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MARXISMO E FILOSOFIA "Ser redieal€ apanhar us eaieas pela 6 homem, a raiz éo priprio homer. {Mare — Contrfbulgie a Critica da Filasnfia do Dieeito de Hegel.) Ora, pare ‘Teriamos uma idéia bem estranha do marxismo ¢ de suas relagdes com a filo- sofia se fssemos julga-lo pelos escritos de certos marxistas contemporineos. Para estes, visivelmente, a filosofia é inteiramente verbal, desprovida de qualquer con- teddo ¢ significagao. Como Augusto Comte em seu primeiro periodo, querem substitui-la pela ciéncia e reduzir o homem a condigdo de objeto da ciéncia. P. Naville! escreve que a economia politica deveria pedir emprestada o método das ciéncias da natureza, estabclecendo as leis da “natureza social” como as ciéncias da natureza estabelecem as da natureza Fisica. Numa discussao com Sartre, publi- cada recentemente, mostra-se mal-humorado com o humamismo e, bravamente, toma o partido do naturalismo. Nas Letires Frangaises, R. Garaudy realiza a proeza de celebrar Descartes em varias colunas sem sequer mencionar 0 Cogito. No grande Anfiteatro da Sorbonne, G. Cogniot também presta sua homenagem a Descartes pondo os “filésofos de café” no lugar que merecem, por acreditarem que o homem deve ser definido como nao-ser, em opasigao as coisas.* Nessa homenagem, Cogniot se esguece de que Descartes é 0 primeiro responsivel por essa aberragio, bastando abrir as Meditagdes? para convencer-se disso, Cada um tem pleno dircito de adotar a filosofia que lhe agrade, como, por exemplo ¢ cientificismo ¢ o mecanicismo que, durante longo tempo, ocuparam o lugar do Ppensamento nos meios radicais-socialistas. Todavia, é preciso saber ¢ dizer que esse tipo de ideologia nada tem a ver com marxiamo. Uma concepgao marxista da sociedade humana ¢, em particular, da socie- dade econdmica, vendo-a em movimento rumo a um novo arranjo em cujo interior as leis'da economia clissica nic mais se aplicario, niio pode submeté-la a leis permanentes como as da fisica classica. Em O Capital, o esforgo de Marx tende, justumente, a mostrar que us famosus leis da cconomia clissica, freqientemente apresentadas como tragos permanentes de uma “natureza social”, na realidade sao atributos (¢ mascaras) de uma certa “estrutura social” — o capitalismo, que * Militante do Partido Comunista Francés, (N20 T.) # Referineia a L Eire ef fe Néunt, onde Sarire define 9 comseiznein como nicer (ndant) frenve ap ser, isto Se coitas, (N. do 7.) 3 No sou essa reunite de membros que sé chama corpo humanes no sou wm ar solto « penstrante, espa nado por todas os membros;n0 sow wn ¥ento, um sopro, un vapor.c nada daxuile que posse fingir ov inna sinat” (Medleage UM), (8, 00 A.) 2 MERLEAU-PONTY evolui rumo 4 sua propria destruigdo. A nogiio de estrutura ou totalidade, que pa- rece merecer a desconfianga de Naville. ¢ uma categoria fundamental do marxis- mo. Uma economia politica marxista s6 pode falar em leis no interior de estrutu- ras qualitativamente distintas que devem ser descritas cm termos de histéria, A priori, o cientificismo surge como uma concepgfo conservadora, pois nos leva 2 tomar aquilo que € momentanco como se fora eterno. De fato, ma historia do ma xismo, 0 fetichismo da eiéncia apareceu sempre do lado em que a consciéncia revolucionaria estava prostrada. Assim, o célebre Bernstein * conjurava os marxis- tas @ regressarem a objetividade do sabio. * Como observa Lukacs, cientificismo @ um caso particular da alienagao ou objetivagao (Verdinglichung) que priva 0 homem de sua realidade humana e faz com que se confunda com as coisas. © Alids, temos pouco fundamento para explicar a sociedade humana em sua totalidade (simultnea ¢ sucessiva) pela agdio combinada de leis “naturais” perma- nentes, visto que tal redugdo nao & mais possivel nem mesmo com relago A pré- pria natureza fisica.’ Longe de poder eliminar a estrutura. a fisica moderna 56 concebe suas leis no quadro de um certo estado hist6rico do universo, fornecido por coeficientes empiricos dados como tais ¢ que nfo podem ser deduzidos de sorte que néo nos oferece qualquer critério que nos permita considerd-lo como definitive, Naville dira entao: isto ocorre porque ha uma dialética no nivel da natureza ¢, neste sentido, a natureza ¢ a sociedade sao homogéneas. Ora, & bem verdade que Engels retomou a idéia aventurosa de Hegel de que h4 uma dialétien da natureza. Contudo, além de ser a idéia mais fragil da heranga hegeliana, como a dialética da natureza sobreviveria ao idealismo? Se a natureza ¢ a natureza, ou seja, exterior a si propria ¢ a nds, niio pode oferecer.as relagdes nem a qualidade necessarias para carregar uma dialética. Se a natureza é dialética, € porque se trata da natureza percebida pelo homem ¢ inseparavel da agio humana, Trata-se daqueln natureza de que fala Marx nas Teses Cowrre Feuerbach © na Ideologia Alemd; “A atividade, a agio ¢ o trabalho sensiveis ¢ continuos, a produgio. sio (..) ¢ fundamento do mundo sensivel tal como existe atualmente”_* + Socialista altmiio, exeeutor testamenteird de Fngels, propdis om L898) ume revisiw slo marsismo comsis tindo no abandano d3 posigde revaluctondtin ein favor de uni deteavalvimicato gradual runvo nc woctalisie. (N.do TS © No texto, smite eno sige. Tran xe do clemista, (N. dT.) * G. Lukics, Geschichte unl Klassenbewussisein, Bertin, 1923. Die Verdingilchumg amd day Bewussisein des Proletariats. (N. do A.) Merleas-Ponty ett referindo-se a anilise lukaetiana da relfleagd. (N. dT.) 7 Ching Fstruura do Compariamence a anilise da order fisiea, (N. do T:) * Feuerbach erra pot *ndio conceber 0 mundo seasivel como atividaus xznsivel totale vivente des individuox gue @ constituen” (ddevlozie Alemi). Inspira-se mas ciénetas natura,“ May onde estutiann as Cites nat: fais sem a indistria © 9 comércio? Com efeito, mesmo essax citaciag galucais “puras™ sO recebem seus Fine © materiais pragas a9 cemmércie © h indistria, isto €, 9 attvidade sensivel das homens” (Ibid). A ciéneln ida natureza fax parte do mundo cultural © ndo dove ser hiposiasiads. visio que ignsica suas pospeias premtin sats humm. “B por fis0 que tnda classe tem seus traidores”, contrarienda 9 deierminisn ingénuiy Se um meemnieiscno seonamisista, (NodoT} MARXISMO E FILOSOFIA w Mundial” de Hegel, génio maligno que dirige as homens sem que © saibam, ebri- gando-os a realizar seus designios, ou mesmo a ldgica espontanea das idéias sao para Marx outras tantas “realizagGes fantisticas da esséncia humana™. Mas a luta contra o idealismo nada tem a ver com a objetivagao positivista do homem. Marx nAo aceitaria sequer falar. como faré Durkheim, de uma consciéneia coletiva de que os individuos seriam os instrumentos, “E preciso evitar, antes de tude, fixar novamente a sociedade como abstracio postada defronte a0 individuo. O indivi duo 0 ser sovial,”*® “O homem é um ser existente por si mesmo”, portanto, um ser genérico."7 para o qual a sociedade nao é um acidente suportado, mas. uma dimensao de seu ser. Nao est4 em sociedade como um objeto em uma Caixa. assume-a em sua interioridade. Fis por que se pode dizer que “o homem produz a si mesmo ¢ ao outro”.'® “Do mesmo medo que a sociedade produz por si mesma 0 homem come homem. ¢ é praduzida por ele.” '* Qual ha de ser o portador da histéria e motor da dialética para Marx, se nao. for uma “natureza social” dada fora de nds, nem o “Espirito do Mundo”, acm o movimento proprio das idéias? Ha de ser o homem engajado num certo modo de apropriagao da natureza no qual se desenha 0 modo de suas relugSes com o outro. Hai de ser a intersubjetividade humana concreta, a comunidade sucessiva © simul- tanea das existéncias reatizando-se num tipo de propriedade a que se submeteme transformam, cada uma delas criada pelo outro ¢ criande o outro. Com razdo, algurias vezes perguntou-se como um materialismo poderia ser dialético,?° como @ matéria, se @ terme for tomado rigorosamente, poderia conter o principio da produtividade de novidade que se chama dialética. Ora, isto € possivel porque no maraismo a “matéria™ (e também a “consciéncia”) nunca ¢ considerada a parte. mas ¢ inserida no sistema da coexisténeia humana. fundando ai uma situagao comum dos individuos contempordneos e sucessivos, asseguranda a generalidade de seus projetos ¢ tornando poss‘vel uma linha de desenvolvimento e um sentido da historia. Mas, se esta ldgica da situagio & iniciada, desenvolvida ¢ cumprida, tal processo ocorre porque ¢ realizado pela produtividede humana. Sem esta, o Jogo das condigSes naturais dadas nao farin surgir uma economia, ¢, menos ainda, uma hist6ria da economia.?" Os animais domésticos, diz, Marx, estdio misturados Marx, Hconomie Politique <2 Phllasopibar ect. pag. 27, (Neda Al “bhi. pig. 18.1N.do A.) * Ibid, pag. 25.(N, d0 A.) 8 Hb pny 20, (No Ak AV itlisme et Revolution". Al Les Temps Moderns, IX AN, do Ad o nueleasa ensaia, Merlesu-Pory procura mostrar como es Concsiten de “malGaia™ ¢ “éomaien ia” sito recoloeados por Marsnuma disléicn mienalinn, A questio colocsda’ coma é passive 0 dialities a minérin? sore porque a diaktien sopde © exige rim movimento: refexionants pelo. qual algo & poste S reptato diannsformido, em sirtade de ut megayie imanencs ao propels movimento de posigaio € reposigae (isto 6, contradi¢do, Sa ha pradugio se houver TeflexBo ¢ negngo, Oras matériac exe sua iaéecla ¢ exterior’ Gade, parcce desprovida dessa efttividude exigida pele dialica, Por nutra lado, a conseléncka ou m expirito aregers sor ab iinieas realidndes capauss dessa reflexdio produtora, de vate qué a dialitica si pweria ner Siakatica oo espirito. Em sua, somemte & cavsalidade extorna paroxeria explicar a matéria, © semuenie cinletiea urceeria explica’ a espirites, Ora, seguado, Merlews Ponty, quando Mark combave u materialise ponitivista ¢ v idealisma dialético, obriga a “matizia” 2 a “conseiéneta” a penetrarem numa nova dimensio, gue-é justamenie 2 do materaliema dialeticn « hisviricn. No final das eontis. come o ensaio meutrar’, a “enotéria” sin-s rotaySe> sociais que desinem v modo detsrminade dz apropriaggo da narureza, da givin de irubutho, e day religGes inter humanes mediacas pot e4aa anrppriagio © por eats divisto. A “maltr Wi MERLEAU-PONTY com a vida humana, mas sio apenas scus produtos ¢ nao participam dela, O homem, pelo contrario, produz modos de trabalha e de vida sempre novos. Por- tanto, nao ha uma explicagao'do homem a partir do animal e, muilo menos, a par- tir da matéria.2? Nio ha origem do homem, “(., .) coma, para o homem socia- lista, toda suposta histria do mundo € apenas a produgio do homem pelo trabalho humano, ou seja, o devir da natureza para o homem, ¢ homem socialista possui, portanto, a prova evidente, irrefutavel. de seu proprio nascimento, de sua origem”.23 Se o homem socialista pode pressentir um “reino da liberdade” que ainda nao 6, e, nesta perspectiva, viver o presente como uma fase da alienagao capitalista. é porque possui diante de si mesmo a seguranga de que o homem é produtividade, relagae com outra coisa diferente dele. em vez de ser uma coisa inerte. Iremos, entao, definir o homem come consciéncia? Isto seria, ainda uma ver, realizar 2 essinein humana fantasticamente. pois, uma vez definide como consciéncia, o home se separard de todas as coisas de seu corpo-e de sua exis- téncia efetiva. E preciso, portanto, defini-lo como relagae com instrumentos ¢ objetos, como uma relagdo que no seja de simples pensamento, mas que o engaje no mundo de tal maneira que tenha uma face exterior, um fora, que seja “objeti- vo" a0 mesmo tempo que “subjetivo". Chegar-se-& a isto definindo 0 homem como ser ‘que padece™ ou “sensivel”,? 4 isto é, situado natural ¢ socialmente, mas, também, aberto, ativo ¢ capaz de estabelecer sua autonomia sobre @ proprio terre- no de sua dependéncia. “Vemos aqui como o naturalismo ou o humanismo reali- zado difere tanto do idealismo quanto do materialismo, e como, ao mesmo tempo, & a verdade que une ambos,” ® Trata-se de compreender que o vinculo que prende © homem ao mundo é ao mesmo tempo o meio de sua liberdade, e como o homem, em Contato com a natureza, sem quebrar a necessidade dela, mas, pelo contrario, utilizando-a, projeta 4 sua volta os instrumentos de sua liberagao, constitui um mundo cultural, onde “o comportamento natural do homem tornou-se Aurmana (.. J, onde o ser humano tornou-se seu ser natural, sua natureza humana tornou- s¢ sua natureza”.*° Este meio nao sobrenatural, mas transnatural, onde os ho- mens “refazem sua vida todos os dias”,*7 é a histéria, “A historia a verdadeira histéria natural do homem."?" © marxisme no é uma filesofia do sujeita, mas também nao é uma filosofia do objeto. E uma filosofia da historia.** no ay relagdes socials exteadidas come relagiicy deterininadas emcc.0s homeas, meiadas por suas celagbes determiandas com a coisis, Em altinn instincia, a dialética maueriaista é una diakies do ‘rabaio, No © trabalho pueients do comceito, eomo em Hegel, mias © wabalko eencreto dae homens soltendo ¢ fazende a historia cm condigies determinadas, isto é, 0 tahatho inserido. num mado de produgio detsrmiand, (N07) 2 Merleau-Poaty procura salientar qué 0 iaraiimo aids ennfurde com 0 evolueionisme do século XIX. nem com 0 mitirialismo-do século XWIL. O mtetialisno-marxista ado consiste em fazer do homers Um te) ‘mal mais apto da que ox autros, nem um arranjo expecial de carsponentes rasteriais (fisieoticioligiens), (N. do) 73 Marx, Leonomie Politique et Philosophie, ed.

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