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Dominique Barthélemy A CAVALARIA DA GERMANIA ANTIGA A FRANGA DO SECULO XI ‘TRADUGAO, Néri de Barros Almeida Carolina Gual da Silva, 3 VASSALOS, SENHORES E SANTOS No fim do século IX produz-se aquilo que podemos chamar de a mutagio feudal: os ris perdem todo o controle efetivo das provincias, seu palicio entra em decadéncia eacontece a ascensio dos condes, assim como de vassalos reais e, por vezes, de bispos, 20 nivel de senhores do pais. O ano 888, ou seus arredlores, é apreendido por todos os historiadores-cronistas do ano 1000 como o inicio das dinastias de condes guerreiros, dos castelos cedas discdrdias. As guerras de vizinhanga se desenvolvem, como acabamos cde-ver, apresentadas como vingangas e represilias. Todos os senhores tém. seu senhorio a titulo hereditirio, eninguém pode verdadeiramentedesen- raizar sua familia, mesmo em caso de falta. Nesse aspecto, ¢ possivel es- tabelecer um certo paralelo com a tenéncia camponesa. A expressio “so- ciedade feudal” nao é, portanto, enganadora: ela peca apenas, como qualquer rérulo, pelo excesso de esquematismo; cla erra ao excluir os agos de parentesco, as classes, o papel do cristianismo, a continuidade carolin- gia, mas permanece uma referéncia dil. Georges Duby, que renovou a compreensio dos séculos X-XI, nao a rejeitava necessariamente. Ele ape- nas tomava uma boa distancia em relagio a ela a ponto de ratifcé-a. Blea via menos tumultuada do que se afirmou, Por meu lado, eu acrescentaria: ‘A Comiaria. ‘menos birbara, menos rude, menos em ruptura com os valores ¢a socie- dade carolingios. Alguns autores antigos (Guizot, por exemplo) jd am alémn da anarquia feudal, ao trata do papel cstruturante dos acos vassli. os formados pela guerra, a ponto de fazerem a Cavalaria (séculos XI-XII) surgir da sociabilidade feudal. Sob a pena de historiadores modemnos, areputacio de rudezaede cia sem freios da primeira idade feudal (por volta de 880-1040) Procede com frequéncia do fato que eles acreem diretamente refletida nas ‘cangbes de gesa, Eles leem nelas narrativas de vinganga ede guerrs ci ‘uma agressividade que s6 poderia ser canalizada pela guerra santa contra © Infiel — c nisso consistiria todo o empenko da Igreja no século XI, da pazde Deus eruzada. Todavia, essa literatura ndo €téoantiga,¢ nio pode ser tomada como “reflexo” direto de uma realidade hist6tica, Por outro ado, podemos também recorrer is crdnicas de monges ede clérigos. Os ataques normandos eas dificuldades da mutago feudal podem ter diminuido a frequéncia das obras no final do século IX, mas a situagio se estabiliza em seguida: os Anais do conego de Reims, Flodo. ardo, comegam em 919 e Santo Odon escreve, nos anos 940, sua Vide de Séo Geraldo de Aurillac. 0 ano 1000, sobretudo, vé florescer, segundo a palavras de Pierre Riché, um “tereeiro renascimento carolingio”, com a historia de Richer de Reims, as crénicas do aquitano Ademar de Cha- bannes ¢ do burgiindio Raul Glaber, a primeira histéria dos duques bes dos pelo cénego Dudon de Saint-Qu le toda essa documentacio, hi in, numerosos escritos anciadas do que antes. Em ito a respeito de Cavaleiros. Virios desses autores os tém em suas familias e o mosteiro ndo é estranho a0 mundo feudal: ele vive das esmolas de senhores, reza por eles, 8 vezes os critica como vizinhos incbmodos ¢ “trinicos’,trata-os como bestasselvagens, no dia seguinte legitima seu poder com férmulas eloquentes. A docu. menragio do ano 1000, devidamente solicitada, permite compreender bem as competéncias da dindmica do mundo feudal que é menos uma anarquia do que uma ordem, ou pelo menos uma “anarquia ordenada”: ssa formula vinda da ancropologia africanista me parece se aplicar muito bem a essa situagio. Voss, senhorese santos A ordem feudal No é uma revolugdo feudal que se produz na Francia ocidental entre 877 € 888, mas apenas uma mutardo feudal, que nio far desaparecer nem a elite nem os valores do mundo carolingio, mas os adapta e 0s faz evoluit. Essa elite, muito cedo, escolheu pactuar com os normandos; no fim, cla péde integré-los (911). Ela renuncia a apoiar um império unitrio se emancipa inclusive do palicio, a ponto de, por volta de 987, Richer de Reims descrever apenas um niicleo franco do reino, cercado por povos (dinamarqueses, ¢ a0 Sul aquitanos, gascécs, godos). Mas esses sarélites ‘nfo negam a realeza franca evivem ainda (ou vivem a partir de entio, como no caso dos dinamarqueses) valores carolingios efeudais, calvez.um pouco sua propria maneira, Seus principes prestam homenagem ao rei, preci- samente com as mios, segundo Richer de Reims, porque isso sublinha a “vassalidade” de sua regiso em relagio a Francia, ‘A novidade mais marcante, em relagio ao ano 800, é cem anos ‘mais tarde, a multiplicagao de muralhas, de fortificagies que serviam para as guerras civis das quais elas sio 0 meio ¢ 0 alvo. Em 900, elas sio essen cialmente muralhas de cidades, mas habitua-se a edificar fortalezas epali- gadas, a clevar burgados ao nivel (estatuto) de castelo (com mercados como em Flandres). No entanto, essa proliferacéo néo tem nada de andrquica e no marca uma privatizagio completa do poder. Desde a ascensio do rei Eudes, em 888, desenham-se prineipados regionais bastante coesos, cujos mestres io condes. O crescimento de seu poder é obra, inicialmente, dos prépriosreiscarolingios. Ele redinem (em uum aciimulo inédieo) varios condados e frequentemente adicionam um outro ticulo ao de conde (as vezes marqués ou duque). Isso se produz nas regides de marca, particularmente expostas aos ataques “pagios’, como Flandres ea Géria, mas também no interior do pats, longe da ameaga ex- terior: € assim que o conde da Auvérnia ascende ao titulo ducal da Aqui- tania (com precedéncia sobre os condes de Poitiers ¢ de Toulouse); que 0 conde de Autun corna-se duque da Borgonha co irmio de Eudes, Roberto, comna-se marqués da “Néustria” (o nome dado nesse momento As regides entre o Sena ¢ 0 Loire, de Angers a Paris). Assim, 0 marqués Roberto prepara para seu filho Hugo, Grande, por falta de realeza, o titulo de duque dos francos (935-956), que consagra um poder social superior a0 ACwalarie dos iltimos ris carolingios, etiradosa Laon ea Reims (898-987). Os nor- mandos se inserem no sistema de principados em 911, agregando a cles 0s elementos francos. E logo depois emergem ainda, na bacia pa- tense, outros agrupamentos: os vermandlos, antes que a morte de Hugo, Grande, (956) favorega a emancipagio, na Néustria, dos condes de Blois ede Angers. Isso cria duques, marqueses, condes que colecionam cidades e castelos ou pelo menos certos direitos sobre esses locais q entre si. Ao mesmo tempo, alguns formam, de maneira dur ‘incias, principados pensados como monarquias, ia ea prdpria Normandia, porque, efetivamente, o duque garante (ou se esforga, ou se gaba de garantic) a defesa do conjunto do pais, a paz a justiga interiores, & maneira de um rei. jastiga. Em primeiro lugar, oadversério é em geral um principado vizinho, eventualmence em conluio com um senhor em rebeliio — tudo isso nada mais é, portanto, do que a guerra feudal, guerra de castelos, marcada principalmente, nds o veremos, pelas represilias sobre os camponeses. Em segundo lugar, a justiga € ento apenas um drbitro bastante fraco. Pressionados pelos monges, cluniacenses ou outros, que reivindicam 0 respeito a suas propriedades ¢ privilégios, os principes inicialmente os reconhecem, mas depois os obrigam a reduzir essas propriedades e privi- legios. Dai insatisfagio desses monges, as preces a Deus ¢ aos santos para que amaldigoem os espoliadores eos tiranos, para que os matem por meio da vinganga milagrosa. Quando se trata de querelas entre seus vassalos armados, os principes conduzem transagées diversas — quando nio os Provocam com duplicidade, eles dividem para reinar, como mostrao me- morando sugestivo edenso (que chamamos de Conventum) que recapicula por volta de 1028 as reclamagées de um vassalo de Poitiers, Hugo, “o Quiliarca” de Lusignan, contra o conde de Poitiers, duque da Aquitania (Guilherme V, 0 Grande, 996-1030)'. * Baistem das edigdes recente desse documento: uma alguns problemas mas que numera comodamente as n, Le Conventitan Droz, 1995; a outa, repleta de comentirios mais convincentes¢ de uma tradugao ingles produrida por Jane Martindale em Status, Authority. VILe Vil Vasslo,senhorese santos Dessa forma, a desvalorizagio feita pelos historiadores modernos a gucrra ca justiga feudal talver seja excessiva. Ela provém da idealizagaio do Estado carolingio ou modemno ¢ da desatengio a cercas informagoes dos documentos queas sugestoes da ancropologia permivem melhor notar, ‘Vistos o mtimero ¢, prineipalmente, avariedade das fontes escritas a partir dos carolingios, podemos empreender com mais facilidade o exame dos cia do que aquele que é possivel paraa Germa- nia ¢ 0s merovingios. Essa peculiaridade talvez nos permita mesmo esta- belecer verdadeiras diferencas em relagio is priticas da antiga germanidade, bem como definir aquelas que esti ligadas a tragos carolingios ou mesmo que sio decorrentes das condigées do contexto imediato, como os castelos ue nao sio apenas bases de ataque, mas também locais de refigio (para os nobres), de devengao (para os cativos) de assembleias ou negociagoes. ‘Como na época merovingia,a vinganga ¢ um sistema ambivalence: é uma ncia, mas também sua canalizagio, seu controle social. Nem sempre mobilizar apoio para a guerra, ej vimos que desde os anos 890 0 cristianismo ¢ frequentemente invocado a tempo (mas néoa contratempo) ‘em apoio Aqueles que fazem a paz. Também como na época merovingia, certos cronistas (como Richer de Reims) relatam e criticam “traigbes’ Por outro lado, os realizadores dessas “traigies” veem razao para se ocuparem cm justifici-las. A novidade entio se encontra na insisténcia sobreamoral da vassalidade, legado do século LX. ‘A Frangae a Aquitinia pés-carolingias se distinguem da Galia de Greg6rio de Tours por trés tragos notiveis pelo menos. O primeiro éa frequéncia da captura de nobres, seja nas batalhas, sja em ciladasem que se evita mati-los, Dispéemse, a partir de entio, de castelos para prendé- los, ¢ dat pode-se fazer pressio sobre cles com mais ou menos clegancia. iio émaiso caso de denuncié-losa um rei paraa instalagao de um processo por craigao?. Assim, esses nobres sio mantidos, as vezes, como reféns de fato ¢, as veres, quase como héspedes de luxo, Além disso — segundo trago—, nas narrativas dos tempos feudais, na cenas da vida nos eastelos, mulheres nobres tém um lugar de destaque inédito que talvez cresga pouco a pouco, Deveremos nos perguntar: o que é um Cavaleiro servidor? O 2 Salvo. excegio de um eativo direto do ei, Riche, 1V, 78. ideal de bravura est‘ entio completo, ctalvex recoberto, quaseeclipsado, Por esseideal de fidelidade vassélica de ressondncia cristae ealvea romana, ‘que o Manual de Duoda ca teoria das miliciasjé continham. Assim, sub. siste apés 888 um tipo de império moral dos carolingios. Sem diivida os velhos historiadores esquematizaram demais a sociedade feudal, supondo que todas as formas de lealdade dos nobres «stavam fundadas sobre a homenagem de maos, eaquelas dos eamponcses, sobre a servidio. Na realidade, parece haver dois rituais nos séculos IX ¢ X- O beijo no pé do rei por seus vassalos é evocado por Dudon de Saint. ‘Quentin ¢ Richer de Reims ¢ depois, por Ermoldo, o Negro. Sobretudo, documentasio nio ¢ sempre clara a respeito dos “és” do rei e dos prin- cipes: todos eles prestaram homenagem? A fidelidade nio implica tuma relagdo mitua? Alguns nio sio dispensados da homenagem em pro- Yeito de uma amizade de aparéncia mais iguaittia? Hugo de Lusignan afirma formalmente sua fidelidade ao conde de Poitiers e lhe presta ho- menagem. Nessa situagio, ele entende ser tratado com respeito reforgado Por seus senhorios de castelos. Ao mesmo tempo, ele se nega a prestar outta homenagem — mesmo que dela Ihe advenha um quarto de um castelo — a Bernardo de la Marche, que ele considera como seu igual “Tomar por senhor" um homem de mesmo nivel que ele tem algo de ve- xat6rio, pois isso tenderé a clasificé-lo um degrau abaixo na hierarquia das familias nobres. Por outro lado, st o vassalo imediato do rei ou de um duque 0 coloca como senhor de castelos! Para dizer de outra maneira: a homenagem de mios oferece a todos aqueles que a prestam, mesmo aos cavaleiros mediocres, um rico que permite distingui-los da condigzo.ervi, ou seja, aquilo que é necessério para evitar que sejam confundidos com os servos ministeriais, A homenagem de mios é, portanto, um s{mbolo importante, ¢ Comventur, 1, 38-100, Vasslos, shores e santos rio o fazem. Os historiadores modernos frequentemente tiraram 0 con- texto € 0 impacto exato desse rito, dessa relagio, vendo nele apenas tum acordo privado, um conerato pars o aliciemento de homens de agio, quando na verdade ele é muito mais um gesto demonstrativo, um acordo ene guerreiros nobres em suas assembleias. De fao,frequentemente a homenagem é simbolo e meio para a reconciliagio. Ela também permite partilhar os direitos sobre um bem disputado. Assim, Foulques Nerra, conde de Anjou, presta homenagem a Guilherme V da Aquitania por Saintes', As transagées desse tipo se apoiam sobre aideia de que o senhor dé alguma coisa (uma terra, um castelo) ¢ em troca ele tem sobre essa doagio um dircito de controle ¢ 0 servigo do vassalo — ou pelo menos paz. O mesmo Foulques Nerra nfo propée a seu grande rival Eudes de Blois, num momento de fraqueza, presta “homenagem contra todos, Aexcegao do rei c de sua parentela préxima”? A oferta ¢ retirada quando ‘rei Hugo Capero lhe entrega 12.mil homens como reforgo! “Tais senhores evassalos nio sio, portanto, de formaalguma como « chefe e seus companheiros da Germania antiga. Sua principal preo- cupagio nio ¢ serem os melhores guerteros, reconhecids por seu he- rofsmo, em suma, adquirir uma gléria Cavaleiresca, Eles se ocupam muito ‘ais em ter o méximo de terras ¢ de castelos. E.a propria palavra honna nessa época, empregada positivamente, designa apenas terras (feudo ou senhorio), ou, se preferirmos, baronias. A moral da honra s6 se aperfeigoa negativamente: as crOnicas atestam bem, entre os condes, os senhores € 0s Cavaleiros do ano 1000, o pavor da desonra, com 0s riscos corresponden- tes, a comegar pelo deserdamento. Nio € pelo desejo de fazer uma bela carreira de guerreiro que se presta homenagem, mas pelo desejo de manter ‘com mais firmeza um castelo, um senhorio, uma parte de um ou de outro. eseja-se set apoiado em uma guerra de vizinhanga ou em um proceso, a fad palavra cmpenhada cas cla no se mosteeficaz. Os feudais sio,nesse sentido, um establishment, com muito mais popriedades ‘que vircudes, mais prudéncia que ousadia, mais asticia que coragem, ate cilculo que elegincia — ou, sc eles tém elegancia, ¢ de uma maneira cal- ‘ACavalaria culada. Nada ilustra melhor suas preocupagées do que o discurso que faz ‘arcebispo Adalberon de Reitns os vassalos de Hugo Capeto em 987 para persuadi-los a elegé-lo a realeza’, Trata-se verdadeiramente de uma socie- dadede herdeiros, de proprietitios herdeiros —, porisso, fequentemente astutos eardilosos, mas também sem desmesura Ser necessério ver, mais adiante, se a mutagio Cavaleitesca da segunda idade feudal (apés 1050) ndo os levars a uma audicia acrescida. Diante disso, nao podemos nos surpreender com a possibilidade, ‘ou frequéncia, de guerras entre um senhor ¢ seu vassalo, ou, mais ainda, entre vassalos de um mesmo senhor. Pois, obrigados inicialmente a se ajudarem, ase apoiarem e a se amarem um a0 outro, senhor e vassalo nao se sentem sempre satisfeitos. Eles se acusam mutuamente de delitos e de falta derespeito. £ preciso le, sobre essa questio, o Conventum de Poitiers, esse longo requisitério em favor de Hugo, o Quiliarca, ¢ contra o conde (eduque) Guilherme, no qual se alternam declaragoes de amore de fide- lidadee reelamagées dovassalo. No final, Hugo declara guerraa seu senhor, eselarecenclo que leo pouparé bem como.asua Cidade (sedede sua honra), ‘que desloca as hostlidades para seus scditos, vassalos ou camponeses,¢ constitui um verdadeiro acordo “Cavaleiresco” , E preciso ler eambém a carta (reconstituida por le Rei ‘na qual Eudes I de Blois proclama sua ligagio com fara aa, esenhor, apés ter tomado Melun — por traigéo — ¢ evitado o combate: Nio foi ao re, masa um outro vassalo [literal “ * assalo (literalmente um “eovassalo% commit aus tomou Melun. Fle ndo tinha feito mal a0 rei, pois era aes seu homem tanto quanto aquele de quem ele havia romado a cidade. O que importa dign dade do er que um ou ono a vss por intermedi. dale! le tinha tido, além disso, motivos legitimos para agit, pois podia provar cidade tinha outrora pertencido a seus predecessores!® aa Em outras palavras, um,senhor nao pode escolher para qual de seus vassalos vai um feudo; ele sé pode reconhecer o dircito do herdeiro. Tal como o reconsttui, pelo menos, Richer de Reims Companheiro cm milcia ou em Cavalaria, Richer 1V, 80 (etl p.279) ‘asslos,senhoresesnios Senhor e vassalo estio destinados um ao outro por sua heranga, ¢ eles fingem afinidade cletiva, apego de coragio. Na pritica, 05 conflitos entre vassalos sio ocasiso para que seu senhor atue como mediador, érbitro, ou para que reverta aliangas. Se um dos rivaiscté estar sendo maleeatado, ele langa 0 desafio de “fazer para si ‘um outro senhot” (sim, tal expressio nao ¢ rara), fazendo o antigo senhor entio acusé-lo de felonia (traigio)... Seria isso a anarquia feudal? © con- texto das relagdes feudo-vassélicas é,na realidade, o de uma sociedade de vinganga na qual podemos entrever aquilo que Michelet chamava, por meio de uma bela intuigio, de uma “ordem intima e profunda’, Nao devemos exagerar a fraqueza desses senhores porque existem, herdeiros rivais encreas familias vassiicas. O que os limita, especialmente dliante dos mais importantes de seus vassal ntervengio possivel de um principe vizinho. Isso acontece pelo menos durante erés séculos, a par- tir do ano 900: guerras de vizinhanga justificadas pelo auxilio a um yassa~ lo lesado, ou a uma igreja oprimida, cujo ato principal consiste em fazer ccerco a um castelo, pilhar os camponeses, realizar bloqueios por algumas semanas, comando o castelo apés um tratado ou conciliébulos, muito mais do que um assalto assassino, evitando geralmente a batalha frontal com aqueles que forgam 0 bloqueio, © defensor de um castelo que no reeebe socorro de seu senhor pode capitular com honra e concluir uma paz de bravos, propicia por vezes a gestos Cavaleirescos entre Cavaleiros. Nio se deve, portanto, dramatizar a proliferagao de fortificagoes rurais secunditias ao longo da primeira idade feudal: torres, paligadas, pequenas muralhas, sso nao é necessariamenteo sinal de uma escalada das jolencias, Essa proliferacio ilustra muito mais sua diluigao, sua margina- lizagao. Nos limites das florestas do ano 1000, remos marcas ¢ contramar- cas de pequenos esquadrées de cavaleiros, e, durante esse tempo, poucos grandes castelos, ¢ ainda menos Cidades sitiadas. Hugo de Lusignan, dlissemos, excluiu a cidade de Poitiers de sua guerra com 0 conde, ‘As guertas desse tipo néo impedem o crescimento rural ¢a mul- tiplicagio das cidades, conhecidas por meio das cartas ¢ er6nicas do ano 1000. Flas apenas mantém a pressio e a supremacia da classe feudal, cons- titwida de Cavaleiros por estatuto, cujos modos preparam, em certos as- ppectos, a Cavalaria propriamente dita, ACcavlara Lendas de herdis e histérias de traidores ‘Nito faltam ideais & primeira idade feudal: hé 0 ideal do vassalo heroico, cuja valentia faz merecer 0 senhorio; ¢ hao ideal do senhor santo, cujas boas ages ¢ intengdes fazem merecer legitimidade plena. E inte- ressante nos determos um pouco nas natrativas de traicao ¢ de heroismo da Franga (ou “Francia”) por meio de Richer de Reims, antes de nos diri- ¢gitmos ao Sul, para acompanhar aa vida edificante de um vassalo real do ano 900, Geraldo de Aurillac. Nessas duas regies a guerra feudal é feita ‘em grande parte de vinganga indireta (pilhagem de camponeses), traigbes ou capturas, que sio ocasides para entender a importincia dos debates e das justificagées. Richer é 0 filho de um Cavaleiro real e manifestamente preocu- pado em poupar os poderosos do momento — é preciso observar, por meio de Jason Glenn, como ele busca acompanhar as mudangas de equi- brio entre Hugo Capeto ¢ Carlos da Lorena’, Ele narra o perlodo entre £888 € 996 — tempo de discérdias — usando ao mesmo tempo tragos his- t6ricos e tragos lendirios; desfila também discursos de sua prépria inven- 40, 0s quais nio deverfamos, no entanto, ver como sendo colocados arti- ficialmente sobre um mundo feudal no qual se sabe apenas bater, nunca falar. Suas “invengbes" nos fazem conhecer as preocupagdes de um mundo nobre e cristo do ano 1000, Richer toma emprestado a César elementos sobre a Gilia que lhe permicem falar sobre o carter duplo desses povos guerreiros: a0 mesmo tempo ousados e briguentos, capazes de mortes e de fiiria, mas também ccheios de razao e de eloquéncia™, Todos unem sabedoria & audécia. Segundo Richer, o rei Eudes pode unir francos ¢ aquitanos na defesa contra os normandos — isso 0 coloca na contramio da guerra civil de 889! Eudes discursa lembrando-Ihes a bravura ancestral ¢ em seguida ‘0s comanda na baralha de Montpensier (que, historicamente, nao ocorreu) em que infantaria ¢ cavalaria se articulam. John France mostrou a seme- thanga com Conquercuil (992), batalha contemporinea de Richer, ¢ até * Jason Glenn, “The composition... Vass, senhores estos ‘mesmo com Hastings, que ainda estava por vir (1066)'". Mas a época dos ataques normandos nao parece ter conhecido baralhas sangrentas como sta, Peloniimero de mortos, a batalha de Montpensier procede com maior certeza da imaginagao épica. Ela é, dessa forma, propicia & emergéncia de ‘um herdilenddtio. Provada pela batalha, a hoste do rei Eudes deve retomar ‘o combate, ¢, entio, todos os nobres feridos se retiram. Resta um joven de origem mediocre, mas bravo diante da morte, que se prope a servit como porta-estandarte, on seja, a dirigir as manobras se expondo aos golpes, uma posicio perigosa que as cronicas desde a segunda metade do século IX valorizam". Ingon mostra nisso sua coragem. Sob seu estimulo a batalha ¢ ganha ¢ o “tirano” normando, Casio, capturado. O rei Ihe entre 0 batismo ¢ a morte. Ao sair das fontes batismais, dde Saint-Martial de Limoges, Ingon o mata — desres- peitando o local ¢ 0 tempo santo, pois eta Pentecostes. Os prineipeseo re julgam entio, que ee merece a morte. Ingon, no entanto, se justfica. Ele defende a morte preventiva (“Foi o amor que tenho por ds que me levou a esse ato..”) sob orisco de ofender a “majes- tade real’ cujo conceito Richer préximo dos res epaixonado pelaroma- nidade, emprega num contexto, apesar de tudo, muito feudal. De fato, cxplicalagon, “observe! que fi o medo que levou o trano cativo a pedir batismo. Assim que fosseliberado, cetera retribuido as inmerasinjiias «que tecebeu ¢ vingado seriamente os seus, que massacramos”®. Nas cap~ curas realizadas enere francos, das quas falaremos novamente, a pressio social deve limitar 0 espirito de revanche dos libertos. Ao contririo, as lendas dos tempos das “piratarias” normandas contém frequentemente narrativas de falsa conversio', Para Ademar de Chabannes, 0 préprio Rolon, apés seu batismo, ainda sacrificou cem cristios cativos a seus anti- {g08 idolos, antes de se redimir através de esmolas. [A despeito disso, a historia nos ensina que, desde os anos 860, certos normandos se converteram ¢ foram leais. Mas 0 piblico das lendas john France, “La guerre dansla France féodale. Regino de Prim, p. 112 (876). Ver também a capa deste live. © Richer, 111 (Cp. 29) Assim, em Dudon de Saine-Quentin, De maribuse get. 57. % Crimi 20. |ACavalaia do ano 1000 esti pronto para acreditar na argumentagao de Ingon, ¢ vibra com a lembranga de sua coragem ¢ de seus ferimentos. Ele cré em uma verdadeira brutalizagio dos costumes francos, porque isso era necessirio ‘nos tempos das “incursbes pagis’. E é nesse passado jd terminado que podemos colocar belos fabullosos golpes de espada, o heroismo do qual ‘ano 1000 na Franga oferece poucos exemplos. ie a nobreza chora, nessa fibula de Richer de Reims, ao pensar que o bravo Ingon corre risco de morte por sacri lesa-ma- joule anatase eee eee «sem surpresa para nés, pode entio agraciar seu porta-estandatte. “Ele Ihe dé ainda o castelo de Blois, cujo castelao havia sido morto na. guerra ‘contra os piratas. Ingon se casa: vitiva do castelio, como dom real”, Em outras palavras, por sua bravura e sua devogao, ou sea, sua vassalidade no sentido duplo do termo", ele mereceu uma tecompensa totalmente feudal, se mostrou digno da guarda, ¢ praticamente do senhorio, de um Caseeeaesersetecs ; ‘Ao mesmo tempo, ocasamento con ‘vitiva mostraaimportincia cla nao tendo sido nomeada. Richer a imagina provavel- ‘mente comoa herdeira originaria de Blois. Os dois maridos sucessivos sio como Cavaleiros servidores — atengio a derivagzo ulterior da expressio ‘cavalciros servidores’ pois os veremos entio servindo nao a mulher, mas a0 suserano em seu lugar —, guerreiros nobres necessérios para manter ‘um honor, reger um senhorio. As teansferéncias desse tipo nio slo raras: Eudes de Saint-Maur conta assim a carreira do conde Buchardo (fim do século X) na corte do tei Hugo Capeto. Ele obeém o castelo de Corbeil casando-se coma vtiva de seu detentor precedente". castelo é um poueo ‘uma casa de senhor ea familia feudal é modelada pelas regras crstas afir- oe ie c neko oar por "Cacin! 0 ase les, mas somnente quando em no sentido absolu- te (pecan casioe mor). ea ; "Eudes de Saint Maus, Vida de Bucherdo, Fenerivel. (bom exemplo de vassal sentido duplo do termo, valotoso ef). : ae ‘Vassalos eons santos rmadas nos tempos carolingios. O casal éforealecido pelait ‘o que associa mais estreitamente a dama ao senhor feudal efavorece tam bém a linha direta, ou seja, 0s filhos do casal, incluindo aqueles do sexo feminino, no estabelecimento dos herdeiros da honra do casal, em detsi- ‘mento dos colaterais,comecando pelos tios patemos, Te taisdireitosnuma sociedade de guerteitos obriga a mulher a se colocar em busca de um *protetor’, ou a deixar que lhe seja dado um. ‘Com a viva de Blois, Ingon gera um filho (Gerlon), que nao é historicamente mais bem conhecido do que ele. Gostariamos de saber se 108 condes de Blois do ano 1000 afirmam ou nao ser descendentes desse personagem. A lenda convém a uma familia prestigiosa, mas que a0 ‘mesmo tempo se presta a controvérsias. Os condes de Blois fazem um pouco de sombra aos reis,estando, porcanto, expostos & male We ‘uma outta fibula do ano 1000, forjada ou espalhada por Raul Glabes, descreve-os de fato como oriundos de um vassalo criminoso — pior que Ingon, traidor de seu senhor*. Porheroismo ow traigdo, seria possivel ascendet socialmente? De {qualquer mancira, Ingon nao é um desses “soldados de fortuna’ que sairam do nada e que o século XIX imaginow na época das incursées normandas (Gobre 0 modelo dos soldados do ano II, da nobreza do Império) dando origem a senhores. Ingon tem parentes “mediocres’, 0 que nao significa “modestos” no sentido atual, mas médios. Para que chegasse as agdes que conhecemos foi necessério que pegasse em armas, que sua familia tivesse ‘40 menos os 12 mansos do cavaleiro de base carolingio, e sem diivida um pouco mais, Ele & de origem nao modesta, mas mediamente orgulhosa! por causa disso cle pode temer a reagao de uma nobreza mais ata: ele deve usar todos os meios ¢ até mesmo um pouco de pathos para se Fazer aceitar por ela e para que ela pega ao rei seu perdao. Um pouco depois do rei Eudes (morto em 898), surge um personagem muito mais hist6rico, Haganio, le também vindo de parentes “mediocres”, Surgindo junto ‘com outros homens também “menores’ que os “principes’, ele ganha 0 neste volume, p. 357. rm o descrédito do conde Estevo devido x neste volume, p. 354, © Comparar com Enjeug Acavaria favor do rei ¢ isso leva os iltimos & revolea, juntamente com o “duque”, irmao do rei Eudes". As Historias de Richer de Reims descrevem vitias vezes esse tipo de tensio, ou de dinamica, na hierarquia nobre. Richer lhe da, por vezes, uma aparéncia feudal, Ele notabem a ambivaléncia da sociedade a respeito das familias em ascensio, sendo capaz tanto de fazer elogios aos robertia- ‘nos — A energia 3 sabedoria que os levaram 3 realeza — quanto de acusat o rival de Hugo Capero, Carlos da Lorena, de, a despeito de filho de rei, ter-se casado com uma simples filha de conde, “da ordem dos vassalos” (que ele chama também de “equestte’, moda romana). O ideal parece ser, de faro, que o homem suba em mérito ese vejaclevado por um casamento tum pouco superior a seu nivel: conquista-se uma mulher clevando-se em diregio a cla, enquanto um casamento com alguém de sagratia uma nobreza degenerada por um deficit de “ sentido de valentia, militia). ssalagem” (no Richer de Reims atesta também que, apesar de sua fraqueza, os liltimos carolingios tém uma espécie de corte. Pelo menos 0 rei Luis IV tem um séquito de jovens nobres desejosos dese iluscrarem através de atos de astuciosa coragem na guerra civil, tal como Raul, pai de Richer. Nela acontecem ceriménias cristis, mas também festivas e diplométicas, nas quais se forma aquilo que as cartas chamam de *milicia do reino”, Foi em ‘uma ocasiéo como essas, segundo Richer, que, por pura extravagincia, ‘dios mortais teriam surgido contra o filho do conde-Rolon, o normando Guilherme Longa Espada, dando origem a lenda do vassalo de grande coragio que mereceu ser contada juntamente com aquela de Ingon ¢ Catilo. Nio sao apenas os normandos, convertidos recentemente, que traem sua f€ matando. Um marqués de Flandres, de ascendéncia carolingia por seu avd, manda matar Guilherme durante um encontro de paz em Pi cm dezembro de 942. Historicamente esse é um risco da guerra de ‘nhanga. Mas uma aura delenda se formaem torno desse crime recumbante, Richer de Reims pode apresentar Guilherme como um fiel totalmente devorado a Luis IV, com um coragao puro, cheio de ardor de nedfito por a aver manus suf Hope Grande que promoidosduqvedoe 936, ‘Vassalossenbores santos cle, Guilherme Longa Espada é um modelo, também, para afirmar um ideal de devogio até 0 sactificio, pois 0 tempo em que vive Richer — com. tantos vassals pouco apressados em morter por seu senhor, pusilénimes, e mesmo ciipidos e craidores — precisa disso. Em 978, temos belos discursos sobre esse ideal vassélico. Mas os atos o seguem? E nesse momento que se dé o ataque relampago do rei Lotirio, descendente de Carlos Magno, sobre Aix-1a-Chapelle. Agrada-lhe aracar de surpresa a retaguarda do imperador Oto Il, entio bem mais poderoso que ele. Tempo suficiente, porém, para queele, Oto virasse para 6 Leste a dguia de bronze que “os germanos haviam virado para 0 Oeste para significar que sua cavalaria podetia vencer os gauleses quando qui- sesse", Oto II retine seus fits elhes faz — segundo Richer — umvibrante apelo ao auxilio tal como um senhor ofendido pode ¢ deve fazer a seus bons vassalos, sob a forma de um pedido de conselho: “Mostrastes até aquiy iluseres senhores, grande energia (vertu) ¢ obtivestes renome de honra e ¢gléria, avisados pelo conselho ¢ invictos no combate. Hoje ¢ necesséria a mesma energia, frente 20 temor de que vosso renome se transforme em vyergonha’. A afronta feita por Lotirio deve ser “lavada nao apenas com= barendo, mas inclusive morrendo". Esse discurso lembra a Germania de Ticito, mas ele nao caracteriza a “Germania” pés-carolingia em contraste com a “Gilia” de Lotario e Hugo Capeto. Tanto a “Germania” quanto a Gila” de enti cultivam os mesmos valores heroicos que reencontraremos nas cangoes de gesta. J conhecemosa arte de nto conformar todasasagbes asses valores heroicos... Que efeitos esse discurso produz? Nada além de um contra-ataque. Primeiro, 0 saque ao pakicio de Compitgne. Em seguida, a pilhagem dos camponeses das regides do Sena, que evidentemente néo tém nada a ver com o virar da 4guia em Aix. E ao duque Hugo Capeto que o rei Lotario se fia. O duque levanta uma hoste, bastante magra, mas suficiente para avangar em diregio & hoste da Germania. Mas porque ainda quase se trata cde uma guerra civil encre as duas metades separadas da Franga carolingia, 32. Vertambém Dudon de Saine- Quentin, Il 52-64, que faz de Guilher- tum modelo de valentia ede justiga ACavalaria a batalha ¢ evitada. Otto II se retira sem ser perseguido. Ele se reconcilia com Lotario, depois com Hugo Capeto, rivais certos pela supremacia no Oeste (na “ a). "Temos, portanto, palavras heroicas a0 lado de condutas bastante prudentes que Richer atribui ao espirito de concérdia (slogan carol Dudon de Saint-Quentin, na mesma época, atril «esse tipo de procedimento a uma verdadeira pritica de beaticudes evangé- licas pelo duque dos normandos, Ricardo®, De qualquer forma, em 978, Richer compensa a mediocridade do real com uma bela invengio — que estariamos crrados em nio levara sério, Ele imagina que um “germano confiante em scu valor ¢ sua forga”

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