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COLLA, Ana Cristina e HIRSON, Raquel Scotti.

Desmontagem Cênica como Estratégia


de Reflexão e Criação do Artista da Cena.

DESMONTAGEM CÊNICA COMO ESTRATÉGIA DE REFLEXÃO E CRIAÇÃO


DO ARTISTA DA CENA

Ana Cristina Colla


Raquel Scotti Hirson

Essa escrita, assim como a proposição daquilo que a gerou, tem origem na ação de
duas pessoas, Ana Cristina Colla e Raquel Scotti Hirson1 – Nós. Entretanto, essa pessoa
plural contém ainda ecos das vozes de Andressa, Eduardo, Elias, Gyl, Igor, Juliano, Luciana
& Luciana, Luiz Eduardo, Mariana, Marília, Raíssa e Vanessa2 e suas vozes se farão escutar
no decorrer desse texto3. Um dos pontos deflagradores, que potencializa essa experiência, foi
a leitura do livro organizado pela mexicana Ileana Diéguez, Des/Tejiendo Escenas.
Desmontajes: processos de investigación y creación. Diéguez está, portanto, muito presente
neste texto, como base, inspiração e alinhavo de ideias.
Propusemos e ministramos, junto ao programa de Pós-Graduação em Artes da Cena
da UNICAMP, no primeiro semestre de 2017, a disciplina “Desmontagem cênica como
estratégia de reflexão e criação do artista da cena”, que teve como objetivo auxiliar os alunos
a revisitarem suas trajetórias artístico-acadêmicas (abordando aspectos conceituais,
estruturais, filosóficos, estéticos, políticos e pessoais) para que construíssem vetores-memória
que os conduzissem às pesquisas de seus projetos de mestrado ou doutorado. Aulas práticas,
teóricas e compartilhamento de experiências foram fios condutores para nos alicerçarmos em
princípios da desmontagem cênica, aproveitando seu potencial de desvendar e auxiliar na
visualização de processos de pesquisa e criação, e de suas narrativas, tanto cenicamente como
organizando pensamentos que auxiliassem na escrita de dissertações/teses. O encerramento
contou com a mostra de treze desmontagens cênicas, realizadas em dois dias, na sede do
Lume Teatro, abertas ao público.

1
Atrizes-pesquisadoras do LUME, Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP e Professoras
do PPGADC-UNICAMP.
2
Discentes do PPGADC-UNICAMP, em níveis de mestrado e doutorado: Andressa Moretti Silva, Eduardo
Conegundes de Souza, Elias de Oliveira Pintanel, Gyl Giffony Araújo Moura, Igor Fernando de Jesus
Nascimento, Juliano Ricci Jacopini, Luciana Aires Mesquita, Luciana Mitkiewicz de Souza, Luiz Eduardo
Rodrigues Gasperin, Mariana Rotili da Silveira, Marilia Ennes Becker, Raíssa Caroline Brito Costa e Vanessa
Cristina Petroncari.
3
Foi solicitada a cada um dos integrantes da disciplina a elaboração de uma narrativa escrita sobre seu processo
pessoal de desmontagem. Trechos dessas reflexões se encontram inseridos no decorrer deste artigo.
Hoje é possível perceber que utilizamos, para a condução do curso, estratégias
semelhantes àquelas possíveis de se observar no rastro da criação de algumas desmontagens.
O que não é estranho, considerando a potência pedagógica e de partilha de conhecimento
presentes em seu escopo. Ao elaborar o programa da disciplina, vislumbrávamos a criação de
desmontagens como artifício para desvelar conteúdos imbricados no fazer artístico pessoal,
considerando pontos de partida, tropeços e redefinição das direções e mapeamento do
processo. Como se tratava de uma experiência piloto, decidimos que os desvios de rota
poderiam ser bem-vindos e seguimos diretrizes cartográficas para nos orientar, definindo
primeiramente procedimentos do treinamento do Lume como deflagradores de estados
corporais e atualizações de memórias que colocassem os alunos prontos a experimentar
dinâmicas que os levassem a identificar os rastros de trabalhos anteriores. Esse primeiro
impulso tinha também o objetivo de conhecermos os alunos e suas pesquisas, o que gerou
novas e subsequentes pistas, advindas das contaminações da trama criada entre nós quinze,
das demonstrações e desmontagens assistidas ao vivo e em gravações, das diretrizes
encontradas na leitura do citado livro de Diéguez e das ações que iam se criando no processo.
Uma das premissas básicas da disciplina era de não nos tornarmos diretoras das
desmontagens. A dinâmica de criação seria coletiva em certa medida (todos seriam
provocadores dos processos) e individual a um certo ponto, para que cada um pudesse
encontrar sua maneira de desmontar, entendendo que as opções estéticas e poéticas já
apresentam uma ética do fazer de cada um, conectando-se às experiências vividas e ao tema a
ser desmontado. Tornou-se cada vez mais claro que cada tema já trazia em seu bojo algumas
pistas do seu modo de vir a tona.
Os saberes da desmontagem já viviam, de alguma forma, em nosso fazer, no Lume -
percurso de quase trinta anos em que demonstrações técnicas navegavam por formatos
diversos, até que ventos suaves trouxeram os perfumes das desmontagens e ampliaram o
prazer de mergulhar nas incertezas, de realçar dificuldades, de questionar escolhas, de
provocar-nos reflexões, de assumir a corda bamba e, mais ainda, de encontrar novas
possibilidades de empoderamento de nossas vozes singulares de atriz/ator em nossas poéticas.
Limite tênue entre experiências anteriores e o novo lugar de descoberta, já que o
compartilhamento de experiências e as tentativas em busca do como fazê-lo - reforçando seu
caráter pedagógico - são desígnios deste Núcleo.
Por este motivo realizamos, em 23 de fevereiro de 2016, uma noite intitulada
"Desmontagem", como parte do V Simpósio Internacional Reflexões Cênicas
Contemporâneas (LUME e PPGADC/IA - UNICAMP), na qual foram apresentadas as
desmontagens de Tânia Farias4 - Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz e Teresa Ralli5 -
Grupo Cultural Yuyachkani (Peru), tendo como debatedoras, Ana Cristina Colla (LUME) e
Mara Lucia Leal (UFU).
Como o reviver dos passos não acontece de maneira cronológica, o mapa do nosso
território seguirá repleto de contaminações, atualizando memórias e anotações de Nós e seus
ecos. Os processos de desmontagem vão menos no sentido de confirmar modelos e mais no
sentido de problematizar e arriscar. De acordo com Diéguez, "[...] envolvem uma jornada na
direção oposta ao resultado final, um 'desarranjo da construção', uma problematização dos
cenários teóricos, técnicos, poéticos e espirituais que se foram tecendo durante a jornada
individual e coletiva."6 (DIÉGUEZ, 2009, p.15)
Premissas postas, damos a largada da desmontagem, agora em palavras, desse
processo de criação de desmontagens. Agarre-se onde der, se der!
CAMADA 1- Conexão e Reconhecimento
Decidimos iniciar as aulas compartilhando fazeres de atuação; espaço afetivo, o
corpo-em-ação como disparador dos primeiros encontros. Selecionamos alguns elementos do
treinamento do Lume e sua didática de transmissão para criarmos juntos um estado de
atenção que pudesse introduzir os alunos no universo prático da desmontagem e, ao mesmo
tempo, criar afinidade, relação e confiança entre nós. Cantamos em círculo. Aquecemos a
coluna energicamente, rotacionando-a, acelerando o ritmo até o limite, aterramos e
encontramos nossas vozes num uníssono grave dos lutadores de sumô, A - I - U - Ê - Ô! Para
exercitar o estado de alerta e de conexão entre nós, andamos em círculo mantendo uma fila
equidistante na qual deveríamos parar, mudar de direção e saltar, todos ao mesmo tempo (que
chamamos de roda alerta).
Ativos, atentos, abertos para atualizarmos memórias, focamos o olhar que percebe a
si próprio, que observa os colegas, que vê detalhes da sala de trabalho, que olha fora e que
adentra no desconhecido da imagem daquilo que, de tão distante, não se avista mais.
Paradoxalmente, o não avistar lança adiante as memórias (vividas ou talvez não. Remotas ou
recentes) e Nós provocamos imagens que pudessem remetê-los, nesse fluxo de memórias, às
possibilidades do que desmontar. Com olhos entreabertos, olhar nebuloso e terceiro olho

4
"Evocando os mortos - Poéticas da Experiência"
5
A desmontagem de Antígona
6
[...] implican un recorrido en sentido contrario al resultado final, un 'desarreglo de la construcción', una
problematización de los escenarios teóricos, técnicos, poéticos, espirituales que se fueron tejiendo durante el
viaje individual y colectivo. (DIÉGUEZ, 2009, p. 15)
ativado, criam uma atmosfera "lunar" sobre as memórias, usando uma imagem de Diéguez
quando se refere aos textos compilados em seu livro.
As desmontagens ganharam, assim, um primeiro formigamento, uma primeira
atualização, mas ainda condensada em corpos quase inertes. Propusemos um exercício
individual de criação ancorado em algumas diretrizes chamadas, por Cristiane Zuan Esteves,
do grupo paulistano OPOVOEMPÉ, de "consígnias". Ela mesma contou, em intercâmbio
com o Lume (Projeto Rumos Teatro Itaú Cultural 2010/2011), que de tanto ouvir a palavra
francesa "consigne" durante estudos na escola de Jacques Lecoq e com Ariane Mnouchkine,
assumiu seu aportuguesamento, ainda que a palavra não exista em nosso dicionário.

Utilizamos as consígnias para propor dinâmicas, estruturas de improvisação e,


sobretudo, como itens na criação de composições.
Uma consígnia é o ponto de apoio de onde se pode dar o salto criativo.
É a regra do jogo e a proposição que possibilita o jogo.
Um regulador e um provocador de ações.
(https://lumeopovoempe.wordpress.com/2011/08/29/o-misterio-da-consignia/)

As nossas improvisações continham, como consígnias, uma frase que resumisse o


processo que seria desmontado; uma canção afim; uma pausa longa; um minuto de ações
executadas em ritmo acelerado; uma crise, angústia ou questionamento; reação a qualquer
interferência proposta por Nós e tempo máximo de quatro minutos de apresentação.
As experimentações ainda eram confusas e caóticas. E apesar do terreno movediço,
todos respondiam prontamente às proposições. Ficou claro, desde aquele momento, que nos
perderíamos juntos, com prazer.
CAMADA 2- Mapeando o território
Alargamento de campo afetivo e sintetização fundamentais para darmos o passo
seguinte: cada um selecionou e trouxe materiais a respeito do processo que pretendia
desmontar, desvelar, revisitar. Não menos afetivo, introduzimos-nos no campo das
materialidades documentais. Partindo das provocações: o que guarda minha história
tridimensionalmente? O que seriam esses materiais? Imagens, textos, livros, objetos, músicas,
vídeos, etc. Foi o momento de revisitar documentos e diários ou mesmo de escrever o que
ainda não havia brotado em escrita. Como trazê-los? Cada material pede a sua maneira de
estar acomodado ou apresentado: assemblagens, altares, cantinhos, malas, caixas, painéis, etc.
O importante era que cada um dedicasse um tempo para refletir sobre as pegadas deixadas de
algum processo, fosse de que tamanho fosse, e juntasse esses materiais para apresentá-los ao
restante do grupo.
Já se percebia a urgência do tempo, pois se tratava de uma disciplina a ser realizada
em um quadrimestre, com encontros uma vez por semana. Criam-se os meios! Os alunos se
organizaram em grupos de três ou quatro pessoas e, desta forma, além de terem
interlocutores mais diretos, era possível trabalharmos simultaneamente em uma mesma sala
ou ocupando espaços possíveis da Sede do Lume. Assim, no momento da apresentação dos
materiais trazidos de casa - embora feita para a turma toda - os membros daquele grupo
redobravam a atenção e preparavam perguntas e provocações a serem feitas posteriormente.
As apresentações dos materiais foram reveladoras. Cada uma das bagagens que
aterrissou trouxe consigo seu repertório próprio, conectado às histórias que as compunham -
da maneira de falar à maneira de se colocar no espaço. Chegavam diferentes no tempo, na
temperatura e, inequivocamente, arrepiavam. Desvelavam processos individuais, processos
individuais no contexto de espetáculos coletivos, cenas, pesquisas acadêmicas, pesquisas de
campo, trajetórias de vida no teatro; o olhar através das lentes da câmera fotográfica, através
da dramaturgia, através da atuação. Percebia-se, no ato da mostra, o reconhecimento de
caminhos trilhados atrelados a um desejo de trilhar, ou seja, o distanciamento do vivido
gerava as possibilidades de relatar e, simultaneamente, projetar escolhas e modus.
Provocados pelos ecos de Gyl Giffony, um dos alunos, começamos a pensar as desmontagens
como possíveis construções de arqueologias do futuro, um dispositivo através do qual se
projetam possibilidades de criações futuras.

“O primeiro contato que tive com o termo arqueologia do futuro deu-se no ano de
2015, em meio ao processo de pesquisa "Um corpo em final de festa" que então
desenvolvíamos na Inquieta Cia., grupo o qual integro. À época, iniciávamos o
trabalho em sala, tendo como interlocutor o coreógrafo, bailarino e performer
Marcelo Evelin.
Antes mesmo de fazermos exercícios e reflexões profundas sobre o que nos movia
naquele projeto, uma das primeiras proposições de Marcelo foi solicitar que cada um
de nós seis escrevêssemos detalhadamente como pensávamos e víamos o espetáculo
que iriamos estrear futuramente. Pediu que nos detivéssemos em minúcias,
descrevendo cada acontecimento, os elementos estruturantes da cena, detalhando
ponto a ponto, instante a instante o que e como era a montagem no dia de sua estreia.
A esse exercício de pôr no papel uma perspectiva futura que tornava pública as
intenções e visões de cada um de nós Marcelo chamou arqueologia do futuro.” (Gyl
Giffony)

A prática em sala, ativando estados corporais, prosseguiu com o diferencial que,


naquele ponto, cada um tinha alguns objetos com os quais trabalhar. Mantendo a premissa de
um aquecimento ancorado em práticas de treinamento do Lume (desdobramentos da roda
alerta citada anteriormente incluindo outras provocações), chegamos a uma dança com até
três desses objetos, em princípio cada qual com seus próprios materiais e depois em duplas.
As duplas se juntaram costas com costas e falaram, simultaneamente, os pontos de
sua desmontagem, falando sem parar e sem parar para questionar. Em alguns momentos um
falava e o outro ouvia, mas mantendo um pulso forte. Depois selecionaram três pontos
fundamentais de tudo o que havia sido dito e compartilharam com o outro, em quietude. No
final cantaram, sussurradamente, uma canção que os conectava à desmontagem.
“Em desmontagem, o relato ou confissão não se dá só pela voz, mas os testemunhos
estão nos aspectos materiais e sensíveis da cena, em poéticas que advindas de
ocorrências e percursos anteriores impregnam o presente de auras da experiência.”
(Gyl Giffony)

Essas primeiras tentativas de narração, aliadas a um pensamento sobre o passado


atualizado com projeções para o futuro, foram nos dando impulso e criando pistas para
vislumbres do potencial do que teríamos pela frente.

CAMADA 3- Ampliando referências


Enquanto isso, deixamo-nos contaminar. Foram duas as demonstrações do Lume
apresentadas aos alunos: Quando os subtextos são textos (Raquel Scotti Hirson) e Prisão para
a Liberdade (Carlos Simioni)7. Todos os alunos já haviam assistido, em outras ocasiões, a
desmontagem “SerEstando Mulheres” (Ana Cristina Colla) e como estava presente na
memória de todos, decidimos não reapresentá-la. Em vídeo, juntos, assistimos a um trecho da
desmontagem Confissões, de Ana Correa, do grupo Yuyachkani (Peru)8. Compartilhamos,
ainda, dois textos que tratam de processos de criação de demonstrações/desmontagens9, além
de constar da indicação bibliográfica da disciplina a leitura do livro de Diégues (citado
anteriormente) e a edição da Revista Rascunho dedicada ao tema10, já que um dos objetivos
do curso - ministrado em um programa de pós-graduação - era também a discussão sobre
como criar desmontagens textuais.
A respeito da demonstração Quando os subtextos são textos, apontaram-se: a
possibilidade de visualização da sistematização de procedimentos; a presença da memória

7
http://www.lumeteatro.com.br/repertorio-artistico/demostracoes-tecnicas#sub-top
8
http://hemisphericinstitute.org/hemi/pt/enc14-performances/item/2326-enc14-performances-acorrea-
confessions
9
Um dos textos ainda não foi publicado e o outro se encontra em
<https//www.even3.com.br/anais/IXCongressoABRACE/32599-QUANDO-OS-SUBTEXTOS-SAO-TEXTOS>
10
Revista Rascunho. Dossiê Desmontagem. Vol.1. N.1. Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia,
jan/jun 2014
como parte desses procedimentos, desvelando uma linha pessoal e autobiográfica; desafios
diferentes dos do espetáculo e a possibilidade de aprofundamento em temas iniciados com a
criação do mesmo; não se trata de uma tentativa de atualização fiel de memórias, mas sim de
uma nova criação que permite um alargamento do campo visitado (nova organização
poética); o espetáculo havia deixado lacunas que foram trazidas à tona no momento de
revisita ao material, tanto o que o originou quanto o que o constituiu como forma teatral.
“É bem amplo o leque de possibilidades de uma desmontagem. É interessante
ressaltar como esse termo é escorregadio. Ao longo das aulas e das discussões
mediadas pelas professoras Raquel Scotti e Cris Colla buscávamos (nós, a turma de
Desmontagem Cênica) entender o que tal palavra nos dizia. O resultado é que cada
um tinha uma percepção do que a palavra “desmontagem” significava. Mas por que
tal dificuldade? A meu ver, a razão se dá em função de estarmos desvelando
processos criativos múltiplos. Não há parâmetros para definir as inspirações, as
intenções, as escolhas, as interpretações etc. Se há, começo a desconfiar seriamente:
subjetividade direcionada deixa de ser subjetividade.” (Igor Nascimento)

Nessa fase pulsavam questões sobre a diferença entre “montar” e “desmontar”.


Existe alguma diferença entre montar/criar um espetáculo e desmontá-lo, já que todos se
sentiam pulsando como quando criavam suas obras? As dúvidas, questionamentos e decisões
se assemelhavam em vários aspectos nos dois processos. O que os diferenciava? Discutíamos
sobre como, a partir do olhar provocado pela desmontagem, era possível reconhecer pegadas,
escolhas, desejos, presentes no caminho trilhado no momento da montagem inicial, só que
agora com um maior distanciamento. Apresentava semelhanças com a criação de uma obra,
contudo nos conduzia a novos agenciamentos e desdobramentos da obra a qual se originou.
Com a diferença de que ela propunha uma nova relação com o público ao revelar momentos
íntimos do processo criativo em suas diferentes instâncias, tendo um forte potencial
pedagógico e de partilha de conhecimento.
“Com características de performance pedagógica, a noção de desmontagem carrega
em si formatos dinâmicos que somente se especificam nas matrizes poéticas de cada
artista ou grupo que a toma como procedimento. Assim, intenciono pensá-la a partir
da pedagogia da cena, como meio de partilha do conhecimento teatral e seus
elementos, fazendo emergir subterrâneos e caminhos labirínticos de escolhas,
processos e trajetórias em arte, que, em regra, não são publicizados. E foi dessa
forma que Ana Cristina e Raquel impulsionaram a nós, alunas e alunos, na criação
de nossas desmontagens, com ênfase no seu teor cênico-pedagógico, que, em nosso
caso, de artistas-pesquisadores, estava em pinçar de nosso repertório ou trajetória
índices de nossas existências e investigações no teatro, que nos levava a nossas
pesquisas de Pós-Graduação.” (Gyl Giffony)
“Primeira inquietação: ao desmontar, estaria criando uma ficção? Mesmo sendo uma
revelação de processo, ao narrar o acontecimento “cru”, estaria “cozendo” novas
temperaturas para o já criado?
Segunda inquietação: desmontar o diretor! O olhar de fora da cena. Desmontar as
provocações, deveras. Para isso desmontar o si-de-mim-provocador? O que me
provoca para provocar?” (Juliano Jacopini)

CAMADA 4 - O quê
Mesmo reduzindo, ficou evidente que os três pontos selecionados por cada um,
como síntese do tema a ser desmontado, ainda continham um universo amplo demais a ser
desvelado. Neste ponto, percebemos a dificuldade em recortar o que desmontar e a
descoberta do o quê tornou-se nossa urgência. Desafio também para Nós, condutoras de um
processo múltiplo, com temas e diferenças de área de interesse, escolhas particulares, projetos
de pesquisa variados, pessoas com idades e experiências distintas cursando mestrados e
doutorados em etapas diferentes de integralização.
O quê? Pistas:
- quais segredos desejo revelar, quais aspectos trazer para o visível;
- atualização daquilo que, ainda hoje, parece ter sentido ser narrado;
- camadas: pessoalidades, fatos históricos, dados e documentos, testemunhos,
contextos, inspirações, elementos técnicos;
- envolvimento afetivo;
- memória (recriação/atualização);
- definição de um macro tema (samba, homossexualidade, feminicídio,
violência política, foram alguns temas que circularam) e a maneira como eu
caibo e me insiro nele, o que está à frente, o que se explicita;
- focar os gatilhos do processo criativo inicial: âncoras, pontos de apoio,
pegadas;
- identificar passagens do processo a ser desmontado;
- considerar o tempo possível de realização no quadrimestre ao se fazer as
escolhas, sem a pretensão de dar conta do todo de uma experiência criativa.
“Desde nosso primeiro encontro de “Desmontagem cênica como estratégia de
reflexão e criação do artista da cena,” nos foi solicitado que trouxéssemos os
materiais da desmontagem (imagens, textos, livros, objetos, músicas, vídeos etc),
bem como formulação de questionamentos e reflexão sobre “as pegadas deixadas de
algum processo”. Pegadas deixadas de algum processo. Nossa, abriu-se um tanto!
Poderia trazer as marcas de minha viagem ao Oriente, minhas memórias da infância,
meus amores desfeitos. Mas meus olhos de coruja se focaram na pesquisa do
doutorado e inicio, então, com perguntas a uma das fases da alquimia: qual é a
nigredo que quero refletir, denunciar, evidenciar, trazer à cena? O que em mim, no
meu microcosmo dói em sofrimento com ressonância no macrocosmo? Quem se
mortifica na nigredo? Quem é obscurecido permanecendo nas sombras? São tantos.
Eu sei. Mas qual a pegada em mim? E ampliando, em minha alma brasileira?”
(Luciana Aires Mesquita)

“Nesse sentido, quando mergulho no terreno da Desmontagem, não pratico


simplesmente uma volta ao tempo. Não se trata de mostrar como isso ou aquilo foi
feito. Isso pode ser uma opção, porém a lâmina do desmonte corta mais fundo.
Revela mais do que um catálogo ou apanhado geral de como isso ou aquilo foi feito.
Evocar o que você fez e o que lhe trouxe até aqui, ou apenas uma parte disso, é um
trajeto incerto e cheio de armadilhas. Decidi, pois, escavar o avesso de alguns textos
que escrevi com cuidado, não com medo daquilo que sabia que ia encontrar, ou seja,
os erros, as coisas inacabadas, os acertos, mas daquilo que podia cair sobre mim –
essa parte da memória que está lá, mas que ainda possui algo de desconhecido.”
(Igor Nascimento)

Partindo-se do princípio de que a desmontagem não segue modelos prontos e que o


caminho se dá no fazer, chegamos ao ponto de ampliar ainda mais a escuta ao processo para,
nele próprio, encontrar as pistas para o passo seguinte: quais eleições estéticas e poéticas
eleger?
CAMADA 5 - O Como
As estratégias seriam particulares e os suportes usados também, entretanto, o que
nos motivou na disciplina foi a possibilidade de condução de um caminho de criação e, por
isso, queríamos provocá-los e atiçá-los com sugestões a cada nova etapa. Reforçávamos a
ideia de cada um se colocar em um exercício de narrativa que partisse da memória e que,
portanto, tivesse uma cronologia particular. Em alguns casos os figurinos, objetos e textos
eram os mesmos do processo anterior, mas isso não seria indicativo de uma estética
semelhante à do vivido; não haveria preocupação com essa fidelidade e, pelo contrário,
esperava-se que pudessem se lançar em uma nova criação.
“Por ser terreno tão poroso, discutir a forma de como apresentar isso, de como expor
tais fatores de forma poética, é um meio e um fim ao mesmo tempo. Tentar
desmontar o que nos moveu no passado é uma projeção do pensamento, da criação,
da subjetividade, da interpretação. Impossível remontar nosso olhar antigo sem os
olhos de agora. O passado de nossas escolhas não nos revisita, assim, como se fosse
um arquivo. Por isso pensar em uma forma de expressar isso, de criar uma
apresentação (e não um seminário ou uma palestra) é também uma maneira de
“fuçar” esse material, sacudi-lo, olhá-lo por diversos ângulos, propor-lhe questões da
mesma forma que fazemos como estamos em processo de criação de algo “novo”,
partindo do “zero” – as aspas são porque nada presumidamente novo ou que começa
do zero acontece sem que utilizemos uma parte daquilo que já trazemos conosco.”
(Igor Nascimento)

Partimos, então, de uma pergunta: como eu convoco?


Cada um trouxe uma proposta prática de como introduzir o tema escolhido e como
realizar o primeiro contato com quem assiste, como convocar, como trazer para a cena, como
introduzir a maneira de compartilhar, como criar o primeiro contato com o ambiente - definir
de onde se deseja falar. Que tipo de relação quero estabelecer? direta/indireta? confessional?
expositiva? íntima? até onde quero expor? Nos pequenos grupos, cada uma das ações era
discutida e lançava-se um "toró" de perguntas que ajudava cada um a sair de seu lugar
comum e a ter clareza e firmeza das escolhas que iam se fazendo. As desmontagens e
demonstrações assistidas foram exemplos inspiradores para essa primeira convocatória.
Salientamos aqui que todos esses procedimentos eram maneiras de juntar propostas e
possibilidades mas, é claro, tratando-se de processos criativos, as definições iam se refazendo
no percurso do tempo e das novas camadas que se sobrepunham.
Depois vieram os mapas, como mais um procedimento da quinta camada. Os mapas
nos dariam pistas da continuidade da desmontagem após a primeira experimentação de
convocatórias. Construídos a partir de uma dinâmica corporal, eram desenhos, linhas,
palavras, frases, rascunhados num imenso papel, que projetavam (arqueologia do futuro com
atualizações do passado) estações possíveis de ancoragem.
Em um primeiro momento serviram para reconhecimento próprio, mas logo foram
compartilhados nos grupos. Experimentamos um primeiro compartilhamento em formato de
comunicação, o que não desconsidera afetividades, mas que seria uma etapa a ser extrapolada
para que as "intimidades" tomassem a frente. Em um segundo momento colocou-se uma lupa
nas estações para que elas pudessem criar raízes, ser destrinchadas e delas saltarem histórias
recônditas. Desse enraizamento em uma estação poderia brotar a desmontagem inteira.
Com esse recorte feito, voltamos ao primeiro exercício dessa camada, então revisto e
alargado. Cada um apresentou para a turma toda, em dez minutos, a sua proposta cênica de
convocatória e relatou aquilo que projetava como continuidade, incluindo a utilização de
projeção, sonorização, iluminação, etc. Foi o momento em que nos vimos e reconhecemos o
potencial que tinham as desmontagens.
Encerramos essa etapa revisitando os mapas. Após as apresentações e comentários,
cada um pode olhar para o mapa, recolocar os objetos trazidos e ressignificá-los, deixando
transparecer aquilo que era mais fundamental. Nos grupos, receberam indicação de uma
fragilidade (que merecia atenção) e um ponto forte, que deveria ser mantido.
CAMADA 6 – montar a desmontagem
Começam a surgir as questões: em que espaço acontece a ação? De que maneira usar
o espaço? Questões que seguem com as escolhas de figurinos, adereços, sonorização,
suportes técnicos, etc. É uma criação artística, repleta, portanto, de desassossegos
semelhantes aos da criação de espetáculos. Depois das diversas partilhas em grupo, essa etapa
aconteceu de maneira mais individual e Nós éramos as interlocutoras. As interlocuções
tiveram uma primeira fase em que cada um ocupava um determinado espaço e
“circulávamos” por esses espaços-estações-desmontagens, ajudando-os nas prospecções. Na
segunda fase dividimos a turma em dois grupos e cada uma de Nós teve uma hora para,
individualmente, dialogar sobre as escolhas feitas até aquele momento e contribuir com a
última etapa de concepção das desmontagens.
As escolhas finais couberam a cada um eleger, como forma de empoderamento de
uma narrativa pessoal.
Chegamos assim à nossa última etapa.
CAMADA 7- encontro com o público
Essa foi uma escolha tomada por todos: abrir nossas experimentações para além dos
participantes da disciplina, também como um dispositivo desestabilizante de nossas certezas.
Essa camada extra, não prevista inicialmente, trouxe uma ampliação da tensão e uma
desacomodação no aconchego “familiar” que havíamos construído no decorrer dos meses
anteriores. A exposição de conteúdos tão caros, carregados de afetividade, para olhares
externos, redimensionou as poéticas apresentadas.
Após cada dia de apresentação, no aconchego da sala do Lume, entre almofadas e
petiscos, partilhávamos impressões, costurando reflexões sobre os potenciais do
procedimento da desmontagem.
Camada 8 - Impressões
A heterogeneidade das desmontagens de treze artistas da cena não caberia nessa
descrição, mas apontamos algumas percepções. Houve desmontagens de espetáculos, cenas
teatrais, pesquisas de campo, trajetórias de vida/arte (algumas delas, vividas em grupo,
ganharam o olhar recriado de apenas uma pessoa). Entretanto, cada uma delas com volumes
de camadas afetivas, políticas e de pesquisa muito diversas, além de variadas estratégias de
apresentação. Houve a desmontagem de um tema de pesquisa, da Andressa, que desmontou
sua busca pelo entendimento do que seja presença cênica. "[...] se o conceito de desmontagem
é optar por mostrar o processo de trabalho e não o resultado, fazer visível a experiência do
processo, destecer a memória, desmontar de alguma maneira esse vivido, por que não
desmontar a trajetória de busca pela presença?" (Andressa Moretti). Igor, dramaturgo,
desmontou fragmentos de texto escritos por ele, procurando dispositivos que se repetiam em
sua escrita:
“A desmontagem de meu processo de criação abriu uma possibilidade de explorar
caminhos já feitos. Nesse retorno, novas rotas se abrem, dúvidas surgem e volto
àquele estado de caos do início de cada processo de criação. Não estava
simplesmente refazendo um percurso artístico, estava, também, em busca de formas
de expressá-lo. Selecionar o material, lavrá-lo, burilá-lo, ensaiá-lo, sofrer de frios da
barriga e de arrepios na pele... Tudo volta e só assim novas camadas são reveladas.”
(Igor Nascimento)

No caso de Gyl, teve a aposta na arqueologia do futuro, como já ressaltado:


“Nesta desmontagem eu não quero falar sobre uma técnica de teatro, sobre uma das
montagens que fiz e seus processos, ou mesmo de como venho seguindo no teatro
uma pesquisa... Esta desmontagem pode ser vista como uma montagem de uma peça
que acontece em mim; ou uma desmontagem das muitas montagens que eu queria ter
feito e não fiz, dos inúmeros insights, inquietações que eu pensei em levar para a
cena, e não os concretizei. Ou ainda pode vir a ser uma desmontagem de uma
montagem teatral que jamais acontecerá, ou mesmo que está se dando neste exato
momento. Uma arqueologia do futuro. Esta é uma desmontagem não para falar dos
mestres teatrais, de suas contribuições, ou da importância que tem sido nossos
trabalhos, nossos esforços no teatro, e aqui nem falarei mesmo do meu trabalho.”
(Gyl Giffony)

Mariana, fotógrafa e atriz:


“No meu caso específico, a desmontagem foi mais uma perfurada no campo que
interliga artes da cena e fotografia e me ajudou a organizar a pesquisa
transbordando, inclusive, para a disposição dos capítulos da dissertação. Tive de
desenvolver estratégias para pensar as coisas juntas e não dividir a energia. Precisei
redimensionar os cortes: muita coisa caiu durante esse exercício. Me senti provocada
a síntese.” (Mariana Rotili)

Há também a atualização da perspectiva do vivido e sua conjugação com os desejos


atuais de como dar forma às encenações. É o caso de Raíssa e Luciana Mitkiewicz que,
embora ancoradas em histórias de vida/pesquisa anteriores, as redimensionaram para os
estudos e estéticas que as fizeram buscar o doutorado neste programa da UNICAMP.
“Nas idas e vindas deste material, me deparei com textos, poemas, imagens,
desenhos, rascunhos, escritas, desabafos, questões e muitos outros elementos que
permearam a criação do produto do mestrado que foi escolhido para ser revisitado.
No entanto, o que não foi esperado por mim, é que durante estes retornos, eu
também tivesse relances, lapsos e fragmentos de memórias de minha vida pessoal e
profissional que somente agora percebo que influenciaram também para a
construção de alguns elementos da cena e acima de tudo de algumas escolhas
posteriores que me fizeram enveredar pela pesquisa e produção de arte para espaços
não convencionais.” (Raíssa Costa)

Ou revisitar um espetáculo coletivo, com vozes múltiplas e ancorá-lo no momento


presente a partir de uma perspectiva pessoal ampliada, como fez Luciana Mitkiewicz :
“Como decomposição, passa-se de um estado a outro; morre-se um pouco, destrói-se
mais uma vez para transformar aquela matéria formada a partir de novos propósitos,
reconstruindo a mesma busca por se compreender os motivos do despedaçamento da
boneca quebrada agora em outros contextos, os quais criam uma nova modalidade
cênica, ainda mais radical no tocante ao protagonismo atoral, à ação de dar voz à
própria imaginação do ator enquanto idealizador, produtor de ideias e de signos
cênicos.

Percebemos que, no contexto de uma pós-graduação, com projetos em pleno


encaminhamento, revisitar o vivido estava sempre conectado com os desejos de futuro e com
as contaminações positivas de tudo o que estava sendo pensado, lido e compartilhado com
professores e colegas. Isso pode ter sido fator gerador da potência poética que observamos
nos resultados e nas reações e comentários dos espectadores.
As estratégias se deram no caminho e, por isso, o exercício de escuta foi
fundamental para que cada um desvelasse e reconhecesse a obra que já estava presente;
bastava reconhecer o caminho trilhado, seus desvios, suas pegadas e - com coragem -
atualizar as memórias vividas e as fantasiadas, já que não identificaremos o limite tênue entre
uma e outra.
Chegamos ao final reforçando nossa intuição inicial, no sentido da desmontagem ser
um procedimento metodológico que amplia possibilidades de partilha e reflexão sobre
processos de pesquisa, atuando nas dimensões pedagógicas, poéticas e narrativas (da escrita
ou da cena). Provoca um olhar caleidoscópico, abrindo novos e infinitos ângulos. Um olhar
horizontal, não impositivo ou direcionador, que instiga a percepção sobre o que cada um tem
a partilhar.

BIBLIOGRAFIA:
DIÉGUEZ, Ileana (comp.). Des/Tejiendo Escenas. Desmontajes: processos de
investigación y creación. Cidade do México: Universidade Iberoamericana, 2009.
HIRSON, Raquel Scotti. QUANDO OS SUBTEXTOS SÃO TEXTOS.. In:
Memória ABRACE XVI - Anais do IX Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e
Pós-Graduação em Artes Cênicas. Anais...Uberlândia(MG) UFU, 2017. Disponível em:
<https//www.even3.com.br/anais/IXCongressoABRACE/32599-QUANDO-OS-
SUBTEXTOS-SAO-TEXTOS>.
Revista Rascunho. Dossiê Desmontagem. Vol.1. N.1. Universidade Federal de
Uberlândia, Uberlândia, jan/jun 2014
Trabalhos finais citados, apresentados como conclusão da disciplina:
COSTA, Raíssa Caroline Brito Costa. Coxias (In)visíveis: uma desmontagem de
percurso.
JACOPINI, Juliano Ricci. Desmontagem do Si.
MESQUITA, Luciana Aires. Nigredo – um primeiro exercício para uma
performance/manifesto
MOURA, Gyl Giffony Araújo. A desmontagem cênica como arqueologia do futuro.
NASCIMENTO, Igor Fernando de Jesus. DE-SUTURAS- Desmontagem Cênica.
ROTILI, Mariana. IMA- desmontada/ dissecada.
SILVA, Andressa Moretti. Os presentes da presença: desmontagem
SOUZA, Luciana Mitkiewicz de. Destruindo para reconstruir, desmontando para
remontar.

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