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Desmontagem Cênica Como Estratégia de Reflexão e Criação
Desmontagem Cênica Como Estratégia de Reflexão e Criação
Essa escrita, assim como a proposição daquilo que a gerou, tem origem na ação de
duas pessoas, Ana Cristina Colla e Raquel Scotti Hirson1 – Nós. Entretanto, essa pessoa
plural contém ainda ecos das vozes de Andressa, Eduardo, Elias, Gyl, Igor, Juliano, Luciana
& Luciana, Luiz Eduardo, Mariana, Marília, Raíssa e Vanessa2 e suas vozes se farão escutar
no decorrer desse texto3. Um dos pontos deflagradores, que potencializa essa experiência, foi
a leitura do livro organizado pela mexicana Ileana Diéguez, Des/Tejiendo Escenas.
Desmontajes: processos de investigación y creación. Diéguez está, portanto, muito presente
neste texto, como base, inspiração e alinhavo de ideias.
Propusemos e ministramos, junto ao programa de Pós-Graduação em Artes da Cena
da UNICAMP, no primeiro semestre de 2017, a disciplina “Desmontagem cênica como
estratégia de reflexão e criação do artista da cena”, que teve como objetivo auxiliar os alunos
a revisitarem suas trajetórias artístico-acadêmicas (abordando aspectos conceituais,
estruturais, filosóficos, estéticos, políticos e pessoais) para que construíssem vetores-memória
que os conduzissem às pesquisas de seus projetos de mestrado ou doutorado. Aulas práticas,
teóricas e compartilhamento de experiências foram fios condutores para nos alicerçarmos em
princípios da desmontagem cênica, aproveitando seu potencial de desvendar e auxiliar na
visualização de processos de pesquisa e criação, e de suas narrativas, tanto cenicamente como
organizando pensamentos que auxiliassem na escrita de dissertações/teses. O encerramento
contou com a mostra de treze desmontagens cênicas, realizadas em dois dias, na sede do
Lume Teatro, abertas ao público.
1
Atrizes-pesquisadoras do LUME, Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP e Professoras
do PPGADC-UNICAMP.
2
Discentes do PPGADC-UNICAMP, em níveis de mestrado e doutorado: Andressa Moretti Silva, Eduardo
Conegundes de Souza, Elias de Oliveira Pintanel, Gyl Giffony Araújo Moura, Igor Fernando de Jesus
Nascimento, Juliano Ricci Jacopini, Luciana Aires Mesquita, Luciana Mitkiewicz de Souza, Luiz Eduardo
Rodrigues Gasperin, Mariana Rotili da Silveira, Marilia Ennes Becker, Raíssa Caroline Brito Costa e Vanessa
Cristina Petroncari.
3
Foi solicitada a cada um dos integrantes da disciplina a elaboração de uma narrativa escrita sobre seu processo
pessoal de desmontagem. Trechos dessas reflexões se encontram inseridos no decorrer deste artigo.
Hoje é possível perceber que utilizamos, para a condução do curso, estratégias
semelhantes àquelas possíveis de se observar no rastro da criação de algumas desmontagens.
O que não é estranho, considerando a potência pedagógica e de partilha de conhecimento
presentes em seu escopo. Ao elaborar o programa da disciplina, vislumbrávamos a criação de
desmontagens como artifício para desvelar conteúdos imbricados no fazer artístico pessoal,
considerando pontos de partida, tropeços e redefinição das direções e mapeamento do
processo. Como se tratava de uma experiência piloto, decidimos que os desvios de rota
poderiam ser bem-vindos e seguimos diretrizes cartográficas para nos orientar, definindo
primeiramente procedimentos do treinamento do Lume como deflagradores de estados
corporais e atualizações de memórias que colocassem os alunos prontos a experimentar
dinâmicas que os levassem a identificar os rastros de trabalhos anteriores. Esse primeiro
impulso tinha também o objetivo de conhecermos os alunos e suas pesquisas, o que gerou
novas e subsequentes pistas, advindas das contaminações da trama criada entre nós quinze,
das demonstrações e desmontagens assistidas ao vivo e em gravações, das diretrizes
encontradas na leitura do citado livro de Diéguez e das ações que iam se criando no processo.
Uma das premissas básicas da disciplina era de não nos tornarmos diretoras das
desmontagens. A dinâmica de criação seria coletiva em certa medida (todos seriam
provocadores dos processos) e individual a um certo ponto, para que cada um pudesse
encontrar sua maneira de desmontar, entendendo que as opções estéticas e poéticas já
apresentam uma ética do fazer de cada um, conectando-se às experiências vividas e ao tema a
ser desmontado. Tornou-se cada vez mais claro que cada tema já trazia em seu bojo algumas
pistas do seu modo de vir a tona.
Os saberes da desmontagem já viviam, de alguma forma, em nosso fazer, no Lume -
percurso de quase trinta anos em que demonstrações técnicas navegavam por formatos
diversos, até que ventos suaves trouxeram os perfumes das desmontagens e ampliaram o
prazer de mergulhar nas incertezas, de realçar dificuldades, de questionar escolhas, de
provocar-nos reflexões, de assumir a corda bamba e, mais ainda, de encontrar novas
possibilidades de empoderamento de nossas vozes singulares de atriz/ator em nossas poéticas.
Limite tênue entre experiências anteriores e o novo lugar de descoberta, já que o
compartilhamento de experiências e as tentativas em busca do como fazê-lo - reforçando seu
caráter pedagógico - são desígnios deste Núcleo.
Por este motivo realizamos, em 23 de fevereiro de 2016, uma noite intitulada
"Desmontagem", como parte do V Simpósio Internacional Reflexões Cênicas
Contemporâneas (LUME e PPGADC/IA - UNICAMP), na qual foram apresentadas as
desmontagens de Tânia Farias4 - Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz e Teresa Ralli5 -
Grupo Cultural Yuyachkani (Peru), tendo como debatedoras, Ana Cristina Colla (LUME) e
Mara Lucia Leal (UFU).
Como o reviver dos passos não acontece de maneira cronológica, o mapa do nosso
território seguirá repleto de contaminações, atualizando memórias e anotações de Nós e seus
ecos. Os processos de desmontagem vão menos no sentido de confirmar modelos e mais no
sentido de problematizar e arriscar. De acordo com Diéguez, "[...] envolvem uma jornada na
direção oposta ao resultado final, um 'desarranjo da construção', uma problematização dos
cenários teóricos, técnicos, poéticos e espirituais que se foram tecendo durante a jornada
individual e coletiva."6 (DIÉGUEZ, 2009, p.15)
Premissas postas, damos a largada da desmontagem, agora em palavras, desse
processo de criação de desmontagens. Agarre-se onde der, se der!
CAMADA 1- Conexão e Reconhecimento
Decidimos iniciar as aulas compartilhando fazeres de atuação; espaço afetivo, o
corpo-em-ação como disparador dos primeiros encontros. Selecionamos alguns elementos do
treinamento do Lume e sua didática de transmissão para criarmos juntos um estado de
atenção que pudesse introduzir os alunos no universo prático da desmontagem e, ao mesmo
tempo, criar afinidade, relação e confiança entre nós. Cantamos em círculo. Aquecemos a
coluna energicamente, rotacionando-a, acelerando o ritmo até o limite, aterramos e
encontramos nossas vozes num uníssono grave dos lutadores de sumô, A - I - U - Ê - Ô! Para
exercitar o estado de alerta e de conexão entre nós, andamos em círculo mantendo uma fila
equidistante na qual deveríamos parar, mudar de direção e saltar, todos ao mesmo tempo (que
chamamos de roda alerta).
Ativos, atentos, abertos para atualizarmos memórias, focamos o olhar que percebe a
si próprio, que observa os colegas, que vê detalhes da sala de trabalho, que olha fora e que
adentra no desconhecido da imagem daquilo que, de tão distante, não se avista mais.
Paradoxalmente, o não avistar lança adiante as memórias (vividas ou talvez não. Remotas ou
recentes) e Nós provocamos imagens que pudessem remetê-los, nesse fluxo de memórias, às
possibilidades do que desmontar. Com olhos entreabertos, olhar nebuloso e terceiro olho
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"Evocando os mortos - Poéticas da Experiência"
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A desmontagem de Antígona
6
[...] implican un recorrido en sentido contrario al resultado final, un 'desarreglo de la construcción', una
problematización de los escenarios teóricos, técnicos, poéticos, espirituales que se fueron tejiendo durante el
viaje individual y colectivo. (DIÉGUEZ, 2009, p. 15)
ativado, criam uma atmosfera "lunar" sobre as memórias, usando uma imagem de Diéguez
quando se refere aos textos compilados em seu livro.
As desmontagens ganharam, assim, um primeiro formigamento, uma primeira
atualização, mas ainda condensada em corpos quase inertes. Propusemos um exercício
individual de criação ancorado em algumas diretrizes chamadas, por Cristiane Zuan Esteves,
do grupo paulistano OPOVOEMPÉ, de "consígnias". Ela mesma contou, em intercâmbio
com o Lume (Projeto Rumos Teatro Itaú Cultural 2010/2011), que de tanto ouvir a palavra
francesa "consigne" durante estudos na escola de Jacques Lecoq e com Ariane Mnouchkine,
assumiu seu aportuguesamento, ainda que a palavra não exista em nosso dicionário.
“O primeiro contato que tive com o termo arqueologia do futuro deu-se no ano de
2015, em meio ao processo de pesquisa "Um corpo em final de festa" que então
desenvolvíamos na Inquieta Cia., grupo o qual integro. À época, iniciávamos o
trabalho em sala, tendo como interlocutor o coreógrafo, bailarino e performer
Marcelo Evelin.
Antes mesmo de fazermos exercícios e reflexões profundas sobre o que nos movia
naquele projeto, uma das primeiras proposições de Marcelo foi solicitar que cada um
de nós seis escrevêssemos detalhadamente como pensávamos e víamos o espetáculo
que iriamos estrear futuramente. Pediu que nos detivéssemos em minúcias,
descrevendo cada acontecimento, os elementos estruturantes da cena, detalhando
ponto a ponto, instante a instante o que e como era a montagem no dia de sua estreia.
A esse exercício de pôr no papel uma perspectiva futura que tornava pública as
intenções e visões de cada um de nós Marcelo chamou arqueologia do futuro.” (Gyl
Giffony)
7
http://www.lumeteatro.com.br/repertorio-artistico/demostracoes-tecnicas#sub-top
8
http://hemisphericinstitute.org/hemi/pt/enc14-performances/item/2326-enc14-performances-acorrea-
confessions
9
Um dos textos ainda não foi publicado e o outro se encontra em
<https//www.even3.com.br/anais/IXCongressoABRACE/32599-QUANDO-OS-SUBTEXTOS-SAO-TEXTOS>
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Revista Rascunho. Dossiê Desmontagem. Vol.1. N.1. Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia,
jan/jun 2014
como parte desses procedimentos, desvelando uma linha pessoal e autobiográfica; desafios
diferentes dos do espetáculo e a possibilidade de aprofundamento em temas iniciados com a
criação do mesmo; não se trata de uma tentativa de atualização fiel de memórias, mas sim de
uma nova criação que permite um alargamento do campo visitado (nova organização
poética); o espetáculo havia deixado lacunas que foram trazidas à tona no momento de
revisita ao material, tanto o que o originou quanto o que o constituiu como forma teatral.
“É bem amplo o leque de possibilidades de uma desmontagem. É interessante
ressaltar como esse termo é escorregadio. Ao longo das aulas e das discussões
mediadas pelas professoras Raquel Scotti e Cris Colla buscávamos (nós, a turma de
Desmontagem Cênica) entender o que tal palavra nos dizia. O resultado é que cada
um tinha uma percepção do que a palavra “desmontagem” significava. Mas por que
tal dificuldade? A meu ver, a razão se dá em função de estarmos desvelando
processos criativos múltiplos. Não há parâmetros para definir as inspirações, as
intenções, as escolhas, as interpretações etc. Se há, começo a desconfiar seriamente:
subjetividade direcionada deixa de ser subjetividade.” (Igor Nascimento)
CAMADA 4 - O quê
Mesmo reduzindo, ficou evidente que os três pontos selecionados por cada um,
como síntese do tema a ser desmontado, ainda continham um universo amplo demais a ser
desvelado. Neste ponto, percebemos a dificuldade em recortar o que desmontar e a
descoberta do o quê tornou-se nossa urgência. Desafio também para Nós, condutoras de um
processo múltiplo, com temas e diferenças de área de interesse, escolhas particulares, projetos
de pesquisa variados, pessoas com idades e experiências distintas cursando mestrados e
doutorados em etapas diferentes de integralização.
O quê? Pistas:
- quais segredos desejo revelar, quais aspectos trazer para o visível;
- atualização daquilo que, ainda hoje, parece ter sentido ser narrado;
- camadas: pessoalidades, fatos históricos, dados e documentos, testemunhos,
contextos, inspirações, elementos técnicos;
- envolvimento afetivo;
- memória (recriação/atualização);
- definição de um macro tema (samba, homossexualidade, feminicídio,
violência política, foram alguns temas que circularam) e a maneira como eu
caibo e me insiro nele, o que está à frente, o que se explicita;
- focar os gatilhos do processo criativo inicial: âncoras, pontos de apoio,
pegadas;
- identificar passagens do processo a ser desmontado;
- considerar o tempo possível de realização no quadrimestre ao se fazer as
escolhas, sem a pretensão de dar conta do todo de uma experiência criativa.
“Desde nosso primeiro encontro de “Desmontagem cênica como estratégia de
reflexão e criação do artista da cena,” nos foi solicitado que trouxéssemos os
materiais da desmontagem (imagens, textos, livros, objetos, músicas, vídeos etc),
bem como formulação de questionamentos e reflexão sobre “as pegadas deixadas de
algum processo”. Pegadas deixadas de algum processo. Nossa, abriu-se um tanto!
Poderia trazer as marcas de minha viagem ao Oriente, minhas memórias da infância,
meus amores desfeitos. Mas meus olhos de coruja se focaram na pesquisa do
doutorado e inicio, então, com perguntas a uma das fases da alquimia: qual é a
nigredo que quero refletir, denunciar, evidenciar, trazer à cena? O que em mim, no
meu microcosmo dói em sofrimento com ressonância no macrocosmo? Quem se
mortifica na nigredo? Quem é obscurecido permanecendo nas sombras? São tantos.
Eu sei. Mas qual a pegada em mim? E ampliando, em minha alma brasileira?”
(Luciana Aires Mesquita)
BIBLIOGRAFIA:
DIÉGUEZ, Ileana (comp.). Des/Tejiendo Escenas. Desmontajes: processos de
investigación y creación. Cidade do México: Universidade Iberoamericana, 2009.
HIRSON, Raquel Scotti. QUANDO OS SUBTEXTOS SÃO TEXTOS.. In:
Memória ABRACE XVI - Anais do IX Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e
Pós-Graduação em Artes Cênicas. Anais...Uberlândia(MG) UFU, 2017. Disponível em:
<https//www.even3.com.br/anais/IXCongressoABRACE/32599-QUANDO-OS-
SUBTEXTOS-SAO-TEXTOS>.
Revista Rascunho. Dossiê Desmontagem. Vol.1. N.1. Universidade Federal de
Uberlândia, Uberlândia, jan/jun 2014
Trabalhos finais citados, apresentados como conclusão da disciplina:
COSTA, Raíssa Caroline Brito Costa. Coxias (In)visíveis: uma desmontagem de
percurso.
JACOPINI, Juliano Ricci. Desmontagem do Si.
MESQUITA, Luciana Aires. Nigredo – um primeiro exercício para uma
performance/manifesto
MOURA, Gyl Giffony Araújo. A desmontagem cênica como arqueologia do futuro.
NASCIMENTO, Igor Fernando de Jesus. DE-SUTURAS- Desmontagem Cênica.
ROTILI, Mariana. IMA- desmontada/ dissecada.
SILVA, Andressa Moretti. Os presentes da presença: desmontagem
SOUZA, Luciana Mitkiewicz de. Destruindo para reconstruir, desmontando para
remontar.