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A mentirosa liberdade

Lya Luft
“Liberdade não vem de correr atrás de ‘deveres’ impostos de fora, mas de construir a nossa
existência”
Comecei a escrever um novo livro, sobre os mitos e mentiras que nossa cultura expõe em
prateleiras enfeitadas, para que a gente enfie esse material na cabeça e, pior, na alma – como se
fosse algodão-doce colorido. Com ele chegam os medos que tudo isso nos inspira: medo de não
estar bem enquadrados, medo de não ser valorizados pela turma, medo de não ser suficientemente
ricos, magros, musculosos, de não participar da melhor balada, do clube mais chique, de não ter
feito a viagem certa nem possuir a tecnologia de ponta no celular. Medo de não ser livres.
Na verdade, estamos presos numa rede de falsas liberdades. Nunca se falou tanto em
liberdade, e poucas vezes fomos tão pressionados por exigências absurdas, que constituem o que
chamo a síndrome do “ter de”. Fala-se em liberdade de escolha, mas somos conduzidos pela
propaganda como gado para o matadouro, e as opções são tantas que não conseguimos escolher
com calma. Medicados como somos (a pressão, a gordura, a fadiga, a insônia, o sono, a depressão
e a euforia, a solidão e o medo tratados a remédio), cedo recorremos a expedientes, porque nossa
libido, quimicamente cerceada, falha, e a alegria, de tanta tensão, nos escapa.
Preenchem-se fendas e falhas, manchas se removem, suspendem-se prazeres como sendo
risco e extravagância, e nos ligamos no espelho: alguém por aí é mais eficiente, moderno, valorizado
e belo que eu? Alguém mora num condomínio melhor que o meu? Em fileira ao longo das paredes
temos de parecer todos iguais nessa dança de enganos. Sobretudo, sempre jovens. Nunca se pôde
viver tanto tempo e com tão boa qualidade, mas no atual endeusamento da juventude, como se só
jovens merecessem amor, vitórias e sucesso, carregamos mais um ônus pesadíssimo e cruel: temos
de enganar o tempo, temos de aparentar 15 anos se temos 30, 40 anos se temos 60, e 50 se temos
80 anos de idade. A deusa juventude traz vantagens, mas eu não a quereria para sempre: talvez
nela sejamos mais bonitos, quem sabe mais cheios de planos e possibilidades, mas sabemos
discernir as coisas que divisamos, podemos optar com a mínima segurança, conseguimos olhar,
analisar e curtir – ou nos falta o que vem depois: maturidade?
Parece que do começo ao fim passamos a vida sendo cobrados: O que você vai ser? O que
vai estudar? Como? Fracassou em mais um vestibular? Já transou? Nunca transou? Treze anos e
ainda não ficou? E ainda não bebeu? Nem experimentou uma maconhazinha sequer? E um Viagra
para melhorar ainda mais? Ainda aguenta os chatos dos pais? Saiba que eles o controlam sob o
pretexto de que o amam. Sai dessa! Já precisa trabalhar? Que chatice! E depois: Quarenta anos
ganhando tão pouco e trabalhando tanto? E não tem aquele carro? Nunca esteve naquele resort?
Talvez a gente possa escapar dessas cobranças sendo mais natural, cumprindo deveres
reais, curtindo a vida sem se atordoar. Nadar contra toda essa louca correnteza. Ter opiniões
próprias, amadurecer, ajuda. Combater a ânsia por coisas que nem queremos, ignorar ofertas no
fundo desinteressantes, como roupas ridículas e viagens sem graça, isso ajuda. Descobrir o que
queremos e podemos é um bom aprendizado, mas leva algum tempo: não é preciso escalar o
Himalaia social nem ser uma linda mulher nem um homem poderoso. É possível estar contente e ter
projetos bem depois dos 40 anos, sem um iate, físico perfeito e grande fortuna. Sem cumprir tantas
obrigações fúteis e inúteis, como nos ordenam os mitos e mentiras de uma sociedade insegura,
desorientada, em crise. Liberdade não vem de correr atrás de “deveres” impostos de fora, mas de
construir a nossa existência, para a qual, com todo esse esforço e desgaste, sobra tão pouco tempo.
Não temos de correr angustiados atrás de modelos que nada têm a ver conosco, máscaras, ilusões
e melancolia para aguentar a vida, sem liberdade para descobrir o que a gente gostaria mesmo de
ter feito.

Luft, Lia. A mentirosa liberdade. Disponível em: https://www.contioutra.com/a-mentirosa-


liberdade-lya-luft/
ESTUDO DO TEXTO

1. Observe que, nos dois primeiros parágrafos, o assunto é apresentado. Qual é o assunto do texto?

2. A partir da leitura do segundo parágrafo, podemos definir a tese defendida no texto. Escreva uma
frase que delimite essa tese.

3. Copie a informação principal do segundo parágrafo.

4. No 3º parágrafo, a autora descreve um tipo de pressão imposta pela sociedade. Que exigências
são essas? Essas exigências dizem respeito a que aspecto de nossas vidas?

5. O 4º parágrafo é construído a partir de perguntas. A quem são dirigidas essas perguntas? O que
essas perguntas representam?

6. No último parágrafo a autora nos diz como escapar de tantas cobranças impostas pela sociedade.
Qual a solução apresentada pela autora?

7. De acordo com o texto o que é a falsa liberdade? E a verdadeira liberdade?

8. E para você, o que é liberdade?

9. Você concorda com o que foi dito no texto? Por quê?

10. Qual a relação estabelecida pela palavra destacada no trecho abaixo?

“Fala-se em liberdade de escolha, mas somos conduzidos pela propaganda como gado para o
matadouro [...]”

11. A que se refere o termo sublinhado no último parágrafo?

12. Que período do último parágrafo retoma o assunto do livro que a autora começou a escrever?

13. Ao longo do texto são feitas algumas comparações. Retire do texto dois exemplos de
comparações e explique o sentido de cada uma delas.

14. Qual o sentido das palavras e expressões destacadas nos trechos a seguir?

a) “[...] os mitos e mentiras que nossa cultura expõe em prateleiras enfeitadas, para que a gente
enfie esse material na cabeça [...]”

b) “Fala-se em liberdade de escolha, mas somos conduzidos pela propaganda como gado para o
matadouro[...]

c) “[...]não é preciso escalar o Himalaia social nem ser uma linda mulher nem um homem
poderoso.”

d) “Liberdade não vem de correr atrás de “deveres” impostos de fora [...]”

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