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2 O lote urbano colonial A producgio e o uso da arquitetura e dos nicleos urbanos coloniais baseavam-se no trabalho escravo. Por isso mesmo, o seu nivel tecnolégico era dos mais precérios. As vilas e cidades apresentavam ruas de aspecto uniforme, {com casas térreas e sobrados construidos sobre o alinhamen- to das vias piblicas e sobre os limites laterais dos terrenos, 21 Pode-se afirmar com seguranga que durante o pe- riodo colonial a arquitetura residencial urbana estava baseada em um tipo de lote com caracteristicas bastan- te definidas. Aproveitando antigas tradigdes urbanis- ticas de Portugal, nossas vilas e cidades apresentavam tuas de aspecto uniforme, com residéncias construidas sobre o alinhamento das vias publicas e paredes late- rais sobre os limites dos terrenos. Nao havia meio-ter- mo; as casas eram urbanas ou rurais, no se conceben- do casas urbanas recuadas e com jardins. De fato, os jardins, como os entendemos hoje, sio complementos relativamente recentes, pois foram introduzidos nas re- sidéncias brasileiras durante o século XIX. Sabe-se que © Palacio de Friburgo do Principe de Nassau, no Reci- fe, possufa um, com a denominagao de jardim botani- co, mas tal palacio era considerado como sua residéncia de vero e era situado em local um pouco isolado, reu- nindo caracteristicas de chacara. Mesmo os_ Palacios dos Governadores, na Bahia, Rio de Janeiro e Belém, foram edificados como as residéncias comuns, sobre o~ alinhamento das vias ptblicas; nesses casos, a ausén- cia de elementos de acomodacao ao exterior era mais sensivel, uma vez que tais edificios davam frente para mais de uma via publica e eram de proporgées incomuns. No Para ou no Recife, em Salvador ou em Porto Alegre, encontram-se ainda hoje casas térreas e sobra- dos dos tempos coloniais, edificados em lotes mais ou menos uniformes, com cerca de dez metros de frente e de grande profundidade. Também em Sao Paulo as dreas mais antigas do centro eram edificadas com resi- déncias desse tipo, restam ainda hoje alguns exempla- res, bastante significativos: um 4 rua José Bonifacio, antigo nimero 20, em frente 4 rua Senador Paulo Egi- dio e outro a rua Tabatingiiera. © esquema apontado envolyia ainda a prdépria idéia que se fazia de via publica. Numa época na qual ~ as ruas, com raras exceces, ainda nao tinham calgamen- to, nem eram conhecidos passeios — recursos desenvol- vidos j4 em épocas mais recentes, como meio de sele- ¢do e aperfeicoamento do trafego — nao seria possivel pensar em ruas sem prédios; ruas sem edificagdes, defi- nidas por cercas, eram as estradas. A rua existia sem- (1) Demolido em 1969. 22 pre como um traco de uniao entre conjuntos de prédios e por eles era definida espacialmente. Nessa €poca ainda eram desconhecidos os equipa- mentos de preciso da topografia e os tragados das ruas eram praticados por meio de cordas e estacas e nao havia portanto possibilidade de serem mantidos, por muito tempo, tragados rigidos, sem que fossem eri- gidos os edificios correspondentes. A impressio de monotonia era acentuada pela auséncia de verde. Ini xistindo os jardins domésticos e publicos* e a arboriza-~ ¢ao das ruas, accntuava-se naturalmente a impressdo de concentracéo, mesmo em niicleos de populacdo redu- zida. Atenuavam-na apenas os pomares derramando-se por vezes sobre os muros, A uniformidade dos terrenos correspondia a uni- formidade dos partidos arquiteténicos: as casas eram construidas de modo uniforme e, em certos casos, tal padronizag&o era fixada nas Cartas Régias ou em pos- turas municipais. Dimensdes e nimero de aberturas, _ altura dos pavimentos e alinhamentos com as edificacdes vizinhas foram exigéncias correntes no século XVIII. Revelam uma preocupacao de cardter formal, cuja fi- nalidade era, em grande parte, garantir para as vi- las _e cidades brasileiras uma aparéncia portuguesa. As repetigdes nao ficavam porém somente nas fachadas. Pelo contrario, mostrando que os padrées oficiais apenas vinham completar uma tendéncia espontanea, as plan- tas, deixadas ao gosto dos proprietarios, apresentavam sempre uma surpreendente monotonia. As salas da frente e as lojas aproveitavam as aberturas sobre a Tua, ficando as aberturas dos fundos para a iluminacéo dos cémodos de permanéncia das mulheres ¢ dos locais de trabatho, Entre estas partes com iluminago natural, situavam-se as alcovas, destinadas A permanéncia no- turna e onde dificilmente penetrava a luz do dia. A circulagao realizava-se sobretudo em um corredor lon- gitudinal que, em geral, conduzia da porta da rua aos fundos. Esse corredor apoiava-se a uma das paredes laterais, ou fixava-se no centro da planta, nos exemplos maiores. As técnicas construtivas eram geralmente primiti- vas. Nos casos mais simples as paredes eram de pau- @) O mais antigo, 0 Passeio Piblico do Rio de Janciro, € de fins do século XVII. 24 A casa térrea era a versdo mais modesta. -a-pique, adobe ou taipa de pilfo e nas residéncias mais importantes empregava-se pedra e barro, mais raramen- te tijolos ou ainda pedra e cal. O sistema de cobertura, em telhado de duas 4guas, procurava Jangar uma parte da chuva recebida sobre a rua e a outra sobre o quin- tal, cuja extens4o garantia, de modo geral, a sua absor- cao pelo terreno. Evitava-se, desse modo, o emprego de calhas ou quaisquer sistemas de captagao e condugdo das dguas pluviais, os quais constituiam verdadeira ra- ridade. A construg&o sobre os limites laterais, na expec- tativa de construcGes vizinhas de mesma altura, procura- va garantir uma relativa estabilidade ¢ a protecio das empenas contra a chuva, o que, quando n§o era corres- pondido, se alcangava através do uso de telhas aplicadas verticalmente. A simplicidade das técnicas denunciava, assim, claramente, o primitivismo tecnolé- gico de nossa sociedade colonial: abundincia de mio- -de-obra determinada pela existéncia do trabalho es- cravo, mas auséncia de aperfeigoamentos. Os exem- plares mais ricos apenas acentuavam essa tendéncia: apresentavam maiores dimensGes, maior niimero de pe- cas, sem, contudo, chegar a caracterizar um tipo dis- tinto de habitacao, As variacSes mais importantes apareciam nas casas de esquina. Tendo a possibilidade de aproveitar duas fachadas sobre a rua, alterayam em parte o esquema de planta e telhado, menos para inovar, do que para con- seguir o enquadramento de ambas nos modelos tradicio- mais. Outras variagdes —~ se é que chegavam a sélo — correspondiam ao aparecimento de corpos elevados, do tipo agua-furtada ou “camarinha”; sua existéncia, porém, pressupunha a presenga, logo abaixo, do esque- ma de telhado em duas dguas, capaz de evitar o empre- go de calhas ¢ rufos. O uso dos edificios também estava baseado na presenga e mesmo na abundancia da m4o-de-obra. Pa- ra tudo servia o escravo, E sempre a sua presenga que resolve os problemas de bilhas d’dgua, dos barris de esgoto (os “tigres”) ou do lixo, especialmente nos so- brados mais altos das dreas centrais, que chegavam a alcangar quatro, cinco ¢ mesmo seis pavimentos. Era todo um sistema de uso da casa que, como a constru- g4o, estava apoiado sobre o trabalho escravo e, por isso mesmo, ligava-se a nivel tecnolégico bastante primi- 26 con SSS he ee SES. 7 \ Us \ a ——\"\ \\ = NY ‘ \ ~~ tivo. Esse mesmo nivel tecnolégico era apresentado pelas cidades, cujo uso, de modo indireto, estava basea- do na escravidao. A auséncia de equipamentos ade- quados nos centros urbanos, quer para o fornecimento de Agua, quer para o servico de esgoto e, mesmo, a de- ficiéncia do abastecimento, eram situagdes que pressu- punham a existéncia de escravos no meio doméstico; a permanéncia dessas falhas até 4 abolicfo poderia ser vista, até certo ponto, como uma confirmagao dessa relagao. Os principais tipos de habitagéo eram o sobrado e a casa térrea. Suas diferencas fundamentais consistiam no tipo de piso: assoalhado no sobrado e de “chao batido” na casa térrea. Definiam-se com isso as rela- gGes entre os tipos de habitagao e os estratos sociais: habitar um sobrado significava riqueza e habitar casa de “chao batido” caracterizava a pobreza. Por essa razéo os pavimentos térreos dos sobrados, quando nao eram utilizados como lojas, deixavam-se pata acomo- dagdo dos escravos ¢ animais ou ficavam quase vazios, mas no eram utilizados pelas familias dos proprieta- tios. No mais, as diferencas eram pequenas. Os pla- nos maiores correspondiam, quase sempre, apenas a um rebatimento ou sobreposigéo dos esquemas de plantas mais simples. Ainda no inicio do século passado, diria Debret, examinando um exemplo de grande casa resi- dencial no Rio de Janeiro: “O sistema de construgdo encontra-se, sem nenhuma alteragdo, nas grandes ruas comerciais, nas pracas ptblicas e nos arrabaldes da cidade; a diferenca esté em que, nos bairros elegantes do Rio de Janciro, o alto funciondério ¢ o negociante reservam o andar térreo inteiro 4s cocheiras e estre- barias, ao passo que na cidade o comerciante nele ins- tala os seus espacosos armazéns”*. Um outro tipo caracteristico de. habitacg&o do pe- tiodo colonial era a chacara. Situando-se na periferia dos centros urbanos, as chdcaras conseguiam reunir as vantagens dessa situacéo as facilidades de abastecimen- to e dos servicos das casas rurais. Solugdo preferida pe- las famflias abastadas, ainda no Império e mesmo na Reptblica, a chdcara denunciava, no seu carater ru- ral, a precariedade das solugées da habitagdéo urbana (3) Debret, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histéria do Brasil So Paulo, Editora Martins, 1949, vol Il, p. 262.0 0 28 2. corredor de entrada para residéncia, independente 3. salao; 4. alcovas; 5. sala de viver ou varanda; a e@ servicos. A producdo e ousoda casa baseavam-se no trabalho escravo da época. O principal problema que solucionavam era o do abastecimento. Durante todo o perfodo colonial e, em parte, até os dias atuais, as tendéncias monoculto- ras de nosso mundo rural contribuiram para a existén- cia de uma permanente crise de abastecimento nas ci- dades, Assim sendo, as casas urbanas tentavam resolver em parte o problema, por meio de pomares, criagao de aves e porcos ou do cultivo da mandioca ¢ de um ou outro legume. Solugdes satisfatérias eram porém conseguidas somente nas chdcaras, as quais aliavam, a tais vantagens, as da presenca de cursos d’agua, subs- titutos eficientes para os equipamentos hidraulicos ine- xistentes nas moradas urbanas, Por tals razdes, tor- naram-se as chécaras habitagdes caracteristicas de pes- soas abastadas, que utilizavam as casas urbanas em ocasides especiais. Mesmo os funcionérios mais im- portantes e os comerciantes abastados, acostumados ao convivio social estreito e permanente, caracteristicos de suas atividades, cuidavam de adquirir, sempre que possivel, chdcaras ou sitios, um pouco afastados, para onde transferiam suas residéncias permanentes. Po- rém, o afastamento espacial em que ficavam os mora- dores das chécaras em relagio as cidades e vilas era considerado como medida de conforto e« nao como um desligamento daqueles centros. Pelo contrario, o tipo de atividade econdémica por eles desenvolvida deveria caracteriz4-los como partici- pantes da economia urbana. Além disso, as Areas, 4s ve- zes maiores, daquelas propriedades, nao correspondiam a atividades econdémicas especificamente rurais. E famosa em Salvador a chécara do Unhio, cons- truida no século XVIII e ainda hoje conservada, com sua majestosa residéncia, senzalas, embarcadouros, ca- pela e até um grande servigo de abastecimento de Agua. Esses habitos, por certo, vinham acentuar a vin- culagio, ao mundo rural, dos centros pequenos. Cons- truidas para acomodar apenas nos dias de festa os mo- radores das fazendas, as vilas e cidades menores tinham vida urbana intermitente, apresentando normalmente um terrivel aspecto de desolagaio, Tera sido esta, por certo, a impressio de Saint-Hilaire sobre Taubaté, quan- do comenta, ao chegar aquela cidade, em 1882, que “como em toda a cidade do interior do Brasil, a maio- 30 ae ew a ¥ cat a cece ad CSEM LUZ) is an ae ae REBATIMENTO DOS BSQUEMAS DAS PLAWTAS MAIS SIMPLES. TELHADO EM ria das casas fica fechada durante a semana, sd sendo 4 habitada nos domingos e dias de festa”*. Vemos, portanto, que fundada no regime escravista, quer para a construgao, quer para o uso, a habitacio urbana tradicional correspondeu a um tipo de lote pa- dronizado e este a um tipo de arquitetura bastante pa- dronizada, tanto nas suas plantas, quanto nas suas téc- nicas construtivas. Este esquema nado é tipicamente brasileiro. Suas origens situam-se no urbanismo medie- val-renascentista de Portugal. As condigdes locais ape- nas selecionaram entre os modelos importados os de maior conveniéncia, desenvolvendo-os e adaptando-os em termos de parcela do mundo luso-brasileiro. Tais so- lugées tém sido caracterizadas por forgar aparéncia de concentragdo, mesmo em centros de populagdes e di- menses limitadas. De qualquer modo, é preciso des- tacar que seu uso corresponde a uma época na qual os recursos rurais e o proprio mundo rural estavam sem- pre ao alcance da voz e da vista do homem urbano, para solucionar muitos dos problemas fundamentais dessas vilas e cidades. Insuficientes para resolverem tais problemas de modo satisfatério, sem auxflio externo, nossas formacées urbanas eram, por isso mesmo, limita- das em suas dimensdes, apoiando-se largamente no mundo europeu e no mundo rural circundante, dos quais eram quase sempre uma decorréncia direta. E somente quando temos em vista esses fatores, que con- seguimos compreender como puderam funcionar em Niveis tecnolégicos tdo primarios, mesmo as nossas maiores cidades do periodo colonial. Em outra oportunidade procuraremos examinar o desenvolvimento desse processo durante os séculos XIX e XX. (4) Saint-Hilaire. Segunda Viagem a Sdo Paulo. So Paulo, Martins Editora, 1953, p. 95. 32

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