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EMPIRISMO MODERNO

Unidade II
5 ATOMISMO E CARTESIANISMO

5.1 Atomismo antigo

Os primeiros atomistas, Leucipo e Demócrito, viveram no século V a.C. e desenvolveram a teoria de


que o mundo material seria composto de infinitos entes minúsculos, incriáveis e indestrutíveis, que se
moveriam no espaço. O vocábulo átomo significa, em grego, “algo que não pode ser subdividido”. Toda a
natureza, observável ou não, seria formada por átomos e pelo vazio, os dois princípios fundamentais de
tudo o que existe. Assim, o atomismo compunha uma cosmologia, isto é, uma explicação racional sobre
a ordem, a origem e o desenvolvimento do universo.

Como salienta Porto (2013), a proposta do atomismo era interessante porque conseguia trazer a
presença de um substrato imutável subjacente às transformações do mundo material, constituindo
uma solução para um conflito entre duas escolas da filosofia grega, uma que postulava a imobilidade
e a imutabilidade do conceito de ser, e outra que constatava a incessante mutabilidade material à
nossa volta.

As qualidades percebidas pelos homens (cor, sabor, cheiro e tato) resultariam da forma dos átomos
e de como eles se organizam para compor as estruturas. Em si mesmos, eles não teriam outras
qualidades além das propriedades geométricas e de extensão. De que maneira eles se organizariam
espacialmente formando um universo ordenado? Segundo os atomistas, eles se agregariam por
características físicas, aglomerando-se em espécies semelhantes. Note-se que essa explicação é
meramente mecânica. Ela substitui, desse modo, a ideia de afinidade ou rejeição entre essências.
Nas palavras de Porto (2013, p. 4601-3):

Não existe, portanto, uma matéria celeste de natureza diferente da matéria


terrestre. Dito de outra forma, não existe separação radical e essencial
entre o mundo celeste e o mundo terrestre, que é um elemento central na
cosmologia de Aristóteles.

Uma centena de anos mais tarde, no final do século IV, Epicuro reformularia a teoria acrescentando
aos átomos a propriedade de peso. No seu entender, isso ajudaria a explicar o movimento para baixo.
No entanto, séculos depois, veremos que as noções de abaixo e acima num universo infinito é um
tanto problemática. Durante o Renascimento, um estudioso fiorentino recuperará a obra de Lucrécio e
Diógenes Laércio, trazendo à tona a teoria atomista. Um dos primeiros a incorporar essa teoria, ainda no
século XV, será Giordano Bruno.

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Unidade II

Os quatro elementos básicos da teoria podem ser assim formulados:

• indivisibilidade das unidades elementares da matéria, corpuscularidade;

• existência do vazio, onde se movem os átomos;

• reducionismo mecanicista – propriedades dos objetos materiais em termos de movimento e organização


dos corpúsculos elementares, em si mesmos dotados apenas de extensão, forma e movimento;

• mecanicismo – concepção segundo a qual os movimentos são causados pela ação local (de
contato) de agentes externos materiais; rejeita-se assim a espontaneidade, a ação à distância, a
existência de causas incorpóreas e a ideia de causas finais (qualquer finalidade desses movimentos).

5.2 Descartes e o atomismo

Ao reaparecer no início da Era Moderna, o atomismo ofereceu ao homem, junto com o cartesianismo,
uma visão de mundo alternativa ao pensamento aristotélico então vigente, em grande medida conflitante
com ele e, ao mesmo tempo, bastante adequada à nova concepção científica nascente.

O mecanicismo eliminou da ciência as noções da metafísica aristotélica das quatro causas (material, formal,
eficiente e final). Para Aristóteles, os objetos sempre se comportam guiados por um fim ou finalidade. Assim,
os objetos pesados caem porque, num universo hierarquicamente ordenado, o pesado tem que estar próximo
do centro da Terra – e do universo por consequência, uma vez que o modelo de universo era geocêntrico.
Pode-se considerar, então, que tanto o cartesianismo quanto o atomismo tradicional contribuíram
decisivamente para a formação da física moderna. Especificamente, ao retirar da matéria inclinações essenciais
e restringir suas qualidades unicamente a elementos geométricos, como forma e extensão, propiciou o
“surgimento” de uma natureza homogênea, favorável à universalidade das leis físicas.

Em consonância com o atomismo, o cartesianismo teve um caráter francamente reducionista e


mecanicista. O próprio Descartes (Princípios de filosofia, IV) declara:

Sabemos que a natureza da matéria ou do corpo, considerada em geral, não


consiste em ser dura, pesada ou colorida, ou naquilo que afeta os nossos
sentidos de qualquer maneira, mas simplesmente em ser uma substância
extensa em comprimento, largura e profundidade.

No entanto, Descartes não aceitava o princípio de que existia o vazio. Assim como Aristóteles, ele
rejeitava o vazio como uma contradição lógica. Uma vez que para ele toda extensão é material, a matéria
enquanto contínua era infinitamente divisível. De acordo com Porto (2013), Descartes não foi capaz
de fornecer uma física de natureza quantitativa porque, a partir de seus pressupostos de plenitude,
não foi capaz de produzir uma descrição quantitativa dos processos físicos. Já aqueles que adotaram
o princípio da corpuscularidade, como Gassendi e Boyle, encontraram resultados compatíveis com a
física newtoniana, que se tornou modelo de ciência quantitativa, fiel aos princípios epistemológicos de
verificação experimental.
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5.3 Física cartesiana

Para dar uma ideia dos limites da física dedutiva cartesiana, dos quais o próprio Descartes mostrava-se
ciente, apresentamos uma síntese do texto “À procura de um Descartes segundo a ordem das dificuldades”,
de Zeljko Loparic (1997). O que Descartes desejava? Segundo Loparic, ele desejava que tudo que escreveu
fosse tomado por hipóteses, talvez muito distantes da verdade, e que todas as coisas deduzidas dessas
hipóteses fossem conformes à experiência. Considerando que, para Descartes, o que impossibilita a
apreensão de todas as formas do mundo é o fato de elas serem parcialmente visíveis, ele recorrerá a uma
gênese imaginária, através da construção de uma máquina que pudesse reproduzir os mesmos efeitos
visíveis do nosso mundo (o artefato divino).

O plano de construção dessa máquina pede, em primeiro lugar, que se parta de uma distribuição
hipotética de grandezas, figuras e movimentos do universo (Princípios de filosofia, III, 46-47; IV, 203).
A restrição a essas propriedades justifica-se pelo fato de que só elas têm valor objetivo garantido para o
mundo exterior. Tais propriedades são o que se pode chamar natureza simples dos corpos. A escolha
se fundamenta nas leis da geometria e da mecânica e é orientada por um critério metodológico relativo
à simplicidade e à clareza, pois, com base nessas propriedades (grandeza, figura e movimento) e leis
(geométrico-mecânicas), poderíamos chegar à construção de inúmeros mundos possíveis, semelhantes
ao nosso ou não.

Em segundo lugar, o plano de construção pede que os encadeamentos genéticos necessários sejam
feitos exclusivamente a partir das leis geométrico-mecânicas (encadeamentos lógicos). Se queremos
conhecer uma natureza composta, devemos fazê-lo pela construção de um caminho que parta das
naturezas simples (grandezas, figuras e movimentos) e utilize regras de encadeamento que sejam
necessárias (e não apenas empiricamente verdadeiras). Em consequência, essas naturezas compostas
exprimiriam verdades relativas a certo mundo possível, ou seja, seriam contingências estruturalmente
necessárias (enquanto consequências de um encadeamento lógico). Tais construções geométricas
das naturezas compostas não têm, portanto, poder de demonstração da composição do mundo atual
(o mundo em ato, o mundo da realidade) – elas se aplicam à composição de um mundo possível.

O terceiro procedimento visa introduzir hipóteses auxiliares mais específicas. O objetivo desse
procedimento seria aproximar a construção ao mundo atual. Essa introdução de hipóteses auxiliares
é feita em duas etapas: o exame das diferenças que podem ser encontradas entre figuras, grandezas e
movimentos de diversos corpos, que não são percebidas devido à limitação dos nossos sentidos em
apreendê-las, quando estes (figuras, grandezas e movimentos) são pequenos ou grandes demais;
e a consideração dos efeitos sensíveis produzidos pelas maneiras como esses corpos se misturam.
Segundo Loparic, o último procedimento impõe às construções cartesianas a exigência de que essas
construções possam vir a explicar os fenômenos (Princípios de filosofia, IV, 203).

O plano pede, em quarto lugar, que se proceda a uma descrição dos fenômenos a serem explicados
(ainda que na ordem temporal de uma pesquisa a descrição deva anteceder à introdução das hipóteses
auxiliares) e que se veja se a construção concorda com todos eles, isto é, que se teste o poder explicativo
da construção. Por fim, o plano pede que se teste o poder explicativo universal da construção. Esse teste
consistirá em mostrar como se pode
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explicar pelas mesmas causas que foram inicialmente introduzidas, a fim


de dar conta da estrutura básica do macrocosmo, todos os fenômenos
particulares observados, diferentes dos considerados na introdução das
hipóteses auxiliares (Princípios de filosofia, IV, 205).

Através do segundo procedimento (os encadeamentos genéticos necessários serão feitos


exclusivamente a partir das leis geométrico-mecânicas), chega-se à conclusão de que a construção da
máquina imaginária cartesiana prevê o aparecimento de contingências estruturalmente necessárias.
Por sua vez, o terceiro procedimento pede que a construção cartesiana explique os fenômenos sensíveis,
o que resultará na inclusão de contingências necessárias de outro tipo: contingências empiricamente
necessárias (ou explicativamente necessárias). Chega-se então a dois tipos de hipótese: contingências
estruturalmente necessárias – demonstráveis a priori – e contingências explicativamente necessárias –
não demonstráveis a priori.

Passemos então à exposição de um exemplo da física cartesiana, a partir do qual poderemos


compreender a necessidade da inclusão de hipóteses auxiliares explicativamente necessárias.
As hipóteses demonstráveis a priori são aquelas deduzidas do corpo básico da teoria, que não precisam
legitimar-se por um efeito externo; são desdobramentos dos princípios ou efeitos dos princípios
(princípios esses obtidos por meio da natureza simples dos corpos e articulados por encadeamentos
geométrico-mecânicos) assumidos na própria construção da teoria. Ou seja, essas hipóteses são fruto
de uma estrutura dada – daí serem consideradas como demonstradas a priori. A hipótese demonstrada
a posteriori é assim designada porque sua demonstração se dá num momento posterior à elaboração da
teoria, a partir da observação de fatos exteriores a ela. A hipótese da fluidez dos céus não é suscetível
de demonstração a priori porque ela não é fruto puro e simples da estrutura inicial da teoria (1o e 2o
procedimento do plano). Na construção dessa hipótese foi preciso recorrer a hipóteses auxiliares não
suscetíveis de serem provadas como objetivamente verdadeiras. Por isso, ela foi demonstrada por seus
efeitos, isto é, a posteriori.

Loparic ressalta ainda que as hipóteses auxiliares cartesianas, a rigor, não podem ser consideradas
nem como contingências explicativamente necessárias, pois satisfazem apenas a condição de serem
suficientes para explicar os fenômenos dentro do quadro teórico cartesiano. Na construção de suas
hipóteses, Descartes utilizaria, na grande maioria das vezes, o recurso da analogia. Ou seja, ele procurava
imitar a sabedoria dos artesões. No artigo 203 da parte IV dos Princípios de filosofia, lê-se:

Da mesma maneira que um fabricante de relógios, ao ver um relógio que


não fez, pode, de ordinário, a partir de algumas partes que vê, julgar quais
são as outras que não vê, assim considerando os efeitos e as partes sensíveis
dos corpos naturais, esforcei-me por conhecer como devem ser aquelas de
suas partes que são invisíveis.

Como exemplo, ele compara o movimento dos corpos que observamos nos turbilhões das águas de
um rio com o movimento dos planetas (o primeiro é visível, o segundo não).

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Descartes admite que as causas encontradas a partir dos procedimentos adotados na construção da
máquina imaginária poderiam produzir efeitos semelhantes aos que vemos, mas nem por isso deveríamos
concluir que o que vemos é produzido por essas causas, uma vez que Deus poderia ter feito com que as coisas
deste mundo pareçam ser o que são, sem que nos fosse possível conhecer de fato os meios que ele empregou
na sua construção. Para elucidar esse problema, Descartes volta ao exemplo dos relógios, os quais, embora na
aparência sejam iguais, podem apresentar composições de engrenagens totalmente diferentes.

Descartes mostra contentar-se com um conhecimento físico que não tenha outro fim senão o de ser
aplicado a certos corpos, dos quais se possam esperar certos efeitos sensíveis desejados. Nesse sentido,
sua física poderia ser utilizada para fundamentar ciências como a medicina ou a mecânica, em que se
podem “controlar”, através de provas, todos os erros de juízo cometidos, uma vez que esses erros acabam
por vir à tona. Ou seja, nas artes como medicina ou mecânica, todos os que cometem erros de juízo
acabam sendo “punidos” pelos eventos. Desse modo, a física cartesiana, mesmo sem pretender chegar
a verdades objetivas, pretende ser moralmente certa – ou, como afirma Descartes, “suficiente para
governar os costumes” (Princípios de filosofia, IV, 205).

As verdades objetivas são tomadas como moralmente certas enquanto relacionadas à ideia de punição
(divina). Existem tipos de conhecimento, aqueles relativos à mecânica ou à medicina, que se prestariam a
uma prova ou exame, uma vez que podem ser controlados por efeitos “visíveis”, quando da ocorrência de erro
na elaboração da teoria. Por exemplo, na mecânica, esse erro se traduziria na falha de determinado sistema
mecânico, o qual não atingiria seu objetivo inicial; na medicina, um erro poderia matar alguém. Nessas áreas,
qualquer um que cometa um erro pode ser “punido” por um evento, e essa “punição” seria justamente a prova de
que a teoria falhou. As verdades da física cartesiana, aplicadas a tais áreas, poderiam, quando não “punidas”, ser
consideradas moralmente certas, no sentido de estarem de acordo com a “verdade divina”, visto que, controladas
pelos eventos, poderiam ser aceitas como uma teoria da máquina efetivamente criada por Deus.

Enquanto teoria matemática, a física cartesiana pretende à verdade num mundo possível.
Contudo, enquanto uma física que tenta decifrar o nosso mundo, ela não tem possibilidade de – e nem
precisaria – demonstrar que utiliza o único código verdadeiro. A máquina imaginária cartesiana tentará
reproduzir os mesmos efeitos sensíveis produzidos pelo artefato divino, ou seja, ela quer ser um saber
por imitação, e é justamente esse o critério fundamental para a sua aceitação.

A ideia de saber por imitação define bem o caráter da física cartesiana. A expressão aparece pela
primeira vez no final da seção 7 do texto de Loparic, intitulada “Um mundo pelo outro”. Nela, o autor
afirma que o caráter específico da máquina divina, segundo Descartes, era o fato de ser parcialmente
visível (grande ou pequena demais aos nossos olhos), embora possuísse as mesmas propriedades dos
mecanismos das máquinas feitas pelo homem: figura, grandeza e movimento. Daí a ideia de que os
efeitos visíveis produzidos pelas duas máquinas decorrem dos mesmos tipos de causa. Os mecanismos
invisíveis tornam impossível sua observação, o que impossibilita a descoberta de suas causas.

Nas Regras para a direção do espírito (XIII), Descartes lança uma pista de como ele pretendia resolver
o problema, tomando como ponto de partida uma máquina que imita um episódio do inferno, na qual
Tântalo é punido pelos deuses, fazendo com que ele, apesar de ter sede, nunca consiga beber da água
(através de um mecanismo hidráulico que faz com que o vaso, que está à altura da boca de Tântalo, ao se
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encher de água, derrame-se imediatamente, de modo que Tântalo nunca beba a água). Esse mecanismo
pretende representar os suplícios do inferno, mas obviamente não representa a imagem do inferno.
O princípio da imitação da física cartesiana seria justamente esse, a imitação do suplício de Tântalo.
Usando essa metáfora, podemos dizer que a física cartesiana não pretende construir uma imagem fiel
do inferno; antes, deseja construir um mecanismo hidráulico que reproduza o suplício de Tântalo, que lá
se encontra. A máquina imaginária cartesiana quer imitar a máquina do mundo nas mesmas condições
empíricas, ou seja, uma máquina que reproduza os mesmos efeitos observados no mundo. Com efeito,
tal máquina não pode pretender a certeza de estar utilizando o único código verdadeiro, e é nesse
sentido que Loparic sustenta que a física cartesiana não pretendia ser uma física absolutamente certa.

5.4 Separação cartesiana entre mente e matéria

Com base nas duas primeiras Meditações, percorreremos o caminho que leva da dúvida à primeira
certeza, e da segunda certeza à descoberta da substância pensante (res cogitans, coisa que pensa) e da
substância corpórea (res extensa, coisa extensa).

A extensão e a intensificação da dúvida como método são tratadas na primeira meditação, que
se intitula “Das coisas que se podem colocar em dúvida”. Nessa direção, Descartes lança mão de três
argumentos. Num primeiro momento, disserta sobre o caráter enganoso dos nossos sentidos, isto é,
critica a possibilidade de estabelecer um conhecimento seguro a partir das faculdades cognitivas.
É a recusa do fundamento sensível do conhecimento. “Não me contento, portanto, com a enumeração
dos erros eventuais dos sentidos. […] Mas admitirei que tudo o que se relaciona com o conhecimento
sensível é falso” (LEOPOLDO E SILVA, 1993, p. 37). A primeira meditação prossegue com a apresentação
do segundo argumento a favor da dúvida natural:

Suponhamos, pois, agora, que estamos adormecidos e que todas essas


particularidades, a saber, que abrimos os olhos, que mexemos a cabeça, que
estendemos as mãos, e coisas semelhantes, não passam de falsas ilusões; e
pensemos que talvez nossas mãos, assim como todo o nosso corpo, não são
tais como os vemos (Meditações, I, 6).

A dúvida estende-se à percepção que temos do mundo exterior. A intensificação do primeiro


argumento se dá no segundo, no qual Descartes propõe a impossibilidade de dispormos de um critério
seguro para discernir o sonho da vigília. Segundo Marcondes (2001), os dois argumentos não são
inovadores na história da filosofia, pois encontram inspiração no ceticismo grego, precisamente em
Sexto Empírico. Esse autor assinala que a radicalização da dúvida, e portanto a inovação cartesiana,
consiste no terceiro argumento, o da dúvida metafísica. Se podemos nos enganar em relação aos
conhecimentos de fundamento sensível, poderíamos nos enganar em relação àqueles de fundamento
intelectual? A resposta de Descartes, a princípio, seria não:

Pois, quer eu esteja acordado, quer eu esteja dormindo, dois mais três
formarão sempre o número cinco e o quadrado nunca terá mais que quatro
lados; e não parece possível que verdades tão patentes possam ser suspeitas
de alguma falsidade ou incerteza (Meditações, I, 8).
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Se a percepção dos objetos matemáticos parece comum aos sonhos e à vigília, eles são o que o
espírito pode apreender mais precisamente. Contudo, se a dúvida cartesiana é radical e metódica, ela
deve abranger tudo, até os objetos matemáticos. Chega-se, então, à dúvida metafísica. No terceiro
argumento, que é uma ficção, Descartes vai supor a existência de um Deus enganador, um tipo de
perversor da mente, que nos levaria a cometer erros quanto à clareza e à distinção mesmo dos objetos
matemáticos, levando-nos a crer nessas propriedades, quando na verdade elas seriam pura ilusão.

Todavia, há muito que tenho no meu espírito certa opinião de que há


um Deus que tudo pode e por quem fui criado e produzido tal como sou.
Ora, quem me poderá assegurar que esse Deus não tenha feito com que
não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma
figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha os
sentimentos de todas essas coisas e que tudo isso não me pareça existir de
maneira diferente daquela que eu vejo? E, mesmo, como julgo que algumas
vezes os outros se enganam até nas coisas que eles acreditam saber com
maior certeza, pode ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane
todas as vezes em que faço a adição de dois mais três, ou em que enumero
os lados de um quadrado, ou em que julgo alguma coisa ainda mais fácil,
se é que se pode imaginar algo mais fácil do que isso. […] Suporei, pois,
que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas
certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador que poderoso, que
empregou toda a sua indústria em enganar-me (Meditações, I, 9 e 12).

Segundo Marcondes (2001), o argumento do Deus enganador ou do gênio maligno seria o ponto
final na aplicação do método da dúvida, visto que, contra ele, não haveria certeza que pudesse resistir.
Por sua vez, Leopoldo e Silva (1993, p. 38-39) considera que a dúvida metafísica é artificial, uma vez
que Descartes vai supor uma razão para duvidar. Na prática, a ficção do Deus enganador teria a função
de uma hipótese, porque o raciocínio matemático, enquanto atividade mais elevada da razão, não
poderia ser submetido à dúvida. Nas suas palavras, “o acordo entre a representação matemática e as
essências matemáticas é como o acordo da razão consigo mesma”. De qualquer forma, a ficção do Deus
enganador tem um propósito: “Ela é instrumental e participa do caráter metódico de uma dúvida que é
provisória”. Por sua vez, Rovighi (1999, p. 81) pergunta-se: “A hipótese do gênio maligno é uma hipótese
justificada pela teoria que evocamos sobre a liberdade divina ou é pura ficção para estender a dúvida a
toda proposição?”. A autora concorda com a segunda proposição, mas ressalta que existem estudiosos
que acatam a primeira.

Por ter cultivado a dúvida, Descartes foi associado aos céticos helenistas. Contudo, para estes,
não haveria como discernir o verdadeiro do falso, e por conseguinte não haveria sentido no apego a
nenhum conhecimento. Descartes também teria sofrido influência de Montaigne (século XVI), filósofo
que acreditava na supremacia da dúvida sobre as certezas e desconfiava das opiniões humanas, instáveis
e por demais variadas. No entanto, ao contrário de Montaigne, Descartes acreditava que era possível
chegar à certeza, senão não faria sentido algum ter como objetivo a reconstrução do saber. Assim, a
dúvida cartesiana se distingue da dúvida cética porque possui um caráter provisório.

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No limite da dúvida cartesiana está o limiar do pensamento. Nas palavras de Leopoldo e Silva (1993,
p. 51): “O exercício da dúvida leva à constatação de um resíduo indubitável suposto no próprio ato
de duvidar: o pensamento”. Se alguém pode duvidar, ele existe, pelo menos como pensante, e disso
não se pode duvidar. Chega-se então à primeira certeza: a dúvida é pressuposto de um ser que pensa.
Se duvidar – cogitare em latim – também significa pensar, então a conclusão é que ele existe enquanto
ser que pensa.

Notemos que o caminho que o meditador faz é completamente dedutivo. Diante desse resíduo
indubitável, o filósofo meditando conclui que “a proposição ‘eu sou, eu existo’ é necessariamente
verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito” (Meditações, II, 4).
Tendo chegado à primeira certeza (eu existo), ele se pergunta quem é esse ser que existe. O que existe?
Quem é o sujeito quando enuncio a frase “eu sou, eu existo”? O sujeito é “uma coisa que pensa” – em
latim, res cogitans.

Como, por um caminho totalmente dedutivo e intuitivo, ele conseguiu chegar a essa segunda
certeza, concluirá que o espírito conhece a si mesmo de forma mais fácil e imediata que conhecemos os
corpos, incluindo aí o próprio corpo, que faz parte do mundo sensível. Então, parece ao filósofo que a
“minha natureza é puro pensamento exclusivo de todo elemento corporal” (Meditações, II, 8).

Por conseguinte, as duas primeiras certezas a que Descartes chega para a fundação do novo edifício
do saber são: a certeza de que ele existe e a de que existe enquanto coisa que pensa. Assim, se posso
conhecer primeiro a alma, como puro pensamento, é porque ela é mais fácil de conhecer do que o corpo.
Então, eu sou uma natureza simples, que é anterior (no sentido lógico, não no sentido temporal) ao meu
corpo. Se esse algo é anterior, este ser que pensa é algo da ordem de uma substância primeira, algo que
constitui a minha essência, essa substância pensante. Embora o corpo não exista sem a alma, esta é sua
essência, o puro pensamento. Por que o filósofo acredita ser mais fácil conhecer o eu pensante do que o
corpo? Porque, para conhecer o corpo, preciso recorrer aos sentidos, e estes me enganam; para conhecer
meu pensamento, por sua vez, só preciso usar ele mesmo.

Como já foi advertido no início da meditação, não podemos confiar nos sentidos porque eles nos
enganam. Será que nosso pensamento pode nos ajudar a conhecer o mundo sensível? De que maneira?
Existe uma passagem clássica da segunda meditação (parágrafos 11 a 18) em que o filósofo está diante
da lareira e aproxima do fogo um pedaço de cera de vela.

Tomemos, por exemplo, este pedaço de cera que acaba de ser tirado da
colmeia: ele não perdeu ainda a doçura do mel que continha, retém ainda
algo do odor das flores de que foi recolhido; sua cor, sua figura, sua grandeza,
são patentes (Meditações, II, 11).

Quando a cera se aproxima do fogo, suas características sensoriais se esvaem: “o odor se esvai,
sua cor se modifica, sua figura se altera”. Descartes pergunta: “A mesma cera permanece após esta
modificação? Cumpre confessar que permanece; e ninguém o pode negar” ((Meditações, II, 12).
Mas o que permanece é somente algo de extenso (res extensa). Não é a imaginação (ligada ao corpo)
que conclui que se trata da mesma cera; antes, é o entendimento que concebe tratar-se da mesma cera.
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Portanto, se tiramos as propriedades sensoriais dos corpos, eles subsistem como coisas extensas, e para
conhecê-los o entendimento está mais capacitado que a imaginação e os sentidos, como no caso dos
objetos matemáticos.

Tendo feito esse caminho dedutivo das duas primeiras meditações metafísicas, podemos nos perguntar:
qual é a necessidade que Descartes teria de perfazer esse exercício dedutivo através de um exercício
meditativo? Por que ele não fez simplesmente um tratado postulando premissas, axiomas e conclusões?

Segundo Étienne Gilson (1930), Descartes encontrava-se diante do grande desafio de não apenas
provar que o testemunho dos sentidos não pode garantir o conhecimento, mas também tentar desenraizar
de seus leitores hábitos cultivados há muito tempo. Escolheu então publicar, em primeiro lugar, seus
ensaios científicos, porque somente os bons resultados da física poderiam convencer o público de que
era necessário duvidar do testemunho dos sentidos, preparando assim o terreno para a publicação das
noções metafísicas que fundamentavam a ciência.

A condenação de Galileu, porém, fez Descartes mudar de ideia quanto à ordem das publicações.
Assim, a publicação da metafísica cartesiana, ao lado de todas as dificuldades que acompanhavam
a exposição de uma teoria debutante, não pôde se beneficiar da vantagem de ter sido precedida
pela publicação da física. De acordo com Gilson (1930), esse quadro pôs Descartes diante de grandes
dificuldades de se fazer aceitar por um público precavido, motivo pelo qual ele optou por apresentar
suas ideias não sob a forma de um tratado, mas como meditação. Somente este “caráter de ascese e de
disciplina do pensamento” poderá fazer frente à meta de livrar o espírito do leitor do antigo costume
de se fiar dos sentidos.

A recepção ativa que Descartes esperava dos leitores das Meditações era proporcional à radicalidade
do seu propósito: demonstrar que o fundamento inabalável no qual uma nova ciência tinha de se
apoiar deveria ser buscado no próprio sujeito. Ele apresenta esse momento primeiro como aquele que
deve nos preparar “um caminho muito fácil para acostumar nosso espírito a desligar-se dos sentidos”
(Meditações, Resumo). O instrumento utilizado para aplainar esse caminho é a dúvida. Como se sabe,
quanto mais internalizada a dúvida, mais fácil aderir às certezas que virão. Por isso, a dúvida tem direção
e finalidade preestabelecidas, é metódica.

Descartes já havia tentado apresentar sua metafísica segundo a ordem sintética, na qual a dúvida
metódica via-se reduzida a apenas um postulado. Por esse motivo, segundo o próprio Descartes,
os leitores não se convenceram das provas da existência de Deus e da distinção entre corpo e alma.
O fracasso da exposição sintética convence Descartes do caráter imprescindível da dúvida metódica.
Segundo Gilson, estando no âmbito da metafísica, o problema é conceber clara e distintamente as
noções primeiras. Daí Descartes afirmar:

Esta foi a causa pela qual preferi escrever meditações e não disputas ou
questões, como fazem os filósofos, ou teoremas ou problemas, como os
geômetras, a fim de testemunhar com isso que as escrevi tão somente para
os que quiserem dar-se ao trabalho de meditar seriamente comigo e considerar
todas as coisas com atenção. Pois, pelo fato mesmo de que alguém se prepare
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a fim de impugnar a verdade, ele se torna menos capaz de compreendê-la,


porquanto desvia o espírito da consideração das razões que o persuadem dela
para aplicá-lo à busca das que a destroem (Meditações, Objeções e respostas).

Lívio Teixeira (1990) diz que é impossível analisar a primeira meditação cartesiana sem considerar
seu quadro de fundo: seu possível diálogo com a tradição cética. O final do século XVI e as primeiras
décadas do XVII foram anos particularmente tensos. Vários fatos concorreram para isso, como já vimos.
O ceticismo, reanimado desde o século XVI, reunia um grande número de adeptos, que influenciaram
muitos filósofos. Charron e principalmente Montaigne eram muito lidos nessa época. A própria marca
cartesiana, nada banal, de uma filosofia escrita em primeira pessoa era na verdade herança de Montaigne.

O ceticismo pirrônico seria reavivado por três causas articuladas: uma espécie de cultura da erudição,
caracterizada pelo uso abusivo do recurso de autoridade aos oradores e filósofos da cultura clássica
revividos pelo Renascimento; o cisma do cristianismo, que acabou ocasionando descrença com relação
aos valores morais; as consequências dos descobrimentos da ciência moderna, com Copérnico, Kepler e
Galileu. Esse quadro mergulhou a Europa em uma crise cultural intensa.

É bom lembrar que estamos na época da filosofia dos sistemas e que não existia a divisão entre
filosofia e ciência, muito menos entre ciências exatas, humanas e biológicas. Os pensadores que
desafiavam o conhecimento do mundo físico eram os mesmos que proporiam soluções para a filosofia
moral, pois no fundo tratava-se sempre da condução do espírito. Por isso, o que movia o filósofo, para
além da questão do conhecimento, era a interpretação do mundo, dos homens, dos valores, e para ele
nenhum valor poderia ser melhor do que saber bem conduzir a razão.

5.5 Nascimento do sujeito moderno

Conforme Martins (2012), Descartes serviu-se de vários estilos discursivos para expor seu pensamento:
meditação (Méditations métaphysiques), discurso (Discours de la méthode), tratados (Traité de la divinité, Traité
d’escrime, Règles pour la direction de l’esprit, Traité du monde et de la lumière, Les principes de la philosophie,
Les passions de l’âme…), ensaios (La dioptrique, Les météores, La géométrie…) e diálogo (La recherche de
la vérité par les lumières naturelles). Podemos encontrar ainda muito de sua filosofia nas dezenas, senão
centenas, de cartas que trocou com inúmeros interlocutores ao longo da vida, interlocutores esses também
de vários “estilos”, amigos leigos, cientistas, filósofos dogmáticos, céticos, teólogos e até mulheres.

Tal flexibilidade é, sem dúvida, sintoma de um espírito inquieto, mas não só. Há mais dois fatores
que se complementam, a saber, uma profunda confiança na lumière naturelle (razão) e uma formação
clássica e ampla no Colégio La Flèche. Somando-se a isso, desde criança, segundo declara no Discurso
do método, fora “nutrido nas letras”. As Meditações, por exemplo, mobilizam muitos recursos de estilo
para seduzir a razão do leitor. Podemos citar a simetria sintática e gramatical, a simetria das frases que
expressam as descobertas, o espanto e as “peripécias” do exercício de ascese, as constantes retomadas do
objetivo inicial, as recapitulações finais para reafirmar o caminho parcial que acabou de ser percorrido,
além do belo estilo, quase literário. O uso de imagens é outro recurso. A repetição delas cria um apelo
retórico e cumpre a uma finalidade. Descartes não foi somente um espírito nutrido nas letras, mas
também nas imagens.
62
EMPIRISMO MODERNO

As imagens criam lugares. Pensemos que, nas Meditações, Descartes faz questão de narrar todos os
detalhes da sala em que se encontra, em frente à lareira, com o papel nas mãos etc. Então, lê-se a criação
de um lugar para onde Descartes quer remeter o leitor, junto com ele. A função da criação do lugar é muito
clara: instaurar o lugar desta operação – a operação do filósofo pensando. Com efeito, o sentido geral da
tese de Inácio de Loyola, descrita por Fabre (1992), pode ser assim expressa: a meditação produz uma ascese.
Ascese aqui é entendida como um caminho meditativo, que resulta numa transformação do sujeito.

A ascese que Descartes busca não se relaciona a nenhuma conversão espiritual; ela visa criar
um sujeito do conhecimento, capaz de abstração – capaz de parar o tempo para duvidar das coisas
mais simples. Com efeito, a meditação pode produzir uma ascese, e ela o faz na medida em que o
homem consegue construir um lugar dentro dele mesmo, um lugar de reconhecimento de si. A ideia de
reconhecimento aqui é fundamental. É ela que permite a fixação dos valores que fazem a ligação com
o processo de identificação, condição necessária para a aderência do praticante do exercício meditativo.

Fabre (1992) ressalta a questão do encadeamento, do ordenamento e da repetição das imagens na


meditação. Assim como um momento, um lugar tem a particularidade de ser único. Porém, em relação aos
espaços da natureza, o lugar criado não é mera localidade, localização, mas espaço de um símbolo. Por exemplo,
um santuário ou uma sepultura são espaços que não são apenas localidades, mas lugares no sentido de espaço
único, criação tipicamente humana. Por isso, pode-se dizer que são lugares de reconhecimento. Essa é a
característica maior dos espaços criados no interior da meditação através das imagens.

Paradoxalmente, dizemos que uma imagem se insere na meditação para introduzir ali, através de
um apelo a um lugar, um instante, concreção de um sentido no caos. Nas meditações espirituais,
a questão adquire uma força fundamental porque se instala na articulação entre o ver e o crer.
Fabre (1992) destaca que o recurso à repetição da imagem é um procedimento muito recorrente, é o
motor da meditação de Inácio de Loyola. A repetição tem a função de reatualizar a composição do lugar.
No caso da repetição da meditação espiritual, isso significa renovar os votos de uma decisão.

A reprodução da cena, acrescenta Fabre (1992), acaba por configurar uma espécie de quiasma, no
seguinte sentido: uma vez que, em geral, a meditação se desenvolve como exercício, ou seja, repete-se
várias vezes, a consequência desse processo é que à cadeia de imagens lidas, em ato, soma-se a cadeia
da imagem lembrada da última realização do exercício, criando ordens paralelas de sequências que se
encontram periodicamente. Essa é a pedra de toque da meditação e o que sedimenta e radicaliza a
experiência meditativa num modo de deslocamento do indivíduo. Então, essa representação produz um
lugar, e o lugar (re)produz a ascese indefinidamente. Desse modo, eu posso me orientar na meditação
porque eu a localizo e sou por ela localizado.

No contexto metafísico cartesiano, a questão é diferente, pois trata-se, ao mesmo tempo, de um


projeto de subjetivação e da criação de um método. O quarto do filósofo é uma fenda no tempo e
no espaço – um momento de estancamento das emoções, de congelamento do tempo no presente.
O presente é o tempo da verdade e da certeza. É importante não confundir isso com o enraizamento
do homem na dimensão da sua temporalidade, tal como ocorre na meditação espiritual dos estoicos,
pois ali isso significa restituir o homem ao tempo de sua vida, de sua ação no mundo, de sua morte etc.
A ascese estoica põe o homem no presente no sentido do tempo da imanência. A meditação filosófica
63
Unidade II

cartesiana, diferentemente, retira o homem da imanência, desloca-o para o tempo do pensamento,


congelado, abstraído. Trata-se da construção de um homem de certezas (MARTINS, 2012).

Pensemos, por exemplo, no quadro Filósofo meditando, de Rembrandt. Esse cenário, o lugar reservado
do poêle, simboliza o locus de uma operação do pensamento. Voltemos ao início da primeira meditação
e ouçamos as palavras de Descartes: “Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os cuidados, e que
consegui um repouso assegurado numa pacífica solidão, aplicar-me-ei seriamente e com liberdade em
destruir em geral todas as minhas antigas opiniões” (Meditações, I, 2). Tem-se aqui a descrição de um
estado: solidão, espírito apaziguado, propósito deliberado, recolhimento.

Figura 13 – Rembrandt, Filósofo meditando (1632)

A menção reiterada da situação do filósofo meditando remete à criação de um espaço não físico, o
espaço de reconhecimento de um sujeito. O sujeito coloca-se em determinado lugar pelo pensamento
– este é o processo de abstração que se almeja. Ou seja, o motivo da repetição da imagem, por parte de
Descartes, é a criação de um lugar do exercício da mathesis e da subjetivação.

Lembrete

O método da mathesis é aquele dos geômetras, dos matemáticos, dos


que se pautam não pelo empírico, mas pelo ordenamento mental do mundo,
possibilitado pelo exercício de abstrair o mundo empírico. Eu olho o miolo
da flor, abstraio a imagem da flor vista com os olhos do corpo e “vejo” a
circunferência contida no miolo através dos olhos do espírito. É preciso
desconfiar dos sentidos e se acostumar a ver “ordem” onde ela não é aparente.

No que toca ao espaço aquecido da estufa onde se encontra o meditador, vale a pena citar o italiano
Sergio Benvenuto (2001), que traça uma analogia interessante entre o método cartesiano e o fogo
(interior) da certeza. Diz o autor que é ali, junto ao fogo da lareira, que o homem cartesiano quer (re)
encontrar o homem universal. Sabe-se que a mathesis visa reconstruir a ciência para fundar a verdade

64
EMPIRISMO MODERNO

única. As certezas parciais que Descartes encontrou ao longo da vida – na sua formação e em suas
viagens –, essas certezas parciais, essas “verdades étnicas”, devem ser substituídas, pois são “falsas”.
O sujeito deve encontrar-se ali no seu fechamento, no seu hermetismo; é nele mesmo que deve ser
buscado o fogo da certeza:

O percurso regressivo cartesiano vai da falsa certeza à certeza verdadeira:


é uma passagem do fogo etnocêntrico, no qual ele se debate nas suas
viagens por livros e países, ao fogo universal e único, que faz apelo ao
senso comum e à razão, ou seja, algo que qualquer um tem. O domínio e a
mestria sobre a natureza não se dão via expansão territorial e temporal, mas,
ao contrário, através da redução paradoxal na pobreza ascética e indigente
do cogito (BENVENUTO, 2001, grifos do autor).

O que Descartes busca em frente à lareira é o homem universal, processo que em nada se assemelha ao
retorno às suas origens. O filósofo nem mesmo considera a França, por seu ambiente frívolo e sofisticado,
um bom ambiente para meditar – preferia estar sempre no exterior. No Discurso do método, ele diz que a
Holanda é um lugar mais apropriado para esse retiro, porque ali os homens são sérios e livres.

É interessante o parentesco semântico entre áskesis e a própria palavra meditação. Foucault (2004)
lembra que o termo latino meditatio traduz o substantivo grego meléte, do verbo meletân, que significa
treinar, exercitar-se em algo, num tipo de exercício indefinidamente reiterável. Foucault afirma que
esses exercícios se enraizavam na ideia mesma de atletismo, no sentido de treino. Os exercícios físicos e
espirituais esculpem o corpo e o espírito do homem verdadeiro, livre, forte e independente. É claro que a
ideia do homem verdadeiro mudará de acordo com a doutrina do grupo praticante. Para os epicuristas,
por exemplo, os exercícios são uma tomada de consciência do puro prazer de existir; já para os estoicos
é de fundamental importância separar-se de seu lado passional e tomar o sentido da temporalidade
atual, fixando o pensamento no presente, o exercício de atenção a si, a meditação da morte, o exame de
consciência noturno, os exercícios de concentração etc.

Trata-se de um deslocamento do sujeito em relação ao que ele é por efeito do pensamento. Não é um
jogo do sujeito com seu pensamento, mas um “um exercício pelo qual o sujeito se põe, pelo pensamento,
em determinada situação” (FOUCAULT, 2004, p. 430). Será que essa situação comporta ou supõe uma
cisão? Que ela supõe uma cisão, isso nós já sabemos: a duplicação cartesiana res cogitans e res extensa.

Descartes visa ensinar o método intelectual, conduzido por articulações lógicas, raciocínio rigoroso.
Trata-se de ensinar não só a reconhecer ordens, mas ordem nas ideias. Daí a meditação cartesiana se
configurar como uma sucessão de representações ligadas por um “liame suficientemente forte, obrigatório
e necessário” (FOUCAULT, 2004, p. 356). O espírito então é treinado a reconhecer a legitimidade dessas
ligações e dar seu assentimento àquelas que se manifestarem de forma clara, distinta.

Por que evidenciar tanto o poder da razão humana? Lembremos que essa é uma época de crise de
valores, sobretudo morais, religiosos. Ao mesmo tempo que a ciência mostra o poder do homem, ela o
põe num lugar menor, deslocado do centro do universo. Esta passagem de Marcondes (2001, p. 153)
ilustra bem o significado desses acontecimentos:
65
Unidade II

O humanismo renascentista havia colocado o homem no centro de suas


preocupações éticas, estéticas, políticas. A Reforma protestante valorizara
o individualismo e o espírito crítico, bem como a discussão das questões
éticas e religiosas. A Revolução Científica pode ser considerada uma grande
realização do espírito crítico humano, com sua formulação de hipóteses
ousadas e inovadoras e com sua busca de alternativas para a explicação
científica; porém, ao tirar a Terra do centro do universo e ao trazer para
o primeiro plano a ciência da natureza, se afasta dos temas centrais do
humanismo e da Reforma, sofrendo em muitos casos a condenação tanto
de protestantes como de católicos. O homem deixa de ser o microcosmo
que reflete em si a grandeza e a harmonia do macrocosmo, as novas teorias
dissociando radicalmente a natureza do universo da natureza humana.

Descartes é fruto desse contexto histórico e não é por acaso que ele escreve seus textos em primeira
pessoa e tem como exigência situar o seu conhecimento a partir de sua experiência de vida. Seu projeto
é a reconstrução do edifício do saber em novas bases.

Saiba mais

Sobre a vida de René Descartes, veja o filme:

DESCARTES. Direção: Roberto Rossellini. Itália: Orizzonte 2000; RAI;


ORTF, 1974. 150 min.

6 EMPIRISMO INGLÊS DO SÉCULO XVII

6.1 Thomas Hobbes (1588-1679)

Figura 14 – Thomas Hobbes

66
EMPIRISMO MODERNO

Thomas Hobbes nasceu em Westport, Inglaterra, no dia 5 de abril de 1588. Filho de um clérigo
anglicano, vigário de Westport, teve uma infância marcada pelo medo da invasão da Inglaterra
pelos espanhóis, na época da rainha Elizabeth I. Aos 4 anos, Hobbes ingressou na escola da Igreja
de Westport e, em seguida, numa escola particular. Aos 15, foi matriculado na Magdalen Hall da
Universidade de Oxford, onde se formou em 1608. Hobbes esteve toda a sua vida ligado à monarquia
inglesa. Tornou-se preceptor de William Cavendish, que viria a ser o segundo duque de Devonshire,
ficando amigo da família.

Entre 1621 e 1625, ajudou Francis Bacon a traduzir alguns de seus ensaios para o latim. Durante
sua estada na França, entre 1629 e 1631, o estudo de Euclides despertou seu interesse pela matemática.
Em 1640, por ser um monarquista convicto, foi obrigado a deixar a Inglaterra e instalar-se em Paris.

Em 1642, publicou Do cidadão. Em 1646, tornou-se professor de matemática do príncipe Charles,


exilado na França depois da instalação da república na Inglaterra, sob a liderança de Oliver Cromwell.
Ainda em Paris, em 1651, publicou Leviatã, obra em que defende a monarquia absolutista. Em 1655,
lançou Do corpo, no qual reduzia a filosofia ao estudo dos corpos em movimento. Em 1658, publicou a
terceira parte de sua trilogia, intitulada Do homem.

Em 1666, o Parlamento votou uma lei contra o ateísmo que o pôs em perigo. Hobbes, então com
80 anos, não obteve permissão para publicar nada relacionado à conduta humana. Faleceu na Inglaterra
no dia 4 de dezembro de 1679, com 91 anos, depois de ter traduzido, já na velhice, a Ilíada e a Odisseia
para a língua inglesa.

Segundo Dutra (2010), o modelo apresentado por Hobbes no Leviatã descrevia o conhecimento
como um processo iniciado fora do organismo humano, pela ação causal dos objetos fora de nós sobre
nossos órgãos dos sentidos, e explicava a continuação desse processo dentro do organismo, por meio
de determinados mecanismos, como a linguagem. Em contraste com a separação radical que Descartes
fez entre os eventos mentais, inclusive o conhecimento, e os eventos naturais, o modelo de Hobbes já
continha um elemento claramente naturalista, ou seja, já propunha descrever o conhecimento humano
e os processos intelectivos como parte de processos “no mundo”, como parte dos acontecimentos dentro
da mesma realidade natural que a nova ciência procurava estudar e explicar.

A liberdade de querer ou não querer não é maior no homem do que em outros seres animados.
Com efeito, se o desejo é – como concebido por Hobbes – causa própria, não se pode deixar de segui-lo.
Por isso, muitos dizem que em Hobbes há uma espécie de materialismo mecanicista, em que não há
lugar para a liberdade e para os valores, muito menos os valores absolutos dos idealistas. É evidente que,
se o desejo se estabelece como causa, outro deve brotar dele, ou seja, não há espaço para a liberdade.
Guiamo-nos por prazer, dor, amor, ódio e querer, não por valores.

Também os processos cognitivos não podem ter outro tipo de explicação senão o mecanicista.
O empirismo hobbesiano não se funda em bases céticas. Ele admite que os pensamentos são designações
e representações ou aparências dos objetos, sendo em nós produzidos através da experiência dos
sentidos. Só conhecemos da essência aquilo que nos aparece. A origem de todos os pensamentos são
os sentidos. Pensamentos são fluidos, e devem ser fixados sinais sensíveis capazes de reconduzir
67
Unidade II

os pensamentos passados. Os nomes comuns não indicam conceitos universais – trata-se apenas de
nomes, que não significam a natureza das coisas, mas somente o que pensamos delas.

A seguir, analisamos três exemplos do empirismo em Hobbes.

6.1.1 Da condição natural da humanidade

O filósofo experimental quer extirpar o dogmatismo. Ele não quer recorrer a entidades inobserváveis.
Por isso, ele vai precisar recorrer à natureza humana, pelo método experimental.

O conceito de estado de natureza do homem está no capítulo XIII de Leviatã, “Da condição natural da
humanidade relativamente à sua felicidade e miséria”. Este capítulo representa o coração da obra, pois
é exatamente nesse ponto que o filósofo estabelece a clivagem e o encontro entre o homem natural e o
homem social, construindo o grande pressuposto de sua filosofia civil. Veremos que a análise do estado
da natureza humana trará como decorrência inevitável o Estado, enquanto forma de organização social
necessária à preservação da vida.

Salientamos que não é fortuito o fato de Hobbes ter se apoiado numa suposta condição natural do
homem para construir sua filosofia civil. Se o objetivo do filósofo é fazer uma ciência, e se somente os
objetos cuja geração possa ser concebida são passíveis de ser conhecidos cientificamente, Hobbes não
poderia partir de pressupostos culturais ou sociais, visto que estes (como demonstrou nos capítulos
anteriores ao examinado neste trabalho) são fruto de convenções e, por conseguinte, não se prestariam
ao papel de premissas. Do mesmo modo, Hobbes não poderia partir de conceitos morais, como os
de bem, justiça ou injustiça, pois a apreensão deles é muito relativa. Conforme veremos, trata-se de
conceitos decorrentes da organização social humana, sendo impossível tomá-los como base para uma
filosofia política.

Com efeito, Hobbes teria que escolher um princípio adequado para sustentar a sua filosofia civil.
É por isso que ele partirá do estado de natureza do homem, pois somente com base nesse conhecimento
se pode avançar no conhecimento do homem social, o qual, segundo Hobbes, é a expressão de um
artifício, ou seja, a sociedade representa uma invenção humana. O estado de natureza tem o caráter de
uma hipótese sobre o que supostamente aconteceria ao homem antes de seu ingresso no estado social.

O texto apresenta a seguinte sequência: num primeiro momento, Hobbes estabelece que da igualdade
humana deriva a igualdade quanto à esperança de cada homem realizar seus desejos, e do choque entre
desejos conflitantes nasce a guerra de todos contra todos; num segundo momento, Hobbes sustenta que,
uma vez que a equiparação da esperança leva, necessariamente, ao conflito, os homens, na tentativa de
defender a sua conservação, se submeteriam a um domínio que seria admitido por todos. Desse modo,
Hobbes demonstra que a organização social não é natural, e sim uma invenção, requerida como condição
necessária para garantir a felicidade do homem, felicidade essa que se manifesta pela satisfação parcial
de seus desejos e, portanto, nada tem a ver com a felicidade aristotélica ou platônica. Apresentamos, a
seguir, os argumentos que compõem essas etapas, salientando os encadeamentos demonstrativos que
expressam causalidade e necessidade, argumentos típicos de uma filosofia civil que pretende nortear-se
pelos métodos da geometria euclidiana.
68
EMPIRISMO MODERNO

O capítulo inicia-se fazendo uma importante defesa da igualdade física e espiritual entre os homens.

A natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades do corpo e do


espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestadamente
mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim,
quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro
homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa
com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também
aspirar, tal como ele (HOBBES, 1983, p. 74).

Hobbes defende que os homens são iguais do ponto de vista físico e espiritual. As diferenças
existentes, não muito significativas, não seriam suficientes para alimentar no espírito de cada homem a
ideia de que não se possa aspirar a um desejo a que o outro também aspire. O filósofo acrescenta que,
mesmo que um homem seja um pouco mais forte que o outro, o mais fraco pode destruí-lo pela astúcia
ou pela união com outros homens. Assim, uma maior força física não é capaz de justificar uma maior
esperança de realizar um desejo.

No parágrafo seguinte, Hobbes detém-se na análise das faculdades espirituais, deixando


propositalmente de fora aquelas que não se prestariam a um exame científico, uma vez que não são
faculdades inatas, mas resultado de aprendizado, como a arte da palavra ou o exercício da filosofia.
Ele destaca a prudência: ainda que não seja inata, é a única faculdade do espírito que é igualmente
alcançada por todos, necessariamente.

Porque a prudência nada mais é que a experiência, que um tempo igual


igualmente oferece a todos os homens, naquelas coisas a que igualmente se
dedicam. O que talvez possa tornar inacessível essa igualdade é simplesmente
a concepção vaidosa da própria sabedoria, a qual quase todos os homens
supõem possuir em maior grau do que o vulgo; quer dizer, em maior grau do
que todos menos eles próprios, e alguns outros que, ou devido à fama ou devido
a concordarem com eles, merecem sua aprovação (HOBBES, 1983, p. 74).

A prudência, então, enquanto produto da experiência de vida, comporta a todos. O que supostamente
poderia embotar essa percepção por parte dos homens é justamente a vaidade humana, que não é outra
coisa senão o fruto da própria prudência. Com efeito, Hobbes diz que um homem dificilmente acredita
que o outro possa saber mais do que ele, porque vê a sua sabedoria bem de perto, e a dos outros à
distância. Hobbes consegue pôr a seu favor o que poderia vir a ser uma possível objeção, a diferença da
percepção dos homens em relação à sua própria prudência, mostrando que é justamente a generalização
dessa vaidade o que vem provar mais uma vez a igualdade humana, e não o contrário, pois geralmente
não há sinal mais claro de uma distribuição equitativa de alguma coisa do que o fato de todos estarem
contentes com a parte que lhes coube.

Tendo provado a igualdade das capacidades humanas, Hobbes conclui que dessa igualdade resulta
a igual esperança de atingir um fim, que não é outro senão a própria conservação da vida. Na hipótese
de dois homens desejarem a mesma coisa e esta não poder ser alcançada por ambos ao mesmo
69
Unidade II

tempo, eles tornam-se inimigos. Nesse contexto, os homens se tornariam sempre desconfiados uns em
relação aos outros, o que os levaria ao ataque por prevenção. Desse modo, seria insuficiente, enquanto
solução da guerra de todos contra todos, os homens se reunirem em grupos sob determinado líder a
fim de zelar por um bem que lhes fosse comum, pois poderiam ver-se ameaçados por outros grupos
mais fortes ou mais numerosos, e assim sucessivamente. A solução, então, passaria pela sujeição a um
domínio comum admitido por todos, o que asseguraria a conservação de cada um deles. A sujeição a
um domínio comum é o artifício que o homem encontra para assegurar a sua sobrevivência, ou seja,
ele cede ao seu desejo de desejar indefinidamente para garantir a sua sobrevivência.

Contudo, não é somente a desconfiança da natureza humana o que leva os homens à guerra.
Os homens ainda guerreiam por competição, lançando-se na constante busca de superar o outro
quanto à apropriação de bens (condições materiais necessárias para a vida). Com efeito, se um
homem consegue se apropriar de mais bens que o outro, ele se tornará mais forte, e portanto menos
vulnerável aos outros. Ele pode alcançar o mesmo objetivo apropriando-se dos bens do outro, a fim de
deixá-lo mais suscetível e menos ameaçador. Conforme ressalta Hobbes, existem ainda aqueles que
atacam simplesmente para o seu deleite, “comprazendo-se em contemplar seu próprio poder nos atos
da conquista” (HOBBES, 1983, p. 74).

Há também outro motivo que predisporia os homens à guerra: a glória. O aspecto subjetivo da
glória vem ao encontro do aspecto subjetivo da vaidade, apresentada anteriormente para justificar
o fato de cada homem tender a considerar a si próprio o mais sábio. Assim, Hobbes chega a afirmar
que, na ausência de um domínio comum, a relação entre os homens é basicamente uma relação de
enorme desprazer:

Por outro, lado, os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos
outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um
poder capaz de manter a todos em respeito. Porque cada um pretende que
seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio e,
na presença de todos os sinais de desprezo ou de subestimação, naturalmente
se esforça, na medida em que a tal se atreva (o que, entre os que não têm
um poder comum capaz de os submeter a todos, vai suficientemente longe
para levá-los a destruir-se uns aos outros), por arrancar de seus contendores
a atribuição de maior valor, causando-lhes dano, e dos outros também,
através do exemplo (HOBBES, 1983, p. 74 ).

Nesse parágrafo, pode-se perceber o quão miserável (um adjetivo empregado pelo filósofo) é a
natureza do homem, pois a discórdia adviria inclusive do fato de um homem se sentir ameaçado em seu
“valor” por outro homem, quando este, através de sinais de desprezo, pudesse arranhar sua autoimagem.

No entanto, não caberia de modo algum banalizar essa questão. No nosso entender, a ideia de
glória ou reputação, apresentada por Hobbes, parece não se situar meramente no âmbito da defesa
da autoimagem, como poderia sugerir a nossa afirmação anterior. Ao contrário, interpretamos a defesa dessa
reputação associada à ideia da vaidade antes abordada: o que pode parecer um excesso de amor-próprio,
quando visto no outro, é na verdade uma estratégia natural que se expressa pelo desenvolvimento de
70
EMPIRISMO MODERNO

um autovalor que o homem tem necessariamente que se imputar; caso contrário, ele não poderia ter
esperança de alcançar seus desejos, e mais ainda, de vencer na competição com os outros. Ora, somente
achando que pode ganhar a competição é que ele se lança a ela.

Se a competição leva o homem a atacar, buscando bens materiais para assegurar a sua sobrevivência,
e a desconfiança, a protegê-los, a defesa da reputação, por sua vez, lança o homem à guerra por

ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião, e


qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido a sua
pessoa, quer indiretamente a seus parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão
ou seu nome (HOBBES,1983, p. 74).

Assim, torna-se manifesto (ou seja, é uma evidência) que tal estado de guerra permanente é inevitável
quando os homens não estão sob um domínio comum a todos. É interessante como Hobbes desenvolve,
a partir do que ele chama a condição natural do homem, uma verdadeira filosofia da guerra, o que
não causa tanto estranhamento quando se leva em conta que ele viveu na Inglaterra do século XVII.
Ao definir a guerra em si, Hobbes diz que ela não existe somente no momento do combate físico – a
guerra é, sobretudo, a intenção de guerrear, a qual pode acontecer num único lapso de tempo.

Portanto, a noção de tempo deve ser levada em conta quanto à natureza


da guerra, do mesmo modo que quanto à natureza do clima. Porque tal
como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas
numa tendência para chover que dura vários dias seguidos, assim também a
natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição
para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário.
Todo o tempo restante é de paz (HOBBES, 1983, p. 75-76).

Se o homem não lançasse mão de uma invenção, que seria o domínio comum, ele não teria como
escapar da guerra de todos contra todos. Nessa situação, seria impossível haver uma sociedade humana.
Com efeito, Hobbes afirma que a sociedade, como nós a conhecemos (com agricultura, indústria, comércio,
pesquisa científica, artes etc.), só é viável devido ao acordo no qual todos os homens assentem em viver sob
um domínio comum, que seria o Estado. Num estado de guerra de todos contra todos, haveria somente o
temor da morte, e a vida do homem seria solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.

A quem objetar a essas ideias, Hobbes recomenda que passe em revista a sua própria experiência, como
fechar as portas de casa com chaves, mesmo sabendo que existem leis e funcionários armados a serviço
da defesa de seus compatriotas. Não seria isso também uma forma de desconfiança? – indaga o filósofo.
A diferença é que talvez o homem comum que acusasse os supostos ladrões o faria com base na lei.

Para Hobbes, no entanto, isso só vem confirmar a sua tese, uma vez que a própria lei faz parte
do contrato a que os homens se submetem. Assim, a natureza humana não seria por si algo digno
de julgamento moral. Na situação de guerra de todos contra todos, não há lugar para o bem e o mal,
pois “os desejos e outras paixões do homem não são em si mesmos um pecado” (HOBBES, 1983, p. 76).
Muito pelo contrário: numa situação de guerra, mesmo as institucionalizadas, ironicamente a força e o
71
Unidade II

embuste tornam-se virtudes. Ora, numa situação em que não há poder comum, não há lei; se não há lei,
não há noção de justiça ou de injustiça. Essas noções são decorrentes da lei, que por sua vez decorre da
invenção do poder comum, o domínio a que todos se sujeitam.

A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do


espírito. Se assim fosse, poderiam existir num homem que estivesse
sozinho no mundo, do mesmo modo que seus sentidos e paixões.
São qualidades que pertencem aos homens em sociedade, não na solidão.
Outra consequência da mesma condição é que não há propriedade, nem
domínio, nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem
aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de
conservá-lo (HOBBES, 1983, p. 77).

Com isso, reafirma-se que a justiça é uma invenção da vida em sociedade, e não uma faculdade
natural humana. Do mesmo modo, a propriedade também é fruto da vida em sociedade e, como a
justiça, só faz sentido numa comunidade que aceita viver sob determinadas regras e leis advindas de
um domínio comum.

Por fim, o filósofo apresenta os temas que virão na sequência. Hobbes diz que o homem pode
escapar ao estado de guerra de todos contra todos por meio das suas paixões e da sua razão: as paixões
o levam a temer a morte e a ter esperança de garantir a sua vida; a razão lhe possibilita o acordo de
paz, sugerindo normas de comportamento. Tais normas serão tratadas nos capítulos seguintes da obra
como leis naturais, deduzidas a partir do pressuposto do estado de natureza do homem, apresentado
no capítulo em análise. Com a apresentação dessas leis, Hobbes fecha a primeira parte do Leviatã,
“Do homem”, para depois deter-se na construção de sua teoria sobre o Estado.

Podemos concluir que o miserável estado de natureza do homem representa a síntese do que seria
a curta existência humana caso o homem não tivesse, por pura necessidade de conservação de sua
vida, passado ao modo social de existência. No estado de natureza, a igualdade física e espiritual entre
os homens é o que propiciaria a esperança que cada qual tem de realizar seus desejos. Uma vez que
estes são conflitantes, os homens se encontrariam numa guerra de todos contra todos. Essa situação de
guerra generalizada exige como saída a aceitação mútua de um domínio comum a todos, ou seja, um
acordo. Esse acordo seria um artifício e se expressaria na forma da vida em sociedade, sob o domínio do
Estado. O acordo político incluiria também a criação das leis, pelas quais seriam determinadas as noções
de justiça e injustiça. Desse modo, Hobbes consegue explicitar a subordinação da moral à política, e não
o contrário, como muitos filósofos haviam defendido.

6.1.2 Filosofia civil

O discurso da filosofia civil de Hobbes tem o caráter de um discurso científico, e assim difere-se do
discurso histórico, embora muitas vezes pareçam se misturar. Contudo, segundo o filósofo, o seu discurso
científico se distingue do discurso histórico porque nele não se observa simplesmente uma narrativa
de fatos, e sim uma ordem de razões. A filosofia civil não seria fruto de um espírito arguto, como se
poderia esperar do discurso histórico; antes, é um discurso guiado pela reta razão, o qual nos forneceria
72
EMPIRISMO MODERNO

o caminho da contemplação das coisas particulares até as leis universais. Assim, afirma Hobbes, todas as
vezes que um autor abandona o “fio” fornecido pela reta razão, deixando-se conduzir demasiadamente
pelos relatos, ele está pondo em risco a sua intenção de fazer uma filosofia civil.

Conforme se sabe, o grande modelo científico de Hobbes era a geometria euclidiana, na qual as definições
dos objetos com que se trabalha são apresentadas no início do texto e mantidas até o final da demonstração.
Além disso, a geometria estabelece os princípios gerais (postulados) a partir dos quais são deduzidas todas as
consequências necessárias. Desse modo, é possível comprovar a validade de seus achados quando se chega
à geração de determinado objeto, tal como se pode identificar uma circunferência quando se sabe como
essa figura é gerada. Por esse motivo, na obra Do cidadão, Hobbes afirma que, se conhecêssemos as ações
humanas com a mesma certeza com que a geometria conhece a natureza da grandeza das figuras, os homens
gozariam da paz. Observamos, por meio das palavras em negrito no parágrafo a seguir, como o discurso
geométrico serve de exemplo para a construção de uma filosofia civil.

Segundo Hobbes, todos os estudiosos anteriores a ele que tentaram tratar da filosofia civil falharam
porque não adotaram um princípio adequado ao iniciar suas teorias. Nas suas palavras, o início de uma
ciência, como o de um círculo, não pode originar-se “ao bel-prazer”. Hobbes acreditava ter estabelecido
dois fundamentos sólidos para a sua ciência política. O primeiro postulado versa sobre a origem da
propriedade privada, a qual seria fruto da convenção humana, inventada com a finalidade de evitar o
conflito, uma vez que da posse comum das coisas se seguiria, como consequência necessária, a guerra.
O outro postulado seria o acordo que os homens fariam entre si de se submeter a um domínio único, a
fim de garantir a sua sobrevivência e evitar a morte violenta. Como consequência desses dois postulados,
Hobbes pretendia ter demonstrado, como consequência evidente, a necessidade de guardar os pactos
e a subordinação da moral à política.

A história em Hobbes é o discurso narrativo acerca dos acontecimentos passados da vida humana.
Não se deve confundir o discurso histórico com aquele das narrativas das rapsódias, nas quais
frequentemente se observa um apelo ao estilo fabuloso. No discurso histórico, procura-se reproduzir
o fato ocorrido com a maior fidedignidade possível, e para tanto o historiador se esforça em apurar os
fatos com o máximo de rigor, através, por exemplo, da análise de documentos de época e dos relatos dos
sobreviventes que considera os mais plausíveis.

Assim constituído, o discurso histórico é capaz de compor um patrimônio útil, pois os fatos que
já ocorreram podem vir a ocorrer novamente, sendo possível, mediante a prudência, evitar os erros já
cometidos no passado. É claro que o tipo de conhecimento que se poderia obter a partir do discurso
histórico não tem o mesmo caráter daquele obtido segundo o método científico. Se a história, ao
remeter ao passado, pode auxiliar-nos nas ações do presente, ela o faz através da prudência, e o caráter
prescritivo de uma filosofia civil como a de Hobbes é fruto de uma investigação científica.

6.1.3 Linguagem e conhecimento científico

De acordo com Hobbes, qualquer homem tem habilidade para a filosofia, uma vez que porta uma
razão natural. Entretanto, poucos a alcançam, pois o exercício filosófico supõe um treinamento no uso
da razão. Ademais, o aprendiz de filosofia, além de aprender um método, deveria abdicar de um discurso
73
Unidade II

sedutor à maioria das pessoas. Hobbes declara que a dificuldade de alargar o alcance da filosofia seria,
entre outras, a de limpar a mente dos homens dos discursos eloquentes, discursos esses que deliciam a
maior parte deles. Por sua vez, o discurso filosófico ou científico seria árido e pouco eloquente. Deleitar-se com
o discurso filosófico seria um desfrute para poucos – para aqueles que se deliciam com a verdade.

Não ignoro o quão difícil é limpar as mentes dos homens de tais opiniões
inadvertidas que lá lançaram raiz e foram confirmadas pela autoridade dos
mais eloquentes escritores, [especialmente vendo a verdade, isto é, que a
correta filosofia é efetivamente rejeitada]. As bases elementares de toda
ciência não apenas são feias, mas pobres, áridas e, em aparência, deformadas.
Apesar disso, certamente há homens, embora não muitos, que se deliciam
com a verdade e a retidão da razão em todas as coisas, motivo pelo qual
penso que devo dar o melhor de mim para esses poucos; logo, eu trato esse
assunto e inicio pela minha própria definição de filosofia exposta a seguir
(Do corpo, I, cap. 1, § 1).

Notamos então uma polarização entre o discurso científico e o não científico: o primeiro é aquele
que comunica a verdade, o conhecimento; o segundo seria um discurso mais ornamentado e aprazível,
porém dissimulador e de menor valor no que tange ao alcance da verdade.

O método científico de Hobbes consistiria na verdadeira argumentação, ou ainda computação,


que seria a capacidade de somar e subtrair termos. No Leviatã, o autor também nomeia a argumentação
de cálculo. O uso do cálculo nos levaria das causas aos efeitos, e vice-versa, o que se pode denominar
também consequências ou geração. A geração é o que permite obter o efeito a partir da causa, e
vice-versa. Partindo desse pressuposto, só seriam passíveis de ser conhecidos cientificamente objetos
cuja geração pudesse ser concebida.

Na definição de ciência apresentada no Leviatã, percebe-se que o filósofo enfatiza o caráter condicional
do conhecimento, além de evidenciar a ideia de que fazer ciência é fazer um discurso científico:

Nenhuma espécie de discurso pode terminar no conhecimento absoluto


dos fatos, passados ou vindouros. Porque para o conhecimento dos fatos é
necessária primeiro a sensação, e depois disso a memória; e o conhecimento
das consequências, que acima já disse chamar-se ciência, não é absoluto,
mas condicional. Ninguém pode chegar a saber, através do discurso, que
isto ou aquilo é, foi ou será, o que equivale a conhecer absolutamente.
É possível apenas saber que, se isto é, aquilo também é; que, se isto foi,
aquilo também foi; e que, se isto será, aquilo também será; o que equivale
a conhecer condicionalmente. E não se trata de conhecer as consequências
de uma coisa para a outra, e sim as do nome de uma coisa para outro nome
da mesma coisa (HOBBES, 1983, p. 40).

Hobbes salienta a questão da linguagem, especialmente sua relação com a elaboração da ciência,
uma vez que ela é necessária para mostrar o que a computação fez sem o uso de palavras. A linguagem
74
EMPIRISMO MODERNO

serve para recordar as consequências de causas e efeitos, mediante a imposição de nomes e a conexão
deles. A passagem da computação mental à escrita terá de ser feita de forma metódica, a fim de que os
abusos da linguagem não comprometam o processo científico, ainda que o limitem.

De tal modo que na correta definição dos nomes reside o primeiro uso da
linguagem, o qual consiste na aquisição da ciência; e na incorreta definição,
ou na ausência de definições, reside o primeiro abuso, do qual resultam todas
as doutrinas falsas e destituídas de sentido; o que torna aqueles homens que
tiram sua instrução da autoridade dos livros, e não de sua própria meditação,
tão inferiores à condição dos ignorantes, quanto são superiores a estes os
homens revestidos de uma verdadeira ciência (HOBBES, 1983, p. 23).

O grande modelo é a linguagem da geometria, na qual as definições dos objetos com que se trabalha
são apresentadas no início do texto e mantidas assim até o fim da demonstração. A geometria é tomada
como modelo tanto para a questão da linguagem quanto para atestar a validade do método na busca
das gerações. Em contraponto a esse modelo de “perfeição” encontram-se a ética, criticada pelo filósofo,
ainda que ele a coloque no leque da filosofia natural, como estudo das consequências das paixões do
homem. A ética comportaria conceitos imprecisos e genéricos, cuja apreensão é relativa a cada sujeito,
o que dificulta seu uso na linguagem científica. No Leviatã, Hobbes ironiza a generalidade dos termos
bem e mal utilizados em alguns textos de ética – segundo ele, não existem homens suficientemente
gerais para exprimir essas ideias.

É ilustrativa a passagem de Do corpo em que o filósofo compara as duas áreas de conhecimento e


parece acusar os escritores da ética de retóricos:

O que, então, pode ser imaginado como a causa por meio da qual os escritos
daqueles homens [os geômetras] ampliaram a ciência e os escritos desses
[os escritores das éticas] ampliaram tão somente o número de palavras,
exceto se os primeiros conheciam e os últimos não conheciam a doutrina
e ensinavam somente pela ostentação e pela sagacidade e eloquência?
(Do corpo, I, cap. 1, § 7).

No Leviatã, Hobbes afirma que a invenção das letras é a grande invenção humana, contudo, se
seu uso implica muitas vantagens, também implica abusos. A palavra serviria para registrar fatos e
ideias, expressar nossas necessidades, ensinar e aprender, e para nos deleitarmos com ela, “de maneira
inocente”. Os abusos da linguagem seriam o uso inconstante da significação de uma palavra, as metáforas
e o discurso ofensivo ou enganador. Daí ser necessário, num discurso científico, utilizar as palavras
com significação constante e não empregar termos que expressem ambiguidade ou vaguidade, pois a
finalidade do discurso científico é ser compreendido de modo claro e objetivo, e não persuadir através
de apelos à nossa emoção ou apreciação estética.

O objetivo de um discurso científico é levar as pessoas ao conhecimento de algo. Quando duas


pessoas conhecem um fato através de um discurso científico, pode-se dizer que elas conhecem o mesmo
fato, ou seja, conhecem conjuntamente, “cada uma delas está consciente do fato em relação à outra”
75
Unidade II

(HOBBES, 1983, p. 41). Esse é o tipo de recepção que se espera de um discurso científico. Um discurso que
não atende ao método científico é a opinião, e o tipo de recepção diante de uma opinião não se pode
designar consciência, mas fé ou crença. É importante salientar, conforme expõe Hobbes, que a crença ou
a fé frequentemente não se reportam a um discurso em si, mas a quem o pronuncia, ou seja, a crença
numa opinião é influenciada por quem a exprime. Isso se dá porque, num discurso não científico, não
se podem identificar claramente os argumentos e a conexão entre as ideias – daí ser impossível tomar
consciência do que se fala. Logo, o assentimento a esse discurso se dá no âmbito da crença em quem
fala; segundo Hobbes, abre caminho a um discurso que se respalda na autoridade de quem o enuncia.

Concluindo, Hobbes apresenta a linguagem como uma ferramenta através da qual o homem
transforma a argumentação sem palavras numa argumentação com palavras. A ciência constitui-se,
assim, no próprio discurso científico, cujos atributos fundamentais são a precisão, a correta definição e
a constante significação dos nomes empregados. A finalidade do discurso científico é alcançada quando
leva quem o lê a um conhecimento que é fruto do entendimento e da consciência dos fatos expostos, e
não fruto da persuasão estética ou eloquência.

Saiba mais

Para mais informações sobre a principal obra de Hobbes, Leviatã, assista


ao seguinte episódio do programa Café Filosófico: “Leviatã e as lógicas
da força e da punição”, com Yara Frateschi, professora de ética e filosofia
política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp):

LEVIATÃ e as lógicas da força e da punição. 2016. 1 vídeo (48:08 min).


Publicado pelo canal Café Filosófico CPFL. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=Ic5d4grHkcI. Acesso em: 20 mar. 2020.

6.2 John Locke (1632-1704)

Figura 15 – John Locke

76
EMPIRISMO MODERNO

John Locke nasceu em 29 de agosto de 1632 em Bristol, Inglaterra, numa família de burgueses
comerciantes. Estudou no Christ Church College de Oxford, onde se desencantou com o peripatetismo
(referência a Aristóteles). Ali, apreciou o estudo de Descartes, que o interessara pelo modo simples
de escrita. Estudou inúmeros assuntos, como medicina, anatomia, fisiologia, química, meteorologia,
teologia e física. Optou pela medicina como profissão e foi amigo do químico Robert Boyle
(1627-1691), o primeiro a elaborar o conceito moderno de elementos químicos. Não conseguiu nenhum
título acadêmico em medicina, mas passou a ser chamado de Dr. Locke pela competência que adquiriu
nessa matéria. Enquanto se ocupava ativamente da vida política da Inglaterra, exerceu vários cargos.

Lembrete

O químico irlandês Robert Boyle, amigo de Locke, foi o primeiro a elaborar


o conceito moderno de elementos químicos, além da teoria dos gases.

A principal obra de Locke é o Ensaio sobre o entendimento humano, publicado em 1690, depois de vinte
anos de elaboração. Com esse livro, o autor obteve sucesso e reconhecimento ainda em vida. Em 1689,
publicou a Epístola sobre a tolerância e Dois tratados sobre o governo; em 1693, Pensamentos sobre a
educação; em 1695, A racionalidade do cristianismo. Alguns de seus escritos foram editados postumamente,
entre eles Paráfrases e notas das epístolas de São Paulo aos Gálatas, aos Coríntios, aos Romanos e aos Efésios
e Ensaio para a compreensão das epístolas de São Paulo. Morreu em outubro de 1704.

6.2.1 Ensaio sobre o entendimento humano

Locke assume o programa moderno baconiano de conhecer a natureza do conhecimento humano.


Vejamos algumas de suas palavras na introdução do Ensaio sobre o entendimento humano (§§ 6 e 7):

O conhecimento de nossa capacidade, uma cura para o ceticismo e a


ociosidade. Quando conhecermos a nossa própria força, saberemos melhor
o que intentar com esperanças de êxito; e quando tivermos examinado com
cuidado os poderes de nossas mentes, e feito alguma avaliação acerca do
que podemos esperar deles, não tenderemos a ficar inativos, deixando de pôr
nossos pensamentos em atividade, pelo desespero de nada conhecermos;
nem, por outro lado, poremos tudo em dúvida e renunciaremos a todo
conhecimento, porque algumas coisas não são compreendidas.

É de grande utilidade para o marinheiro saber a extensão de sua linha,


embora não possa com ela sondar toda a profundidade do oceano.
É conveniente que saiba que ela é suficientemente longa para alcançar
o fundo dos lugares necessários para orientar sua viagem, e preveni-lo
de esbarrar contra escolhos que podem destruí-lo. Não nos diz respeito
conhecer todas as coisas, mas apenas as que se referem à nossa conduta.
Se pudermos descobrir aquelas medidas por meio das quais uma criatura
racional, posta nesta situação do homem no mundo, pode e deve dirigir
77
Unidade II

suas opiniões e ações delas dependentes, não devemos nos molestar porque
outras coisas escapam ao nosso conhecimento.

Motivo deste Ensaio. Foi isso que deu, no início, nascimento a este Ensaio
sobre o entendimento. Pensei que o primeiro passo para satisfazer a várias
indagações, às quais a mente do homem estava bem apta para tender, seria
o de investigar nossos próprios entendimentos, examinar nossos próprios
poderes e ver para que coisas eles estão adaptados. Até que isso fosse feito,
suspeitava que começava pelo lado errado, e em vão procurava satisfação
numa tranquila e segura posse das verdades que mais nos dizem respeito,
se deixássemos nossos pensamentos soltos num vasto oceano do ser,
como se todas essas extensões ilimitadas fossem de posse natural e
indubitável de nossos entendimentos, em que não haveria nada que não
dependesse de suas decisões, ou que escapasse à sua compreensão. Ampliando
suas investigações além de suas capacidades, e deixando seus pensamentos
vagarem em profundezas a tal ponto de lhes faltar apoio seguro para o
pé, não é de admirar que os homens levantem questões e multipliquem
disputas acerca de assuntos insolúveis, servindo apenas para prolongar e
aumentar suas dúvidas, e para confirmá-los ao fim num perfeito ceticismo.
Sendo bem examinadas as capacidades de nossos entendimentos, divisando
o horizonte entre as partes iluminadas e as escuras das coisas – entre o que
podemos e não podemos compreender –, os homens concordariam, talvez
com menos escrúpulos, em reconhecer nossa ignorância acerca de umas
coisas, e empregariam seus pensamentos e discursos com mais proveito e
satisfação na resolução de outras.

Todo o primeiro livro do Ensaio é consagrado à crítica ao inatismo. Vários são os antagonistas de
Locke nessa questão: além de Descartes, Herbert de Cherbury (1583-1648), os platônicos ingleses da
escola de Cambridge e todos aqueles que sustentam haver na mente humana conteúdos anteriores,
impressos nela antes mesmo que se tenha iniciado a existência da pessoa. Os defensores do inatismo se
baseiam no seguinte: se as nossas ideias não fossem inatas, como poderíamos tão rapidamente chegar
a um consenso universal sobre certas concepções?

Locke afirma que o consenso universal não existe. Diz isso pelo fato de que crianças e deficientes
mentais, que não têm consciência dos princípios de identidade e de não contradição, não concordam
entre si sobre as ideias. Teriam eles então nascido sem elas? Por que só eles não teriam acesso às tais ideias
inatas? Os antagonistas facilmente diriam que eles as possuem, mas não têm acesso a elas – argumento
inaceitável ao anti-inatismo, porque seria absurdo defender que existiriam verdades impressas na alma
a que não se pode ter acesso, que não são percebidas enquanto tais.

De acordo com os empiristas, existem povos cujos princípios morais são tão divergentes dos nossos
que seria difícil crer que eles nasceram com os princípios morais de nossa cultura, supostamente inatos.
Não só a pluralidade de princípios morais em culturas diferentes poderia mostrar que não existem
princípios inatos impressos em nosso intelecto, mas também a própria ideia de Deus, que para os
78
EMPIRISMO MODERNO

cartesianos seria inata e ligada à ideia de infinito ou perfeição. Mesmo essa ideia não está presente em
todas as culturas, porque cada uma tem sua relação com os mistérios, relação não necessariamente
mediada pela ideia de um Deus uno.

Seria possível conjecturar que o intelecto poderia criar ideias. Essa conjectura é excluída por Locke, pois
para ele o intelecto humano não poderia criar ou inventar nem mesmo ideias muito simples – uma vez que
seu ofício consiste em associar ou combinar ideias –, assim como não poderia apagá‑las do nada.
O poder do homem sobre seu intelecto é limitado: não tem domínio sobre ele; só pode combinar
materiais, e não fabricar materiais por si mesmo. O homem não pode intervir no seu intelecto:
ele funciona de forma independente da sua vontade, em atividade contínua de composição de ideias,
feitas a partir de objetos externos (por meio dos sentidos) ou da reflexão sobre as operações do espírito.
Locke (apud REALE; ANTISERI, 2013b, p. 96) afirma:

Gostaria que alguém tentasse imaginar um gosto que nunca tenha afetado
seu paladar, ou fazer uma ideia de algum perfume cujo odor nunca tenha
sentido; quando puder fazê-lo, eu estarei pronto a concluir que um cego
pode ter ideias de cores e um surdo noções distintas de sons.

É conhecida a ideia de Locke de que o entendimento humano é como uma tábula rasa e só pensa a
partir dos materiais que lhe vieram da experiência.

Observação

Tábula rasa significa literalmente “tábua raspada”. Antigamente,


usava-se para escrever uma tábua de madeira encerada, que podia ser
raspada para novas inscrições.

É interessante atentar ao sentido de experiência adotado por Locke nesse contexto:

Experiência indica propriamente observação tanto dos objetos externos


sensíveis como das operações internas do nosso espírito que percebemos e
sobre as quais refletimos. A experiência “é tudo aquilo que fornece a nosso
intelecto todos os materiais do pensar”. A experiência externa e a interna
são para Locke as duas únicas fontes do conhecimento, das quais emergem
todas as ideias que temos ou podemos ter (REALE; ANTISERI, 2013b, p. 96).

Segundo Locke, temos dois tipos de experiência: a interna, da qual advêm as ideias simples de
reflexão (prazer, dor etc.), e a externa, da qual advêm as ideias simples de sensação (extensão, figura,
movimento etc.). Locke denomina qualidade o poder que as coisas têm de produzir ideias em nós.
Existem qualidades primárias e reais dos corpos, das quais as ideias correspondentes que se produzem
em nós são cópias exatas, e qualidades secundárias, que constituem os poderes de combinação das
primárias (cores, sabores etc.) e são parcialmente subjetivas.

79
Unidade II

É uma qualidade do sujeito poder produzir uma ideia a partir de um objeto imediato da sua percepção
ou do seu pensamento. Como funciona a mente lockiana? Ou combinando ideias entre si para compor
ideias complexas, ou separando ideias umas das outras para formar ideias gerais. As ideias complexas
podem ser:

• De modo: constituem as afecções da substância.

• De substância: nascem do hábito de supor um substrato no qual subsistem ideias simples que
caminham sempre juntas.

• De relação: surgem da comparação que o intelecto institui entre as ideias. Como exemplos,
podemos citar as ideias de causa e efeito, identidade e moralidade.

Note-se que Locke não nega que as substâncias existam, mas nega – ao contrário da concepção
cartesiana – que tenhamos ideias claras e distintas delas. A compreensão destas está fora da
compreensão de um entendimento finito. A ideia de substância, portanto, é uma exceção, pois as demais
ideias complexas são construções do nosso intelecto. Esse privilégio também é reservado às ideias de
Deus e de causalidade, fato que Hume criticará. Do mesmo modo, Locke dirá que, embora tenhamos
uma ideia da essência das coisas, a essência real permanece desconhecida para nós. Conhecemos o que
ele chama de essência nominal, que consiste no conjunto de qualidades que estabelecemos para
que determinada coisa seja chamada por determinado nome – qualidades como cor, peso, densidade e
cheiro. Só há coincidência entre a essência real e a nominal no caso das figuras da geometria, devido ao
fato de que elas são construções do nosso intelecto.

Vale a pena assinalar aqui a presença de um tipo de nominalismo lockiano. Como ele explica a
atividade filosófica clássica da abstração? Não seria, pois, essa a atitude típica do filósofo que tenta
extrair a essência de algo a partir do despojamento progressivo do objeto de suas características materiais
acidentais? Locke nomeia essa atividade de eliminação de algumas partes da ideia complexa.
Isso institui uma espécie de nominalismo, que pode ser inferido a partir da afirmação de que as palavras

são gerais quando utilizadas como sinais de ideias gerais, podendo assim
ser aplicadas indiferentemente a muitas coisas particulares; já as ideias são
gerais quando usadas para representar muitas coisas particulares. Mas a
universalidade não pertence às coisas próprias, que são todas particulares
em sua essência, incluindo as palavras e ideias que são gerais em seu
significado. Por isso, quando nos afastamos dos particulares, aquilo que
resta de geral é somente uma criatura de nossa fabricação; com efeito, sua
natureza geral nada mais é que a capacidade conferida pelo intelecto de
significar ou representar muitos particulares. O significado que tem é apenas
uma relação que o espírito do homem acrescenta a esses particulares
(LOCKE apud REALE; ANTISERI, 2013b, p. 101).

O conhecimento consiste na percepção da conexão e do acordo (ou desacordo) entre ideias.


Existe uma gradação entre os conhecimentos certos e os menos certos. O mais certo deles é o obtido
80
EMPIRISMO MODERNO

por intuição (ou seja, por evidência imediata, como a ideia de triângulo); em seguida, vem o obtido por
demonstração (concatenação de ideias que se dá mediante a lógica, em que se caminha de evidência
em evidência), que não é imediato, mas precisa da mediação da lógica; por fim, está o menos claro e o
menos seguro, o obtido por sensação, que se refere à existência das coisas externas – ele é menos seguro
porque, quando nossos sentidos estão fora do alcance desses objetos, não temos mais certeza de sua
existência. Vale notar que, em relação à ideia de Deus, o nível de exigência do filósofo cai abruptamente,
a ponto de ele defender que o conhecimento de Deus é mais certo do que qualquer outro porque viria
acompanhado da certeza de que este é um conhecimento que não podemos deixar de ter.

6.2.2 Dois tratados sobre o governo

É curioso notar que as ideias políticas de Locke também se pautam, como não poderia deixar de ser,
por um empirismo metodológico, pois elas derivam de sua ideia de homem, baseada, como em Hobbes,
em conceitos provenientes da experiência humana. A ideia de homem, portanto, não advém de um
princípio postulado a priori acerca de sua essência.

Observação

Ainda que o conceito lockiano de experiência humana pareça se inspirar


numa base empírica, a questão é bastante discutível aos olhos dos leitores
do século XXI, pois se nota que é um empirismo imbuído de crenças que
fazem parte da cultura do século XVII.

O objetivo aqui não é investigar essa teoria política, mas salientar que é uma teoria cuja premissa
maior provém de um suposto “estado de natureza” humano. No quadro do estado de natureza defendido
por Locke nos Dois tratados sobre o governo, o homem tem direito à propriedade (entendida como “vida,
liberdade e posses”) e direito de castigar qualquer pessoa que venha a prejudicar essa propriedade
(tornando-se, nesse caso, o executor da lei da natureza). Deus colocou o homem “sob fortes obrigações
de necessidade, conveniência e inclinação para arrastá-lo à sociedade, provendo-o igualmente de
entendimento e linguagem para que continuasse a gozá-la” (Dois tratados sobre o governo, Segundo
tratado, VII, § 77).

Dito isso, podemos compreender o motivo pelo qual os homens se unem num corpo político: para se
proteger contra inconvenientes que possam estabilizar sua segurança e expô-los à violência do estado
de natureza – ou, como diz Locke repetidas vezes, para preservar suas propriedades. No entanto, não
podendo a sociedade civil existir sem ter em si o poder de preservar a propriedade, e portanto o poder
de castigar os ofensores dessa propriedade, será também condição de existência da sociedade civil que
cada um de seus membros renuncie ao próprio poder natural, passando-o às mãos da comunidade,
podendo então recorrer à proteção da lei por ela estabelecida. Vejamos como Locke descreve esse passo:

A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia à liberdade


natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com
outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com
81
Unidade II

segurança, conforto e paz umas com as outras, gozando garantidamente


das propriedades que tiverem e desfrutando de maior proteção contra
quem quer que não faça parte dela (Dois tratados sobre o governo, Segundo
tratado, VIII, § 95).

É portanto o consentimento dos membros da comunidade que legitima a formação da sociedade


civil. Vale acrescentar que Locke enfatiza a natureza, e não a fé (BAZANINI, 2017). Por isso, temos em seu
pensamento o jusnaturalismo – a ideia de que a natureza é anterior às ações humanas –, e não o direito
divino. Este foi abordado pelo teólogo e bispo francês Jacques Bossuet, o qual defendia que o monarca
governaria pela vontade de Deus, e não pela do povo. John Locke critica o pensamento de Bossuet e
ressalta a vontade individual dentro do contrato social.

Resumo

Nesta unidade, vimos que a redescoberta do atomismo antigo,


ocorrida no início do período moderno, ofereceu uma alternativa à visão
de mundo aristotélica. A incorporação do atomismo por parte de Galileu,
Boyle, Newton e Gassendi encontrou grande ressonância na elaboração
da física experimental. O atomismo é uma teoria antiga, que data do
tempo em que não se podia nem mesmo saber o que era exatamente um
átomo. A primeira versão do atomismo foi desenvolvida por Leucipo e
Demócrito, ainda no período clássico grego, e foi retomada por Epicuro
no período helenista.

Além do atomismo, o mecanicismo figura como uma das teorias mais


importantes do século XVII. Ele se baseava na ideia de que os fenômenos
do mundo podem ser conhecidos assim como conhecemos os mecanismos
de um relógio, bastando para isso decompor as peças e entender seu
modo de operação. Descartes foi defensor do mecanicismo. Nas Regras para
a direção do espírito, ele diz que as três únicas propriedades dos corpos são
extensão, figura e movimento, em contraposição à ciência aristotélica, para
a qual os corpos comportam características essenciais qualitativas.

Abraçando o método experimental, mas também o atomismo e o


mecanicismo, a ciência moderna nasce no seio destes dois métodos:
é tanto racionalista quanto empirista. Os trabalhos de mecânica clássica de
Galileu Galilei (1564-1642) e Isaac Newton (1643-1727) ilustram esse fato.

Consideramos ainda a separação entre mente e corpo no contexto


da filosofia cartesiana, tese amplamente criticada pela tradição filosófica
posterior, inclusive pelos filósofos empiristas – daí a necessidade de
conhecê-la. A partir do principal texto da metafísica cartesiana, as
Meditações, abordamos o caminho que leva Descartes a postular a diferença
82
EMPIRISMO MODERNO

entre substância corpórea e substância pensante, assim como o lugar dessa


dualidade dentro de seu método filosófico.

Vimos que o modelo de Hobbes continha um elemento claramente


naturalista, ou seja, propunha descrever o conhecimento humano e os
processos intelectivos como parte de processos mundanos – como parte
dos acontecimentos dentro da mesma realidade natural que a nova ciência
procurava estudar e explicar. O filósofo experimental quer extirpar o
dogmatismo. Ele não quer se valer de entidades inobserváveis. Por isso, vai
precisar recorrer à natureza humana pelo método experimental.

John Locke assume o programa moderno baconiano e escreve o


Ensaio sobre o entendimento humano. Todo o primeiro livro dessa obra é
consagrado à crítica ao inatismo. O conhecimento consiste na percepção da
conexão e do acordo (ou desacordo) entre ideias. Existe uma gradação entre
os conhecimentos certos e os menos certos. O mais certo deles é o obtido
por intuição; em seguida, vem o obtido por demonstração (concatenação
de ideias que se dá mediante a lógica, em que se caminha de evidência em
evidência), que não é imediato, mas precisa da mediação da lógica.

Exercícios

Questão 1. (Enade 2014)

“Por não concebermos que o corpo pense de alguma forma, temos razão de crer que toda espécie de
pensamento em nós existente pertence à alma.”

DESCARTES, R. As paixões da alma. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Adaptado.

Com essa afirmação, René Descartes deixa clara sua visão no que concerne à divisão entre a alma e
o corpo. Com tal divisão, inaugura-se uma nova problemática filosófica, frequentemente chamada, pela
filosofia contemporânea, de:

A) Problema mente-corpo.

B) Problema razão-emoção.

C) Dilema da paixão da alma.

D) Crítica da razão prática.

E) Crítica da razão pura.

Resposta correta: alternativa A.


83
Unidade II

Análise da questão

Segundo Descartes, o corpo é matéria e a mente tem natureza imaterial. Dessa forma, o pensamento
do filósofo baseia-se na separação entre mente e corpo.

Questão 2. Considere as citações e analise as afirmativas.

“Primeiramente, considero haver em nós certas noções primitivas, as quais são como originais, sob
cujo padrão formamos todos os nossos outros conhecimentos.”

René Descartes

“De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento? A isso respondo, numa palavra,
da experiência.”

John Locke

ARANHA, M. L.; MARTINS, M. H. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1993.

I – Locke e Descartes preocuparam-se com a teoria do conhecimento e ambos defendiam o princípio


do inatismo das ideias.

II – Para Locke, as experiências formam o conhecimento do homem, que é comparado a uma tábula rasa.

III – Nos trechos citados, observam-se o racionalismo cartesiano, baseado no inatismo, e o empirismo
de Locke.

É correto apenas o que se afirma em:

A) I.

B) II.

C) III.

D) II e III.

E) I e II.

Resposta correta: alternativa D.

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EMPIRISMO MODERNO

Análise das afirmativas

I – Afirmativa incorreta.

Justificativa: Locke não aceita o princípio de que há ideias inatas.

II – Afirmativa correta.

Justificativa: tábula rasa é um conceito essencial no pensamento de Locke. Segundo ele, o homem
nasce como uma tábua sem inscrições, e seu desenvolvimento cognitivo depende das experiências.

III – Afirmativa correta.

Justificativa: Descartes afirma, no trecho, que existem certas noções primitivas originais, e Locke
aponta a experiência como fonte do conhecimento.

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