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Fobia e autismo: tempos de espera na constitui¢ao do sujeito Teresa da Costa Vera Vinheiro “O tempo é aquilo no qual hd kairds € kairds 6 aquilo no qual no hé muito tempo.” R. Mezan! Este trabalho se inscreve na tradigdo freudiana de investigar através do recur- so a analogias. Como Freud nos ensina desde a Traumdeutung, os elementos que compéem um sonho se articulam por semelhanca, seja por buscar alcangar uma identidade de percepgao, ou porque um sinal de equivaléncia se thes interpde por efeito de interpretacao. Quais seriam os riscos de pensar por esta via? Estaria af implicita uma pers- pectiva reducionista, que visasse situar-se na ordem do mesmo? Ou seria justamente a constatago de semelhangas que teria levado Freud a ousar propor a seus pacientes que associassem livremente, com o que se permitiria fazer aflorar a diferenga, a singularidade do inconsciente em suas formagées? Aceitemos, pois, uma vez mais este risco ao colocar, frente a frente, duas escansdes que podem se fazer necessérias ao trabalho da estrutura na constituigao do sujeito: a fobia e o autismo. ‘A concepgio do “inconsciente estruturado como uma linguagem” ancora-se, dentre outros pontos, sobre a idéia de Freud de que quando uma excitacdo interna afeta a carne que se esté tornando corpo, alguma indicago que vem do campo do Outro, leva-o a langar-se a uma atividade que the possibilite, ainda que por instan- tes, por meio de um objeto, abolir este excesso que o perturba, Do que houve de organico neste proceso, os representantes representativos inscrever-se-Ao no apare- Tho psiquico em conformidade com uma gramtica. Em sendo atividade, 0 que a designa é um verbo. Cada uma das instancias desta atividade marca-se por uma variagio da voz verbal. A insergdo significante configura a pulsdo numa temporalidade de instantes que se sucedem permanentemente, mas entre os quais néo hé solugao de continuidade. Assim, num primeiro instante, o verbo aparece na voz ativa: a crianga se dedica a olhar. Num segundo instante, o verbo passa A voz reflexiva, invertendo- se a atividade em passividade: a crianga se dedica a olhar-se. Num terceiro momen- 72 HANS E A FOBIA — ESCOLA LETRA FREUDIANA to, verbo passa & voz passiva e um outro se introduz para que um novo objetivo, ser olhado por alguém, seja alcancado. Lacan faz coalescer estes trés instantes para ratificar a pulsio como uma ati- vidade. No Seminério 11, diz Lacan: Eu no mudo o eigenes Objekt, o objeto propriamente dito, que é realmente aquilo a que se reduz 0 sujeito, eu no mudo, von fremder Person, 0 outro, & claro, nem obeschaut, Mas ponho no lugar do werden (ser visto), machen. Do que se trata na pulsdo é de se fazer ver? A crianga s6 terd como fazer-se ver se o olhar do Outro vier a capturé-la como imagem falica. $6 entao Ihe seré franqueada a possibilidade de alienar-se a imagens e significantes, matéria-prima para a construgdo de mitos e de fantasias que Ihe sirvam minimamente para recobrir e bordear o real. A identificacao ao falo imagina- rio, porém, é um passo necessério, ainda que insuficiente, para a constituigao do sujeito. A obtencao de seu estatuto implicard também apropriar-se e de subjetivar 0 que é oriundo do campo do Outro. A passagem pelo Edipo traz, por um lado, a castragao. Diante da auséncia de pénis da mae, apoio da privagdo sobretudo para os meninos, estes suspeitam de que © falo possa igualmente ser perdido, sendo assim compelidos a construir algum tipo de resposta ao enigma da diferenga anatémica entre os sexos. Por outro lado, prazer de ontem, desprazer de hoje. O recalque, ao incidir sobre os representantes repre- sentativos da pulsio, impede que modos de satisfagao anteriores perturbem exigén- cias atuais, Entretanto, o recalque, que nao tem um caréter definitivo, muito menos € absoluto, tal como se comprova na fobia. Na fobia, se o pai em sua fungao real nao se faz ouvir para que passe a vigir a castracao simbélica — desmascarando o engodo deste primeiro representante do Outro que se apresenta a crianga como pleno — a castragao se restringird ao registro do imagindrio, com todo 0 terror que isto implica, O Outro estaria “preenchido” tio somente por devorar a crianga, comé-la com os olhos e dentes. Se uma libra de carne deveria ser perdida por efcito da castragao simbélica, a contingéncia de que esta nao se faga valer tem por efeito que porgdes mais generosas so arrancadas a mordidas e tragadas em orgia imaginéria pelo Outro impossivel de saciar. Na fobia, a crianga permanece cativa A identificagao 4 imagem félica que, apesar de invisivel, a atordoa e enceguece por deixar entrever um gozo que deveria permanecer velado. Ademais, como 0 falo exclui todas as outras possibilidades de imagens, se “presentificado” como supomos na fobia, esta vicissitude redundard num imagindrio insuficiente- mente consistente para enlagar real ¢ simbélico. Se a identificagao primédria a fungao simbélica do pai e 0 recalque origindrio se operaram, é com isto que a crianga poderd contar para fazer face ao real. Pensamos, entio, a fobia como uma escanséo que pode se fazer eventualmente necessaria & estrutura na constituicéo do sujeito. Um tempo de espera para que a fungao do pai real venha a se exercer. Vale dizer ainda, esta espera nao € passiva, Ha, sem duivida, atividade pulsional. Entretanto, a inoperancia da fungao do pai real leva-nos a inter- rogar acerca de alguma perturbacéo da fungio pai simbélico ainda no campo do Outro, que retornaria na prépria inscrigdo pulsional do lado do sujeito em constitui- gao. Talvez neste ponto seja oportuno retomar os instantes designados por Freud Sees FOBIA E AUTISMO: TEMPOS DE ESPERA NA CONSTITUICGAO DO SUJEITO 73 para pensar se 0 ponto de captura do fébico situar-se-ia entre olhar e olhar-se, impe- dindo o avango para o ser visto (oufazer-se ver de Lacan). Ou seja, a circularidade da pulsdo estaria, portanto, comprometida. Daf que o falante, no tempo da fobia, relate na clinica sobre uma angdstia insuportavel, bem como sobre suas dificuldades de apare- cer em piiblico, apresentar 0 que é seu. Na fobia, a estrutura trabalha, antes de mais nada, no sentido de transformar a angiistia insuportavel, devido & carga de excitacao livre em circulagdo no aparelho, em medo. Uma passagem importante se produz também quando desta posi¢o amovivel de objeto do gozo do Outro a que esté oferecido, 0 sujeito consegue cernir um significante, com o qual vem efetuar equivaléncias simbolicas. Este privilégio concedi- do a um significante contribui também para pensarmos a fobia como tempo de espera pelo pai, em detrimento de apelo ao pai. Afinal, é pelo significante que o tempo se introduz, ¢ apelo estaria mais préximo de demanda, enquanto que a solugao fébica diz respeito diretamente as versdes do objeto pulsional ligadas ao desejo pelo Outro (olhar) e ao desejo do Outro (voz). Epigrafamos este texto com uma referéncia ao kairds que acreditamos ser correlato A escolha forgada em que a crianga se posiciona frente a castragao. O que a fobia revela é uma das antinomias da concepco psicanalitica de temporalidade.Um tempo de espera para que o tempo significante possa advir do tempo de instantes préprio & pulsao. Como foi citado, anteriormente, recorreremos a analogias. Se formos buscar na engenharia como se constréi um prédio, veremos que hé um primeiro passo que é fazer a fundagao da obra. Tempo em que se perfura a superficie O sucesso da obra, seu nao desmoronamento, vai depender de uma boa fundagao, Depois é o tempo de levantar a estrutura, da construcao propriamente dita, que culmi- na com o acabamento da obra. Também o sujeito, em sua constituicao, ou melhor dizendo, construc, passa por esses dois momentos ~ a fundaco e a estruturagio. O tempo da fundagao € um tempo real. E somente a propésito desse real que se pode falar em privagao, E 0 tempo da identificagao priméria, a chamada identificagao devoradora, da incorporagio ~ identificagio ao pai. Talvez, uma outra forma de se referir a esta identificagao seja chamé-la de identificagao ao Outro. Pois, para que a operago de identificagao se efetue é preciso que o bebé se aliene no campo do Outro, € para que isso ocorra é necessério que o infans ocupe um lugar no desejo do Outro. Ocampo do Outro nao pode ser inteiro. Tem que haver um distanciamento para que se tenha acesso & privacao primeira, esse buraco real da identificagao priméria, que pos- sibilita que o sujeito venha a se enganchar, ‘A privacdo, um dos modos de falta de objeto, em sua natureza de falta é essen- cialmente uma falta real. E um furo. E um buraco real no campo do Outro simbélico. Trata-se do Outro t6rico, onde hi, ali, um lugar marcado indicando a impossibilidade da relagdo sexual. Nao hé 0 gozo total, esse total é da ordem do impossivel. Essa é a privagao. 74 HANS E A FOBIA — ESCOLA LETRA FREUDIANA A privagao esté no real, completamente fora do sujeito. E o momento onde as coisas se processam no campo do Outro — € da castrago do Outro, do desejo do Outro, do fantasma do Outro, que se trata. Para que o sujeito apreenda a privagao, é preciso inicialmente que ele simbolize 0 real. Como 0 sujeito € levado a simbolizé-lo? Trabalho de estruturagdio. Como no prédio, € 0 tempo da construgao, de levantar a estrutura. Estrutura que € significante, simbélica e tem seus revestimentos imaginéri- os, Na estruturacao do sujeito veremos surgir dois novos modos de relagdo com a falta de objeto — a frustragdo e a castragao. A frustragdo e a castragao vém introduzir uma ordem simbélica. Na frustra- go, trata-se de situar as relagdes primitivas da crianga. O fort-da atesta 0 jogo simbélico. Mas, para se ter acesso a ordem simbélica, com uma lei operando, faz-se necessdrio um quarto termo — o pai, que abrange a triade imagindria — mae, crianga, falo, ligando-os numa relagao simbdlica, ¢ com ela a possibilidade de transcender a relagdo de frustrago. A castragio esté fundada na privagao primordial, mas € $6 a partir do simbélico, sob a regéncia do falo, que pode ser marcada essa falta. A castragdo vem circunscrever a privagao primordial. E é nesse sentido que o pai real € © agente da castragao. Freud nos dird que a estruturagao, ou seja, a duragio da construgao, vai até a puberdade, onde se fard a escolha da neurose. Este escrito se propde pensar a espera, as escansdes de alguns sujeitos na fundagao e na estruturagao. Se pensamos a fobia como um tempo de espera, uma escansio necessaria de alguns para passar pela castragao, isto é, uma escansao no tempo da estruturacio, Tecorreremos ao autismo para pensar uma espera pela fundagao. Quem espera, espera algo ou alguém. Serd que o que se espera, nestes dois momentos, é da mesma ordem? O sujeito autista, com seu estatuto de sujeito inconstituido, nao tem acesso ao Outro do significante. Hé uma primazia do real e o campo do Outro é inteiro. Recor- reremos & escritura do Outro inconstituido que Rosine Lefort se utiliza em seu livro O Nascimento do Outro. Ela escreve A entre parénteses: (A). 0 (A) do banho de linguagem do autismo, com seu estatuto de absoluto, seria como uma superficie aquosa. Um (A) liso, esférico, onde nao ha furo, buraco que permita lago— identificagao ao pai. O autista, entao, numa “atividade” surpreendente, mantém-se fora do campo do Outro. Nao é possfvel levantar o prédio se ainda falta o buraco. Nao se concluiu a fundagao. Sabemos que para o sujeito se constituir, o Outro deve portar o furo real Ser um Outro térico, onde o infans se alojaré. Deverd haver uma passagem do (A) liso ao Outro furado. Faz-se necessério, portanto, instaurar, fazer chegar um furo neste (A) que pré-existe no autismo. Serd pela via do objeto, nao do objeto cafdo, mas do qual 0 Outro é portador, que se poder instaurar um furo. A voz, com 0 oco do desejo do Outro vai fazendo cavas na esfera ((A) liso) ¢ introduzindo o furo real (Outro t6rico). Pensamos que no autismo 0 sujeito, ao nao entrar no campo do Outro, fica em espera, um tempo de espera pelo Outro t6rico. Esta escansao, como na fobia, seria um artificio desses sujeitos frente A angistia, aqui no caso, angtistia do tempo do desamparo. FOBIA E AUTISMO: TEMPOS DE ESPERA NA CONSTITUIGAO DO SUJEITO 75 Se na fobia, esse tempo de espera frente & anguistia de castragdo, € uma espera pelo pai, que opere o pai da castragao, no autismo, entretanto, a espera € pelo furo real da primeira identificagao: a identificagao ao pai. Se a escanso que a fobia traz com sua montagem, situa-se em uma anterioridade I6gica ao recalque secundério, 0 tempo de espera no autismo coloca-se numa anterioridade a qualquer resposta do sujeito ao modo de falta do Outro, jd que o que falta € o furo no Outro. No autismo, espera-se pela castracao do Outro. J4 na fobia, trata-se de subjetivar a castragdo que, no primeiro tempo, € do Outro. Quando Lacan nos fala, no Semindrio IV, em “an- giistias em seu estado inconstituido,”® remete-nos & castragio do Outro e ao tempo onde o sujeito 6, ainda, inconstituido. Prossegue dizendo que .A.castrago materna — como vemos na descrigdo da situagdo primitiva — implica para a crianca a possibilidade da devoragao e da mordida, Existe uma anterioridade da castragdo materna, e a castracdo paterna é uum seu substituto.! Poder atravessar a castraco impde-se na estrutura, ainda que, como Hans. isto seja construfdo em andlise. A solugio fobica e a supléncia operada no autismo apontam ao desejo do Outro — cuja funcao na estrutura é de enodamento — como operac&o fundamental, nesses dois momentos cruciais. Entretanto, se na espera da fobia, hd uma atividade pulsional, no podemos dizer 0 mesmo quanto 2 atividade na espera do autismo. Pois, se no autismo faltou o othar do Outro, como adviré a temporalidade de instan- tes préprios da pulsio, olhar, olhar-se e ser olhado? Qual é 0 estatuto dessa atividade? Bis uma questo que permanece. NOTAS E REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS: 1. MEZAN, R. Freud, Pensador da Cultura. Editora Brasiliense, S4o Paulo, 1985, p. 586. Kairds significa momento de decisao. 2. LACAN, J. O Semindrio, Livro 11, Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicandlise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988, p. 184 . 3. , O Seminario, Livro 4, A Relacéo de Objeto, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1995, p.73. 4, Ibid., p.377. BIBLIOGRAFIA: FREUD, S. “A Interpretago dos Sonhos” in: Obras Completas, Vol IV, Imago Edi- tora, Rio de Janeiro, 1976. . “Andlise de uma Fobia de um Menino de Cinco Anos” in: Obras Completas Nol X, Imago Editora, Rio de Janeiro,1976. . “As Pulses e suas Vicissitudes” in: Obras Completas, Vol XV, Imago Editora, Rio de Janeiro,1976. , “Inibigao, Sintoma e Ansiedade” in: Obras Completas, Vol.XX, Imago Editora, Rio de Janeiro,1976. 76 HANS E A FOBIA — ESCOLA LETRA FREUDIANA VALENTE, I.& VINHEIRO,V. “Autismo: Objeto e Tempo”, in: Caderno de Textos V Jornada do ALEPH - Psicandlise e Transmissao, Identificagdo e Corte: Inci- déncias Clinicas, Belo Horizonte, 1998, (inédito). VINHEIRO, V. “Identificagdo e Estruturagao do Sujeito”, in: Caderno de Textos IV Jornada do ALEPH - Psicandlise e Transmisséo, A Légica da Identificagdo, Belo Horizonte, 1997, (inédito). LEFORT, R & R. O Nascimento do Outro. Salvador, Editora Fator, 1990.

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