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Como conquistar a paz interna

:: Bel Cesar ::
Em 1988, quando Lama Gangchen Rinpoche esteve no Brasil pela segunda
vez, ele nos disse: “Para a conquista da paz interna, o primeiro passo é nos
dizer: Eu sou lindo. Primeiro, precisamos dar muito amor para nós mesmos.
Nossa mente cria tudo, ela precisa aprender a ver o positivo. Mas, como nossa
mente está muito próxima do negativo, sempre encontramos desculpas para
ver o negativo. Dizemos `sim´ para uma atitude positiva, e em seguida
dizemos `mas´ e voltamos para a atitude negativa. Só quando conseguirmos
superar esse hábito de pensar negativamente, é que poderemos tomar uma
decisão profunda de querer mudar. Pois é a mente negativa que não nos deixa
tomar decisões. A decisão firme purifica a negatividade automaticamente e
transforma a escuridão em luz. Aceitar é muito precioso. Por isso, escutar os
ensinamentos é tão precioso, porque expressa nossa decisão de aprender, de
querer mudar”.

A consciência daquilo que é preciso aceitar como real e inevitável pode surgir
quase de imediato em nossa mente, mas a aceitação emocional do mesmo fato
pode levar muito tempo para ocorrer. Costumamos dizer: “Eu entendo, mas
não aceito”, quando intelectualmente aceitamos algo que, emocionalmente,
ainda relutamos em aceitar.

A aceitação não é um ponto de acomodação ou de resignação, mas sim um


ponto de partida. Afinal, se quisermos transformar algo, precisamos nos
apropriar dele. Senão, o que iríamos transformar?

Aceitar um fato doloroso é como aprofundar cada vez mais a densa e


resistente camada que encobre o núcleo de nosso interior. Desse modo, nos
aproximamos do que Jung denomina de Self. Segundo ele, quando tocamos a
consciência do Self, que é a plenitude da psique, nos tornamos inteiros por
funcionar como um todo organizado - isto é, não estamos mais divididos por
nossos opostos, - pois reconhecemos que são complementares. “Aquele que
busca individuar-se não tem a mínima pretensão de tornar-se perfeito. Ele visa
completar-se, o que é muito diferente. E para completar-se terá de aceitar o
fardo de conviver conscientemente com tendências opostas, irreconciliáveis,
inerentes à sua natureza, tragam estas as conotações de bem ou de mal, sejam
escuras ou claras”.

Aceitar que temos sentimentos paradoxais em relação a muitas situações da


vida: queremos e não queremos ou gostamos e não gostamos ao mesmo
tempo, nos ajuda a fazer as pazes com nosso mundo interior. A cada dia em
que a aceitação emocional cresce, aproximamo-nos um pouco mais da
verdadeira natureza de nossa mente, que é sempre clara e confiante.

Quando paramos de lutar contra a dor do sofrimento, estamos preparados para


conhecê-lo. A curiosidade por conhecer as causas de nosso sofrimento é outra
atitude compassiva que despertamos em nosso interior.

A Segunda Nobre Verdade:


“O sofrimento tem suas causas”

A segunda nobre verdade refere-se à origem do sofrimento. A principal causa


de todo sofrimento é a visão incorreta que temos da realidade: pensamos que
tudo existe por si mesmo e pode durar para sempre. Assim, desenvolvemos o
apego, a raiva e a ignorância: os três venenos mentais raízes.

Materializamos nosso mundo subjetivo nas coisas, situações e pessoas, por


meio da projeção. Por exemplo, se desde pequenos apreciamos tomar Coca-
cola, agora, ao vê-la, automaticamente pensamos que ela é gostosa. Assim,
atribuímos à Coca-cola a qualidade de ser boa por si só, e nos esquecemos que
somos nós que a experimentamos e que a qualificamos como boa. A cada
momento, então, interpretamos a realidade como positiva ou negativa de
acordo com as nossas projeções mentais. O mecanismo de projeção interfere
em todas as circunstâncias de nossa vida, apesar de estarmos convictos que a
realidade existe por si só, objetivamente, fora de nós.

A visão de que tudo tem uma existência própria e independente, nos leva a
acreditar que possuímos um “eu” que é livre e autônomo, uma “[...] entidade
distinta, concreta, sólida – independente e separada de quaisquer outros
fenômenos. Nesse sentido, é natural que o ego se converta numa barreira
intransponível entre a pessoa e o resto do mundo, sem a chance de
comunicação e comunhão verdadeiras, não apenas com os outros, mas
também com o âmago de si mesma. É preciso demolir essa barreira e este é o
problema principal do caminho da libertação” .

Sua Santidade Dalai Lama escreve: “Em uma escritura sobre a sabedoria
perfeita, Buda faz a seguinte afirmação profunda: A mente não é para ser
encontrada na mente; a natureza da mente é a clara luz”. Isto é, os estados
impuros da mente, como o desejo e ódio, não fazem parte da natureza
profunda da mente, pois as impurezas são superficiais, e a verdadeira natureza
da mente é a clara luz.

Enquanto não atingirmos a iluminação, isto é, superarmos a ilusão de termos


um “Eu”, o impulso instintivo da projeção fará parte do nosso funcionamento
psíquico. Apenas quando extinguirmos esse hábito mental, é que iremos
superar este padrão tão arraigado de ignorância que nos impede de reconhecer
a verdadeira natureza de nossa mente: que é pura, compassiva e ilimitada.

Ao explicar o que é a verdadeira compaixão, Sogyal Rinpoche nos ensina a


compreender, também, a natureza do sofrimento: “Compreender o que chamo
de sabedoria da compaixão é ver com completa clareza seus benefícios, bem
como o dano causado pelo seu oposto. Temos de fazer uma distinção muito
clara entre o que é o interesse do nosso ego voltado para si próprio e o que é
nosso interesse maior e supremo. É confundindo um com o outro que vem
todo o nosso sofrimento. Continuamos crendo teimosamente que a valorização
do eu é a melhor proteção na vida, mas o oposto é que é a verdade. O apego ao
eu cria a valorização do eu, que por sua vez produz uma arraigada aversão ao
mal e ao sofrimento. No entanto, o mal e o sofrimento não têm existência
objetiva; o que lhe dá existência e poder é somente a nossa aversão a eles.
Quando você entende isso, entende que é nossa aversão que atrai para nós toda
negatividade e os obstáculos que podem se nos opor, enchendo nossas vidas
de expectativas, ansiedade nervosa e medo. Esgote essa aversão esgotando a
mente voltada para si mesma e seu apego a um eu inexistente, e você vencerá
todo poder que os obstáculos e negatividades possam ter sobre você. Mesmo
porque, como é possível atacar alguém ou alguma coisa que simplesmente não
existe?”

“O Ego é a bota que desgastamos no espinhoso caminho da espiritualidade” -


escutei, certa vez, Sua Santidade Dalai Lama falar numa entrevista para a
televisão.

Por isso, para praticar a Segunda Nobre Verdade em nossa vida, é preciso
procurar manter um estado de abertura e relaxamento frente a tudo e a todos.
Em outras palavras, seguir o ditado budista “não se apegue, nem rejeite, então
tudo será claro”.

A Terceira Nobre Verdade:


“É possível eliminar as causas do sofrimento”
A terceira nobre verdade refere-se à cessação do sofrimento. Não estamos
condenados a sofrer para sempre. Portanto, aceitamos o sofrimento para
transformá-lo, e não para carregá-lo como uma cruz.

Por toda nossa vida, iremos sentir emoções, faz parte de nossa natureza. No
entanto, podemos abandonar o hábito de alimentar as emoções destrutivas.

Lama Michel Rinpoche esclarece: “Sofrimento é ter apego à dor. Uma coisa é
a gente ter dor e sofrer com isso; outra é dizer: ‘Está doendo, mas por que vou
sofrer, passar mal?’. Dor e sofrimento são coisas diferentes. Uma coisa é a
gente ter dor, e outra é ter o sofrimento. Você pode ter a dor e não achar que
ela é algo ruim, pode transformá-la”.

Mas, afinal de contas, para que queremos transformar o sofrimento? Só para


ter o alívio da dor? Quem já não se pegou falando: “Contanto que eu não
sofra, tudo bem”. Será que nosso “sonho de consumo” de viver uma vida em
paz está baseado apenas na idéia de não sofrer?

Este seria um propósito baseado numa postura de baixa auto-estima, que não
se vê capaz de co-criar, de prosperar. Se nossa idéia de felicidade estiver
baseada apenas na premissa de não sentir mais dor, viveremos como parasitas,
anestesiados pelos mecanismos de defesa que nos impedem de nos mover
frente ao desconhecido.

Hoje em dia, tem aumentado o número de livros e artigos em revistas que


buscam definir o que é ser feliz. Acredito que ser feliz é ter, cada vez mais,
uma mente aberta, capaz de aceitar as diferenças entre nós e os outros, ter
disposição e um sentido maior para superar as dificuldades, e por fim, deixar o
mundo à nossa volta um pouco melhor do que era quando nele chegamos e,
assim, podermos, ao morrer, partir mais leves. Sinto-me feliz, quando sinto-
me inspirada a reconstruir e a compartilhar essa vontade com aqueles que
almejam o mesmo.

A felicidade depende da clareza interna

É importante reconhecer que o autoconhecimento depende de nossa dedicação


ao mundo exterior. Pois é a relação com o mundo exterior que nos ensina a
identificar os nossos limites, assim como potenciais e qualidades positivas.

Quando temos um encontro autêntico com a nossa alma, somos postos frente a
frente com o que é verdadeiro para nós. Não podemos mais nos enganar.
Vamos ter de lidar diretamente com as nossas limitações.

Identificar nossas limitações não é o problema. Mas é preciso verdadeiramente


aceita-las. Sermos sinceros conosco. Caso contrário, estaremos sempre
transferindo para os outros nossas próprias dificuldades. Quando tratamos os
outros com ironia e sem afeto, estamos, na verdade, reagindo a uma
dificuldade pessoal e nem nos damos conta de quanto sofrimento estamos
criando para os outros e para nós mesmos. Não ferir os outros é uma ação
preventiva para não ferirmos a nós mesmos.

A falta de sinceridade para conosco é que nos paralisa e adia nosso processo
evolutivo. O problema, portanto, é tentar negar nossas frustrações e
limitações, minimizando-as ou encontrando artifícios e falsas soluções para
lidar com elas.

São soluções falsas:

• Dar leveza e superficialidade ao que merece atenção e profundidade.


• Fazer o que os outros mandam para não assumir a responsabilidade sobre
nossa própria vida.
• Ser submisso à vontade alheia para não ter autoria sobre nossos desejos e
necessidades: a culpa (apesar de não existir legitimamente) recai sempre sobre
aquele que evidenciou o seu querer.
• Ser perfeccionista para não aceitar nem a si mesmo, nem aos outros.

Então, vamos deixar claro: lidar com a dor do sofrimento não é uma atitude
masoquista nem tampouco manipuladora, mas sim um método para nos
movermos para a Quarta Nobre Verdade: o caminho para transformar o
sofrimento em paz interna.

Podemos aprender a transformar apego em satisfação, raiva em compaixão,


ignorância em sabedoria. E assim, teremos reais condições para dar um
sentido verdadeiramente útil à nossa vida: como cuidar da continuidade
positiva de nossa mente e do ambiente à nossa volta.

Há muito para ser feito, mas sem uma base energeticamente positiva, não é
possível fazer nada. Por isso, para nos mantermos no caminho da contínua
transformação do sofrimento em paz interna, temos de nos manter abertos para
lidar com as dificuldades que surgirem, isto é, ter disponibilidade emocional
para lidar com a dor. Não precisamos evocar mais sofrimento do que já temos
para praticar esta transformação. Temos sempre o suficiente potencial de dor
latente para praticarmos a Quarta Nobre Verdade.

Quarta Nobre Verdade:


O caminho para eliminar as causas do sofrimento

A quarta nobre verdade refere-se ao caminho que conduz à extinção do


sofrimento, conhecido por Nobre Caminho Óctuplo. Ele indica um percurso
de oito passos que devemos perfazer, com nosso corpo, fala e mente para
superar o sofrimento. Mais pra frente os estudaremos separadamente.

As Oito Nobres Atitudes, ou passos corretos são:


1. O entendimento correto
2. A intenção correta
3. A fala correta
4. A ação correta
5. O modo de vida correto
6. O esforço correto
7. A concentração correta
8. A meditação correta

Em sânscrito, samma quer dizer correto, isto é, o que funciona ou o que é


apropriado. “Neste sentido, Correto, no Caminho Óctuplo, não significa certo
versus errado, mas sobretudo ver versus não ver. Refere-se a estar em contato
com a Realidade, em oposição a ser enganado pelos próprios preconceitos,
pensamentos e crenças. Samma se refere à Totalidade em vez de à
fragmentação” explica Steve Hagen.

Estarmos dispostos a efetuar uma real mudança em nossa maneira de


caminhar é uma atitude resultante do longo processo de amadurecimento das
Três Nobres Verdades.

A Quarta Nobre Verdade nos ensina a caminhar sobre nossa própria estrada.
Neste sentido, cada um irá precisar ter a sua experiência para obter os
benefícios da caminhada. É como tentar contar a alguém a experiência de
escalar uma montanha. Podemos compartilhar os relatos, mas o benefício da
escalada é apenas daquele que a percorreu.

O mesmo ocorre com os ensinamentos sobre o Caminho Óctuplo: não basta


ter uma compreensão intelectual sobre eles, é preciso vivenciá-los. Senão, eles
parecerão tão nobres quanto distantes, como se nunca tivéssemos condição de
realizá-los. Ao contrário disto, os mestres budistas nos incentivam a sentir os
ensinamentos como experiências pessoais, e, portanto, possíveis. Mas, para
testar e sentir o sabor de pisar em solo firme, é preciso dar um primeiro passo.
Depois que saboreamos o gosto de praticar, não queremos mais parar!

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