You are on page 1of 14
CADERNOS DO ATELIE A Historia Antropologica de um Ponto de Vista Tecnolégico Ensaios de Antropologias das Técnicas e dos Objetos Técnicos Fasciculo 1. As Técnicas e a Tecnologia Marcel Mauss PARCERIA: ATELIE DE HUMANIDADES & SOCIOFILO A | CADERNOS DO ATELIE Plano de Convergéncia: Teenociéncias & Sociedades: Interflavios e Porvites da Maquina, da Vida e do (Pés-)Humano A Série “A Historia Antropolégica de um Ponto de Vista Tecnolégico’ A presente série, publicada em Fasciculos pelos Cadernos do Atelié de Humanidades, tem o propésito de disponibilizar ao grande piiblico ensaios de antropologia das tecnologias. Feita em uma parceria do Atelié de Humanidades com 0 Blog do Sociofilo, ela se propée a publicar, principalmente, tradugées de textos classicos da historia da antropologia (e de suas ciéncias irmas, como a arqueologiae a etologia) que tenham assumido uma posicao do “ponto de vista tecnolégico”. Pretendemos trazer também ensaios contemporaneos que trabalham com uma abordagem antropoldgica das técnicas, dos objetos técnicos e das tecnologias. Nesse primeiro fasciculo da série trazemos o artigo de Marcel Mauss, “As Técnicas e a Tecnologia” (1941/1948). Por: André Magnelli Parceria: ATELIE DE HUMANIDADES - Espago de livre estudo, pesquisa, escrita e formacao contato: ateliedehumanidades@gmail.com site: www.ateliedehumanidades.com (em construgao) SOCIOFILO - (CO)Laboratério de Teoria Social site: www.blogdosociofilo.wordpress.com Apresentacao do texto" André Magnelli A importancia da obra de Marcel Mauss para os estudos sobre magia, religi3o, sacrificio, formas de classificagao, contrato e troca é bastante conhecida e reconhecida dentro das ciéncias sociais. Mais recentemente, tem-se descoberto também o significado das pesquisas do antropélogo francés sobre a nagdo ¢ a civilizagio. Gontudo, ainda é dada pouca atengao para (mais) um projeto esbogado e inacabado de Mauss: 0 de uma teoria geral (isto , uma “Tecnologia, das técnicas e dos objets técnicos. Exceto 0 célebre ensaio maussiano sobre As técnicas do corpo (1934), os demais textos e trechos da obra do antropélogo francés nao receberam ainda a devida atengao.” Mas a questao das técnicas é uma presenca constante em sua obra e em seus cursos. Em grande parte, a razao por sua desconsideragao esta no fato dele ter pouco escrito sobre o tema, legando-nos uma escassa documentagéo sobre um tépico cujas ligdes influenciaram obras como a do arquedlogo André Leroi-Gourhan (191-1986) do cetnélogo e linguista André-Georges Haudricourt (1872-1927), No itinerdrio de Mauss, uma primeira reflexio sobre o fendmeno téenico aparece no Esbogo de uma Teoria Geral da Magia (1902-1904), escrito a quatro maos com 0 arquedlogo e amigo Henri Hubert (1872-1927) Nele os autores tratam das artes, técnicas e ciéncias mostrando suas similitudes funcionais e, mesmo, suas origens histéricas com a magia. Fora algumas intervengdes em torno do tema’ e algumas consideragées marginais no tratamento da origem das categorias sociolégicas, * Outras apresentagdes da questio da tecnologia na obra de Mauss podem ser encontradas em: SCHLANGER, Nathalie. Une technologie engagée : Marcel Mauss et l'étude des techniques dans les sciences sociales, par Nathan Schlanger. In: Techniques technologie et civilisation, Paris: PUF, Collection Quadrige, 2012; VATIN, Francois, « Mauss et la technologie », Revue du MAUSS 2004/1 (no 23), p. 418 433. * Felizmente, foi publicada na Franca, com edigdo e apresentagio de Nathan Schlanger, uma compilagao dos seus textos sobre técnicas, tecnologia e civilizagio: MAUSS, Marcel; SCHLANGER, Nathan (org). Techniques, technologie et civilisation, Paris: PUF, Collection Quadrige, 2012. > MAUSS, Marcel (19021904) Esboco de uma teoria geral da magia. In: Sociologia e Antropologia. So Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 47181. * Por exemplo: MAUSS, Marcel. (1927-1928). (1929) Débat sur Forigine de la technologie humaine. In Oeuvres 3 Cohésion sociale et division de la socologie p. 257; (1938) [Techniques et économie]. Intervention & la suite d'une communication de Robert Marjolin. In: Oeuvres. 3. Cohision sociale et division de la sociologie, p. 247-249. ii notadamente a de “matéria’®, a questio das técnicas e dos objetos técnicos ganha contornos mais claros na sua relacio com a obra maussiana em trés momentos. Em primeiro lugar, as pesquisas tecnol6gicas ganham feigdes de projeto, pela primeira vez, nos seus Cursos de Etnografia, onde é encontrado um extenso capitulo sobre tecnologias, com tipologia e andlise das técnicas e dos objetos técnicos nas sociedades ‘primitivas’ (1926) Em segundo lugar, encontramos, no ensaio de sociologia geral “Divisdes e proporgées das divisdes da Sociologia” (1927), a apresentagao da tecnologia, juntamente com a morfologia social, a estética e a linguagem, como sendo um dos fenémenos sociolégicos fundamentais, mas que teriam sido injustamente clasificados na seco “Diversos” de L’Année Sociologique.’ E, em terceiro lugar, aparece uma primeira definigo maussiana do fato técnico na forma especifica de sua encarnagao tradicional e eficaz no corpo humano, no ensaio mencionado sobre as técnicas corporais (1934). Tais técnicas do corpo serio nao apenas um género de técnica, mas também o proprio paradigma da técnica - posigao teGrica criticada posteriormente pelo ex-aluno Leroi-Gourhan. O Texto 0 texto por ora traduzido € muito provavelmente o iltimo escrito por Marcel Mauss, em um momento em que ele jé softia dos sintomas de uma provavel degenerescéncia do sistema nervoso central, vindo a falecer 2 anos apés sua publicacao, Ele consiste em uma comunicagao enviada a uma jornada de psicologia e histéria do trabalho e das técnicas, ocorrida em Toulouse, em 1941. Um extrato dele foi publicado em 1948 no Journal de Psychologie, com aparentes revises textuais feitas pelo proprio autor. © argumento se divide em algumas partes. Primeiro (1), 0 autor propde que se desenvolva uma “tecnologia”, entendida como estudo geral das técnicas, no que realiza um contraste entre o atraso francés e 0 avango alemao. Segundo (2), ele define, 5 MAUSS, Marcel. (1939/ 1945) Conceptions qui ont précédé la notion de matidre, In: Oeuvres, tome II représentations collectives et diversté des civilisations. Pati: Editions de Minuit, 1969. p.161168. Os cursos de etnografia ecionados entre 1926 ¢ 1939, chegaram a n6s pelo Manuel d'Ethnographie (1947), que foi uma publicagéo néo de manuscritos do autor, mas sim de anotagdes de curso, organizadas por Denise Paulme: MAUSS (1926) Manuel dethnographie, Pati: Editions sociales, 1967, cap. 4. Veja também: MAUSS, Marcel (1929) Les civilisations. Eléments et formes, In: Oeuvres, tome II. représentations collectives et dliversté des civilisations. Paris: Editions de Minuit, 1969. p. 459-487. 7 MAUSS, Marcel (1927). Divisions et proportions des divisions de la sociologie. In: Oeuvres. . Cohésion sociale et division dela socologie. p. 178-245 (em especial p. 189-190, 194200). ® MAUSS, Marcel (1935). As técnicas do corpo. In: Sociologia e Antropologia, Sao Paulo: Cosac Naify, 2003. p.399-420).. iii classifica e estabelece as bases do método de estudo das técnicas. Terceiro (3), passa a consideragdes sobre o papel das técnicas no desenvolvimento histérico e trata do imbricamento entre técnicas e ciéncias nas sociedades modernas; enfim, (4) diagnostica, bem no espirito da época, um processo de planificagao técnica do social. 1. Um programa de pesquisa se enuncia, para nés, quando Mauss faz uso do conceito de “tecnologia” como teoria geral das técnicas. Falando diante de um auditério francés especializado no uso da psicologia aplicada a técnicas - as “psicotécnicas” -, sobretudo para 0 mundo do trabalho, ele defende a necessidade de uuma reflexdo histérica e cientifica sobre as técnicas. Tendo o intuito de “estudar todas as técnicas, toda a vida técnica dos homens desde a origem da humanidade até nossos. dias” (p.1), a tecnologia busca assinalar qual é o lugar da tecnologia, quais trabalhos ela produziu, quais resultados jé foram adquiridos, o quanto ela é essencial para todo estudo do homem, de seu psiquismo, das sociedades, de sua economia, de sua historia, do proprio solo do qual vivem os homens e, consequentemente, de sua mentalidade (p.2). Percebe-se, em tal passagem, que 0 conceito maussiano do fato social total, elaborado em outro lugar de sua obra, deve incluir nao apenas o dom e o simbélico, mas também 0 técnico e o tecnolégico. Ao defender a necessidade de tal ciéncia, ele diagnostica, em plena IF Guerra Mundial, que a Franca se encontra atrasada em relagio a Alemanha e aos EUA. Atribuindo aos alemaes no somente uma forte tradigdo de teoria e histéria das técnicas, mas também, com 0 trabalho pioneiro de Franz Reuleaux, o estabelecimento do ensino geral da tecnologia nas escolas, o antropélogo francés parece defender uma causa bem atual para o século XXI: “Em um momento em que a técnica e os técnicos esto em moda - por oposigio & ciéncia chamada pura e & filosofia, acusadas de serem dialéticas e vazias-, seria preciso, no entanto, antes de exaltar 0 espirito técnico, saber co que ele é” (p. 3). Para isso, o ensino geral sobre a natureza das técnicas e dos objetos técnicos deveria fazer parte do curriculo dos estudantes e da agenda de pesquisa dos universitarios. 2. Apés tal defesa de uma ciéncia eo estudo das técnicas, somos surpreendidos negativamente com a definigao por ele proposta. Preocupado em distinguir “técnica” de “religiao” e de “arte”, ele a restringe a muito pouco: “Chama-se técnica um grupo de movimentos, atos, geralmente ¢ na maioria manuais, organizados e tradicionais, que concorrem para obter um objetivo conhecido como fisico ou quimico ou organico.” (p. 3). Por que restringir a técnica a “movimentos, atos, geralmente ¢ na maioria iv manuais’, parece-nos um enigma, pois, no mesmo texto, Mauss mostra ter conhecimento das mais avangadas técnicas de seu tempo- incluindo a radioatividade— e falar de um processo de automagio irreversivel. Se aceitéssemos tal definigio estrita, boa parte das tecnologias modernas, incluindo obviamente as contemporaneas - teenologias de informacao, biotecnologias, inteligéncias artificiais, etc.—acabaria por sair do escopo de seu projeto. A nogao de técnicas corporais deve ter enviesado, desta forma, 0 seu olhar sobre o fendmeno como um todo. De todo modo, se deixamos de lado tal ponto, podemos centrar atengio nas feigdes do projeto antropolégico geral. Muito embora o texto esteja datado (e muito) do ponto de vista dos dados arqueolégicos, uma parte dos principios continua vigente. Parece-nos fundamental a proposta de uma abordagem antropossociolégica, em que as técnicas e os objetos técnicos sio analisados tomando-se em conta a dimensio socialhistérica de sua insergio, mas sem que, com isso, as técnicas sejam redutiveis a ela, Como mostra bem Mauss, as técnicas e os objetos técnicos sio de uma ordem propria impossivel de ser reduzida, a priori, seja a0 econdmico, ao politico ou ao social. Além disso, ha outra contribuigao para o debate sobre o lugar da técnica na historia humana. Lidando com a tese do homo faber, ele se recusa a pensar o humano somente pela via da “tecnicidade”, pois 0 que o caracteriza é, antes de tudo, a criagio. Neste sentido, utilizando Bergson, ele defende uma ruptura entre animalidade e humanidade que, hoje, € amplamente contestada pela etologia e a antropologia. Independente disso, fica o principio: falar em técnicas, objetos técnicos e tecnologias humanas, é falar, para Mauss, em mais do que uso de meios para chegar a fins, é falar em invengao e criagao: Ars homo additus naturae, diz-nos, citando Francis Bacon. 3. Se Mauss critica as teses evolucionistas, recomendando precaugio na tentagio de ler a histéria humana somente do ponto de vista da técnica, ele afirma, contudo, a importancia da “indistria” (no sentido lato do termo) para a histéria e o estudo comparado das sociedades. Parafraseando Kant, podemos dizer que hé um esboco de projeto de historia universal de um ponto de vista tecnolégico (logo, cosmopolita). Diante de uma tendéncia, existente desde o estruturalismo e o pés-estruturalismo, de interpretar 0 mundo em termos de simbélico, de linguagem e de discurso - 0 que é feito muitas vezes, com razio, remetendo ao préprio Marcel Mauss como sendo grande predecessor-, nao deixa de ser terapéutico encontrar o “inventor do simbélico” defendendo a aderéncia da imaginagio e da cultura no material, afirmando a indissociabilidade entre os sistemas simbélicos e 0 fazeres técnicos, 0 desenvolvimento do espirito e 0 da técnica. 4. 0 texto, escrito sobre o pano de fundo de uma guerra mundial e do nazismo, € muito ambivalente. O seu desfecho chega ao cume, quando o autor trata da planificagio social, Ele nos parece enunciar a entrada definitiva na era do tecnicismo - dos “planos” chegamos ao Plano, & planificagio. Dificil imaginar um judeu, que experimentava a forga técnica de um nazismo antissemita, ser impassivel a tal fato. Dentre as entrelinhas se enuncia o afeto, mas ele é dito na forma de uma mera constatacao: “nao ha mais como dominar o deménio desencadeado” (p. 6). Como sempre em sua obra, ha uma tensio entre passagens quase pueris ¢ outras com tragos de génio. Se ele é capaz de agregar significantes sem quaisquer anilises, de forma arbitraria, dizendo que “quem diz plano, diz a atividade de um povo, de uma nagio, de uma civilizagio, diz, melhor que jamais, moralidade, verdade, eficécia, utilidade, bem’, ele o faz enunciando, no mesmo lugar, que, diante da formagio de um sistema técnico inteiramente interligado, ndo podemos mais nos contentar com uma critica “tecnofobica’. © mesmo autor que, algumas vezes, é visto e apropriado como uma espécie de “arcaista do dom’ - acusacao inteiramente injusta, pois o paradigma do dom nao tem nada de arcaismo -, acaba por afirmar, sem grandes mediacdes, 0 cardter incontornavel do cfrculo técnico-cientifico: “Os planos de acio sio mais que uma moda; eles si necessidades. As técnicas jé sio independentes, melhor, elas jé esto em ordem entre si” (p. 6). Oscilando entre um otimismo do progresso téenico e uma consciéncia dos riscos nele implicados, 0 velho Mauss quer, no fim das contas, continuar a passar as ligdes de sobriedade do durkheimianismo aprendido na juventude: “Nao acusemos nem louvemos", diz-nos; 0 que quer dizer: “apenas pesquisemose entendamos”. Afinal, conclui ele, aquele que queira recuperar os motes dualistas do idealismo, é importante comegar a perceber ser “Imitil apor matéria ¢ espirito, indistria ¢ ideal. No nosso tempo, a forga do instrument é a forca do esptrto, e seu emprego implica a moral, assim como a inteligéncia” (p. 7). As Técnicas e a Tecnologia (1941/1948)' Marcel Mauss Extrato do Journal de Psychologie 41 (1948), Paris. A comunicagao foi enviada as Journées de psychologic et Phistoire du travail et des techniques em Toulouse, no ano de 1941, Publicado em: Les techniques et la technologie. In: Oeuvres. 3. Cohésion sociale et division de la socologie. p. 250-256. [Por uma tecnologia como estudo geral das técnicas: contraste entre Franca e Alemanha] {71] Para falar adequadamente das técnicas, é preciso, antes de tudo, conhecé-las. Ora, existe uma ciéncia que se interessa por elas, aquela que é chamada“a tecnologia”, e que no encontra na Franga o lugar que Ihe é de direito. E Util indicéla aqui, sobretudo quando é a Sociedade de Estudos Psicoldgicos que organiza esta “Jornada de psicologia ¢ histéria” (Journée de psycholagie et histoire. Nestas matérias de psicologia propriamente dita a Franca tem, de fato, ultrapassado os outros paises. Aqueles da minha geracao assistiram a invenga0- por Binet, Simon, Victor Henri, a que se somam em seguida Piéron, depois Meyerson e Lahy, e que outros continuam com eficécia - aplicagées da psicologia 4s técnicas, ¢, mais particularmente, ao recrutamento dos operarios e dos técnicos. Nao é sendo apés a guerra de 1914 que, tendo sido aperfeigoada na América do Norte, a psicotécnica, que havia se desenvolvido por tado lugar, teve seu primeiro boom na Franca, sobretudo em Paris, e que procedimentos consideraveis obtiveram resultados nao menos palpaveis, até mesmo indispensaveis. Se esta parte do estudo das técnicas tem uma boa origem francesa, é preciso dizer, 20 contrario, que a ciéncia da qual ela é um capitulo nao teve os mesmos desenvolvimentos: eu quero falar da tecnologia. E claro que a psicologia das técnicas que se faz atualmente é aquela de um momento da historia e da natureza dessas. *O presente texto foi traduzido por André Magnelli, com revisio de Rafael Damasceno e Maryalua Meyer. Foram acrescidas segdes ao texto, com fins didaticos. A tecnologia é uma ciéncia muito mais desenvolvida alhures do que na Franga. Ela pretende, com razao, estudar todas as técnicas, toda a vida técnica dos homens desde a origem da humanidade até nossos dias. Ela esté na base e também no topo de todas as pesquisas que tém este objeto. A psicotécnica nao é {72] sendo uma técnica das [sic.] técnicas. Ora, ela {a tecnologia] supde profundos conhecimentos gerais do objeto geral, as técnicas. E preciso, portanto, antes de tudo, assinalar qual é 0 lugar da tecnologia, quais trabalhos ela produziu, quais resultados jé foram adquiridos, 0 quanto ela é essencial para todo estudo do homem, de seu psiquismo, das sociedades, de sua economia, de sua histéria, do préprio solo do qual vivem os homens e, consequentemente, de sua mentalidade. Nao existe razo para que ela nao seja, na Franca, objeto de ensinos regulares e para que nio falemos dela aqui. (Eu conheco, certamente, um curso, mas ele é demasiado elementar, e, além disso, destinado 4 observacio das técnicas dos povos chamados “primitivos’, ou “exéticos’, como o queira; eu nao conheco nenhuma outra). Na verdade, essa ciéncia [a tecnologia] foi fundada na Alemanhi pais de eleigao do estudo hist6rico ¢ cientifico das técnicas - que, juntamente com a América do Norte agora, permanece 8 frente de todos os progressos téenicos. Na verdade, ela foi instituida por Franz] Reulaux [18291905], 0 grande te6rico e matematico, mecénico e técnico da mecinica, Ele encontrou junto as autoridades prussianas um eco imediato. Sob sua direcio, foi aberta a primeira das Escolas Superiores Técnicas (as Technische Hochschule), a de Berlin, que tem estatuto de Universidade, e da qual o diploma (Dipl. Ing.) tem estatuto de doutorado. 0 ensino geral da tecnologia, teoria e histéria, é obrigatdrio para todas as seges especiais que conduzem aos diferentes diplomas. Est ai a base natural do estudo geral das técnicas; ela deveria ser reconhecida entre nés. Ora, aqui {na Franca], mesmo nos mais honoraveis estabelecimentos cientificos, mesmo em nosso ilustre e sempre glorioso Conservatério [nacional] das artes e dos oficios, a tecnologia néo tem lugar de teoria geral dos oficios. Em Saint-Germain, no Museu das antiguidades nacionais, meu saudoso irmao de trabalho Henri Hubert tinha certamente instalado a Sala de Margo, consagrada & arte e & tecnologia comparada da idade da pedra; neste momento, essa sala nao esta mais nem em uso. No Museu do Homem, com a ajuda do Instituto de Etnologia, conseguiu-se fazer alguma coisa, estabelecida agora mesmo, mas ainda modesta. O Museu de Viena, o Pitt-Rivers Museum, o de Nordenskiéld em Géteborg sao, por muitos pontos de vista, melhor estabelecidos do que nés. [73] Quanto & teoria ow & descrigao histérica, geogrfica, econémica, politica dos oficios, ela foi retomada de diversas maneiras na Franca; mas ela nunca é feita. Nés nio temos nem mesmo mantido a tradigio das boas histérias da inddstria tais como eram feitas pelos Becquerel e os Figuier, que, ainda que anedéticas, instrufam o jovem e mesmo a crianga. Meu tio Durkheim me fez, Ié-los. Um desses que estavam por um bom caminho, meu velho mestre {Alfied] Espinas, nos ofereceu um curso sobre essas questdes em Bourdeaux, do qual eu me lembro. (Seu livro sobre as Origines de Ia technologie tém ainda valor). Mas ele n3o desenvolveu suficientemente suas ideias e nem estendeu nem aprofundou suficientemente suas pesquisas. [A “técnica” e os fatos técnicos: definicao, classificagao e método] Algumas observag6es vao indicar as vias ja abertas, e para onde elas conduzem. Suponhamos conhecidos um grande nimero de fatos que até mesmo varios dentre vocés talvez nao conhecam. Em um momento em que a técnica e os técnicos esti em moda - por oposigao 8 ciéncia chamada pura e & filosofia, acusadas de serem dialéticas e vazias-, seria preciso, no entanto, antes de exaltar o espirito técnico, saber o que ele é. Antes de tudo, eis aqui uma definicio: Chamarse técnica um grupo de movimentos, atos, geralmente ¢ na maioria manuais, organizados e tradicionais, que concorrem para obter um objetivo conhecido como fisico ou quimico ou organico. Essa definigao tem por objetivo eliminar da consideracao das técnicas aquelas sobre a religido ou a arte, das quais os atos so também, com frequéncia, tradicionais e até mesmo téenicos, mas cujo objetivo é sempre diferente do objetivo puramente material, e cujos meios, mesmo quando superpostos a uma técnica, sao sempre diferentes dela. Por exemplo, 0 rituais do fogo podem comandar a técnica do fogo. Este modo de considerar as técnicas permite classificé-las, dar um quadro comparado do que ainda se chama os trabalhos, as artes ¢ os oficios, assim nés dizemos “o oficio da pintura”, mesmo para o pintor de arte pura. {74] Esta definicao permite classificar os diferentes setores da tecnologia. Hé, antes de tudo, a tecnologia descritiva. Estes so os documentos: histérica e geograficamente classificados: ferramentas, instrumentos, maquinas; no caso desses dois tiltimos, analisados e montados; % fisiol6gica e psicologicamente estudados: maneiras de se servir das técnicas, fotografias, anilises, ete. 3° clasificados por sistemas de indistrias em cada sociedade estudada; exemplos: alimentagao, caca, pesca, cozimento, conservagdo, vestimentas, transportes; estudo das utilidades gerais e particulares, etc. Aeesse estudo prévio do material das técnicas, deve ser superposto o estudo da funcio dessas técnicas, de suas relagdes, de suas proporcdes, de seu lugar na vida social. Esses iiltimos estudos conduzem a outros. Chega-se a determinar entdo a natureza, as proporgées, as variagdes, 0 uso e o efeito de cada indiistria, seus valores no sistema social. E todas essas andlises precisas permitem, entio, consideragdes mais gerais. Elas permitem, antes de tudo, diversas formas de classificagio das industrias, mas, sobretudo, elas permitem classificar as sociedades em relagao a suas indistrias. Daf uma terceira ordem de consideragdes gerais. Um mimero crescente de cientistas (etndlogos, antropélogos, sociélogos, ete.) dao uma extrema importincia as comparagdes feitas entre essas sociedades que tém tais indéstrias. Eles pensam poder provar os cempréstimos dessas, os ares de reparticao daquelas, e mesmo ascamadas histéricas de reparticzo, como jé fizeram os préhistoriadores. Uns mais prudentes, e mesmo muito prudentes, como ‘0s americanos, constatam 0s fatos, e, de tempo em tempo, deduzem deles a hist6ria; outros, menos prudentes, reconstituiram toda uma histéria da humanidade com a histéria das técnicas. Chega-se dai a falar em uma idade da pedra no Congo, que pertenceria & época da civilizagao onde o direito de heranga era de descendéncia uterina. [75] Mas estes exageros nao impedem a exceléncia do método quando ele ¢ bem conduzido. Mesmo a propésito das sociedades mais primitivas conhecidas, as técnicas, suas fungdes propagadas, apés conservadas pela tradicio, sio - desde Boucher de Perthes - 0 melhor meio de classificar, mesmo cronologicamente, as sociedades. Sinanthropus, o homem das cavernas de Pequim, sabia cozinhar no fogo, o que prova que esse ser era seguramente um homem. Nés nao sabemos se ele falava; é provavel, j4 que ele podia guardar certo modo de conservar o fogo. Eu mesmo propus algumas opinides sobre as técnicas do corpo e suas funcées.’ Por exemplo, a técnica de natagio varia e permite classificar civilizagées inteiras. Todas sio especificas a cada uma, instrumentos e manejamento de instrumentos variando infinitamente. As técnicas so, portanto, a0 mesmo tempo que humanas por natureza, caracteristicas de cada estado social. *Les techniques du corps. Journal de Psychologie, 1935, p27. Eu sei que outros véem nisso mistérios. Homo faber, que seja. Mas a ideia bergsoniana da ctiagio é exatamente a ideia contréria da tecnicidade, da criagio a partir de uma matéria que o homem nao criou, mas que ele se adapta, transforma, e que é digerida pelo esforco comum, esse esforgo sendo alimentado, a cada instante e em cada lugar, por novos aportes: ‘Ars homo additus naturae”é verdade para as artes ¢ os oficios, ainda mais do que para a arte: 6 a partir da penetragio da natureza fisica que resulta a arte, 0 oficio, que vive 0 artesio, 0 industrial, e em que se desenvolvem a indastria e as civilizagées, acivilizacao. [Técnica & Ciéncia nas sociedades modernas: a centralidade da técnica] Por um outro ponto de vista, o estudo das técnicas é ainda mais importante. E aquele das relagées que ela sustenta com as ciéncias, filhas e mies das técnicas. De fato, hoje, a imensa maioria dos homens esté mais ou menos engajada nestas ocupagées. A maior parte de seu tempo esté engrenada [76] neste trabalho do qual a coletividade guarda e aumenta 0 tesouro das tradigdes. Mesmo a ciéncia, sobretudo a magnifica ciéncia de nossos dias, tornou-se um elemento necessario da técnica, um meio. Nés escutamos ou vemos elétrons ou os fons por uma técnica, que todo “rdio” conhece. Um mecinico de preciso opera por perspectivas, [usando] o suporte de verniers, que, outrora, era o privilégio dos astrdnomos. Um piloto de avigo lé um mapa como nés nunca haviamos feito, 20 mesmo tempo que ele vé as alturas das montanhas ou o fundo do mar, como nenhum de nés em nossa juventude podia sonhar. O hino & ciéncia e aos oficios do século XIX é, no sécuilo XX, mais verdadeiro do que nunca. A embriaguez da produgio nao foi perdida. Existem belas e boas maquinas, belos automéveis. Faz-se das maquinas um bom oficio. Hé 0 gozo da obra, hé aquele do cAlculo seguro, da realizacio perfeita e em massa, com maquinas inventadas sobre planos precisos, sobre esbogos precisos, para fabricar em série maquinas ainda mais precisas e mais gigantescas, ou mais finas e que fabricam elas préprias outras méquinas, em uma cadeia sem fim onde cada uma delas nao é senao um elo, Eis af o que nés vivemos. E isso nto terminou. Se nés acrescentarmos que, em nosso dias, a técnica mais elementar, por exemplo aquela da alimentagao (nés sabemos alguma coisa dela nesse momento), entra nesta engrenagem dos planos industriais; se nés notarmos que a “Economia industrial’, aquela que se continua indevidamente a considerar apenas como parte da Economia denominada politica, torna-se uma roda dentada essencial da vida de cada sociedade, até mesmo das relagdes entre sociedades (ersatz, etc.), nds mediremos a extensio da contribuigio indefinida da técnica para o proprio desenvolvimento doespirito. Assim, desde um tempo longinquo, muito longinquo, onde Sinanthropus, o homem das cavernas de Chou-Kow-Tien, perto de Pequim, o menor homem de todos os homens que nos so conhecidos, sabia ao menos conservar 0 fogo, o sinal certo da humanidade, trata-se da existéncia das técnicas ¢ de sua conservacio tradicional. A classificagao certa das humanidades existe, é aquela de suas técnicas, de suas méquinas, de suas indistrias, de suas invengdes. Neste progresso se inscreve o espirito, a ciéncia, a forga, a habilidade, a grandeza de sua civilizagao. {771 Nao acusemos nem louvemos, ha outras coisas na vida coletiva além das técnicas, mas a predominancia de tal ou qual técnica em tal ou qual idade da humanidade, qualifica as nagdes. Em um belo trabalho publicado na Revue de naturalistes, um de nossos bons “comparadores’, Senhor Haudricourt, acabou de mostrar como nossas melhores t6enicas de atrelar bois ou cavalos a vefculos vieram todas e bem lentamente da Asia. Nisso, a Asia foi sempre superior e, em muitas outras coisas, permanece ainda um modelo. Pode-se mesmo falar quantitativamente dessas questdes. O ntimero de patentes adquiridas ou licenciadas na Franga, e cujas patentes foram reconhecidas alhures, 6 infelizmente bem inferior as licencas alemis, inglesas e, sobretudo, americanas. Sao estas {iltimas que conduzem o trem, dao a cadéncia. Mesmo a ciéncia torna-se cada vez mais técnica e a técnica age cada vez mais sobre cla. As mais puras pesquisas chegam a resultados imediatos. Todo mundo conhece a radioatividade. Est4-se agora conservando-se e concentrando-se os néutrons. Logo talvez se conheceré 0 arreio. Os elétrons, nos microscépios para elétrons, crescem para o milionésimo. Esté-se préximo de fotografar os étomos. Vé-se, “experiment: circulo das relagdes ciéncia-técnica é cada vez mais vasto, mas, a0 mesmo tempo, melhor e -se com eles. 0 melhor fechado. Nao ha mais como dominar o deménio desencadeado. Mas seu perigo é exagerado. Nao falamos nem de bem, nem de mal, nem de moral, nem de direito, nem de forca, nem de moeda, nem de reserva, nem de jogo de Bolsa. Tudo isso é menor do que o que se prepara. Na hora em que se esté, 0 destino pertence aos escritérios de estudos {bureaux études tais como aqueles que as grandes fabricas sabem montar, ¢ estes escritérios de estudos devem ter estreitas relagdes com aqueles de estatistica, de economia, porque uma industria nao € mais possivel senao por suas relagdes com uma quantidade de outras, com uma quantidade de ciéncias, quantidade de Economias dirigidas, individuais ou pablicas, tio fortes quanto possivel. Os planos de ago so mais que uma moda; eles sio necessidades. As técnicas j so independentes, melhor, elas j& esto em ordem entre si, elas jé tém seu lugar, elas nfo sio mais apenas ganchos suspensos sobre cadeias de felizes acasos, de adaptagdes fortuitas, de interesses e de invengdes. Elas vém se alojar em planos premeditados, onde é preciso estabelecer edificios gigantescos para méquinas gigantescas que fabricam outras, as quais fabricarao ainda outras, finas ou fortes, mas dependendo umas das outras ¢ destinadas a produtos tio exatos, algumas vezes mais exatos do que aqueles produtos de laboratérios de antigamente. [Forca do instrumentoe forca do espirito: a planificacio social] Mas 0 conjunto destes planos deve ser acordado de outra forma, e nao pelo acaso. As técnicas se entrelagam, as bases econémicas, as forgas de trabalho, as partes da natureza que as sociedades se apropriaram, os direitos de cada um e de todos, entrecruzam-se. Agora mesmo, alémdos planos, eleva-se a silhueta do “plano”, do planismo como se diz, e como em certos paises jé foi feito. En vejo ainda nosso genial Francois Simiand, adjunto de Albert Thomas no Ministério do armamento da outra guerra, calcular “as existéncias” mundiais e também as necessidades militares ou civis do pais - decidir sobre 0 possivel e o imatil. Economia de guerra, dir-se-, era verdade. Mas os métodos instituidos entao fizeram progresso, ndo apenas na guerra, onde eles sio necessdrios, mas na paz. E, quem diz plano, diz a atividade de um povo, de uma nagio, de uma civilizacao, diz, melhor que jamais, moralidade, verdade, eficécia, utilidade, bem. Inatil opor matéria e espirito, inddstria e ideal. No nosso tempo, a forca do instrumento é a forga do espirito, e seu emprego implica a moral, assim como a inteligéncia.

You might also like