 1998 em relação
lhadores a progressão de um nível para outro, além de ins- ao anterior, 1997, elas decaíram 2,4% e 3,9%, respectiva-
taurar certificados reconhecidos nas diferentes esferas do mente. Em termos de alunos/hora, há um decréscimo de
mercado de trabalho, por outro, na ausência das representa- 4,2% em relação a 1997.
ções de trabalhadores, pode ser a via mais rápida para legi- As matrículas e conclusões nos cursos de formação in-
timar a ausência de educação escolar básica às milhares tensiva, aperfeiçoamento e especialização, que já vinham
de pessoas que a ela não tiveram acesso na idade adequa- caindo desde 1995, sofrem redução expressiva entre 1998/
da. Entre elas, os jovens da faixa etária que não encon- 1997: de -67,2% e -69,5% (de 19.958 para 6.547 matrícu-
tram vagas nas escolas e não têm acesso a cursos profis- las e 16.596 para 5.070 conclusões).
sionalizantes, ou os menores de 16 anos que, apesar das Tais reduções refletem as orientações do Senai em for-
disposições legais impeditivas, são obrigados a trabalhar para talecer suas novas modalidades de cursos – “programas
sobreviver e, por isso, se afastam da escola. Tais riscos são flexíveis” e “qualificação profissional” que, na expres-
consideráveis tendo em vista a educação de jovens e adul- são da instituição, significam a diversificação da oferta
tos, pois a nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) não discri- da educação profissional, com a multiplicação de possi-
mina as esferas responsáveis por esses programas, e tanto o bilidades de soluções personalizadas para os itinerários
ensino supletivo como a alfabetização de adultos constitu- de formação nas áreas profissionais. Como é possível

93
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

TABELA 1
Matrículas, Conclusões, Evasões, Matrículas Residuais e Alunos/Hora no Senai-SP, segundo Modalidades
Estado de São Paulo – 1996

Modalidades Matrículas Conclusões Evasões Matrículas Residuais Alunos/Hora

TOTAL (1) 1.253.502 1.191.742 41.486 20.274 77.044.288,7


Ação Direta (2) 551.695 497.785 34.086 19.824 64.760.794,7
Aprendizagem Industrial – Fase Escolar
Modalidade 1 (3) 80 79 1 - 66.462,0
Modalidade 2 (4) 21.155 7.777 879 12.499 25.209.751,0
Qualificação Profissional 19.288 16.477 2.811 - 3.875.716,0
Curso Técnico (HP)
Fase Escolar (2) 3.083 846 129 2.108 3.385.944,0
Estágio 1.959 410 22 1.527 1.907.901,0
Curso Técnico Especial (CQP – IV)
Fase Escolar 2.246 1.126 239 881 1.527.600,0
Estágio 1.128 553 - 575 1.015.200,0
Curso Técnico Modularizado – Formação de
Auxiliares Técnicos
Fase Escolar 3.295 2.407 354 534 1.459.065,0
Especialização 7.680 6.589 618 473 2.303.274,5
Aperfeiçoamento 2.351 1.195 287 869 519.788,0
Treinamento Industrial 373.990 354.108 19.524 358 12.161.416,8
Iniciação Profissional 114.662 105.454 9.208 - 11.239.831,4
Outras 778 764 14 - 88.845,0

Ação Indireta 701.807 693.957 7.400 450 12.283.494,0


Aprendizagem Industrial – Fase Escolar
Modalidade 2 (4) 559 231 18 310 700.197,5
Curso Técnico Especial (CQP – IV)
Fase Escolar 196 68 34 94 111.720,0
Estágio 195 149 - 46 154.340,0
Treinamentos – Acordos 344.959 342.998 1.961 - 4.003.874,0
Treinamentos – Termos de Cooperação 355.898 350.511 5.387 - 7.313.362,5

Fonte: Senai, 1997b.


(1) Não inclui estágios para pessoal de empresas no país e no exterior (78 matrículas, 78 conclusões e 4.712,0 alunos/hora). Não inclui, também, 3.148 certificados expedidos em exames
supletivos (1.758 – disciplinas de 1o grau, 962 – disciplinas do 2o grau e 428 – profissionalizantes) – Telecurso 2000.
(2) No caso do regime semestral, inclui até o 6o semestre da fase escolar. O 7o semestre acha-se somado com o estágio.
(3) Inclui estudos de educação geral considerados equivalentes aos realizados em uma das quatro últimas séries do ensino de 1 o grau.
(4) Inclui apenas disciplinas profissionalizantes.

observar na Tabela 5, em 1998, os “programas flexíveis” cas e procurando mostrar os primeiros frutos de sua refor-
incorporaram 52.179 matrículas e 46.435 conclusões, o ma interna, a instituição enfatiza que o atendimento a pe-
que significa uma taxa de evasão de 11%. Com relação à quenas empresas cresceu 2,3%, embora o número de esta-
duração desses cursos, que totalizaram 3.346.000 alunos/ belecimentos atendidos desse porte tenha decaído 3,2%.
hora, eles não ultrapassaram, em média, 65 horas.22 Já os Os Treinamentos para Comunidade registraram crescimento
novos cursos de “qualificação profissional” de 329 horas contínuo. Entre os anos 1997 e 1998, as matrículas cresce-
de duração, em média, alcançaram apenas o total de 768 ram 32,2% e as conclusões, 32,7%, provavelmente em vir-
matrículas e 565 conclusões (253 mil alunos/hora). tude dos convênios com o Ministério do Trabalho (MTb)
Os “Treinamentos para Empresas”, tradicionalmente para desenvolver os cursos de (re)qualificação profissio-
cursos de curta duração, apresentam matrículas e conclu- nal para desempregados e/ou trabalhadores em risco de
sões crescentes desde 1995 (342.942 a 398.780 e 329.201 desemprego (Planfor), utilizando recursos do FAT.
a 383.546, respectivamente), embora entre 1998-97, esse No total geral, entre 1995 e 1998, o Senai-SP ampliou
total tenha decrescido 4,3% e 4,0%. Respondendo a críti- seu atendimento: as matrículas e conclusões se elevaram

94
AÇÕES EMPRESARIAIS E FORMAÇÃO PROFISSIONAL: SERVIÇO NACIONAL...

TABELA 2 TABELA 3
Matrículas, Conclusões, Alunos/Hora e Taxa de Evasão no Senai-SP, Matrículas, Conclusões e Alunos/Hora no Senai-SP,
segundo Cursos/Treinamentos segundo Áreas Ocupacionais
1995-1996 1996

Variação Alunos/Hora
Cursos/Treinamentos 1995 1996 Matrículas Conclusões (mil)
1996/95 (%)
Áreas Ocupacionais
Total (1) Nos Abs. % N os Abs. % Nos Abs. %
Matrículas 508.434 551.773 8,5
Conclusões 462.806 497.863 7,6 Total 551.773 100,0 497.863 100,0 64.766 100,0
Alunos/Hora (mil) 61.171 64.766 5,9 Mecânica 121.837 22,1 101.605 20,4 29.187 45,1
Taxa de Evasão (%) 5,0 6,2 - Eletricidade/Eletrônica 46.214 8,4 39.358 7,9 10.017 15,5
Construção Civil 51.317 9,3 47.079 9,5 4.710 7,3
Aprendizagem (CAI) Vestuário/Calçados
Matrículas 21.565 21.235 -1,5 e Artefatos de
Conclusões 7.343 7.856 7,0 Tecido/Têxtil 35.480 6,4 32.228 6,5 3.942 6,1
Alunos/Hora (mil) 25.009 25.276 1,1 Editorial e Gráfica 16.315 3,0 13.747 2,8 2.193 3,4
Taxa de Evasão (%) 4,5 4,1 - Metalurgia/Siderurgia 9.023 1,6 7.500 1,5 2.137 3,3
Ensino Técnico (HP/CQP) Madeira/Mobiliário 12.373 2,2 10.883 2,2 1.861 2,9
Alimentos/Bebidas 14.017 2,5 13.304 2,7 1.070 1,7
Matrículas 10.725 11.711 9,2
Química 1.190 0,2 529 0,1 950 1,5
Conclusões 4.457 5.342 19,9
Plásticos/Borracha 3.451 0,6 2.934 0,6 950 1,5
Alunos/Hora (mil) 8.883 9.296 4,6
Cerâmica/Minerais
Taxa de Evasão (%) 7,8 6,4 -
Não-Metálicos 3.658 0,7 3.011 0,6 744 1,1
Cursos de Qualificação e Transportes 12.213 2,2 11.527 2,3 285 0,4
Requalificação (CFI/CAP/CEP) (2) Comunicações 2.184 0,4 2.106 0,4 180 0,3
Matrículas 33.613 29.319 -12,8 Papel e Celulose 1.000 0,2 727 0,1 136 0,2
Conclusões 28.502 24.261 -14,9 Desenvolvimento de
Alunos/Hora (mil) 7.301 6.699 -8,2 Recursos Humanos 3.992 0,7 3.906 0,8 76 0,1
Taxa de Evasão (%) 11,4 12,7 - Outras (1) 5.309 1,0 4.870 1,0 509 0,8
Não-definida
Treinamento – Empresas (TI – E) (3)
(mais de uma área) 212.200 38,5 202.549 40,7 5.819 9,0
Matrículas 342.942 372.379 8,6
Conclusões 329.201 352.559 7,1 Fonte: Senai, 1997e.
(1) Incluem joalherias, couros e administração.
Alunos/Hora (mil) 9.880 12.095 22,4
Taxa de Evasão (%) 3,9 5,2 -
dução do Senai-SP: 130.338 matrículas, que represen-
Treinamento – Comunidade (TI – C)
Matrículas 98.873 116.647 18,0
tam 20,1% do total. Entretanto, “como sinal dos tem-
Conclusões 92.587 107.363 16,0 pos, que exigem o profissional eclético”, o maior nú-
Alunos/Hora (mil) 10.023 11.369 13,4 mero de matrículas ocorreu na área denominada
Taxa de Evasão (%) 6,4 8,0 - “não-definida”. Trata-se, segundo a instituição, de “pro-
Fonte: Senai, 1997c. gramações relacionadas a competências comuns aos
(1) Inclui estágios de alunos de 2o e 3 o graus de outras instituições de ensino (716 matrícu- profissionais de várias áreas ocupacionais: informáti-
las/conclusões e 76 mil alunos/hora em 1995 e 482 matrículas/conclusões e 31 mil alunos/
hora em 1996). Não inclui 3.148 certificados expedidos em exames supletivos (1.758 – disci- ca básica, prevenção de acidentes, princípios de cálcu-
plinas de 1o grau, 962 – disciplinas de 2o grau e 428 – profissionalizantes) – Telecurso 2000.
(2) Referem-se aos cursos de formação intensiva, aperfeiçoamento e especialização. lo técnico, qualidade, planejamento de custos, gestão
(3) Treinamento industrial, ensino a distância, seminários e estágios para pessoal de empre- da produção e outras”, que apresentam 275.832 matrí-
sas. Inclui programas realizados para atendimento a solicitações de empresas, sindicatos e
outras clientelas específicas. culas, ou seja, 42,5% do total. 23
Uma última observação: embora haja crescimento no
27,6% e 29,5%, respectivamente. No entanto, os dados número das matrículas nos cursos das diferentes áreas –
indicam que cursos anteriores, de maior duração, como mecânica, eletricidade/eletrônica, metalurgia/siderurgia –
os de aperfeiçoamento e especialização, foram substituí- , constata-se a diminuição no número de horas de forma-
dos por cursos de curta duração. ção em todos eles. O curso de mecânica, por exemplo,
Do ponto de vista das áreas ocupacionais, a área de apresentava, em 1996, carga horária de 239 horas que,
mecânica continua a ocupar lugar expressivo na pro- em 1998, foi reduzida para 184.

95
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

TABELA 4
Matrículas, Conclusões, Evasões, Matrículas Residuais e Alunos/Hora no Senai-SP, segundo Modalidades
Estado de São Paulo – 1998

Modalidades Matrículas Conclusões Evasões Matrículas Residuais Alunos/Hora

TOTAL (1) 1.331.755 1.277.625 38.653 15.477 73.678.377


Ação Direta (2) 649.006 599.427 34.495 15.084 64.353.635,7
Aprendizagem Industrial – Fase Escolar 16.126 7.147 522 8.457 19.724.664,5
Qualificação Profissional 3.806 3.110 373 323 1.013.512,0
Curso Técnico (HP)
Fase Escolar (2) 2.149 819 88 1.242 2.526.984,0
Estágio 1.971 420 9 1.542 1.947.170,0
Curso Técnico Especial (CQP – IV)
Fase Escolar 2.864 1.157 288 1.419 1.886.249,5
Estágio 1.399 468 - 931 1.259.100,0
Curso Técnico Modularizado – Formação
de Auxiliares Técnicos 3.615 2.834 343 438 1.544.885,0
Formação de Tecnólogos 40 - 4 36 15.200,0
Especialização 2.333 1.899 120 314 1.352.686,0
Aperfeiçoamento 1.176 626 168 382 322.864,0
Treinamento Industrial 399.125 383.837 15.288 - 14.411.136,0
Iniciação Profissional 161.616 150.068 11.548 - 14.893.212,7
Outras 52.786 47.042 5.744 -

Ação Indireta 682.749 678.198 4.158 393 9.324.742,0


Aprendizagem Industrial – Fase Escolar 377 152 1 224 432.650,0
Curso Técnico Especial (CQP – IV)
Fase Escolar 163 66 1 96 98.230,0
Estágio 78 5 - 73 61.460,0
Treinamentos – Termos de Cooperação 681.243 677.087 4.156 - 8.691.045,0
Outras 888 888 - - 41.357,0

Fonte: Senai, 1999.


(1) Não inclui estágios para pessoal de empresas no país e no exterior (119 matrículas, 119 conclusões e 8.916,0 alunos/hora). Não inclui, também, 30.622 certificados expedidos em exames
supletivos (13.173 – disciplinas do ensino fundamental, 16.841 – disciplinas do ensino médio e 608 – profissionalizantes) – Telecurso 2000.
(2) No caso do regime semestral, inclui até o 6o semestre da fase escolar. O 7o semestre acha-se somado com o estágio.

A nova estratégia pedagógica sugere, de imediato, a diversificadas – educação geral e profissionalizante –,


existência de alguns pontos críticos. além de desconsiderar a educação básica como parte es-
sencial da educação técnica, “o que enfraquece a idéia-
Educação Geral x Educação Profissional/Técnica – De força de superação da crise educacional brasileira” (Salm
acordo com seu novo modelo de formação profissional, o e Fogaça, 1995);
Senai propõe diminuir e até desativar os cursos que reali- - de acordo com o Senai, os novos conteúdos curricula-
zam ensino com equivalência, isto é, aquele tipo de apren- res têm por objetivo formar não só o aluno polivalente
dizagem em que o aluno realiza, em tempo integral, as capaz de exercer várias funções no processo produtivo,
quatro últimas séries do ensino fundamental mais a parte mas que possua, também, características politécnicas, ou
profissionalizante de forma conjunta. No caso do ensino seja, com formação em mais de uma profissão. A vincu-
técnico de nível médio, conforme o disposto pela nova lação entre eletrônica e eletricidade constitui uma das ini-
legislação (inspirada no próprio modelo Senai), generali- ciativas citadas para a diversificação profissional. Entre-
zam-se os cursos modularizados após o ensino regular tanto, como considera justamente um estudo do Dieese
médio, instituindo a separação entre a formação geral e (1997), essas ações estão longe de reverter a fragmenta-
técnica. Três problemas se colocam, então: ção das profissões, típica do paradigma taylorista/fordista.
- o novo modelo reforça a continuidade da antinomia for- A adaptação das grades curriculares às mudanças no con-
mação geral/formação profissional, a existência de redes teúdo do trabalho, em que as profissões podem desapare-

96
AÇÕES EMPRESARIAIS E FORMAÇÃO PROFISSIONAL: SERVIÇO NACIONAL...

TABELA 5 TABELA 6
Matrículas, Conclusões, Alunos/Hora e Taxa de Evasão no Senai, Conclusões nos Programas de Treinamento Industrial – Empresas no
segundo Cursos/Treinamentos Senai e Número de Estabelecimentos Atendidos, segundo Porte
Estado de São Paulo – 1997-98 Estado de São Paulo – 1997-98

1998 Variação 1997 1998 Variação


Cursos/Treinamento 1997 (1) 1998/97 (%) Porte dos Estabelecimentos 1998/97
Nos Abs. % Nos Abs. % (%)
Total (2)
Matrículas 591.657 649.125 9,7
Conclusões 543.538 599.546 10,3 Conclusões (1) 283.650 100,0 267.853 100,0 -5,6
Alunos/Hora (mil) 64.247 64.363 0,2 Pequeno (Até 99 Empregados) 96.922 34,2 99.131 37,0 2,3
Taxa de Evasão (%) 5,1 5,3 0,2 Médio (100 a 499 Empregados) 73.031 25,7 66.062 24,7 -9,5
Aprendizagem Industrial Grande (500 ou Mais) 113.697 40,1 102.660 38,3 -9,7
Matrículas 19.500 16.126 -17,3
Conclusões 7.523 7.147 -5,0
Alunos/Hora (mil) 23.704 19.725 -16,8 Número de Estabelecimentos
Taxa de Evasão (%) 4,1 3,2 - Atendidos 5.980 100,0 5.526 100,0 -7,6
Ensino Técnico Pequeno (Até 99 Empregados) 3.119 52,2 3.019 54,6 -3,2
Matrículas 12.298 11.998 -2,4 Médio (100 a 499 Empregados) 1.931 32,3 1.687 30,5 -12,6
Conclusões 5.932 5.698 -3,9 Grande (500 ou Mais) 930 15,6 820 14,8 -11,8
Alunos/Hora (mil) 9.566 9.164 -4,2
Taxa de Evasão (%) 6,8 6,1 -
Fonte: Senai, 1997e.
Ensino Superior (1) Excluem treinandos não-indicados por estabelecimentos/empresas.
Matrículas 0 40 -
Conclusões 0 0 -
TABELA 7
Alunos/Hora (mil) 0 15 -
Taxa de Evasão (%) 0 10,0 - Matrículas, Conclusões e Alunos/Hora no Senai,
Estágios de Alunos de Outras segundo Áreas Ocupacionais
Instituições de Ensino Estado de São Paulo – 1998
Matrículas 619 607 -1,9
Conclusões 619 607 -1,9
Alunos/Hora (mil) 89 110 23,8 Alunos/Hora
Taxa de Evasão (%) 0,0 0,0 - Áreas Ocupacionais Matrículas Conclusões (Mil)
Formação Intensiva/Aperfeiçoamento/
Nos Abs. % N os Abs. % Nos Abs. %
Especialização
Matrículas 19.958 6.547 -67,2
Conclusões 16.596 5.070 -69,5 Total 649.125 100,0 599.546 100,0 64.363 100,0
Alunos/Hora (mil) 5.009 2.437 -51,4 Mecânica 130.388 20,1 114.743 19,1 24.052 37,4
Taxa de Evasão (%) 11,4 9,7 - Eletricidade/Eletrônica 59.450 9,2 52.484 8,8 9.612 14,9
Programas Flexíveis Construção Civil 55.752 8,6 51.656 8,6 4.935 7,7
Matrículas 0 52.179 -
Vestuário/Calçados e
Conclusões 0 46.435 -
Alunos/Hora (mil) 0 3.346 - Artefatos de Tecido/Têxtil 33.246 5,1 30.413 5,1 3.883 6,0
Taxa de Evasão (%) 0 11,0 - Editorial e Gráfica 14.964 2,3 13.371 2,2 2.212 3,4
Qualificação Profissional Metalurgia/Siderurgia 9.206 1,4 7.945 1,3 1.611 2,5
Matrículas 0 768 - Madeira/Mobiliário 11.081 1,7 9.885 1,6 1.726 2,7
Conclusões 0 565 - Alimentos/Bebidas 15.594 2,4 14.720 2,5 1.464 2,3
Alunos/Hora (mil) 0 253 -
Plásticos/Borracha 3.309 0,5 2.827 0,5 898 1,4
Taxa de Evasão (%) 0 3,1 -
Química 1.233 0,2 627 0,1 902 1,4
Treinamentos para Empresas
Matrículas 416.721 398.780 -4,3 Cerâmica/Minerais
Conclusões 399.443 383.546 -4,0 Não-Metálicos 1.462 0,2 1.138 0,2 481 0,7
Alunos/Hora (mil) 14.422 14.376 -0,3 Transportes 15.593 2,4 15.319 2,6 372 0,6
Taxa de Evasão (%) 4,1 3,8 - Comunicações 2.281 0,4 2.245 0,4 204 0,3
Treinamentos para Comunidade Papel e Celulose 365 0,1 294 0,0 90 0,1
Matrículas 122.561 162.080 32,2
Desenvolvimento de
Conclusões 113.425 150.478 32,7
Alunos/Hora (mil) 11.457 14.937 30,4 Recursos Humanos 2.727 0,4 2.665 0,4 80 0,1
Taxa de Evasão (%) 7,5 7,2 - Não-definida
(mais de uma área) 275.832 42,5 264.393 44,1 10.663 16,6
Fonte: Senai, 1997e.
(1) Dados referentes, basicamente, ao 2o semestre de 1998.
Outras (1) 16.642 2,6 14.821 2,5 1.178 1,8
(2) Não inclui certificados expedidos em exames supletivos (13.173 – disciplinas de ensino
fundamental, 16.841 – disciplinas de ensino médio e 608 – profissionalizantes). Telecurso 2000. Fonte: Senai, 1997e.
(3) Treinamento industrial, ensino a distância, seminários e estágios para pessoal de empresas. (1) Incluem joalherias, couros e administração.

97
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

cer e se transformar, tem um pressuposto: o trabalhador empresas, o que constitui outra forma de seletividade eco-
terá que se reciclar permanentemente. Em outras palavras: nômica. Pode-se indagar, também, se a pretensão de co-
o novo modelo incorre no risco da excessiva fragmenta- brança de cursos não consiste em abuso, eticamente con-
ção dos cursos modulares – da formação básica, qualifi- testável, uma vez que essa instituição, embora de gestão
cação e, mesmo, os técnicos/pós-médio. A montagem dos privada, vive de recursos públicos.
itinerários ocupacionais, ao procurar atender as deman-
das pontuais das empresas, pode causar formações A Clientela do Senai é Esmagadoramente do Sexo
adaptativas/instrumentais às mudanças, perdendo de vis- Masculino – Tal informação não chega a surpreender
ta os objetivos declarados do aprendizado teórico mais porque é na indústria, entre os grandes setores da eco-
amplo e integrado dos fundamentos científicos e tecno- nomia, que as mulheres estão em menor número. Se-
lógicos indispensáveis à formação do trabalhador poliva- gundo pesquisa do Dieese, das 29.820.663 mulheres que
lente e flexível; estavam no mercado de trabalho no Brasil, em 1997, 8
- ao elevar o grau de exigência da escolaridade para o milhões trabalhavam na prestação de serviços, 6 mi-
ingresso nos cursos, a instituição está excluindo de sua lhões, na agricultura, 4,5 milhões, nas atividades soci-
clientela parcelas substantivas da população, dada a bai- ais, 3,5 milhões, no comércio e apenas 2,5 milhões tra-
xa escolaridade média da população brasileira (Dieese, balhavam na indústria (Dieese, 1997). A participação
1997). Mesmo que as matrículas nos “Treinamentos para feminina é numericamente insignificante no setor me-
a Comunidade” tenham aumentado, esses cursos inscre- talmecânico, em que o domínio da tecnologia e das
vem-se, em sua maioria, no Planfor – Plano Nacional de máquinas é considerado habilidade masculina. Portan-
Formação/MTb, o que significa que seu formato, tal como to, a pequena presença de mulheres nos cursos do Senai
está ali definido, exclui a interação com a educação bási- manifestam a situação das indústrias. De qualquer ma-
ca fundamental, referendando a exclusão daqueles milha- neira, os dados indicam que a qualificação profissio-
res de trabalhadores que não tiveram a possibilidade de nal está sendo direcionada de forma gritante para um
se escolarizar na idade própria. desenvolvimento desigual entre gêneros no mercado de
trabalho (Dieese, 1997).
A Oferta do Senai é Dirigida a Trabalhadores Empre- Em síntese, concordando com as projeções realizadas
gados – Como se viu, é opção política da instituição não pelo próprio Sistema Senai, pode-se afirmar que, diante das
atender o desempregado. No caso dos cursos de reconver- demandas intensas e diversificadas de formação profissio-
são ou requalificação profissional, as pesquisas realizadas nal, institucionaliza-se hoje o dualismo na organização de
pela instituição indicam que eles representaram, no perío- sua oferta: de um lado, a formação “de ponta” para seg-
do 1995/96, apenas 8% das matrículas do Senai, cuja prin- mentos industriais competitivos, realizada pelo Senai e pelas
cipal via de reconversão foi o reemprego no setor formal, próprias empresas (e suas respectivas parcerias), de outro,
e o maior demandante é o governo que financia os cursos a a formação compensatória para os demais, financiada pelo
serem implementados (Senai, 1997b). Além disso, os es- Estado, com os recursos do Fundo de Amparo do Traba-
tudos também mostram que esses cursos são de curta dura- lhador (FAT). É importante enfatizar que mesmo as políti-
ção, além de não possuírem um perfil específico próprio. cas públicas compensatórias de formação profissional, uma
vez que desconsideram a possibilidade da recuperação da
Senai Dirige-se ao Mercado Formal de Trabalho e escolaridade da população brasileira, de propiciar o exer-
Atende Fundamentalmente as Grandes Empresas – Isso cício do direito à educação a milhares de pessoas que não
significa que grande parcela da população empregada nas tiveram acesso à escolarização na idade própria, não se
pequenas e médias empresas, e os trabalhadores autôno- propõem a promover a inclusão, mas a justificar a exclu-
mos estão excluídos dos cursos oferecidos pela institui- são desses segmentos sociais (Moraes, 1998).
ção. De acordo com sua nova estratégia de funcionamen-
to, o Senai dispõe-se a ampliar seu atendimento às
pequenas e médias empresas, por meio da realização de NOTAS

cursos e consultorias técnicas. No entanto, para a auto-


E-mail da autora: moraescs@usp.br
sustentação, esses serviços deverão ser pagos, assim como O artigo é uma síntese do texto elaborado no âmbito do projeto “Diagnóstico da
os cursos destinados a trabalhadores não-indicados por Formação Profissional – Ramo Metalúrgico” (1999), desenvolvido sob a res-

98
AÇÕES EMPRESARIAIS E FORMAÇÃO PROFISSIONAL: SERVIÇO NACIONAL...

ponsabilidade da Rede Unitrabalho, como parte do Programa Integrar Nacional 10. Segundo Oliveira (1995) “o Brasil possui poucas – e muitas delas – boas
de Formação e Requalificação Profissional, da Confederação Nacional dos escolas técnicas. Grande parte da reputação das escolas técnicas, no entanto, não
Metalúrgicos – CNM/CUT. se deve à sua contribuição para a eficiência das empresas, mas para o sucesso
1. O Senai integra o chamado Sistema “S”, um conjunto de instituições destina- dos alunos no exame vestibular. O sistema é caro – no federal são quase 600
das a prestar serviços a empresas dos diferentes setores da economia. Além do milhões de reais para 150 mil alunos, ou seja, 4 mil dólares por aluno/ano. Com-
Senai, constituem o Sistema “S”: Serviço Social da Indústria – Sesi, Serviço pare-se esse valor com o custo médio de 250 reais por aluno de curso secundário
Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), Serviço Social do Comércio no Estado de São Paulo. É muito dinheiro para preparar candidatos a bacharéis!”.
(Sesc), Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), Serviço Nacional de Observa-se que o argumento é o mesmo, repetido à exaustão pelo governo e seus
Aprendizagem do Transporte (Senat), Serviço Social do Transporte (Sest), Ser- assessores – ventríloquos dos organismos multilaterais: o ensino técnico, apesar
viço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). da boa qualidade, é elitizado e onera o governo federal; as parcerias viriam ame-
nizar os seus gastos. A relação custo-benefício ignora os aspectos qualitativos,
2. O Decreto n o 100.009 de 16/07/42 aprovou o Regimento Interno da nossa ins- ou seja, a condição calamitosa do ensino médio estadual, as péssimas condições
tituição. De acordo com seu artigo 2o, o Senai deveria funcionar em íntima cola- de trabalho vigentes nessas escolas, motivo principal de seus custos menores.
boração e articulação com os estabelecimentos industriais, para estabelecer um
sistema nacional de aprendizagem; em seu artigo 27, constava que “as escolas e 11. É o que Cunha (1997) denominou de “senaizição das escolas técnicas fede-
cursos de aprendizagem seriam instituídos e entrariam em funcionamento gra- rais”, que, para ele, é “o complemento da autoprivatização do Senai”, isto é, dos
dualmente, de acordo com as necessidades e conveniências da economia nacio- processos em curso na instituição na busca estratégica da auto-sustentação. So-
nal” (O Senai de São Paulo, 1994). bre a análise das políticas públicas de educação e formação profissional, ver
Moraes e Ferretti (1999), especialmente parte I, cap. 2.
3. O total de recursos disponíveis ao Sistema “S”– Senai, Senac, Senar e Senat,
incluindo as entidades “sociais”, foi, em 1998, de 4,350 bilhões de reais, quase 12 12. A partir da implantação do Planejamento Estratégico, instrumento de geren-
vezes os recursos destinados ao Plano Nacional de Educação Profissional (Planfor), ciamento de sua modernização, o Senai tem direcionado a atuação na busca da
os quais alcançaram nesse mesmo ano o total de 414 milhões de reais (previstos), integração entre todas as diretorias regionais e a direção nacional, através do
sendo efetivamente gastos R$ 397.000.753,00 (Castionni, 1999). Os recursos des- desenvolvimento de uma série de projetos de abrangência nacional, multirregional
tinados ao Senai atingem, aproximadamente, 1,9 bilhão de reais/ano. e regional. Do acordo com o Senai, esses projetos, “de alto valor estratégico”,
estão “orientados para a melhoria da eficiência interna institucional e para o apoio
4. As informações sobre a estrutura e organização do Senai, assim como sobre de áreas ou setores prioritários para a economia dessas regiões” (Senai/1996;
as modalidades de ensino ofertadas, encontram-se em Senai (1996, 1997a, 1997c Senai, 1997a). Para maior detalhamento das ações de mudança implementadas
e 1997f). pelo Senai, consultar Moraes e Ferretti (1999).
5. Diante do panorama de modernização da economia e da indústria no país, há 13. Na Alemanha, em meados da década de 70, já se avaliava que o perfil do
considerável esforço institucional de atualização tecnológica e no campo da me- egresso do sistema de formação profissional não estava atendendo às necessida-
todologia de formação: desenvolvimento de Centros Nacionais de Tecnologia, des das empresas industriais. Isto é, desejava-se que os trabalhadores apresen-
nas diferentes regiões do país, incentivados por um sistema de avaliação de qua- tassem, além da capacitação técnica, os atributos pessoais para permitir sua pronta
lidade dos serviços prestados em educação, assistência técnica e assistência adaptação às mudanças. Para desenvolver tais atributos, várias empresas, que
tecnológica, que os classifica em três níveis: bronze, prata e ouro. O Senai con- são responsáveis, nesse país, por grande parte da formação profissional, inicia-
tava em 1997 com 40 centros candidatos ao título de Cenatec, 27 dos quais já se ram a aplicação experimental de modelos. A Siemens, baseada nos resultados
certificaram na categoria bronze. Esses centros desenvolveram competência es- dessas aplicações em algumas empresas (Daimler, Bens, Ford, Hoesch, ZKF),
pecífica em 23 áreas tecnológicas, encontrando-se implantados em dez estados concebeu o Modelo Petra (formação orientada para o projeto e a transferência)
da federação, nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste do país; nove pertencem ao que, após aprovação pelo Ministério de Educação e Ciência da Alemanha, foi
Senai-SP, nas áreas automobilística, eletrônica, mecânica, mecânica de precisão implantado e validado em seu complexo industrial a partir de fevereiro de 1985.
e mecatrônica. A região Nordeste caracteriza-se pela grande quantidade de uni- Na sigla Petra, duas palavras são fundamentais: projeto e transferência. Assim,
dades móveis (33,76%), veículo de atuação significativa no interior do país (Senai, a promoção nos alunos dos atributos pessoais realiza-se durante o desenvolvi-
1996; Senai, 1997a).
mento de um projeto técnico. Nesse contexto, projeto é entendido como uma
6. Entre as medidas que visam transformar o Senai em instituição “compacta, tarefa, com graus variados de complexidade e de difícil solução, e transferência
enxuta, menor e mais eficiente” está o corte de 8% de seus funcionários, princi- significa a aplicação de conhecimentos, habilidades e atitudes em situações no-
palmente do pessoal administrativo e gerencial (16%). De acordo com os dados vas ou modificadas (Franceschini, Gonçalves e Cruz, 1996).
fornecidos pela instituição, entre 1992 e 1996, o percentual de professores de-
14. A Piam é uma das linhas de estudo sobre o mercado de trabalho que o Senai-
mitidos foi maior que o dos técnicos e as demissões ocorreram, majoritariamen-
SP realiza regularmente, a cada dois anos, desde 1990, em todo o Estado.
te, nas regiões Nordeste e Centro-Oeste.
15. Foram estudadas as empresas contribuintes do Senai, em cada área de abran-
7. Ver Bezerra (1997). Fernando Bezerra era, na época, Presidente do CNI e do
gência das escolas, atingindo cerca de 1.083 unidades produtivas e 414 mil em-
Conselho Nacional do Senai.
pregados em 129 municípios. Foram, também, analisados 275 estabelecimentos
8. De acordo com Cunha (1997), na assessoria ao MEC, no governo empossado não-contribuintes. Das unidades pesquisadas, 31% são de pequeno porte, 51%,
em janeiro de 1995, Moura Castro atuou com João Batista Oliveira, que também de médio e 18%, de grande porte. Quanto ao número de empregados, verifica-se
havia integrado os quadros técnicos do Bird, do BID e da OIT e, como ele, com que as plantas de grande porte reúnem mais de 60% da mão-de-obra, enquanto
formação doutoral norte-americana. Oliveira ocupou a secretaria geral do MEC as médias absorvem aproximados 32% e as de pequeno porte, somente 4%. (Senai,
por menos de um ano, após o que vem se dedicando à consultoria a governos 1997b).
estaduais e administrações municipais, assim como a organismos empresariais
em questões de educação. Ainda, segundo o autor, Castro e Oliveira formaram 16. Entrevista com diretores dos Departamentos do Senai, 26/11/1997.
uma parceria que tem exercido significativa influência nas políticas educacio- 17. Em pesquisa recente realizada pelo Senai-SP sobre as qualidades de um “bom
nais no nível federal e no estadual. profissional”, os participantes – pessoal de liderança, chefia e supervisão na área
9. Moura Castro desenvolve bem a questão na perspectiva do BID: “A formação de produção das empresas – “julgaram ‘que ser capaz de, além de executar seu
profissional moderna requer muitas pontes entre a escola e a empresa. Tradicio- trabalho, também programá-lo’ é mais importante do que ‘ser curinga’ (ser mul-
nalmente, produzia-se uma transição abrupta entre a capacitação e o mercado de titarefa)” (Assis, 1994).
trabalho. Ainda quando ocorriam estágios, eram no geral um agregado formal e 18. Para informações detalhadas a respeito dos resultados das pesquisas rea-
não verdadeiros laços entre a instituição de ensino e o mundo do trabalho. Dian- lizadas pelo Senai, em especial os Senais regionais SP e RJ, e sua incidência
te da crescente complexidade das tecnologias, nem as escolas podem desenvol- na construção dos novos modelos de formação, consultar Moraes e Ferretti
ver plenamente o ambiente necessário para aprender, nem as empresas oferecer (1999).
a gama de conhecimentos teóricos que as tecnologias demandam. Portanto, é
19. O novo modelo substitui as modalidades de formação ofertadas até então:
preciso criar uma diversidade de pontes entre a formação e o trabalho. Os estági-
aprendizagem, qualificação, habilitação profissional, formação de tecnólogos e
os são planificados e supervisionados de forma mais rigorosa por ambos os ex-
as chamadas ações de suprimento.
tremos. Os docentes passam períodos nas empresas e fábricas e os engenheiros
nas escolas. Realizam-se projetos conjuntos entre escolas e fábricas, desenvol- 20. Segundo Rainbird, as teorias subjacentes à definição de competência têm
vem-se projetos de P&D nos quais intervêm estudantes e funcionários das em- sido objeto de inúmeras críticas por pedagogos e sociólogos da educação. Eles
presas” (Moura Castro, 1999). têm frisado “a pequena importância atribuída aos processos e aos contextos de

99
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

aprendizagem cognitiva, de modo a possibilitar que o saber venha a ser transmi- MERLE, V. “La construction progressive des compétences”. In: Se former tout
tido e utilizado de maneira criativa em diferentes situações”. Alguns enfatizam ao long de la vie. Entretiens Condorcet. VI èmes rencontres de la Formation
ser o modelo “fundado em teorias fluidas e pouco sofisticadas”, o que tem con- Professionnelle/30 septembre et 1er. octobre 1996, Paris, Le Monde Éditions/
seqüências: “os pressupostos funcionalistas e behavioristas produzem um mo- Ministère du Travail et des Affaires Sociales, 1997.
delo unidimensional e normativo, no qual não há espaço para o indivíduo nem MORAES, C.S.V. “A reforma do ensino médio e a educação profissional”. In:
para uma contribuição pessoal do estagiário. O estagiário deve permanecer pas- Trabalho e Educação. Revista do NETE (Núcleo de Estudos sobre Traba-
sivo e reproduzir os gestos ensinados no momento desejado” (Marshall apud lho e Educação), FaE/UFMG, n. 3, jan.-jul., 1998.
Rainbird, 1995). A “inadequação da noção de competência à complexidade das
atividades e das interações humanas” também é sublinhada: a noção de compe- MORAES, C.S.V. et alii. Documento subsídio da CUT nacional à discussão sobre
tência reflete um individualismo e um desconhecimento inquietante da impor- certificação profissional por competências na Comissão Temática II “Em-
tância do contexto social. De maneira geral, consideramos que a competência prego, Migrações, Qualificação e Formação Profissional” no Mercosul.
reflete um modo de raciocínio mecânico orientado para a técnica, que é normal- São Paulo, 1998, mimeo.
mente não-adaptada às ações humanas ou à satisfação dos seres humanos. Quan- MORAES, C.S.V. e FERRETTI, C. (coord.). Diagnóstico da formação profissio-
to mais a ação é ‘humana’, no sentido de não ser mecânica, mas criativa ou sen- nal. Ramo metalúrgico. São Paulo, CNM-CUT/Rede Unitrabalho, 1999.
sível, menos a competência consiste em preparação adequada à ação” (Ashworth MOURA CASTRO, C. “Estrategias de Capacitación para el BID”. Documentos
e Saxton apud Rainbird, 1995). de Referencia/2. Unidad de Educación, Departamento de Desarrollo
21. O seguro-desemprego, além da baixa remuneração, tem vigência curta e atende Sustentable, Banco Interamericano de Desarrollo, XXXIV Reunión de la
apenas os empregados com relações formais de trabalho (aproximadamente 40% Comisión Técnica, Montevideo, 8-10 abril 1999.
da PEA). OLIVEIRA, J.B.A. “Novos rumos da formação profissional”. Seminário Interna-
22. Esse dado é obtido dividindo-se, a cada ano, o número de alunos/hora pelo cional Fiemg: Novos Rumos da Formação Profissional, 27 out. 1995, mimeo.
número de matriculados. PAOLI, M.C. “Apresentação e introdução”. In: OLIVEIRA, F. e PAOLI, M.C.
23. Foram reestruturados currículos em 21 habilitações profissionais e, entre elas, (orgs). Os sentidos da democracia. Políticas do dissenso e hegemonia glo-
as que nos interessam: eletrônica, gestão de processos industriais, instrumenta- bal. Petrópolis, Vozes, Nedic, 1999.
ção e controle de processos, informática industrial/mecatrônica, mecânica, me- RAINBIRD, H. “La construction sociale de la qualification”. In: JOBERT, A.,
cânica de precisão, metalurgia. Segundo a instituição, durante 1998, mais de 16 MARRY, C., TANGUY, L. Éducation et travail en Grande-Bretagne,
escolas passaram a oferecer cursos e programações de acordo com a proposta do Allemagne et Italie. Paris, Armand Colin Éditeur, 1995.
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100
OS BACHARÉIS EM DIREITO NA REFORMA DO JUDICIÁRIO: TÉCNICOS OU CURIOSOS?

OS BACHARÉIS EM DIREITO
NA REFORMA DO JUDICIÁRIO
técnicos ou curiosos?

MARIA TEREZA SADEK


Professora do Departamento de Ciência Política da USP e Pesquisadora do Idesp
HUMBERTO DANTAS
Cientista Social, Pesquisador da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da FEA-USP

Resumo - O artigo aponta a continuidade de uma tendência que teve início no século passado: a predominân-
cia de bacharéis em Direito na Câmara dos Deputados. Praticamente todos os partidos com representação no
Legislativo – independentemente de sua posição no espectro ideológico – possuem em suas fileiras um grande
número de advogados. Este traço também não distingue nenhuma região do país. Além disso, o predomínio de
bacharéis em Direito foi critério adotado pelos partidos para a constituição da Comissão encarregada da refor-
ma do Poder Judiciário.
Palavras-chave: Bacharéis em Direito; Câmara dos Deputados; Comissão de Reforma e Poder Judiciário.

“Reforma do Judiciário não é matéria para curioso. saiu dos trabalhos de revisão constitucional incólume,
É para quem tem autoridade no tema. Eu a tenho, exatamente por
ser advogado e professor de direito Constitucional.” reforçando a opinião de que se trata de uma área refratá-
Michel Temer, Presidente da Câmara dos Deputados
ria a mudanças. Muitas das alterações sugeridas, contu-
15 de junho de 1999 do, já eram ou transformaram-se, separadamente, em Pro-
postas de Emenda Constitucional – PECs.1
“O presidente da Câmara não deveria intrometer-se na reforma do A PEC número 96-A, relativa ao Poder Judiciário, tra-
Judiciário, até por que é um advogado (...) e não pretende que
sejam descobertas imoralidades.” mita no Congresso desde 1992, tendo recebido alterações
Antônio Carlos Magalhães, Presidente do Senado em 1995 e 1996. Recentemente, voltou a ser considerada
15 de junho de 1999 fundamental para o pleno desenvolvimento de nosso re-
gime democrático, após quatro anos de obsequioso es-
quecimento. Uma CPI – Comissão Parlamentar de Inqué-

N
o dia 5 de outubro de 1988, o país retomou seu rito – foi instalada no Senado, com o objetivo de investigar
compromisso com a democracia, promulgando casos de nepotismo, corrupção e mal desempenho de um
sua sétima Constituição e optando por um regi- poder visto como “encastelado” e, conseqüentemente,
me representativo, presidencialista e federativo. Cinco alertar para a necessidade de uma reforma rápida e abran-
anos mais tarde (1993), porém, estava prevista uma revi- gente. Ao mesmo tempo, uma Comissão Especial para
são constitucional. Tal iniciativa – de todo inusitada – discussão das reformas judiciárias na Constituição foi
poderia abalar a credibilidade e a previsibilidade do regi- formada na Câmara dos Deputados. Disputas acirradas
me, qualidades fundamentais para o pleno funcionamen- envolveram tais iniciativas, sendo que os conflitos não
to de um Estado baseado em normas. Dentre as propostas se circunscreveram às duas casas do Legislativo. Autori-
de mudança constitucional, o Título IV, “Da Organiza- dades do Executivo, do Judiciário e lideranças da socie-
ção dos Poderes”, em seu Capítulo III, “Do Poder Judiciá- dade civil perfilaram-se, transformando os inegáveis pro-
rio”, foi o que recebeu o maior número de emendas (exa- blemas que atingem a justiça brasileira em escusas para
tamente 3.917), configurando-se em alvo privilegiado das suas causas.
iniciativas de reformas. Do ponto de vista dos resultados A intenção, neste artigo, não é discutir os resultados
efetivos, no entanto, a revisão da Constituição esteve longe da CPI e tampouco o teor das modificações propostas pela
de atingir os objetivos de seus proponentes. O Judiciário Emenda Constitucional. O objetivo aqui é muito mais

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

restrito: mapear o perfil profissional dos integrantes da e sociais. Desta forma, o Largo de São Francisco, em São
Câmara dos Deputados, fazendo especial referência aos Paulo, e a Faculdade de Direito, em Olinda, transformam-
31 parlamentares que compõem a Comissão Especial en- se em conceituados centros intelectuais, devido primor-
carregada de introduzir modificações na estrutura e no dialmente aos seus docentes e estudantes. O apogeu des-
funcionamento do Poder Judiciário. A hipótese defendi- ta época “dourada” deu-se em 1860, quando a quantidade
da aqui é a de que, apesar da atual diversidade na compo- de revistas literárias, bibliotecas, livrarias e outros cursos
sição profissional dos integrantes do poder Legislativo, das mais diversas disciplinas modificaram o ritmo das
ainda é bastante significativa a presença de bacharéis em provincianas cidades. Ilustres foram os alunos que fre-
Direito, sobretudo quando se trata de indicar os represen- qüentaram o curso jurídico. Citam-se, como exemplos, os
tantes para uma Comissão incumbida de propor altera- nomes de Álvaro de Azevedo, Bernardo Guimarães, José
ções no poder Judiciário. Esta análise preocupa-se, pri- de Alencar, Castro Alves, Joaquim Nabuco, Rui Barbo-
meiramente, com o número de deputados formados em sa, Olavo Bilac, entre outros (Bruno, 1953).
Direito nesta Comissão; em seguida, será apontada a con- Em pouco tempo, os diplomados pelas faculdades de
tinuidade de uma tendência iniciada em meados do sécu- Direito começaram a marcar presença no cenário político
lo passado e mantida até os dias de hoje, isto é, o alto nacional. Carvalho (1974) mostra o contraste na compo-
índice de bacharéis de Direito na composição da Câmara sição da Assembléia antes e depois da instalação dos cur-
dos Deputados. Para esta discussão estar-se-á, de alguma sos jurídicos no país. Em 1826, do total de deputados, 1%
forma, enfrentando os termos das acusações trocadas en- equivalia a advogados, 8% a bacharéis e 27% a magistra-
tre os presidentes da Câmara e do Senado. Ainda que a dos, perfazendo um total de 36% de formados em Direi-
questão da participação ou não de bacharéis em Direito to. Em 1886, após a implantação dos cursos jurídicos em
seja o aspecto menos relevante da disputa protagonizada São Paulo e Olinda, são visíveis os efeitos da política
pelos presidentes das duas casas do Legislativo, ela ofe- educacional adotada: 12% são advogados, 46,4% são ba-
rece a oportunidade de elaborar um retrato do Legislativo charéis e 6,4% são magistrados, totalizando 64,8%. O
e de verificar se para os diferentes partidos a reforma do crescente aumento na participação desses profissionais
Judiciário deve ser liderada por advogados ou por “cu- contracena com a diminuição dos cidadãos oriundos de
riosos”. outras áreas acadêmicas e/ou profissionais, particularmen-
te as ciências exatas e a medicina. A expressiva partici-
CURSOS JURÍDICOS: DA INTENÇÃO AO ACASO pação política dos bacharéis não se dava apenas na Câ-
mara. Carvalho (1974) aponta que, enquanto em 1826 61%
Os cursos jurídicos surgiram no Brasil, durante o Im- dos senadores provinham da área do direito, em 1831 este
pério, com a clara intenção de formar nossa elite dirigen- percentual subiu para 71%, em 1840 para 78%, em 1853
te. Julgava-se que a independência política exigiria igual para 93% e em 1871 para 72%. No que se refere aos mi-
autonomia cultural. Esta estratégia implicava a transfe- nistros, os diplomados em Direito compreendiam 51% em
rência de Coimbra e de outros centros europeus para o 1822, 57% em 1831, 85% em 1840, 77% em 1853 e 86%
interior do país das escolas responsáveis pela “cabeça” em 1871.
dos que ocupariam os postos de mando. Assim, foram Durante o século XX, entretanto, nota-se uma expres-
criados cursos jurídicos estritamente controlados pelo siva mudança no papel das Faculdades de Direito e no
governo central.2 Apesar de dirigidos para os jovens das perfil de seus diplomados. Primeiramente, os cursos dei-
famílias que ocupavam os mais altos postos na hierarquia xaram de ser estritamente controlados e financiados pelo
econômica, eram inteiramente gratuitos, financiados pelo Estado e perderam a característica de centros formadores
poder público, com a justificativa de que respondiam a de homens destinados, sobretudo, à política e à alta ad-
um interesse nacional e não privado. ministração pública. Se no século passado existiam ape-
As primeiras faculdades foram instaladas em Olinda nas dois cursos jurídicos no Brasil, ao longo dos últimos
(PE) e em São Paulo (SP),3 visando formar uma elite ca- 98 anos este número evoluiu significativamente. Para ilus-
paz de dirigir o país recém-independente e preparada para trar a proliferação de escolas desta natureza, pode-se ci-
construir um Estado Nacional. Ao lado da titulação aca- tar como exemplo o Estado de São Paulo. No século XIX,
dêmica profissional, as faculdades de Direito constituí- havia somente a escola do Largo São Francisco, manten-
ram-se em campo fértil de discussões políticas, culturais do-se este quadro inalterado até o início da década de 40.

102
OS BACHARÉIS EM DIREITO NA REFORMA DO JUDICIÁRIO: TÉCNICOS OU CURIOSOS?

Em 1946 foi fundado o curso jurídico da PUC – Pontifícia Muitas escolas passaram a ser caracterizadas como
Universidade Católica de São Paulo – e durante a década “faculdades de fachada” ou “cursos de fim-de-semana”
de 50 foram criadas outras sete escolas, localizadas no (Castro, 1999), restando a seus formandos a procura aos
interior e no litoral. Nos anos 60, devido à política de in- chamados “cursinhos”, que prometem “milagres” e fácil
centivos do governo militar à abertura de cursos superio- aprovação em qualquer um dos concursos anteriormente
res, houve o surgimento de 16 novos centros no Estado. citados. Além disso, a matrícula nestes cursos “auxilia-
Entre os anos 70 e 80, foram abertas mais 12 faculdades, res” tem feito aumentar ainda mais o investimento neces-
seis em cada década. Por fim, entre 1990 e 1994, mais sário para a habilitação profissional para atuação no mer-
dez novos cursos de Direito foram inaugurados.4 cado de trabalho. Inauguram-se, assim, mais um estágio
Este aumento na quantidade de escolas5 certamente tem para a formação profissional e mais uma forma de obten-
a ver com o crescimento da população, com a urbaniza- ção de lucros. Ou seja, para além das despesas com men-
ção, com a ampliação do acesso à educação, dentre ou- salidades, matrículas, material didático, acrescenta-se o
tros fatores. O mercado, para o bacharel em Direito, é bas- que é despendido com as inscrições em exames e concur-
tante amplo, caracterizando-se pela opção de atuação no sos.8 A freqüência a estes cursos aumenta as chances de
setor privado ou pelo exercício de carreiras ligadas ao exercício de uma atividade relacionada ao curso de Di-
Estado – juízes, promotores, procuradores, defensores reito. Deve-se ressaltar que alunos oriundos de boas fa-
públicos e delegados. Este cenário, aparentemente pro- culdades (conceito A no exame do Ministério da Educa-
missor, propiciou o surgimento de cursos deficientes, ção) têm obtido altos índices de aprovação nos exames
despejando enorme contingente de bacharéis, muitas ve- de Ordem. Entretanto, mesmo estes bacharéis, quando
zes malpreparados, no mercado de trabalho. Indubitavel- optam pela carreira pública, não costumam se livrar dos
mente, estas novas Faculdades e seus “novos profissio- referidos “cursinhos preparatórios”.
nais” alteraram a imagem da categoria, que deixou de ser
a do “bacharel-oligarca”, do “homem ilustrado”. A gran- OS BACHARÉIS EM DIREITO
de massa dos egressos das Faculdades de Direito vem NA CÂMARA DOS DEPUTADOS
enfrentando, inclusive, dificuldades para o exercício de
seu ofício. A carreira tem mostrado claros sinais de cor- Como já apontado, apesar de ser crescente o número
rosão, e o estudante, depois de cinco anos de faculdade, de diplomados em Direito, seu prestígio encontra-se em
encontra-se longe de gozar do prestígio que usufruía an- franco declínio. À diminuição das chances de sucesso no
tes da proliferação destes cursos. Tal situação foi perce- mercado de trabalho, contudo, não tem correspondido
bida na década de 70, quando a Ordem dos Advogados igual ausência nos postos de mando. De fato, tais profis-
do Brasil,6 preocupada em minimizar os efeitos da proli- sionais continuam a ocupar lugar de destaque na política
feração dos cursos, com o nível do ensino jurídico e em nacional, mostrando, deste ponto de vista, ser menor a
manter o controle sobre o mercado profissional, instituiu distância com a situação da segunda metade do século
o Exame de Ordem como condição indispensável para o passado. A presença de bacharéis, sobretudo na Câmara
exercício da profissão de advogado. Em 1994 a entidade de Deputados, ainda é marcante. Ao contrário, porém, dos
conquistou o controle monopolístico sobre a única forma bacharéis do século XIX, oriundos de cursos que visa-
de ingresso na carreira de advogado. Esta decisão provo- vam especialmente o preparo para o exercício político, o
cou o surgimento de bacharéis marginalizados, ou seja, cenário verificado no final do século XX parece ser dis-
impossibilitados de atuar no setor privado por terem sido tinto. Os dados disponíveis não permitem supor que en-
reprovados no exame. Da mesma forma, aqueles que op- tre os objetivos das faculdades de Direito destaque-se ain-
tam pelas carreiras públicas – juiz, promotor, procurador, da a formação de homens destinados ao desempenho de
defensor público e delegado – têm esbarrado em concur- cargos legislativos e executivos. Mesmo assim, observa-
sos que exigem dos candidatos um saber que vem invia- se que, apesar das alterações nas características acadêmi-
bilizando o preenchimento desses cargos, pela imensa cas, em 1982, por exemplo, 60,6% dos deputados fede-
maioria dos inscritos nos processos de seleção.7 Afasta- rais eram formados em Direito. Em 1986 este percentual
dos da possibilidade de ingresso em uma carreira relacio- caiu para 35% e, em 1995, para 30,4%, ou seja, quase um
nada ao seu curso, milhares de bacharéis em Direito bus- terço do total da Câmara. Em junho de 1999, aproxima-
cam outras alternativas. damente 28% dos parlamentares formaram-se em cursos

103
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

jurídicos. É indiscutível o declínio na proporção de ba- tual de diplomados em Direito na Comissão é três vezes maior
charéis no conjunto dos deputados, mas esta é ainda a (90%) do que aquele observado na Câmara (28%). Tal com-
profissão majoritária entre os parlamentares. posição demonstra uma total confiança da Câmara na
Teriam estes profissionais alguma peculiaridade em sua assunção de que os bacharéis em Direito seriam, realmente,
atuação no Legislativo? A volta da discussão sobre a re- os parlamentares mais qualificados para dirigirem as mu-
forma do Poder Judiciário no Brasil pode se constituir em danças no poder Judiciário.
uma oportunidade para a abordagem desta questão. A
Constituição permite que o presidente da República e os TABELA 1
participantes das mais altas instâncias da Justiça propo- Parlamentares da Comissão para Reforma do Poder Judiciário,
segundo Qualificação
nham mudanças na lei constitucional. Entretanto, são os
Brasil – 1999
deputados e senadores os responsáveis fundamentais por
tais modificações. Quando foi composto o grupo encar- Deputados
regado da reforma do Poder Judiciário, que critério foi Qualificação
N Abs.
os
%
utilizado pelos diferentes partidos? Isto é, esteve presen-
te a necessidade de participação de profissionais que te- Total 31 100,0
nham maior afinidade com esta área? Do ponto de vista Formados apenas em Direito 12 38,7
dos objetivos das alterações – tornar o Judiciário mais Formados em Direito e com Outras Profissões 16 51,6
Detentores de Outros Diplomas (sem o Direito) 3 9,7
eficiente no cumprimento de suas funções – nada indica-
ria, em princípio, que apenas bacharéis em Direito teriam Fonte: Site da Câmara dos Deputados na Internet (www.camara.gov.br).

condições de propor mudanças. Mesmo porque caberia


aos deputados, mais do que discussões técnicas, ouvir di- Nota-se que, dos 28 deputados com formação superior
ferentes setores da sociedade e concluir sobre instru- em Direito, 16 possuem outras ocupações (um deles re-
mentos e mecanismos aptos a aperfeiçoar o sistema de gistra, inclusive, acumular as atividades de procurador de
Justiça. Justiça e professor), enquanto os outros 12 são exclusi-
Veja-se, por exemplo, o tema do embate entre o presi- vamente advogados ou diplomados em Direito.
dente da Câmara, deputado Michel Temer, e o presidente As comissões são formadas respeitando-se a propor-
do Senado, Antônio Carlos Magalhães, ocorrido de ma- cionalidade partidária existente na Câmara. Dessa forma,
neira mais ríspida em junho de 1999. O primeiro mos- cabe investigar a presença de advogados no interior de
trou-se favorável a uma comissão para reforma do Judi- cada legenda partidária. No Quadro 1, apresentam-se a
ciário formada por bacharéis em Direito e o segundo profissão, o partido e a unidade federativa de cada um
posicionou-se contra, alegando corporativismo e desin- dos 31 parlamentares que compõem a comissão encarre-
teresse deste grupo na aprovação de medidas que pudes- gada de propor reformas para o poder Judiciário.
sem colocar em risco vantagens propiciadas pelo atual O PFL, o PT, o PPB, o PTB e o PDT, ocupando diferen-
sistema legal e judicial. tes posições no espectro ideológico,9 contribuem com um
A Tabela 1 mostra a composição da Comissão de Re- total de 17 deputados. Todos estes parlamentares possuem
forma do Judiciário, evidenciando que, assim como seu formação superior em Direito. Os outros dois partidos re-
presidente, os membros da Câmara dos Deputados ou pelo presentados na comissão, o PMDB e o PSDB, cada um com
menos as lideranças partidárias, de alguma forma, con- seis representantes, preenchem dez de seus postos com ba-
cordam com a tese segundo a qual a reforma do Poder charéis. O PSDB completou sua cota com um empresário,
Judiciário é assunto para acadêmicos do Direito. Nota-se enquanto o PMDB nomeou um militar para a vaga restan-
que, dos 31 parlamentares que integram esta Comissão te. Entre os pequenos partidos, distinguindo-se as legen-
Especial, 28 são formados em cursos jurídicos, ou seja, das consideradas de esquerda das de direita, nota-se que
90% de seus componentes. Restam três parlamentares: um nas de esquerda existe um representante e este com curso
militar, um empresário e, um engenheiro que acumula a superior em Direito, enquanto no bloco de direita o único
atividade de professor universitário. parlamentar é engenheiro e professor universitário.
A extraordinária predominância de bacharéis em Direito Em todos estes partidos, convém ressaltar, não existe
na Comissão não é proporcional à presença destes profissi- tal supremacia de parlamentares oriundos da área do
onais nem na Câmara nem nos distintos partidos. O percen- Direito. Se a Comissão fosse formada ao acaso, have-

104
OS BACHARÉIS EM DIREITO NA REFORMA DO JUDICIÁRIO: TÉCNICOS OU CURIOSOS?

ria uma chance de aproximadamente 28% dos integran- Verifica-se, ainda, através do Quadro 1, a falta de pro-
tes da Comissão ostentarem diploma em curso supe- porcionalidade no que diz respeito à unidade federativa
rior em Direito. No entanto, observa-se que 90% deste em que o parlamentar se elegeu. O dado que mais chama
grupo têm esse título acadêmico. Este desvio pode ser a atenção refere-se ao Estado da Bahia, que possui apro-
mais bem aquilatado quando analisada a proporciona- ximadamente 7% dos deputados da Câmara, mas na co-
lidade existente no interior de cada partido. Caso tal missão contribui com quase 13% dos parlamentares, ou
proporção fosse respeitada, tanto o PT como o PPB seja, quatro nomes. Metade destes deputados é filiada ao
deveriam enviar para a Comissão apenas um bacharel PFL, partido que tem no Presidente do Senado, o baiano
em Direito. Porém, todas as sete vagas desses partidos Antônio Carlos Magalhães, sua maior figura de expres-
são ocupadas por diplomados em direito. O PDT, o PTB são. Os outros dois representantes pertencem ao PT e ao
e os pequenos blocos – de direita e esquerda – deve- PSDB. O Estado de São Paulo, unidade federativa do pre-
riam, somados, ter apenas um parlamentar formado em sidente da Câmara, Michel Temer, ocupa o maior núme-
cursos jurídicos na Comissão; entretanto, das cinco ro de vagas (precisamente seis), correspondendo a 19%
vagas disponíveis para este grupo, quatro são ocupa- da Comissão, contra 13,5% de representantes paulistas no
das por bacharéis. Por fim, PFL, PSDB e PMDB deve- total de deputados federais. Porém, quando estes dados
riam nomear, cada um, dois deputados formados em são agrupados por regiões do país, como mostra a Tabela
Direito, mas a realidade é bem diferente: das 19 cadei- 2, percebe-se um maior equilíbrio. As maiores distorções
ras na Comissão destinadas a estas legendas, 17 são ocu- no interior da Comissão são verificadas na região Sudes-
padas por deputados detentores de diplomas em cursos te, com 7% acima de sua real proporção na Câmara, e na
jurídicos. região Sul, com um déficit de 5%.

QUADRO 1
Parlamentares da Comissão de Reforma do Judiciário, por Qualificação
e Estado, segundo Partido Político
Brasil – 1999

Bacharel de Direito Outra Profissão Estado Bacharel em Direito Outra Profissão Estado

PFL PT
Sim Sim SC Sim Sim RJ
Sim Não BA Sim Não SP
Sm Sim SP Sim Não SE
Sim Sim TO Sim Sim BA
Sim Sim BA
Sim Sim RN PDT
Sim Sim PI Sim Não SP

PMDB PSDB
Não Militar DF Sim Não SP
Sim Não RJ Sim Sim MG
Sim Sim PA Sim Não BA
Sim Não RS Não Empresário CE
Sim Não GO Sim Sim CE
Sim Sim SC Sim Não SP

PPB PTB
Sim Sim PA Sim Não SP
Sim Sim MG Sim Não RJ
Sim Sim RJ

PSB/PCdoB PL/PST/PMN/PSD/PSL
Sim Sim MA Não Engenheiro Eletr. MG

Fonte: Site da Câmara dos Deputados na Internet (www.camara.gov.br).

105
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

TABELA 2 descrença da população nos órgãos ligados ao Poder Ju-


Distribuição dos Bacharéis em Direito na Comissão e na Câmara, diciário são indicadores de que a questão Justiça ultra-
segundo Regiões
Brasil – 1999 passa as fronteiras estritas do Direito.
Em porcentagem A Tabela 4 possibilita uma análise mais acurada de como
Bacharéis em Direito os parlamentares formados em cursos jurídicos distribuem-
Regiões
Na Comissão Na Câmara se em relação às suas profissões. Nota-se, como havia sido
dito anteriormente, que um número considerável desses
Sudeste 42,0 35,0
políticos exerce outras atividades, muitas relacionadas com
Sul 10,0 15,0
Norte 10,0 13,0 o diploma acadêmico e outras distantes ou muito remota-
Nordeste 32,0 29,5 mente ligadas a esta formação acadêmica.
Centro-Oeste 6,0 8,0
TABELA 3
Fonte: Site da Câmara dos Deputados na Internet (www.camara.gov.br).
Deputados Federais, segundo Profissões
Brasil – 1999
Voltando à discussão acerca das carreiras representadas
na Câmara, a Tabela 3 reproduz a divisão percentual das Deputados Federais
Profissões
atividades profissionais dos deputados federais. Deve-se res- N os Abs. %
saltar que apenas as ocupações de 512 parlamentares estão
Direito 143 27,93
sendo consideradas, uma vez que o site da Câmara na Internet Professor 111 21,68
(www.camara.gov.br) não traz nenhuma referência ao 53o Empresário – Industrial – Comerciante 110 21,48
representante do Estado de Minas Gerais. Deste total, 143 Economista – Administrador – Contador 85 16,60
Atividades Ligadas à Agropecuária 77 15,04
são formados em Direito, ou seja, 27,9%. Ressalte-se que Médico – Dentista 68 13,28
muitos parlamentares têm mais de uma ocupação, o que faz Engenheiro 46 8,98
Jornalista – Radialista 38 7,42
com que o total some mais de 100%. Dentre os representan-
Funcionário Público 26 5,08
tes analisados, foram encontradas 811 atividades, ou seja, Bancário 15 2,93
uma média 1,6 por deputado federal. Pastor 15 2,93
Não Informaram 7 1,37
Percebe-se que, apesar de em proporção inferior à ve- Outros Profissionais 70 13,67
rificada nas legislaturas anteriormente citadas (1982, 1986
Fonte: Site da Câmara dos Deputados na Internet (www.camara.gov.br).
e 1995), os bacharéis em Direito – sejam delegados, pro-
curadores, advogados ou cidadãos exercendo outras pro- TABELA 4
fissões ainda que formados em Direito – ainda detêm o Parlamentares da Câmara Federal Formados em Direito, segundo Profissões
maior percentual profissional dentro da Câmara (27,9%). Brasil – 1999
Até mesmo a ocupação de professor, que permite o exer-
Deputados
cício simultâneo de outras profissões, tem uma menor Bacharéis em Direito na Câmara
proporção de deputados (21,7%). Saliente-se, também, a N Abs.
os
%
presença de 21,5% de empresários, industriais e comer- Formado Somente em Direito 56 39,0
ciantes e de 16,6% de economistas, administradores e con- Bacharel em Direito ou Advogado 53
tadores. Delegado 2
Promotor 1
Em tese, todos os grupos profissionais arrolados na Ta- Formado em Direito e com Outras Atividades 87 61,0
bela 3 teriam interesse na reforma do Poder Judiciário e, Mais uma Profissão 60
Mais duas Profissões 20
certamente, poderiam ocupar lugar na referida Comissão. Mais três Profissões 6
Estudos recentes, voltados para a relação entre justiça e Mais quatro Profissões 1
economia, mostram que a morosidade da Justiça e a com- Distribuição das “Outras Profissões”
Professor 33
plexidade de nossas leis são os principais entraves para a Empresário 23
entrada de capital externo no Brasil, seja no que diz res- Radialista 6
Jornalista 6
peito à instalação de indústrias e busca de parcerias, seja
Contador 8
para o investimentos no mercado financeiro (Pinheiro, Atividade Agropecuária 10
1996). Além disso, o crescente descontentamento com o Outras 36

desempenho da Justiça, o aumento da criminalidade e a Fonte: Site da Câmara dos Deputados na Internet (www.camara.gov.br).

106
OS BACHARÉIS EM DIREITO NA REFORMA DO JUDICIÁRIO: TÉCNICOS OU CURIOSOS?

Dos 143 deputados formados em Direito, 56 (39%) têm Todos os partidos com mais de 20 deputados federais
apenas uma profissão. Desses, três seguiram carreira pú- apresentam mais de um quinto de seus parlamentares for-
blica, sendo dois delegados e um promotor. Os outros 53 mados em Direito. Esta característica não distingue os
são advogados. Os demais 87 parlamentares da Câmara, partidos de oposição daqueles de situação, uma vez que
ou seja, 61% dos diplomados em cursos jurídicos, decla- os dois principais partidos oposicionistas, PT e PDT, têm,
raram ter outras ocupações. Desses, quatro dedicaram-se respectivamente, o menor (21,7%) e o maior (47,8%) ín-
à carreira pública e somam a esta mais uma profissão: um dice de deputados bacharéis em Direito. As três maiores
delegado com formação em administração, dois procura- legendas na Câmara mantêm, entre si, percentuais simi-
dores que atuam como professores e um promotor ligado lares de acadêmicos com formação jurídica: PFL (31,2%);
à área agropecuária. Os 83 restantes dividem-se em qua- PSDB (27,5%); e PMDB (28,7%). O PPB e o PTB tam-
tro grupos de acordo com a quantidade de ocupações de- bém não apresentam nenhuma distorção com relação ao
claradas: 56 deputados possuem mais de uma ocupação, padrão dominante verificado nas demais siglas, com 32%
20 têm mais de duas, seis exercem mais de três e um de- e 22,7%, respectivamente, de parlamentares formados em
putado declarou possuir mais de quatro atividades, além Direito.
do Direito e do mandato como representante. Dentre es- Outra observação interessante a ser feita refere-se à
tas profissões, dos 87 deputados, 33 são professores, 23 quantidade de bacharéis por região do Brasil (Tabela 6).
são empresários, dez exercem atividades voltadas à Dos 512 parlamentares, 143 são formados em Direito, o
agropecuária, seis são jornalistas e outros seis desempe- que corresponde a 27,9% do total. As três maiores regiões
nham atividades de radialista. Existem ainda oito conta- em termos de representação têm percentuais muito pró-
dores e mais 36 outras ocupações. ximos da média nacional. No Sudeste, 29,8% de seus de-
Tais características podem ser visualizadas sob outro putados são titulados em cursos jurídicos, no Nordeste,
ângulo, na Tabela 5, na qual consta o percentual de ba- 30,4% e na região Sul, 28,6%. O Centro-Oeste, região com
charéis por partido político. Fica claro que todos os parti- o menor número de deputados federais (41) também apre-
dos políticos possuem em suas fileiras percentuais eleva- senta um percentual próximo da média (29,3%). A região
dos destes profissionais. Desta forma, pode-se afastar a Norte é a exceção à regra: dos seus 65 deputados, apenas
hipótese de haver uma única legenda que represente tal dez, ou 15,4%, são formados em Direito.
categoria profissional. O bacharel em Direito aparece de Especificando-se a análise, por unidade federativa, é
forma expressiva em todas as siglas partidárias com mais possível desvendar a origem das informações que cons-
de 20 parlamentares. Em partidos com menor representa- tam na Tabela 6. O baixo índice indicado em relação à
ção, é importante destacar o PL – Partido Liberal, cujos região Norte, por exemplo, explica-se pelo fato de que o
integrantes são majoritariamente empresários, economistas Acre e o Amapá não possuem nenhum bacharel em Di-
e administradores, não havendo, dentre seus nove parla- reito dentre seus 16 parlamentares. Acrescentam-se, ain-
mentares, nenhum diplomado em cursos jurídicos. da, a baixa proporção de diplomados em Direito encon-
trada em Roraima e Tocantins, com 12,5% e os índices
TABELA 5 inferiores a 30% nos demais estados. No caso do Sudes-
Índices de Bacharéis em Direito nos Partidos com Mais de 20 Deputados te, a distribuição mantém-se próxima a 30%, com exce-
Brasil – 1999 ção de Minas Gerais, que registra um índice de 19,2%. A
região Sul apresenta casos muito desiguais: alcança seu
Partidos Deputados Bacharéis % no Partido ápice no Rio Grande do Sul (41,9%) em contraste com
Paraná (16,7%). No Centro-Oeste verifica-se a maior das
PFL 109 34 31,2
distorções regionais: enquanto em Brasília, entre seus oito
PSDB 102 28 27,5
deputados, nenhum é formado em Direito, no Mato Grosso
PMDB 101 29 28,7
do Sul, 50% concluíram tal curso. Por fim, no Nordeste,
PT 60 13 21,7
com as exceções de Sergipe (25%), Ceará (23%) e Bahia
PPB 50 16 32,0
(21%), todos os demais estados apresentam taxas supe-
PDT 23 11 47,8
riores a 30%. O destaque, neste caso, fica por conta de
PTB 22 5 22,7
Alagoas, com 55,6%, o maior índice nacional de deputa-
Fonte: Site da Câmara dos Deputados na Internet (www.camara.gov.br). dos federais bacharéis em Direito por estado.

107
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

TABELA 6 proporcional destas escolas (45,7%), de formados em 1998


Bacharéis em Direito na Câmara dos Deputados, segundo Regiões (60,5%) e da população do país (42,7%). No entanto, seu
Brasil – 1999
percentual de bacharéis na Câmara é consideravelmente
inferior aos demais índices (37,1%). Por fim, no Nordes-
Regiões Deputados Bacharéis % no Partido
te, são observadas as maiores distorções dentre todas as
Brasil 512 143 27,93 regiões. Possui somente 12,3% dos cursos de Direito do
Centro-Oeste 41 12 29,27 Brasil, 10,5% dos formados mas, em compensação, 28,5%
Nordeste 151 46 30,46 da população segundo informações da Fundação Institu-
Norte 65 10 15,38
Sudeste 178 53 29,78
to Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE para 1996
Sul 77 22 28,57 e 32,2% dos bacharéis desta área existentes na Câmara.
Seria possível supor que, nas regiões consideradas mais
Fonte: Site da Câmara dos Deputados na Internet (www.camara.gov.br).
atrasadas do país, existiria ainda uma grande valorização
TABELA 7 da figura do “doutor”? Ou seja, prevaleceria a crença se-
Distribuição dos Bacharéis na Câmara, dos Cursos de Direito (1), dos gundo a qual teria maior capacidade política o cidadão
Diplomados e da População, segundo Regiões com condições para concluir um curso superior, na maio-
Brasil – 1999 ria dos casos tradicional (medicina, engenharia e direi-
Em porcentagem
to)? Este político estaria sendo visto, pela maioria, como
Bacharéis Cursos de um homem mais habilitado que os demais para o exercí-
Regiões Diplomados População
na Câmara Direito
cio das funções públicas? Apesar de não existir evidên-
Brasil 100,0 100,0 100,0 100,0 cias empíricas suficientes para tentar responder a estas
Centro-Oeste 8,3 9,9 9,0 6,6 questões, é possível, no entanto, sugerir relações entre grau
Nordeste 32,2 12,3 10,5 28,5
de desenvolvimento e prevalência de bacharéis em Direi-
Norte 7,0 6,6 3,0 7,2
Sudeste 37,1 45,7 60,5 42,7
to. O Nordeste, por exemplo, formou apenas 10,5% des-
Sul 15,4 25,5 17,0 15,0 tes bacharéis em 1998 e tem 32,2% dos 143 deputados
diplomados nesta área, atingindo um índice três vezes
Fonte: Sites: da Câmara dos Deputados, do Inep e do IBGE na Internet.
(1) Relacionadas somente as instituições avaliadas pelo MEC no Provão de 1998. maior que o esperado. Esta tendência também é verifica-
da na região Norte, onde se formaram 3,0% dos estudan-
A situação descrita anteriormente, salientando o aspecto tes em Direito de 1998, perfazendo um percentual duas
regional, pode ser completada com a análise da Tabela vezes superior no número de bacharéis na Câmara (7,0%).
7, em que são apresentados os percentuais dos cursos ju- As regiões Sul e Sudeste, consideradas as mais desenvol-
rídicos e da população. A região Norte registra equilíbrio vidas do país, apresentam índices negativos na análise
entre o índice de bacharéis em Direito na Câmara (7,0%), relacionando formados na área e deputados titulados em
o percentual de cursos desta natureza avaliados em 1998 Direito. Por fim, na região Centro-Oeste observa-se um
pelo MEC (6,6%) e sua participação no total populacio- equilíbrio nesta relação. É importante destacar que não
nal (7,2%). No entanto, responde por apenas 3% dos di- se está afirmando peremptoriamente a existência de uma
plomados em 1998. Esta informação pode ajudar a expli- equivalência entre maior presença de advogados e atra-
car por que esta região possui baixo índice de deputados so. Porém, dadas as evidências, pode-se sustentar que, nas
formados em Direito entre seus parlamentares (15,4%). regiões consideradas menos desenvolvidas, a presença de
A região Centro-Oeste abriga 6,6% da população do país, bacharéis em Direito é muito superior ao índice de alu-
mas tem índices proporcionalmente altos de cursos de nos formados em comparação com as regiões considera-
Direito (9,9%), de diplomados (9,0%) e de bacharéis na das mais avançadas.
Câmara (8,3%). Já a região Sul, apesar de contar com um Por fim, para completar esse retrato da Câmara e da
quarto dos cursos jurídicos do Brasil, possui 15% da po- Comissão para a Reforma do Judiciário, com foco espe-
pulação do país, 15,4% dos bacharéis na Câmara e 17% cial nos bacharéis em Direito, será examinada a probabi-
dos diplomados em 1998. Tal situação reflete a existên- lidade destes supostos “técnicos” terem freqüentado es-
cia de um maior equilíbrio relativo entre demografia, di- colas de qualidade.
plomados e deputados formados em cursos jurídicos. Na O MEC – Ministério da Educação e Desporto – vem
região Sudeste, por sua vez, encontra-se o maior número realizando nas faculdades de Direito, desde 1996, o exa-

108
OS BACHARÉIS EM DIREITO NA REFORMA DO JUDICIÁRIO: TÉCNICOS OU CURIOSOS?

me nacional de cursos ou “Provão”. Tal avaliação tem por TABELA 9

intuito quantificar as diferenças de qualidade existentes Bacharéis na Câmara e na Comissão e Probabilidade destes
Provirem de Boas Escolas
entre os mais de 200 cursos de Direito no Brasil com con-
Brasil – 1999
ceitos que variam do “A”, para as melhores instituições,
ao “E” para as piores. Certamente a utilização destes re-
Bacharéis na % Prováveis Bons Bacharéis
sultados é problemática, uma vez que a qualidade dos Regiões
Câmara Cursos A-B Bacharéis na Comissão Saldo
cursos pode ter sofrido alterações – para melhor ou para
pior – da época em que os atuais parlamentares se forma- Brasil 143 100,0 35 28 +7
Centro-Oeste 12 23,8 3 1 +2
ram até o ano em que foi feita a avaliação do MEC. Além Nordeste 46 15,4 7 9 -2
disso, é sabido que estes resultados podem apresentar sé- Norte 10 0,0 0 3 -3
rias distorções. Ainda assim, a verificação das chances Sudeste 53 26,8 14 12 +2
Sul 22 51,9 11 3 +8
de um deputado proveniente de uma determinada região
ter freqüentado uma boa escola pode fornecer mais al- Fonte: Sites da Câmara dos Deputados e do Inep na Internet.

guns traços para o retrato que está sendo elaborado aqui.


Assim, a partir da Tabela 8, verifica-se a probabilidade Dos 143 bacharéis em Direito existentes dentre os de-
de se encontrar bons conhecedores de Direito entre os putados federais, 28 fazem parte da Comissão para refor-
deputados, por região. ma do Judiciário. Segundo o índice obtido da relação en-
Segundo os dados da Tabela 8, não existiria possibili- tre o percentual de bons cursos por região e o número de
dade de a região Norte ter um bacharel proveniente de titulados na Câmara, seria possível preencher estas 28
uma boa faculdade (conceito A ou B). No caso da região vagas (90% da Comissão) com bacharéis provenientes de
Nordeste, haveria 15,4% de chances de um diplomado ter boas escolas. A probabilidade da existência de bons aca-
estudado em uma instituição de alto nível. O Sudeste dêmicos é tão grande que seria viável, inclusive, a ocu-
(26,8%) e o Centro-Oeste (23,8%) apresentam índices pação das 31 cadeiras da Comissão com “técnicos” no sa-
muito semelhantes de boas faculdades em Direito. Por ber jurídico, tal como idealizava a declaração do presidente
fim, na região Sul, encontra-se o melhor coeficiente de da Câmara. No entanto, para que tal condição ocorresse,
bons cursos jurídicos, com 51,9%. É importante res- teria, por exemplo, de ser feita uma cuidadosa divisão
saltar, uma vez mais, que este exercício baseia-se em regional desses cargos, o que significaria, inclusive, a
pressupostos que podem não ocorrer necessariamente. antidemocrática exclusão de deputados de uma região do
Ou seja, um deputado de determinada região pode não quadro de parlamentares componentes da referida Comis-
ter estudado em uma faculdade localizada nos limites são. Uma análise mais detalhada da Tabela 9 revela situa-
geográficos de seu estado. A Tabela 9 apresenta os totais ções distintas entre as regiões, diminuindo as chances da
de bacharéis por região na Comissão e, mediante a avalia- Comissão ser plenamente composta por “bons” bacharéis
ção do MEC, a possibilidade destes serem provenientes em Direito. A região Norte, por exemplo, não apresenta
de boas escolas. bons cursos jurídicos e, conseqüentemente, é baixa a pro-
babilidade de contar com “bons” bacharéis dentre os seus
TABELA 8 três parlamentares nomeados. As regiões Sul, Sudeste e
Distribuição dos Conceitos do MEC Centro-Oeste têm alta probabilidade de contar com pro-
Brasil – 1998 fissionais competentes na Comissão, uma vez que apre-
Em porcentagem sentam saldo positivo na relação “prováveis bons bacha-
Regiões Conceito A – B Conceito C Conceito D – E réis” e “número de bacharéis na Comissão”. Por fim, a
região Nordeste tem um déficit de dois parlamentares e,
Centro-Oeste 23,8 23,8 52,4 de acordo com este exercício, estaria colaborando, a exem-
Nordeste 15,4 34,6 50,0 plo da região Norte, para a diminuição da qualidade dos
Norte 0,0 28,6 71,4 chamados “técnicos”.
Sudeste 26,8 46,4 24,7
Mesmo sendo a Comissão para reforma do Poder Ju-
diciário formada a partir de uma lógica que garante, in-
Sul 51,9 38,9 9,3
clusive, representatividade para todas as regiões do país,
Fonte: Site do Inep na Internet (www.inep.gov.br). é possível supor que os bacharéis em Direito que a com-

109
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

põem são, de uma maneira geral, bons conhecedores do E a reforma do Judiciário? Seria este tema, afinal,
assunto. Excetuando-se os cinco parlamentares que pro- matéria para advogados ou para todos aqueles que ali es-
vavelmente não provêm de boas escolas – três da região tão representando o interesse dos mais diversos segmen-
Norte e dois do Nordeste – restariam 23 possíveis bons tos sociais? O problema contrapondo advogados e os cha-
bacharéis, ou seja, 82% do total de diplomados em cur- mados “curiosos” poderia ter tantas soluções quantas são
sos jurídicos, ou 74% da Comissão. Tal resultado, certa- as teorias sobre o papel da representação democrática. O
mente, auxiliaria na confirmação do argumento sustenta- presidente da Câmara, defendendo a participação exclu-
do pelo presidente da Câmara. siva de advogados, demonstrou abraçar uma peculiar for-
ma de atuação legislativa. Os dados apresentados mos-
NOTAS FINAIS: tram que o deputado Michel Temer (PMDB-SP) não estava
UMA COMISSÃO DE “TÉCNICOS” sozinho. Ao contrário, sob a ótica de todos os partidos, a
reforma do Judiciário, pelo menos no que se refere às
Os dados apresentados possibilitam algumas conclu- qualificações profissionais do grupo encarregado de pro-
sões a respeito da presença dos diplomados em cursos ju- por as emendas, é matéria para “técnicos” no assunto e
rídicos na Câmara dos Deputados. Chama especialmente não para “curiosos”.
a atenção o fato de os bacharéis em Direito ainda compo- Restaria saber, no entanto, se a reforma do Judiciário
rem o maior grupo profissional nesta Casa Legislativa. é uma questão técnica e que, como tal, só poderia ser tra-
Embora tenham perdido o prestígio que gozavam no pas- tada por técnicos do saber jurídico, que, exercendo seu
sado, constituem um grupo de referência. Os termos do saber, chegariam a uma solução “ótima”, inteiramente des-
debate entre os presidentes da Câmara e do Senado, de provida de interesses e paixões. Os embates travados desde
alguma forma, centra-se nas possíveis qualidades que sin- que o tema foi colocado em discussão contrariam este
gularizariam os bacharéis. Desta forma, apesar de ser cla- suposto. A dissensão entre os operadores do direito e in-
ramente decrescente a presença de advogados, a posse ternos a cada um dos diferentes grupos – magistrados, pro-
desta qualificação profissional parece ainda justificar sua motores, procuradores, defensores públicos, delegados,
participação em determinadas Comissões. E este foi o juristas e advogados –, é razão mais do que suficiente para
entendimento que prevaleceu entre os deputados fede- se contestar o suposto segundo o qual os “técnicos no saber
rais quando se tratou de formar a Comissão responsável Jurídico” possuiriam uma especial capacidade para a for-
pela elaboração de emendas para a reforma do Poder mulação de uma reforma. Obviamente não se está mini-
Judiciário. mizando a importância de um saber especializado, mas
Bacharéis são encontrados em todos os partidos po- sim evocando um princípio democrático que não pode ser
líticos, não havendo uma agremiação específica que re- olvidado: a legitimidade dos diferentes interesses. Por
presente a corporação dos advogados ou que exerça o outra parte, a experiência indica que uma Justiça mais con-
monopólio na atração política desta categoria profissio- dizente com uma sociedade moderna e que se pretende
nal. Todas as legendas com mais de 20 parlamentares democrática sempre encontrará na tecnicidade do Direito
têm índices elevados de bacharéis em Direito em suas saídas adequadas aos interesses em jogo. Finalmente, o
bancadas. Exercendo, em sua maioria, outras ativida- tamanho do caminho a ser percorrido para a efetivação
des, parece correto pensar que a eleição de muitos des- de mudanças, as dificuldades a serem superadas e se os
tes profissionais não está exclusivamente vinculada ao parlamentares escolhidos atenderão à demanda nacional
diploma jurídico. Outros meios de contato com o elei- por uma Justiça apta a dar respostas mais ágeis e eficien-
torado parecem ter operado. Esta tese encontra apoio tes são questões que certamente exigirão a consideração
na expressiva presença de bacharéis-radialistas, bacha- de variáveis não dedutíveis da formação profissional.
réis-jornalistas, bacharéis-professores e bacharéis-em-
presários que conquistaram uma cadeira na Câmara.
Não se observa também nenhum tipo de viés regional NOTAS

relacionado à presença de tais parlamentares. Todas as 1. No que diz respeito a estes dois meios para se alterar a Constituição –
regiões do Brasil, apesar das distorções verificadas, Revisão Constitucional e Proposta de Emenda Constitucional –, destaque-se
a diferença quanto aos procedimentos para a aprovação de mudanças. No caso
possuem proporções consideráveis de representantes da Revisão Constitucional, segundo determinavam as próprias disposições
formados em cursos jurídicos. transitórias do texto aprovado em 1988, tem-se um processo de tomada de

110
OS BACHARÉIS EM DIREITO NA REFORMA DO JUDICIÁRIO: TÉCNICOS OU CURIOSOS?

decisões muito mais fácil e ágil do que aquele que regula os processos regu- 9. Sobre as diferentes posições ideológicas destes partidos, ver Kinzo (1993).
lares de alterações na Constituição. No período de revisão constitucional, as
modificações na Lei Maior requeriam apenas maioria absoluta no Congres-
so, reunido em sessão unicameral. Para a aprovação de uma emenda, em con-
traste, é necessário uma maioria qualificada de três quintos dos membros de
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
cada Casa, em dois turnos de votação.
2. Joaquim Falcão (1984:24) argumenta que este controle era ferrenho, “nem o Ato
Adicional de 1834, que transferiu grande soma de poderes para as províncias o BRUNO, E.S. História e tradições da cidade de São Paulo. Rio de Janeiro, Li-
alterou (...) [Havia] o controle dos recursos, do currículo, do método de ensino, da vraria José Olímpio Editora, 1953.
nomeação dos lentes, do diretor, dos programas e até dos compêndios”. CARVALHO, J.M. de. Elite and state building in imperial Brazil. Phd thesis.
3. Para um relato das discussões que precederam a criação das faculdades de Stanford University, 1974.
Direito no país, ver Simões Neto (1983). CASTRO, R. de “O advogado e a sociedade”. Folha de S.Paulo. São Paulo,
4. Informações obtidas no site do Inep (www.inep.gov.br) Instituto Nacional de 11/08/99.
Estudos e Pesquisas Educacionais. FALCÃO, J. Os advogados: ensino jurídico e mercado de trabalho. Recife,
5. Sublinhe-se que o Estado de São Paulo não é uma exceção daquilo que se Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 1984.
passa no país. Dados de 1969 indicam que as Faculdades de Direito eram fre- KINZO, M.D.G. Radiografia do quadro partidário brasileiro. São Paulo, Fun-
qüentadas por 60.525 estudantes. Apenas dez anos depois, em 1979, este núme- dação Kaonrad-Adenauer-Stiftung, 1993.
ro praticamente dobrou, passando para 127.414.
MAGALHÃES, A.C. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 15/06/1999.
6. A OAB foi criada na década de 30, com a finalidade de representar e defender
os interesses da corporação. PINHEIRO, A.C. Judicial system performance and economic development. Rio
de Janeiro, BNDES, 1996.
7. Calcula-se que, em média, 80% dos inscritos nos exames de seleção para a
magistratura e para o Ministério Público são reprovados. SIMÕES NETO, F.T. Os bacharéis na política e a política dos bacharéis. Tese
de Doutorado em Ciência Política. São Paulo, FFLCH/USP, 1983.
8. Um dos “cursinhos” mais procurados de São Paulo cobra mensalidades que va-
riam de R$300,00 a R$360,00, segundo dados de pesquisa feita em julho de 1999. TEMER M. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 15/06/1999.

111
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

ROBERTO DE OLIVEIRA CAMPOS


homem de ação do governo Castelo Branco

MARCELO HENRIQUE PEREIRA DOS SANTOS


Pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC-SP

Resumo: A análise das ações executadas por Roberto de Oliveira Campos como Ministro do Planejamento do
governo Castelo Branco. Através desta experiência no governo mostra-se as diferenças entre idealizações,
implantação e funcionamento de instituições e discorre-se a respeito da relação conflituosa entre governo e
trabalhadores e entre governo e empresários nacionais.
Palavras-chave: política brasileira; Estado e governo; instituições políticas.

E
ste artigo dedica-se à análise das ações execu- PROGRAMA DE AÇÃO ECONÔMICA DO
tadas por Roberto Campos quando ministro do GOVERNO E A POLÊMICA COM O FMI
Planejamento do governo Castelo Branco (1964-
1967). Por um lado, o texto ocupa-se das medidas to- O Programa de Ação Econômica do Governo (Paeg),1
madas pelo economista para combater a inflação, da redigido por Roberto Campos e Octávio Gouveia de
criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), da ins- Bulhões 2 quando eram, respectivamente, ministro do
tituição do Banco Central do Brasil (Bacen) e do Esta- Planejamento e ministro da Fazenda do governo Cas-
tuto da Terra. A intenção é mostrar, lançando mão da telo Branco, deixava claro que o governo tinha como
experiência de Roberto Campos no governo Castelo meta fundamental conseguir a estabilidade monetária,
Branco, que idealizar um Banco Nacional de Habita- pois a inflação era vista como o principal obstáculo ao
ção, um Banco Central, ou qualquer outra instituição desenvolvimento econômico. Além disso, o Paeg atri-
importante é muito diferente de implantar e fazer fun- buía a inflação às seguintes causas: déficit do setor pú-
cionar adequadamente tais instituições, pois um regi- blico; excesso de crédito para o setor privado; e exces-
me reconhecidamente autoritário também pode encon- sivos aumentos salariais.
trar dificuldades para viabilizar um projeto político. Em outras palavras, a expansão da base monetária era
Por outro lado, o texto também trata da relação tomada como a grande estimuladora de um crônico e vio-
conflituosa existente entre governo e trabalhadores e lento processo inflacionário. Mas qual era o resultado dis-
entre governo e empresários nacionais. so? O resultado era uma série de distorções econômicas:
Para abordar a primeira relação, discorre-se sobre a - distorções do mercado de trocas externas;
política salarial do governo Castelo Branco e sobre a - bruscas oscilações nas taxas de salários reais;
implantação do Fundo de Garantia do Tempo de Servi-
- incentivo ao uso de capital para manipular inventários
ço (FGTS).
ou especular com moedas estrangeiras;
Para analisar a segunda relação, apontam-se alguns
pontos divergentes entre o empresariado nacional e o - impossibilidade de atrair investimentos a longo prazo.
governo Castelo Branco. Contudo, o mais importante Diante de tal situação, Campos e Bulhões optaram
será verificar de que forma Roberto Campos agiu diante por adotar medidas econômicas gradualistas e termi-
dessas questões. naram entrando em confronto com o Fundo Monetário

112
ROBERTO DE OLIVEIRA CAMPOS: HOMEM DE AÇÃO DO GOVERNO...

Internacional (FMI), que defendia um tratamento de Castelo, na esperança de fazer o FMI compreender me-
choque para a economia brasileira. lhor a posição do Brasil, convidou o embaixador Lincoln
Porém, em quais pontos o Programa de Ação Econô- Gordon para jantar no Palácio da Alvorada, no dia 14 de
mica do Governo diferenciava-se do enfoque recomenda- novembro de 1964, ocasião em que também estavam pre-
do pelo FMI? Segundo Roberto Campos, o Paeg era dife- sentes Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões.
rente, basicamente, em três pontos. O primeiro consistia, O Fundo Monetário Internacional terminou por aceitar o
como já foi dito, no fato de o FMI julgar necessária a ado- “tratamento gradualista” e, em janeiro de 1965, concedeu
ção de um tratamento de choque, pois acreditava que o crédito de 125 milhões de dólares. O Banco Mundial em-
enfoque gradual poderia levar à formação de resistências prestou 79,5 milhões de dólares para a construção de usinas
políticas, que poderiam, na visão do Fundo, comprometer elétricas. O governo norte-americano, aceitando a recomen-
o plano. A estratégia contida no Paeg, por ser gradualista, dação do embaixador Gordon, concedeu 150 milhões de
previa três fases de ajustamento: a de inflação corretiva; a dólares “para o novo programa de empréstimo e fixou em
de desinflação; e a de estabilidade de preços. 70 milhões os empréstimos de projetos essenciais”. Com isso,
Em segundo lugar, o Fundo Monetário Internacional o Brasil conseguiu recuperar sua credibilidade junto aos in-
não concordava com a idéia da correção monetária, en- vestidores estrangeiros. Porém, Campos e Bulhões foram
quanto Campos e Bulhões consideravam necessária, an- obrigados a aceitar as metas quantitativas estritas para a taxa
tes de debelada a inflação, a utilização de um mecanismo de inflação e para o déficit público.
de indexação que teria as seguintes funções: preservar o É importante verificar que, embora o Paeg apontasse a
estímulo à poupança; atualizar pelo seu valor real os ati- expansão da base monetária como a causa da inflação, o
vos das empresas; desencorajar a protelação dos débitos governo Castelo Branco não conseguiu cumprir as metas
fiscais; e criar um mercado voluntário de títulos públicos. estipuladas pelo FMI para a expansão monetária e redu-
Campos e Bulhões adotaram a correção monetária3 com ção das taxas de inflação.
o objetivo de fazer os participantes do processo econô- A experiência de combate à inflação do governo Cas-
mico pensarem em termos reais, mas infelizmente não foi telo Branco mostra que, mesmo para um governo autori-
isso o que aconteceu. Ao contrário, com a instituição da tário, o diagnóstico do problema é a parte menos compli-
indexação, os participantes do processo econômico pas- cada, difícil é executar as medidas para solucioná-lo. Isso
saram a pensar como tirariam vantagens da diferença en- fica claro quando Roberto Campos assume o Ministério
tre os créditos ajustados pela inflação e os débitos não do Planejamento com total apoio do presidente e elabora,
corrigidos monetariamente.4 Além disso, com o tempo, a juntamente com Octávio Gouveia de Bulhões, um diag-
correção monetária passou a ser percebida como um em- nóstico por muitos considerado monetarista e, mesmo as-
pecilho à queda da inflação.5 sim, choca-se com o FMI, instituição que abriga o maior
O terceiro ponto de divergência entre o programa ela- número de economistas monetaristas.
borado por Campos e Bulhões e o FMI girou em torno da O fato de não ter conseguido atingir as metas estipuladas pelo
adoção ou não de metas quantitativas estritas para a taxa Fundo Monetário Internacional não significa que o governo
de inflação e para o déficit público. O FMI apregoava a Castelo Branco não tenha reduzido a base monetária: em 1966
necessidade da estipulação das metas, enquanto Campos o governo obteve a menor taxa do decênio – 16,8%. Além dis-
e Bulhões alegavam que o importante seria acordar com so, o governo reduziu o salário mínimo real e diminuiu o déficit
o Fundo Monetário Internacional uma estratégia antiin- público. Porém, a inflação atingiu 41% em 1966, contra 46% de
flacionária e escolher os instrumentos tecnicamente ade- 1965, zombando assim das otimistas previsões do Paeg que
quados. Já o ritmo preciso da aplicação das medidas de- previa uma inflação de 25% para 1965 e de 10% para 1966. O
veria ficar a cargo do governo. quadro da inflação melhoraria no final de 1967, porém, já
Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões não abri- era tarde demais para ajudar o governo Castelo Branco.
ram mão da estratégia gradualista e de adotar a correção mo-
netária e chegaram a cogitar a possibilidade de romper com POLÍTICA HABITACIONAL:
o Fundo Monetário Internacional. Tal rompimento propor- O SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO
cionaria ao governo brasileiro um necessário apoio popular,
mas Castelo Branco julgou que evitar o rompimento seria a Nas décadas de 50 e 60, Roberto Campos via o setor
melhor forma de preservar os interesses nacionais. público como elemento decisivo no processo de desen-

113
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

volvimento econômico. Para o economista, o Estado de- refinanciador, enquanto a tarefa de construir as habita-
veria intervir na economia pelos seguintes motivos: ções caberia à iniciativa privada.7
- o livre jogo das forças de mercado não garante a forma- Entretanto, o BNH obteve resultados insatisfatórios: a
ção de um nível de poupança desejável; construção de habitações de baixa renda, que, segundo
- o sistema de preços nem sempre incentiva adequada- Campos, era a principal motivação do projeto, perdeu es-
mente a formação de economias externas (investimentos paço para a construção de habitações de classe média e
em educação, estradas, etc.), porque não há relação entre construções comerciais, tidas como mais rentáveis.
a respectiva rentabilidade e a produtividade social cor-
respondente; A CRIAÇÃO DO BANCO CENTRAL DO BRASIL
- o livre jogo das forças de mercado não leva a uma dis-
tribuição satisfatória da renda nacional, tanto entre pes- Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões esta-
soas quanto entre regiões; vam decididos a realizar uma reforma financeira, sendo
que uma etapa importante desta reforma se deu através
- a eficácia do sistema de preços pode ser distorcida pelas
da Lei no 4.595, que criou o Banco Central do Brasil
imperfeições do mercado.
(Bacen).
No governo Castelo Branco, Roberto Campos procu- Antes da criação do Bacen, o Banco do Brasil, além
rou conciliar ortodoxas medidas de combate à inflação da função de emprestar dinheiro para o setor público, era
com uma espécie de política compensatória ditada pelo o principal banco comercial do país e a Superintendência
intervencionismo estatal. A implantação do Sistema Fi- da Moeda e do Crédito (Sumoc) havia sido criada como
nanceiro de Habitação6 é um dos exemplos mais signifi- agência coordenadora da política monetária, porém, não
cativos de tal política. conseguira escapar ao controle do Banco do Brasil e, con-
A criação do Sistema Financeiro de Habitação só foi seqüentemente, não transformou-se num Banco Central.
possível por causa da instituição da correção monetária, A Lei n o 4.595, de dezembro de 1964, previa a trans-
proposta em abril de 1964 no projeto de lei do Banco formação da Sumoc em Banco Central, mas isto ocor-
Nacional de Habitação (BNH), cuja adoção, em julho de reu somente em abril de 1965, sendo que ainda foram
1964, estimulou a poupança e permitiu a formulação de necessários alguns anos para que o Bacen funcionasse
contratos de longo prazo. Contudo, a organização do sis- de forma efetiva. Enquanto isso, Roberto Campos e
tema se deu com a formulação de algumas leis: Octávio Gouveia de Bulhões instituíram o Conselho
- Lei no 4.380, de agosto de 1964, que criou o Sistema Monetário Nacional, que atuou simultaneamente como
Financeiro de Habitação, compreendendo o Banco Na- órgão de previsão e coordenação das contas fiscais e
cional de Habitação, as sociedades de crédito imobiliário monetárias. 8
e o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo; O Banco Central do Brasil foi uma das instituições cria-
- Lei no 4.494, de novembro de 1964, conhecida como lei das no governo Castelo Branco, com decisiva participação
do inquilinato; de Roberto Campos, que não atuou como os seus idealiza-
- Lei no 4.591, de dezembro de 1964, que realiza a regu- dores desejavam. Tanto Campos como Bulhões queriam que
lamentação dos condomínios em edificação e das incor- o presidente do Banco Central tivesse mandato fixo com o
porações imobiliárias; intuito de garantir a estabilidade e a continuidade da política
econômica, ou seja, para eles o Bacen deveria ser uma insti-
- Lei no 4.864, de novembro de 1965, que cria medidas de
tuição totalmente independente. Porém, o Banco Central do
estímulo à indústria de construção civil;
Brasil não conseguiu, ao longo de toda a sua história, auto-
- Lei no 5.107, de setembro de 1966, que cria o Fundo de nomia em relação ao poder Executivo.
Garantia do Tempo de Serviço.
Para Roberto Campos, a criação do Banco Nacional O ESTATUTO DA TERRA
de Habitação possibilitaria a construção em larga escala
de habitações populares, o que atenderia ao problema Diferentemente dos governos Costa e Silva, Médici e
social e, ao mesmo tempo, proporcionaria novas fontes Geisel, o governo Castelo Branco preocupou-se com o
de emprego. Porém, Campos não deixou de salientar que, problema do acesso à terra no Brasil e Roberto Campos
no caso do BNH, o governo atuaria como um agente foi o encarregado da coordenação da reforma agrária.

114
ROBERTO DE OLIVEIRA CAMPOS: HOMEM DE AÇÃO DO GOVERNO...

Na primeira reunião do gabinete, o ministro do Plane- dificuldades para compreender os coeficientes sugeridos
jamento expôs um projeto que deixava transparecer a pre- para os impostos progressivos.
ferência do governo por uma reforma agrária capitalista, No dia 19 de outubro de 1964, Castelo Branco convocou
pois dava ênfase à produtividade e não à justiça social; Daniel Krieger, Pedro Aleixo e Peracchi Barcelos para co-
procurava demonstrar que o instrumento da desapropria- municar que a proposta do governo seria enviada ao Con-
ção, por ser politicamente conflituoso e economicamente gresso. Tal proposta estabelecia impostos territoriais progres-
o mais incerto em seu efeito sobre a propriedade, só de- sivos bastante inferiores aos previstos inicialmente,
veria ser utilizado em último caso, o mais correto seria permitindo assim que Bilac Pinto a apoiasse, “removidas as
utilizar a tributação para gerar recursos para a coloniza- objeções espinhosas”. A coleta desses impostos seria feita
ção; afirmava que o Brasil sofre devido ao excesso de pelos Estados, que ficariam com 20% e distribuiriam o res-
latifúndios improdutivos e minifúndios antieconômicos, tante para os municípios. Previa-se também a realização do
recomendandos, para estes, a desapropriação e a coloniza- censo completo das propriedades, como julgava necessário
ção como solução mais adequada e, para aqueles, a tribu- o deputado Herbert Levy, e o pagamento em dinheiro, exce-
tação progressiva como o remédio mais eficaz. to no caso de expropriações de extensas terras, quando en-
Qualquer projeto de reforma agrária no Brasil, mesmo tão poderiam ser utilizadas as Obrigações Reajustáveis do
sendo tão conservador como este apresentado por Roberto Tesouro Nacional (ORTNs), sujeitas à correção monetária.
Campos, não escapa das críticas de setores ainda mais con- O Congresso votou o Estatuto da Terra no dia 26 de
servadores. Os oponentes da reforma agrária eram parti- novembro, dentro do limite de 30 dias fixado por Castelo
cularmente numerosos nos estados de São Paulo e Minas Branco. Para realizar o censo e fazer cumprir a nova lei,
Gerais. Estes, além de recearem a criação de minifúndios, foi criado o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra),
não gostaram nada da proposta, feita por Campos, de ta- subordinado à Presidência da República, e o Instituto
xar progressivamente as grandes porções de terras impro- Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda), subordina-
dutivas. do ao Ministério da Agricultura.
A União Democrática Nacional (UDN) estava bastante O Estatuto da Terra foi aprovado, porém a proposta
preocupada com a questão. Os deputados Antônio Godinho do governo foi alterada por pressão dos proprietários de
e Bilac Pinto, ambos da UDN, procuraram sustentar a vi- terra via políticos, como o deputado Herbert Levy e o go-
são de que a tensão social era o resultado da excessiva mão- vernador Magalhães Pinto, e o Imposto Territorial Rural
de-obra no campo que precisava ser reduzida. O deputado não foi regulamentado.
Herbert Levy, ex-presidente da UDN, afirmava que os pro- A comparação das idéias iniciais do governo Castelo
prietários rurais haviam apoiado de forma decisiva o mo- Branco a respeito da questão agrária e a forma como foi
vimento contra João Goulart, portanto, não era prudente aprovado o Estatuto da Terra mostram que um governo
provocá-los. O deputado argumentou ser inconcebível a militar também pode encontrar obstáculos para viabilizar
utilização do Imposto Territorial Rural (ITR) sem antes um projeto político.
realizar um censo completo de todas as propriedades. Além
disso, Herbert Levy, fazendo uma clara referência a ELIMINANDO A OPOSIÇÃO SINDICAL E
Roberto Campos, falava em tecnocratas sem experiência EXECUTANDO UMA NOVA POLÍTICA SALARIAL
prática e pouco identificados com os objetivos da Revolu-
ção de 64. Outro ataque dirigido a Campos veio do gover- Roberto Campos procurou associar os aumentos sala-
nador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, que acu- riais desvinculados do crescimento da produtividade ao
sava os “utópicos” do ministério de pretenderem utilizar a aumento da inflação. Para estabelecer tal associação, Cam-
questão da reforma agrária com o objetivo de dar vazão a pos lançou mão de uma série de termos pertencentes à
seus sonhos mais ou menos vagos. ciência econômica (produtividade, espiral de preços, ar-
O governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, de- rocho fiscal, margem de lucro, custo salarial, aumento do
clarou à imprensa que o Estatuto da Terra elaborado pelo consumo real, estagnação econômica, etc.). Além disso,
governo só seria aprovado se as funções executivas fos- o economista esforçou-se para desqualificar a política sa-
sem incumbências dos Estados. Magalhães Pinto, em carta larial dos governos anteriores a 1964, denominando-a de
ao presidente Castelo Branco, afirmou ainda que os im- populista. A propósito disso, veja-se trecho de um artigo
postos deveriam ser arrecadados pelos Estados e alegou escrito pelo economista em 30 de abril de 1964.

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

“O enfoque populista é mais distributivo do que pro- mais importantes, era controlada pelo governo. As outras
dutivo. Propugna maciços reajustamentos salariais, que, questões eram decididas nos tribunais do trabalho.
por excederem o crescimento possível da produção e pro- A estrutura sindical corporativa criada pelo Estado
dutividade, alimentam a espiral de preços. Acredita inge- Novo foi mantida, a despeito de ideologias políticas opos-
nuamente (ou demagogicamente) ser possível legislar tas, pelos sucessivos governos brasileiros.9 Tal estrutura
melhorias do padrão de vida, mediante a concessão de be- só foi abalada quando o governo brasileiro precisou apli-
nefícios sociais superiores à capacidade da economia de car programas de estabilização econômica. A propósito
sustentá-los. O Brasil, por exemplo, tem uma legislação disso, a experiência do governo Goulart foi esclarecedora.
social muito mais avançada que a dos Estados Unidos. E Em meados de 1963, Goulart criou o chamado Conselho
o padrão de vida operário é muito mais baixo (...) Nacional de Política Salarial com autoridade para deter-
E supérfluo repetir que o populismo não só não conse- minar os salários do setor público. O governo esperava
guiu melhorar o padrão de vida operário – pois que a es- que o conselho controlasse os salários e, conseqüentemen-
piral de preços anulou as altas salariais –, como diminuiu te, detivesse os aumentos de preços praticados pelas em-
as oportunidades de emprego, pela estagnação econômi- presas estatais e pelas empresas privadas licenciadas para
ca. O desenvolvimentismo é sem dúvida parte de verbiagem prestar serviços públicos, cuja produção pesava de forma
populista; mas apenas da verbiagem (...) porque o distri- decisiva no índice de inflação. Entretanto, no segundo se-
butivismo ingênuo e precoce do populismo salarial reduz mestre de 1963, os aumentos salariais nessas empresas
a capacidade de investimento da economia e, portanto, não foram inferiores aos praticados pelas empresas não
sua taxa de desenvolvimento” (Campos, 1969a:200-201) controladas.
Este item trata da implantação e repercussão da políti- O governo Castelo Branco estava determinado a esta-
ca salarial do governo Castelo Branco junto aos trabalha- belecer uma política de controle salarial que impedisse a
dores. Antes, porém, será necessário verificar as princi- elevação dos salários acima da taxa de inflação. Antes,
pais imposições estabelecidas pela Consolidação das Leis porém, procurou eliminar a possibilidade de qualquer opo-
do Trabalho (CLT), que criou uma estrutura sindical sição sindical intervindo nos sindicatos e expurgando
corporativa a partir do Estado Novo (1937-1945). A CLT vários líderes sindicais, entre eles Clodsmith Riani,
prescrevia as seguintes imposições: Hércules Correia, Oswaldo Pacheco da Silva e Dante
- todos os trabalhadores “protegidos” pela CLT eram obri- Pelacani.
gados a pagar, anualmente, uma contribuição sindical Roberto Campos foi responsável pela implantação de
(equivalente a um dia de trabalho) descontada dos salári- uma política salarial (definida em junho e julho de 1964),
os. O dinheiro ia diretamente para o Ministério do Traba- que associou os aumentos salariais desvinculados do cres-
lho, que o repassava aos sindicatos e supervisionava suas cimento da produtividade ao aumento da inflação. Em 19
despesas; de dezembro de 1967, Campos escreveu um artigo que
- as eleições sindicais eram fiscalizadas pelo Ministério expressava tal associação, explicitando que a única solu-
do Trabalho, que tinha como uma de suas funções a vali- ção durável e realista para aumentar o consumo real dos
dação ou não dos resultados, podendo até mesmo desqua- trabalhadores é através do incremento de produtividade
lificar candidatos; da mão-de-obra ou do equipamento utilizado na produção.
“Muitos empresários se sentiriam felizes se tivessem um
- a lei tornava as greves ilegais. Dessa forma, quase todas
mercado mais ativo para suas mercadorias. Um mercado de
as disputas eram transferidas para os tribunais trabalhis-
vendedor, se possível (...) Assim eliminariam a capacidade
tas para efeito de decisão;
ociosa, baixando os custos unitários de produção. O remé-
- os sindicatos deveriam ser formados para representar dio para isso seria uma elevação geral de salários, a fim de
somente uma categoria dentro de apenas um município. dar poder aquisitivo aos assalariados, aumentando-lhes a
Era permitida a constituição de uma federação (no âmbi- procura de bens de consumo. Até aqui, tudo ótimo (...) Exis-
to estadual) e uma confederação (no âmbito federal), po- te apenas uma complicação: salário é renda disponível para
rém a negociação em um desses dois âmbitos era consi- consumo, mas é também custo de produção. Se os preços se
derada extralegal; elevarem, reagindo à elevação dos custos, o volume real de
- a lei dificultava ou até mesmo impedia a negociação di- consumo continuará o mesmo, a preços mais altos. Se os
reta. Dessa forma, a questão do salário mínimo, uma das salários subirem, sem aumento de preços, haverá, sim, um

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ROBERTO DE OLIVEIRA CAMPOS: HOMEM DE AÇÃO DO GOVERNO...

acréscimo real de consumo, propiciado pela redução da rém, isso só seria possível mediante a manutenção dos
margem de lucro empresarial. Mas por que não recorrer en- salários reais. Paradoxalmente, os salários reais, mesmo
tão a uma solução mais elegante: manter os salários e redu- com o crescimento do produto nacional bruto no período
zir os preços? Apenas (...) diminuiriam os recursos disponí- 1964-67, decresceram.
veis para investimento. E a diminuição de investimentos O próprio Mário Henrique Simonsen afirmaria, mui-
reduziria a capacidade de economia de dar emprego a novos tos anos depois, que durante o ajuste de 1964 a 1967 os
assalariados e, portanto, tenderia a contrair a procura global salários pagos na indústria foram defasados na ordem de
(ou a impedir sua expansão). A única solução durável e rea- 25%. “São dados estatísticos. É o óbvio ululante. Se era
lista para uma elevação, que todos ardentemente desejamos, preciso aumentar a taxa de câmbio real, aumentar os alu-
do consumo real dos assalariados, é um incremento de pro- guéis reais e elevar as tarifas públicas, como isso seria
dutividade da mão-de-obra ou do equipamento, porque se possível? Se houvesse aumento do salário real, o sujeito
poderia então aumentar salários sem elevar preços, e sem não ganharia o prêmio Nobel de Economia, ganharia o
comprimir a capacidade de investimento. Isso não importa Nobel de Física. Teria descoberto a maneira de se criar a
em negar que uma empresa isolada pode ver aumentada a matéria do nada. A queda de salário real ali era inevitá-
procura real de seus produtos se sobem os salários nas em- vel” (Jornal do Brasil, 03/03/1996).
presas concorrentes, enquanto ela mantém invariantes os Autores que produziram análises favoráveis ao pensa-
custos de produção e os preços; ou que a situação dos assa- mento e à atuação de Roberto Campos na vida pública,
lariados poderia melhorar – sem acréscimo, entretanto, da como é o caso de Reginaldo Teixeira Perez, também não
procura global da economia – se outras classes sociais ou o deixam de reconhecer que o governo Castelo Branco, além
Governo diminuíssem seu consumo real, mediante uma de excluir da vida pública os líderes sindicais mais
redistribuição da renda em favor dos assalariados” (Cam- combativos, implantou uma política de arrocho salarial.
pos, 1969a:50-51). Veja-se a seguinte passagem do livro O pensamento polí-
Concentrando-se primeiro no setor público, Campos re- tico de Roberto Campos: “Já a imposição de limites ao
organizou o Conselho Nacional de Política Salarial e criou, mundo privado foi mais lenta e problemática do que no
a partir de sugestões do economista Mário Henrique público. O estabelecimento de constrangimentos à liquidez
Simonsen, uma fórmula para calcular os futuros aumentos se fez através das políticas salarial e creditícia. Operou-
salariais do setor público. Tal fórmula trabalhava com três se à compressão da massa salarial com a alteração do cál-
fatores: a média do aumento do custo de vida durante os 24 culo dos reajustes, que antes era feito pela negociação, e
meses precedentes; o aumento estimado da produtividade agora obedecia a uma fórmula apresentada pelo governo.
no ano anterior; e o “residual inflacionário” (a metade da Os salários reais foram portanto sistematicamente redu-
média da taxa da inflação prevista pelo governo para os 12 zidos entre 1964 e 1967, caindo 20% no caso do salário
meses seguintes). Além disso, o economista estabeleceu que mínimo e um pouco menos para os salários industriais.
os salários seriam reajustados apenas a cada 12 meses. Os reclamos dos assalariados ficaram limitados pelo ca-
O ministro do Planejamento esperava que as empresas ráter discricionário do novo regime. Excluídos da vida
privadas e os tribunais seguissem a orientação estabele- pública, os líderes sindicais mais combativos foram im-
cida para o setor público. No entanto, os salários do setor pedidos de mobilizar seus liderados para evitar a implan-
privado subiram além dos níveis estabelecidos pelo Paeg, tação do arrocho” (Perez, 1999:145).
obrigando o governo Castelo Branco a requerer ao Con- Com a cassação da oposição sindical e a implantação de
gresso, em agosto de 1965, a extensão ao setor privado uma política salarial produtora de compressão salarial, ace-
das regras já estabelecidas para o setor público. Os líde- lerou-se o processo de transformação dos sindicatos numa
res sindicais que “sobreviveram” aos expurgos do gover- espécie de agência cartorial do governo, sem outra função
no tentaram inutilmente resistir. O Congresso aprovou, senão a de executar as tarefas que o governo lhe incumbia.
em setembro de 1965, a Lei no 4.725 que, além de impor
ao setor privado as mesmas regras salariais do setor pú- A IMPLANTAÇÃO DO FGTS
blico, prorrogava por três anos a autoridade do governo
para fixar salários. Roberto Campos optou pela aceleração do desenvol-
O objetivo do governo Castelo Branco era manter a vimento econômico em detrimento da eqüidade distribu-
participação dos trabalhadores no produto nacional. Po- tiva. Esta opção foi feita já na década de 50, como mostra

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

o seguinte trecho da palestra Cultura e Desenvolvimento, trabalhadora. Os líderes desta classe argumentavam que
proferida no Instituto Superior de Estudos Brasileiros a criação do FGTS cercearia mais ainda o seu espaço de
(Iseb) e publicada no Digesto Econômico – março-abril atuação política e social, pois dificultava o acesso ao re-
de 1957: “Escreveu recentemente Arthur Lewis, em seu curso da greve que era, até então, possibilitado pela Lei
notável trabalho sobre a teoria do desenvolvimento eco- de Estabilidade.10
nômico, que ‘os países menos desenvolvidos acordaram O Congresso Nacional recebeu o projeto de criação
para um século em que todo mundo deseja cavalgar dois do FGTS em agosto de 1966 e constituiu uma comis-
cavalos simultaneamente: o cavalo da igualdade econô- são mista para analisá-lo. O presidente desta comissão
mica e o do desenvolvimento. A União Soviética desco- foi Daniel Krieger (UDN) e o relator foi o deputado
briu que esses dois cavalos não marcham na mesma dire- Brito Velho (UDN-PL). O projeto foi fortemente com-
ção, e abandonou, portanto, um deles. Outros países menos batido pelos senadores Franco Montoro e Josaphat
desenvolvidos terão também que transigir’. Marinho. Segundo Roberto Campos, o projeto de cria-
No Brasil continuamos querendo cavalgar os dois ca- ção do FGTS não passaria no Congresso se o presiden-
valos em direções opostas. Não temos vocação cultural te Castelo Branco não consentisse na introdução de uma
para endossar o projeto socialista, com todos os perigos cláusula opcional que facultava aos trabalhadores con-
de frustração política e ferocidade tirânica que ele encer- tinuarem no regime de estabilidade ou aderirem ao novo
ra. Envergonhamo-nos, ao mesmo tempo, de deixar que sistema. Contudo, mesmo com a inclusão de tal cláu-
funcionem os valores essenciais – cruéis às vezes, porém sula opcional, o projeto recebeu várias emendas que
eficazes – do projeto capitalista. Com isso perdemos o forçaram o governo a recorrer, conforme palavras do
impulso místico do primeiro e a eficiência do segundo. próprio Campos, a táticas ditatoriais para aprová-lo por
A opção pelo desenvolvimento implica a aceitação da decurso de prazo, em 13 de setembro de 1966, e
idéia de que é mais importante maximizar o ritmo do de- transformá-lo na Lei no 5.107.
senvolvimento econômico do que corrigir as desigualda- Paradoxalmente, a cláusula que facultava ao traba-
des sociais. Se o ritmo do desenvolvimento é rápido, a lhador optar pelo Fundo de Garantia do Tempo de Ser-
desigualdade é tolerável e pode ser corrigida a tempo. Se viço ou pela estabilidade no emprego foi inócua, por-
baixa o ritmo de desenvolvimento por falta de incentivos que na prática os empregadores recusavam-se a admitir
adequados, o exercício da justiça distributiva se transfor- candidatos que optassem pela estabilidade. Com o pas-
ma numa repartição de pobreza” (Campos, 1964:115-116). sar do tempo, o FGTS substituiu a estabilidade. Esta
Para Roberto Campos, os aumentos de salários desvin- mudança foi fortemente criticada pelos líderes sindi-
culados do aumento de produtividade, além de causarem cais e pelos membros da oposição, que denunciavam
inflação, demonstravam que o Brasil havia optado pela que os trabalhadores estavam perdendo a garantia de
igualdade econômica e, ao fazê-lo, estava comprometen- emprego e recebendo em troca um duvidoso plano de
do o desenvolvimento econômico. Por isso, o governo poupança forçada de fácil manipulação pelo governo.
Castelo Branco, através de Roberto Campos, esforçou-se
para substituir os aumentos de salários monetários por uma COMBATENDO O NACIONALISMO
espécie de política de “salários indiretos” que não com-
prometesse o desenvolvimento econômico. O FGTS é um A Nova Lei de Remessa de Lucros
dos componentes de tal política.
Antes da criação do FGTS, havia o instituto da estabi- Já na década de 50, Roberto Campos mostra-se favo-
lidade no emprego, ou seja, após completar dez anos na rável ao aproveitamento do capital estrangeiro como im-
mesma empresa, o trabalhador garantia a estabilidade no portante elemento do desenvolvimento econômico de
emprego. Um dos argumentos utilizados por Campos con- países como o Brasil e, conseqüentemente, crítico vee-
tra a estabilidade foi o de que esta havia virado uma peça mente dos setores nacionalistas que procuram alertar a
de ficção, porque os empresários, temendo a indisciplina respeito dos perigos da utilização do capital estrangeiro.
e a indolência dos trabalhadores, demitiam os emprega- Campos escreve: “outro tipo de subversivo é o ‘nacio-
dos antes destes concluírem o período de carência. naleiro’, que se apresenta sob duas variantes principais: o
Porém, a intenção do governo Castelo Branco de im- traficante de nacionalismo e o patriota obscurantista. O tra-
plantar o FGTS gerou fortes resistências por parte da classe ficante de nacionalismo explora o sentimento do patriotis-

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ROBERTO DE OLIVEIRA CAMPOS: HOMEM DE AÇÃO DO GOVERNO...

mo, como meio de bloquear concorrentes e proteger mono- so de capitais no Brasil e perplexidade da comunidade
pólios ineficientes. Fatura nacionalismo a expensas do con- financeira internacional, assustada com o irrealismo de
sumidor. Já o patriota obscurantista é mais respeitável e tal- um país carente de capitais. Estes problemas foram solu-
vez mais perigoso, pois nada mais sólido e irresistível – quase cionados no governo Castelo Branco com a promulgação
uma força da natureza – que o cidadão de puras intenções e da Lei no 4.390, que suprimiu o artigo 33 e eliminou o
parco entendimento: o ‘burro honesto’, em suma. teto de 10% do capital registrado para remessas de lucros.11
O problema é que ambas as variedades nacionaleiras
retardam o desenvolvimento econômico e impedem o fun- O EMPRESARIADO NACIONAL
cionamento do capitalismo. Diminuem o ingresso de pou-
pança estrangeira, sem nada fazerem para aumentar a pou- No decorrer do governo Castelo Branco, Roberto Cam-
pança nacional. Confundem divergências sobre métodos pos convocou os empresários brasileiros para serem perso-
de desenvolvimento, com desamor à independência nacio- nagens centrais no combate à inflação e na promoção do de-
nal. Deturpando a expressão nacionalismo, usam-na como senvolvimento econômico. Isto mostra o quanto Campos via
instrumento de intimidação, pois, como disse certa vez o o empresário como o elemento renovador da sociedade,
Presidente Castelo Branco, ‘condenam aqueles que não porém não significa que o economista não teve problemas
concordam com seus pontos de vista à situação de traido- com a classe empresarial, no caso o empresariado nacional,
res e incapazes de pertencerem à comunidade política’” durante sua gestão no Ministério do Planejamento.
(Campos, 1969b:102). Embora tenham aderido quase incondicionalmente ao
Para garantir a entrada de capital estrangeiro no país e regime militar, os empresários nacionais discordaram da
combater o nacionalismo, Roberto Campos agiu no sen- política econômica adotada pelo primeiro governo pós-
tido de revogar a lei de remessa de lucros (Lei no 4.131, 1964.12 O empresariado brasileiro desejava que o gover-
de 03 de setembro de 1962), que determinava um teto de no incrementasse o crescimento econômico e desenvol-
10% por ano do investimento original e era vista pelo vesse um sistema de defesa para as empresas nacionais.
economista como o principal motivo da diminuição do Na verdade, os empresários queriam proteção contra o
ingresso de investimentos diretos no país. capital estrangeiro e que o governo se preocupasse me-
Em meados de 1964, o governo Castelo Branco enviou nos com a estabilidade monetária.
ao Congresso Nacional um projeto que visava principal- A resposta de Roberto Campos aos empresários foi a
mente eliminar os três artigos introduzidos, ainda no go- seguinte: “Não é fácil mudar hábitos, nem atitudes. Mui-
verno Goulart, na Lei no 4.131, chamada emenda Celso to menos quando estes hábitos e atitudes são de pessoas
Brant, que estabeleciam a limitação quantitativa das re- que tiraram proveito da inflação. O problema que se co-
messas e das repatriações e discriminavam entre capital loca, entretanto, não é o da conveniência imediata das
inicial e capital reinvestido. Eis os três artigos: poucas pessoas que se beneficiaram com a inflação. O
- Art. 31 - As remessas anuais de lucros para o exterior grande desafio que o Governo, as classes empresariais e
não poderão exceder de 10% sobre o valor dos investi- os assalariados têm a enfrentar não é o de poupar esta ou
mentos registrados. aquela empresa isoladamente, mas o de recriar condições
- Art. 32 - As remessas que ultrapassam o limite estabele- para que a livre iniciativa tenha um sentido econômico e
cido no artigo anterior serão consideradas retorno do ca- um sentido social em nosso País. O sentido econômico
pital e deduzidas do registro correspondente para efeito que a torne capaz de se desenvolver, sem crises e sem
das futuras remessas de lucros para o exterior. perturbações de estrutura, gerando empregos estáveis e
riqueza verdadeiramente nacional. O sentido social que a
Parágrafo único - A parcela anual de retorno do capital es-
torne capaz de dar resposta aos anseios, legítimos e
trangeiro não poderá exceder de 20% do capital registrado.
inadiáveis, de integração das grandes massas urbanas e
- Art. 33 - Os lucros excedentes do limite estabelecido no rurais aos benefícios do desenvolvimento econômico” (O
artigo no 31 desta lei serão registrados à parte, como ca- Estado de S. Paulo, 25/04/1965).
pital suplementar, e não darão direito a remessas de lu- O trecho citado mostra o quanto Roberto Campos pre-
cros futuros. tendia mudar a mentalidade não só do empresariado nacio-
Segundo Roberto Campos, a lei de remessa de lucros nal, mas de toda a sociedade brasileira. Esta mudança ocor-
do governo Goulart produziu acentuada queda do ingres- reria a partir da introjeção de disciplina numa sociedade

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

impregnada de irracionalismo. O empresariado brasilei- expurgar a liderança sindical de todos os esquerdistas. Em seu período presiden-
cial de 1951-54 Getúlio Vargas usou-a através do seu jovem ministro do Traba-
ro não entendeu dessa forma, mas não foi, assim como os lho, João Goulart, para estimular a mobilização trabalhista em São Paulo. No
começo dos anos 60 o presidente Goulart usou a estrutura sindical oficial para
trabalhadores assalariados, forte o bastante para fazer fren- gerar apoio político às suas malfadadas reformas.”
te ao governo Castelo Branco. 10. A Lei de Greve, de 01 de junho de 1964, foi outro dispositivo criado pelo
governo Castelo Branco para restringir o espaço de atuação política e social dos
trabalhadores. As greves, na visão dos militares e de seus colaboradores civis,
atentavam contra a segurança nacional.
NOTAS 11. Em John W. F. Dulles (1983:52) encontramos uma interessante passagem a
respeito da atuação de Campos para a revogação da Lei no 4.131 e promulgação
E-mail do autor: marhenrique@aol.com da Lei no 4.390. “Em Brasília, Roberto Campos discutia com congressistas a
necessidade de liberalizar a lei de remessa de lucros promulgada por Goulart.
Este texto é uma versão, ligeiramente modificada, do terceiro capítulo da tese de
dissertação de mestrado do autor, defendida na PUC-SP em maio de 2000. Apoiado em dados numéricos, ele demonstrou que a legislação vigente custava
aos trabalhadores brasileiros 100 mil empregos e que a legislação liberal que
1. Vários livros tratam do Programa de Ação Econômica do Governo, porém, vigorara entre 1954 e 1961 não apenas estimulara o ingresso de capitais, mas
quase todos de forma bastante superficial. Uma exceção fica por conta de Luís também dera margem a que a média da remessa anual de lucros fosse inferior à
Viana Filho (1976), que dedica um capítulo do seu livro sobre o governo Caste- registrada no período precedente, de legislação restritiva. O ministro concluiu
lo Branco para tratar das polêmicas que envolvem o Paeg. dizendo que ‘errar é humano, mas persistir no erro é diabólico’.”
2. Foi ministro da Fazenda do governo Castelo Branco. Ele e Roberto de Olivei- 12. O governo Castelo Branco adotou rigorosas medidas de arrecadação de im-
ra Campos eram velhos amigos e, ao assumirem, respectivamente, a pasta do postos que resultaram em significativo aumento da receita federal, passando de
Planejamento e a da Fazenda, formaram uma das duplas mais entrosadas da ad- 7,8% do PIB em 1963 para 8,3% em 1964, depois para 8,9% em 1965 e 11,1%
ministração pública brasileira. em 1966. O governo também concentrou forças no controle do crédito do setor
3. O primeiro uso da correção monetária foi determinado pela Lei no 4.357, apro- privado. Tais medidas provocaram descontentamento entre os empresários. Ver
vada pelo Congresso em julho de 1964, que estabelecia a obrigatória correção dos Skidmore (1988:75-76).
impostos em atraso e de todos os ativos fixos e autorizava a criação das Obrigações
Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTNs), novo título do governo, reajustada
mensalmente de acordo com a média móvel do índice de preços por atacado. Em
julho de 1965, a Lei no 4.728 estendeu a correção monetária para todo o mercado
de capitais, utilizando como taxa de indexação a mesma da ORTN. Com isso, já REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
era possível perceber que a correção monetária estava tornando-se um indispensá-
vel instrumento de política econômica do período pós-64. BANDEIRA, M. Presença dos Estados Unidos no Brasil (dois séculos de histó-
4. É interessante verificar que a correção monetária produziu um outro efeito ria). Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1973.
não imaginado por seus formuladores: possibilitou a retomada das vendas a pra- BASTOS, E.R. e RÊGO, W.D.L. Intelectuais e política – A moralidade do com-
zo. Numa economia desindexada e caracterizada por elevadas taxas de inflação, promisso. São Paulo, Editora Olho d’Água, 1999.
é inviável para os empresários realizarem vendas a prazo, porém, com a corre-
ção monetária, os empresários passaram a ter a garantia de que os valores das BIDERMAN, C. et alii. Conversas com economistas brasileiros. São Paulo, Ed.
prestações acompanhariam a inflação. Isto impulsionou a venda de bens durá- 34, 1996.
veis, principalmente automóveis, possibilitando o chamado “milagre econômico BIELSCHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do
brasileiro”. Tudo isso mostra o quanto as medidas tomadas no âmbito do Estado desenvolvimento. Rio de Janeiro, Contraponto, 1996.
são, muitas vezes, direcionadas para produzir um determinado efeito e acabam
BOBBIO, N. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura
produzindo outro completamente diferente.
na sociedade contemporânea. São Paulo, Editora da Universidade Estadu-
5. Mesmo Mário Henrique Simonsen, um economista que colaborou muito com al Paulista, 1997.
Roberto Campos, disse o seguinte sobre a necessidade de desindexação da eco-
nomia brasileira: “Eu me lembro de que falei muito sobre o problema da neces- CAMPOS, R. de O. Ensaios de história econômica e sociologia. Rio de Janeiro,
sidade de desindexação quando estava no Ministério da Fazenda, mas qualquer Apec, 1964.
pequena medida que eu tomasse encontrava uma brutal reação dos políticos, da __________ . A técnica e o riso. Rio de Janeiro, Apec, 1967.
opinião pública. Quer dizer, ninguém, na época, tinha percepção de que, com uma __________ . Do outro lado da cerca. Rio de Janeiro, Apec, 1968.
economia amplamente indexada, era inteiramente ‘dar murro em ponta de faca’ que-
rer aplicar a receita ortodoxa do Fundo Monetário” (Biderman, 1996:200-201). __________ . Ensaios contra a maré. Rio de Janeiro, Apec, 1969a.
6. É bem verdade que Roberto Campos também atribui a criação do Sistema Fi- __________ . Temas e sistemas. Rio de Janeiro, Apec, 1969b.
nanceiro Habitacional à necessidade de dar resposta à política habitacional do __________ . O mundo que vejo e não desejo. Rio de Janeiro, Livraria José
governo João Goulart, que havia decretado o congelamento de aluguéis. Olympio Editora, 1976.
7. Ver a respeito disso: O Estado de S. Paulo (09/05/1964). __________ . Além do cotidiano. Rio de Janeiro, Record, 1985.
8. “Como resultado da reforma bancária (Lei n o 4.595, de 31 de dezembro de __________ . Ensaios imprudentes. Rio de Janeiro, Record, 1987.
1964) o Banco Central da República do Brasil abriu suas portas a 31 de março
de 1965, tendo Dênio Nogueira como presidente. O poderoso Conselho Monetá- __________ . O século esquisito. Rio de Janeiro, Topbooks, 1990.
rio Nacional, considerado como o órgão supremo do sistema financeiro nacio- __________ . Reflexões do crepúsculo. Rio de Janeiro, Topbooks, 1991.
nal, era presidido por Bulhões. Além dos ministros da Fazenda, da Indústria e __________ . A lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro, Topbooks, 1994.
Comércio e do Planejamento, seus membros, em um total de 11, incluíam o pre-
sidente e três diretores do Banco Central, o presidente do Banco do Brasil e do __________ . Antologia do bom senso. Rio de Janeiro, Topbooks, Bolsa de
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e dois técnicos não Mercadorias & Futuros, 1996.
pertencentes ao governo” (Dulles, 1983:116). __________ . Na virada do milênio. Rio de Janeiro, Topbooks, 1999.
9. Sobre isso, Thomas Skidmore (1988:78-79) afirma o seguinte: “A ‘redemo- CAMPOS, R. de O. e SIMONSEN, M.H. A nova economia brasileira. Rio de
cratização’ do Brasil em 1945-46 deixara intacta essa estrutura de relações Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1974.
corporativistas do trabalho. A Constituição de 1946 reconheceu o direito à greve
(Art. 158), ficando para ser regulamentada a sua aplicação em lei ordinária que, CHAIA, M.W. Intelectuais e sindicalistas: a experiência do Dieese. São Paulo,
entretanto, cairia no esquecimento. As disputas entre empregadores e sindicatos Humanidades, 1992.
a partir de 1945 geralmente eram levadas aos tribunais trabalhistas e, como os CIRO, B.; COZAC, L.F.L. e REGO, J.M. Conversa com economistas brasilei-
seus juízes eram nomeados pelo governo, estes procuravam não contrariá-lo. ros. São Paulo, Editora 34, 1996.
Está claro agora por que sucessivos governos achavam fácil conviver com a es- COUTO, R.C. História indiscreta da ditadura e da abertura. Rio de Janeiro,
trutura da CLT. No final dos anos 40 o governo do presidente Dutra usou-a para Record, 1999.

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121
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

VIOLÊNCIA ENTRE TORCIDAS


ORGANIZADAS DE FUTEBOL

CARLOS ALBERTO MÁXIMO PIMENTA


Professor de Sociologia na Universidade de Taubaté. Autor do livro Torcidas Organizadas de Futebol:
violência e auto-afirmação, aspectos da construção das novas relações sociais.

Resumo: O presente artigo busca compreender o fenômeno da violência entre “torcidas organizadas”, a partir
das justificativas de explicação dos atos de violências utilizadas pelas “autoridades públicas” e torcedores.
Mostra, em síntese, que a violência produzida pelos grupos de torcedores é parte da dimensão cotidiana dos
grandes centros urbanos na sociedade brasileira contemporânea, conseqüência do esvaziamento político-cul-
tural-coletivo dos novos sujeitos sociais.
Palavras-chave: futebol no Brasil; violência; torcidas organizadas.

O
presente artigo tem a pretensão de explicitar que como do método determinista e/ou não-determinista. Con-
as práticas de violência produzidas pelas torcidas tudo, em que pese a intranqüilidade exposta, caminhar é
organizadas inflexionam-se e (re)dimensionam-se preciso e ir a fundo na questão significa atentar para as
na base dos “jogos de relações” travados no cotidiano da particularidades de cada violência e de como cada grupo
sociedade brasileira contemporânea. faz uso dela ou nela está inserido. Não é tarefa (e nem
A reflexão proposta segue caráter essencialmente pros- abordagem) fácil!
pectivo e indagatório, cuja análise temática circunscreve-se Pois bem, é na tentativa de compreender nosso tempo
em pesquisas empíricas qualitativas/críticas desenvolvidas social e na perspectiva de romper com visões reduzidas
junto às torcidas “Gaviões da Fiel”, “Independente” e “Man- que são tomados como referência de observação os dis-
cha Verde”, sediadas na cidade de São Paulo, e sobre a vio- cursos de “autoridades” (desportivas, públicas, etc.) e de
lência implicada no processo de profissionalização da es- torcedores filiados para refutar atitudes e estratégias
trutura administrativa do futebol brasileiro, síntese das explicativas de violência, com ênfase no fortalecimento
projeções políticas e econômicas de nosso Estado. dos mecanismos de “segurança”, direcionando ações do
O recorte dessa reflexão se faz necessário, pois pre- poder público ao “disciplinamento” e à “manutenção da
tende-se buscar uma melhor compreensão de nosso tem- ordem social vigente”.
po social, rompendo com visões reduzidas, conservado- A violência vem ganhando parte significativa na agenda
ras ou meramente estatísticas sobre o tema violência, bem social, em especial nos veículos de comunicação de mas-
como indicar apontamentos às modificações sentidas no sa, parecendo assumir o epicentro das preocupações do
cotidiano dos grandes centros urbanos brasileiros que poder público e do homem contemporâneo. No entanto,
(re)ordenam o comportamento dos grupos de jovens, em merece ser observada por outros ângulos cada vez menos
face das transformações políticas, econômicas e socio- policialescos ou midiáticos, para evitar que seja utiliza-
culturais em curso. da, apenas, como cenário de “espetáculo” e “banalização”
Por outro lado, mesmo com “toda” perspectiva de humana.
(re)visitar posturas mais ampliadas, sabe-se que não é A partir da visão dos “torcedores” (muitas vezes de-
muito tranqüilo iniciar discussão sobre violência, sob nominados vândalos2 em trabalhos científicos) e das “au-
qualquer ótica.1 Trata-se de um tema ainda bastante pe- toridades” envolvidas com o evento esportivo, busca-se
noso e pesado, do ponto de vista do objeto-sujeito, bem relacionar a violência produzida entre as “torcidas orga-

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VIOLÊNCIA ENTRE TORCIDAS ORGANIZADAS DE FUTEBOL

nizadas” com os “jogos” de relações sociais travados no de brasileira contemporânea. Conseqüentemente, o estilo
espaço urbano. Pelos olhos desses envolvidos é que se de vida dos jovens, aqui denominados de novos sujeitos
encaminhará a fundamentação das questões levantadas. sociais,9 não pode ser dissociado dos desdobramentos cau-
A observação privilegiará os discursos coletados em sados por esses traçados político-econômicos legitimados
pesquisa de campo ou em dados obtidos na imprensa es- no “jogo” social. Na década de 70, o poder de mando do
crita e televisiva, dos anos 80 em diante, tendo como ponto complexo industrial interferiu nas macroorganizações po-
de partida: lítico-econômicas, provocando grandes instabilidades nas
- aumento da violência entre “torcidas organizadas”; microorganizações sociais emergentes.
- a intolerância com a violência, após o dia 20 de agosto Em outras palavras, o conflito entre os poderes econô-
de 1995, no acontecimento denominado de “Batalha Cam- mico e social marcou a construção do espaço urbano das
pal do Pacaembu”; grandes cidades, prevalecendo o interesse do capital e,
de alguma forma, esse processo interferiu, inclusive, na
- a incompatibilidade da violência com os rumos da pro-
identidade social dos jovens que se expressam através da
fissionalização administrativa do futebol brasileiro.
negação do outro (enquanto ser social), da disputa e da
violência prazeirosa entre os grupos rivais.
O FENÔMENO: “TORCIDAS ORGANIZADAS” Ademais, um apontamento possível desses desdobra-
mentos é o esvaziamento da noção do coletivo na forma-
A violência ao redor do futebol não é acontecimento ção dos jovens, fator indispensável na compreensão dos
novo e há exemplos na história do futebol brasileiro4 e novos sujeitos. O aumento dos atos de violência pratica-
mundial (Murphy, Williams e Dunning, 1994:39-70) de dos pelo movimento de “torcidas organizadas” tem de-
atos de extrema violência entre torcedores. O que é iné- corrência no surgimento desses “sujeitos”. Estes são, pre-
dito é o movimento social de jovens em torno de uma dominantemente, jovens individualizados, do ponto de
organização que difunde novas dimensões culturais e sim- vista da formação de uma consciência social e coletiva.10
bólicas no cotidiano urbano, amoldando o comportamento O diálogo grafado viabiliza melhor o entendimento da ar-
dos inscritos. Diante desse contexto, duas questões ficam gumentação exposta:
registradas: quem são esses “torcedores”? Quais os moti- “Repórter: - O que você acha dessa violência?
vos desse aumento considerável de violência? Torcedor: - (...) a gente tem um cachorro que vai e te
Dos anos 80 para cá, sabe-se que, no Brasil, o com- morde e você vai ficar parado?”11
portamento do torcedor nas arquibancadas dos estádios
Os atos de violência perdem a percepção da existência
de futebol modificou-se consideravelmente. Isso se deu
do outro, enquanto pessoa do mesmo grupo social ou
pelo surgimento de configurações organizativas com ca-
mesmo humana:
racterística burocrática/militar,5 fenômeno essencialmente
“Repórter: - Você chegou a bater em alguém?
urbano6 que cria uma nova categoria de torcedor, ou seja,
o chamado “torcedor organizado”. Torcedor: - Não sei...
Fica uma indagação: em quais circunstâncias socio- Repórter: - Você se defendeu pelo menos?
culturais, políticas e econômicas nasce essa “nova cate- Torcedor: - Defendi...
goria de torcedor”? A questão perpassa todo texto e re- Repórter: - O que você acha disso, você gosta?
mete à análise da constituição do tecido social das grandes
Torcedor: - Gosto ... é só para chegar em casa e ter o
cidades.
prazer de tirar um barato com os meus amigos.
As primeiras “torcidas organizadas” datam do fim da
década de 60 e do começo dos anos 70.7 Nesse período, o Repórter: - Não importa que alguém morra nisso?
Brasil caminhava em passos largos na busca do desen- Torcedor: - Não sendo amigo meu, tudo bem?” 12
volvimento econômico e a cidade de São Paulo avançava Armando Nogueira, no programa “Apito Final”, da TV
no processo de aceleração urbana, porém, notoriamente Bandeirantes, no dia 20 de agosto de 1995, após o aconte-
desarticulado e descompromissado com as bases sociais.8 cimento no Pacaembu, percebeu que “(...) É com um cons-
A violência entre “torcidas organizadas” não está de- trangimento inimaginável. Eu estava vendo estas cenas aqui
sarticulada dos aspectos político, econômico e sociocultural e não é o caso da gente fazer uma pergunta mais profunda,
vivenciados nas relações individuais e grupais na socieda- porque a paisagem humana que eu vi em campo era predo-

123
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

minantemente de adolescentes, predominantemente de ga- via, traduz-se no cerceamento do acesso dos torcedores
rotos e aí eu pergunto: como nos desculpar de tudo isso? O aos estádios através da ação policial ou da majoração dos
que o Brasil tem feito pela sua infância? O que o Brasil ingressos dos jogos. Portanto, o que se quer dizer é que
tem feito pela sua adolescência? (...) eu não tenho a menor tais discursos simplificados reforçam na ótica da opinião
dúvida que nós não podemos nos considerar inocentes.” pública e das instituições repressivas que a violência tem
corpo e rosto. Edson Arantes do Nascimento, o Pelé,15 ar-
VISÃO DAS “AUTORIDADES ESPORTIVAS” gumentou que “(...) é muito triste. Eu que na época do
milésimo gol pedi escola para as crianças, hoje peço ca-
A violência, via de regra, é o elemento aglutinador e deia para esses meninos”.
constitutivo dos agrupamentos de torcedores. Nota-se que, Em outras palavras, essa linha de pensamento nos re-
no entendimento dessa modalidade de violência, aos olhos mete, apenas, a revermos as injustiças e as desigualda-
tanto dos “torcedores” quanto das “autoridades esporti- des, à inércia do Estado e à desestruturação da ordem le-
vas” os argumentos explicativos permanecem no eixo do gal, sem ao certo colocarmos em pauta o modelo de
econômico e da classe social, como determinantes. sociedade e suas trajetórias ideológicas no campo do
Após o fatídico dia 20/08/1995, diversos discursos13 “jogo” político-cultural.
sucederam na imprensa e, por esse episódio, possibilitou-
se a revelação do entendimento das autoridades esportivas OS “ORGANIZADOS” E SUAS VISÕES
sobre os fatores geracionais de atos de violência entre “tor-
cedores”. O repórter Flávio Prado entende que: “(...) Es- Na intenção de compreender o fenômeno, é importan-
ses jogos de graça, envolvendo grandes equipes, são óti- te registrar que foi nos anos de 1992 e 1994 que ocorreu
mos pretextos para que esses marginais compareçam.” a maior parte dos envolvimentos, noticiados, entre “tor-
Já o jornalista esportivo Juca Kfouri14 expressou: “(...) cidas”, resultando na morte de 12 pessoas, sendo quatro
uma das soluções que eu vejo imediata é proibir, termi- delas em 1992 e oito em 1994. Nesse período, os con-
nantemente, o futebol com portões abertos; futebol de frontos passaram a ser constantes e os instrumentos utili-
massa nem pensar, porque é a senha para bandidos toma- zados para defesa e/ou ataque tinham o poder de ocasio-
rem conta do estádio. Cobrar o ingresso e cobrar caro, nar lesões de natureza grave. Os “torcedores” começam a
cada vez mais caro, com cadeiras em todos os setores do fazer uso de “bombas” e “armas de fogo”, instrumentos,
estádio. Tornar o futebol um esporte para a elite, vão lá até então, pouco utilizados nos embates entre “torcidas”.16
40 mil abençoados por Deus, da alta classe média desse O fato de constatar-se que antes dos anos 90 não havia
país (...). Evidentemente que não são os pobres os culpa- notícias de inúmeras mortes não significa que os confron-
dos pela violência. Os culpados pela violência a gente tos inexistiam. Segundo Paulo Serdan,17 “as brigas eram
conhece desde a distribuição de renda neste país, mas que na mão e não havia armas” (sic).
infelizmente, 90% desses vândalos são do ‘lumpesinato’, Em 1991, a “Mancha Verde” tinha 4.000 filiados, a
são; são explorados, são; são um bando de desocupados, “Independente”, 7.000 e os “Gaviões da Fiel”, 12.000. Até
são (...) ou são explorados dessa gente, em regra os presi- outubro de 1995, período em que passaram a ocorrer, por
dentes de ‘torcidas organizadas’ (...).” parte da Justiça Pública paulistana, cerceamentos das ati-
O Promotor Público, Fernando Capez (1996:49), de- vidades desenvolvidas pelas “organizadas”, estas “torci-
signado para mover ações públicas contra a legalidade das das” tinham em seus quadros o registro de 18.000, 28.000
“torcidas organizadas”, salientou que “(...) o recrudesci- e 46.000 filiados, respectivamente.18
mento dos problemas sociais e econômicos, o considerá- O afluxo de jovens às “torcidas”, no entender de
vel aumento da distância entre os segmentos sociais, o Jamelão,19 ex-presidente dos “Gaviões da Fiel”, se deu
alastramento generalizado da miséria, a falta de emprego porque “o monstro ‘Gaviões’ tem crescido muito desde
e de acesso a um sistema de educação e saúde minima- 1990 e há uma grande procura por parte dos garotos de
mente adequados, entre tantos outros problemas, acaba- 13, 14, 15 e até 18 anos. (...) essa procura é boa, aqui nós
ram criando perigosos focos de tensão social”. temos um conselho, nós temos um ideal e eu acho que
As sucessivas declarações caminharam no sentido de nessas ‘torcidas’ está faltando um pouco disso (...)”.
explicar a violência pelos mesmos condutores, ou seja, As novas filiações eram, basicamente, realizadas por
fatores econômicos e de classe social. A solução, por essa jovens entre 12 e 18 anos de idade, atraídos pela

124
VIOLÊNCIA ENTRE TORCIDAS ORGANIZADAS DE FUTEBOL

vestimenta, força e coesão do grupo, relações verti- O argumento mais recorrente utilizado por represen-
calizadas, estilo de vida, prazer da violência, enfim, pe- tantes de “torcidas” é que atos de violência podem ser
los aspectos estético-lúdico-simbólicos disponibilizados gerados em face de inúmeros fatores intimamente liga-
à massa jovem, intimamente ligados ao modelo de socie- dos às teias de relações desenvolvidas no evento espor-
dade de consumo instaurado no Brasil. tivo, abrangendo desde a estrutura dos estádios até a ação
A “Mancha Verde”, por exemplo, fundada em 11 de da polícia. Paulo Serdan sintetizou a justificativa: “(...)
janeiro de 1983, desde a escolha do nome até as atitudes um detalhe do juiz, um detalhe do bandeirinha, um de-
praticadas nas arquibancadas e nas ruas da cidade, demons- talhe do policiamento. É uma série de detalhezinhos que
trou ser uma “torcida” forte e preparada para enfrentar vai insulflar a ‘torcida’ e vai criar um clima de guerra.
suas rivais: “escolhemos o nome ‘Mancha Verde’com base Você chega num estádio e não tem água para beber, não
no personagem ‘Mancha Negra’ do Walt Disney, que é tem banheiro para ir (...), um guarda que é um pouco
uma figura meio bandida, meio tenebrosa. A gente preci- violento (...), um bandeirinha que vira para trás e tira
sava de uma figura ideal e de pessoas que estivessem a um barato com a cara da ‘torcida’ ou o próprio diretor
fim de mudar a história. Na época, a gente tinha uns 13/ de clube que o seu time faz gol, ele vira para a ‘torcida’
14 anos de idade e já havíamos sofrido muito com as ou- e tira um barato, então é uma série de detalhes que faz
tras ‘torcidas’, então, a gente começou com muita vonta- você sair do sério (...)”.
de, muita garra e na base da violência. A gente deve ter O “torcedor”, no modelo “organizado”, não é mais um
exagerado um pouco, porém, foi um mal necessário. A mero espectador do “jogo”. No grupo ele é parte do espe-
gente conseguiu o nosso espaço e adquirimos o respeito táculo, ele é o espetáculo. No grupo ele expressa sua mas-
das demais ‘torcidas’.” culinidade, seus sentimentos de solidariedade, de compa-
A violência, verbal e física, traduziu-se em um dos prin- nheirismo e de pertencimento em um grupo que o acolhe.
cipais códigos e símbolos sociais de agrupamento de jo- Paulo Serdan entende que o fascínio se dá, pois “(...) essa
vens em torno das “torcidas organizadas”. À medida que juventude de hoje em dia não tem alguma coisa para se
os números estatísticos e os atos de agressividade aumen- espelhar e se inspirar. (...) eles não têm no que se apoiar.
tavam, proporcionalmente, cresciam a procura e a filiação (...) Qual o único segmento hoje em dia que expõe as suas
ao movimento. vontades e os seus desejos, mesmo que seja em relação
Como se explica, a partir dos próprios “torcedores”, ao futebol? É a ‘torcida organizada’”.
atos de extrema violência praticados entre “torcidas”?
No entendimento dos dirigentes, o assustador aumento CONCLUSÃO
da violência, além dos argumentos utilizados pelas “au-
toridades esportivas”, tem dois fatores preponderantes: A violência entre “torcidas organizadas” (acrescenta-
a influência da mídia e os ingredientes do próprio “jogo”. se aqui o comportamento de inúmeros grupos de jovens)
Para Paulo Serdan, “(...) a imprensa cria fatos que não passou a ser uma preocupação social, uma vez que assu-
existiu, mas a gente já está acostumado com isso (...). O miu característica de acontecimento banal, débil e vazio.
lance é que o jornal tem que vender. (...) se as ‘torcidas Na mesma proporção, passou a ser, também, um incômo-
organizadas’ cresceram muito, a imprensa ajudou mui- do aos interesses em torno do evento esportivo.
to também, porque essa molecada de hoje em dia, de 13, As explicações que sucederam, restritas à observação
14, 15 anos, não tem um ideal, nem um ideal político, dos discursos das “autoridades esportivas” e dos “torce-
nada” (sic). dores”, têm ressonância nas seguintes justificativas:
Jamelão, ex-presidente dos “Gaviões da Fiel”, acredi- - má distribuição de renda;
ta que “(...) a imprensa tem que chegar junto com a gente - exploração dos dirigentes esportivos e dos líderes das
(...), porque todo aquele que for associado que está na faixa “torcidas”;
de 15 a 17 anos, vendo uma matéria no jornal: ‘são-paulino
- efeitos da criminalidade;
toca bomba no corintiano’, isso automaticamente fica na
memória dele no próximo jogo, ele vai fazer bomba para - ausência de expectativa de futuro aos jovens;
atacar o são-paulino. (...) A imprensa ao invés de colabo- - ausência do Estado, enquanto mentor de políticas pú-
rar e querer saber quais os pontos para ter uma solução, blicas de formação social;
eles preferem vender a imagem, vender o jornal (...)”. - efeitos da pobreza;

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000

- afrouxamento da ordem legal e das posturas repressivas vido pelas “torcidas” e vão aos estádios de futebol pela
das instituições de segurança e justiça; diversão, pela viagem, pela bebida, pela excitação do
- falta de emprego; “jogo” e, até, pelo prazer de atos de violência.21
Não cabe, em igual proporção, pensar a violência en-
- miséria generalizada;
tre “torcidas”, no caso do Brasil, negando os efeitos do
- familiarização com a violência; esvaziamento político do sujeito social, em especial dos
- falta de infra-estrutura nos estádios de futebol; agrupamentos de jovens, instaurado no processo de cons-
- má arbitragem; trução de uma “sociedade atomizada” (Scherer-Warren,
1993:112-113) e impulsionado pelos traçados ideológi-
- gozações de adversários;
cos dos governos militares.
- derrota de uma partida de futebol. Para se ter uma idéia, extra-oficialmente,22 as vítimas
Enfim, há um universo de argumentos e todos não são fatais nos enfrentamentos entre torcedores de futebol che-
desprezáveis do ponto de vista da análise empírica. No en- gam a 29 casos, sendo que a maioria pertence à faixa etá-
tanto, os argumentos utilizados pelos “torcedores” e “au- ria de 10 a 22 anos, totalizando 20 casos. Desses, 15 ca-
toridades esportivas” são insuficientes para aflorar aprofun- sos ocorreram de 1992 em diante. O comando do 2 o
damentos ao entendimento dessa modalidade de violência. BPChq, 23 da cidade de São Paulo, constatou que os
As atitudes e as estratégias explicativas da violência agressores são “(...) menores de 18 anos. A média de ida-
(seja qual for sua natureza) com ênfase apenas no forta- de é 16 anos dos elementos que praticam atos violentos.
lecimento dos mecanismos de “segurança”, no direcio- Isso não significa dizer que a gente não detenha indiví-
namento das ações do poder público ao “disciplinamento” duos maior de idade. Isso ocorre, mas existe uma grande
e à “manutenção da ordem social vigente” devem ser, ve- maioria de menores que praticam atos de violência”.
ementemente, refutadas para evitar injustiças e erros, his- Na articulação vem-se reforçando a idéia de que a vi-
toricamente repetidos. Primeiro, porque quem produz a olência não é disjunta da realidade social e que é parte da
violência, no visor imaginário do senso comum, é só a dimensão real do cotidiano dos espaços urbanos das gran-
pessoa de baixo poder aquisitivo, pobre, negro ou mesti- des cidades brasileiras e, consecutivamente, dos grupos
ço. Segundo, porque a ordem dominante não reconhece de jovens. Portanto, a mola propulsora dessas dimensões
que a violência pode constituir outras formas de relações sociais, combinadas com uma infinidade de fatores his-
sociais, reproduzindo representações, códigos e estilos de tóricos, econômicos e socioculturais, ganha efeito pela
vida próprios.20 Por fim, porque o discurso dominante não produção do esvaziamento político do sujeito social.
reconhece que o indivíduo faz parte de um sistema social Nesse sentido, observa-se que os atos de violência
de padronização subjetiva e que recebe informações de transformam-se em um plus nesses acontecimentos e cir-
diversas ordens, reagindo aos estímulos com afetos, angús- culam além das questões de classe social ou de efeitos do
tias, frustrações, excitações, prazer, etc. econômico. Ou seja, no novo sujeito social, no caso o “tor-
Não cabe atribuir as causas da violência, exclusivamente, cedor organizado”, o prazer e a excitação gerados pela
às questões de classe social ou fatores estritamente econô- prática de atos de violência podem ser elementos impor-
micos. Na composição de uma “torcida” participam pes- tantes na interpretação do comportamento juvenil, uma
soas que respondem a processos criminais, viciados, estu- vez esvaziado de sua capacidade de ser sujeito coletivo.
dantes, trabalhadores das mais diversas profissões, pais de Três aspectos se convergem para justificar e explicar
família, mulheres, jovens. Existe uma pluralidade de “agen- a violência entre “torcidas”: a juventude, cada vez mais
tes” que assumem diversos papéis nos “jogos” de relações esvaziada de consciência social e coletiva; o modelo de
sociais. Paulo Serdan, ao descrever o perfil dos filiados da sociedade de consumo instaurado no Brasil, que valoriza
“organizada” que faz parte, salientou que a “torcida” é “(...) a individualidade, o banal e o vazio; e o prazer e a excita-
um grupo diversificado. Aqui temos pessoas de todas as ção gerados pela violência ou pelos confrontos agressi-
classes. (...), temos pessoas aqui que participam de parti- vos.
dos políticos (...), ricos, pobres, negros, amarelos, vicia- O que se arrisca, por derradeiro, dizer é que a violência
dos (...). A gente forma uma grande família”. caracterizou-se como parte intensa nas dimensões do coti-
Pode-se dizer que os sócios das “organizadas” são pes- diano urbano contemporâneo, em especial dos grandes
soas normais que gostam de futebol, do “barato” promo- centros, sendo que uma pista importante, diante da intole-

126
VIOLÊNCIA ENTRE TORCIDAS ORGANIZADAS DE FUTEBOL

rância da “comunidade” esportiva e das “autoridades pú- jetivo de fiscalizar e apontar todos os erros praticados pelos dirigentes do S. C.
Corinthians Paulista, auto-intitulando-se “os representantes da nação corintiana”
blicas” ao movimento de “torcidas organizadas”, cinge-se junto à Instituição-Clube. A identificação desses grupos é percebida pela
na indicação de que a repressão (policial, legal, etc.) con- vestimenta, pela virilidade e masculinidade, pelos cânticos de guerra, pelas trans-
gressões das regras legais, pelas coreografias, pelo sentimento de pertencimento
tribui para manter uma “suposta ordem”, porém, contribui, ao grupo e pela necessidade de auto-afirmação. As “torcidas organizadas” opõem-
se aos modelos considerados, demasiadamente, pacíficos adotados pelos
também, no deslocamento dessa massa jovem para outros “charangas”, bandas musicais que a partir dos anos 40 davam nas arquibancadas
movimentos de busca de prazer e de excitação. um tom carnavalesco de torcer pelo seu clube. Para aprofundar sobre o tema, ver
Toledo (1996a:21-38) e Pimenta (1997:64-93).
8. Nesse sentido, o trabalho de Kowarick (2000) traz referências importantes
sobre construção dos espaços urbanos, nos grandes centros brasileiros.
NOTAS 9. Entende-se por “novos sujeitos” os indivíduos, na sua maioria jovens, que
interagindo nos “jogos de relações sociais” sofrem(ram) esvaziamento de suas
E-mail do autor: cpimenta@iconet.com.br identidades e personalidades coletivas ou alguma forma de exclusão pela “or-
1. A academia brasileira, nas últimas décadas, tem buscado respostas às múlti- dem dominante” e que buscam, através de atos denunciatórios ou agressivos,
plas facetas da violência, reconhecendo que o fenômeno transformou-se, sem rosto social, resistência cultural e pertencimento a grupos coesos que lhes dêem
sombra de dúvidas, em uma das maiores preocupações no imaginário urbano. a possibilidade de vida social (Pimenta, 1996:17-26).
Ver, nesse sentido, os trabalhos de Pinheiro (1982), Da Matta (1982), Pires (1985), 10. Sobre os fatores que influenciam o esvaziamento da consciência social e co-
Morais (1985), Odália (1986), Benevides (1982), Costa (1993), entre outros. letiva do sujeito, ver Chauí (1986), Zermeño (1990:54-62) e Scherer-Warren
Contudo, a temática da violência ainda é um assunto difícil e arenoso da promo- (1993:112-113).
ção de intervenções acadêmicas. 11. Extraído de reportagem produzida pela TV Bandeirantes, em 20/08/1995,
2. O termo vândalo ou vandalismo é muito utilizado por investigadores euro- após a Batalha Campal do Pacaembu, com torcedor da “Mancha Verde”, supos-
peus para distinguir o torcedor comum do violento, no caso europeu: Hooligan. to autor da morte do “Independente” Márcio Gasperin da Silva.
Ver os trabalhos de Duran Gonzalez (1996a e 1996b), Buford (1992), entre ou- 12. Fala de Adalberto Benedito dos Santos, torcedor da “Mancha Verde”, apon-
tros. A proposta é evitar a utilização desse termo para, conseqüentemente, evitar tado como autor da morte do “Independente” Márcio Gasperin da Silva. TV
a rotulação policialesca ou midiática empregada aos acontecimentos de violên- Bandeirantes, 20/08/1995.
cia entre torcedores organizados no Brasil.
13. Os dados foram extraídos dos programas “Cartão Verde” (TV Cultura), “Show
3. Após o acontecimento do Pacaembu, as atividades das “torcidas organizadas” do Esporte” (TV Bandeirantes), produzidos no dia 20/08/1995, “Jornal do SBT”,
foram proibidas, por ordem judicial e, conseqüentemente, houve a extinção des- “Globo Esporte”, produzidos no dia 21/08/1995, e no Seminário A Violência no
sas entidades. O fato ocorreu somente no Estado de São Paulo. Contudo, não Esporte, promovido pela Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Esta-
significa que elas não marquem presença nos estádios de futebol e deixaram de do de São Paulo, uma semana após o acontecimento do Pacaembu, realizado na
fazer suas reivindicações junto aos clubes. Recentemente, os “Gaviões da Fiel” Faculdade de Direito da USP, sob a coordenação de Júlio Lerner.
invadiram a sede do S. C. Corinthians Paulista e agrediram os jogadores de fute-
bol, alegando ausência de ânimo e desempenho dos mesmos nas partidas (Diário 14. O jornalista esportivo Juca Kfouri, no Seminário A Violência no Esporte
Popular, 28/06/2000:5). (1996:61-64), reproduziu sua visão infeliz.

4. Atos de violência acompanham o comportamento dos torcedores desde o iní- 15. Folha de S.Paulo, 21/08/1995. Pelé retificou seu pensamento, posteriormen-
cio dos jogos de competição. Rodrigues Filho (1964:20-24) em O negro no fute- te, dizendo que “(...) agora eu pedia cadeia para quem um dia pedi atenção, mui-
bol brasileiro, menciona que “quando o Bangu vencia, muito bem, não havia tos entenderam que eu estava propondo a prisão de menores de idade. Certa-
nada, o trem podia voltar sem vidraças partidas. Quando o Bangu perdia, porém, mente não me expressei bem, então. O que quis dizer, e repito, foi no sentido de
a coisa mudava de figura; os jogadores da cidade trancavam-se no barracão, o que os abandonados de novembro de 1969 tinham virado os delinqüentes de agosto
vestiário da época, não queriam sair só com a polícia, os torcedores corriam para de 1995. Eles e seus filhos – e é claro que a sociedade precisa ter defesas contra
esconder-se no trem, deitando-se nos bancos compridos de madeira, enquanto as a violência” (Pimenta, 1996:17).
pedras fuzilavam, partindo vidros, quebrando cabeças. Vinha a polícia, os joga- 16. Todos os dados contidos nesse parágrafo foram extraídos da sistematização
dores saíam do barracão, bem guardados, os diretores do Bangu atrás deles, muito de 614 textos jornalísticos da imprensa escrita paulista, de janeiro de 1980 a
amáveis, pedindo desculpas. Numa confusão dessas era natural que ninguém se dezembro de 1999.
lembrasse da taça oferecida ao vencedor. Daí a expressão que pegou: ‘ganha,
17. No presente texto, todas as falas de Paulo Serdan são datadas de julho de
mas não leva’. O clube da cidade podia ganhar o jogo. A taça, porém, ficava lá
1995, na época presidente da “Mancha Verde”.
em cima”.
18. Dados obtidos junto às mencionadas “torcidas”, em abril de 1995.
5. Por “burocrática-militar” entende-se grupos de torcedores que formam, ao seu
redor, estrutura organizativa com base em estatutos, quadro associativo, depar- 19. Entrevista realizada em abril de 1995. Todas as “falas” de Jamelão, contidas
tamento administrativo e de vendas, sede para ponto de encontro, reuniões, inte- nesse texto, referem-se à entrevista supra.
ração social e que estão preparados, se necessário, para o confronto físico e ver- 20. Nesse sentido, ver Ortiz (1983), Elias e Dunning (1992), Diórgenes (1998),
bal contra os grupos rivais. Os “Gaviões da Fiel” modificaram o estilo das torci- Costa (1993), entre outros.
das existentes institucionalizando formas de organização, administração e “es-
21. Sobre a questão da excitação e do prazer pela prática de atos que fogem aos
tratégias” e “táticas” de defesa em confrontos com os “inimigos”, semelhantes
padrões de controle estabelecidos pelas sociedades capitalistas, ver Elias (1992b).
às práticas produzidas nos governos militares, pelo menos quanto à utilização
simbólica da linguagem militar (linha e pelotão de frente, combate, etc.). Ver 22. Os dados foram coletados na imprensa escrita de São Paulo, de janeiro de
Pimenta (1997:64-82). A categoria “burocrática-militar”, apropriada no texto, 1980 a dezembro de 1999.
foi denominada pelo professor Maurício Muhad, pesquisador/fundador do Nú- 23. Dados coletados junto ao comando do 2 o BPChq, da Cidade de São Paulo.
cleo Permanente de Estudos de Sociologia do Futebol, do Departamento de Ciên-
cias Sociais, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ.
6. Para ampliar o entendimento da afirmação de ser as “torcidas organizadas”
um fenômeno urbano, ver Toledo (1996a:124-155).
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Brasil. Os “Gaviões” representam a primeira torcida a ter uma estrutura
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camente, formando instituição privada sem fins lucrativos e seus sócios são tra- BUFORD, B. Entre os vândalos: a multidão e a sedução da violência (Tradução
tados de forma “impessoal”. A “torcida” foi fundada em 01/07/1969, com o ob- Júlio Fischer). São Paulo, Companhia das Letras, 1992.

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