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Série Temas Volume 59 Literatura brasileina Editor Fernando Paixto Editor assistente Ouacilio Nunes Preparasao de texto Carla Moreira Projewo grifico de capa e miolo Homem de Melo & Troia Design ISBN 8508 06121 8 Impressio Grifica Palas Athena 1996 Editora Atica Rua Bardo de Iguape, 110 CEP 01507-900 — Sao Paulo — SP Caixa Postal 8656 ‘Tel.: PABX (011) 278-9322 Fax: (011) 277-4146 ; Sumdrio Sobre alguns modos de ler poesi memorias ¢ reflexes Alfredo Bosi Nota do organizador A representacao do sujeito lirico na Paulictia desvairada Joao Luiz Lafetd O lirismo em si mesmo: leitura de “Poética” de Manuel Bandeira Jorge Koshiyama Os jasmins da palavra jamais Murilo Marcondes de Moura ‘A musa quebradiga Fabio de Souza Andrade Expansio ¢ limite da poesia de Joo Cabral Alcides Villaga O “fragmento” da juventude Benedita Nunes Cajutna transcendental José Miguel Wisnik A intuigao da passagem em um soneto de Raimundo Correia Alfredo Bosi 49 51 79 101 125 141 171 191 O lirismo em si mesmo: leitura de “Poética” de Manuel Bandeira Jorge Koshiyama Vida e poesia: a escuta do outro este poema, temos um registro fonogréfico, na voz de Manuel Bandeira. Ler um poema é colocar-se & escuta de um outro ser humano, nao apenas de uma voz. Quem dentre nés péde ouvir Manuel Bandeira ler os seus poemas, sabe que ele 0s lia como se cada poema fosse nascendo ao passar por sua vou!. Ler deste modo, ouvindo internamente, modulando € mobili- zando os ritmos do outro, é situar-se naquele plano em que vida, fala e mundo se aproximam e se unificam. O poema, assim como © pensar, pode ser compreendido, em sua origem primeira, a partir das imagens da natalidade e do nascimento?. Retomando a questo da natureza humana, que est4 no centro do pensa- mento de Santo Agostinho, Hannah Arendt lembra-nos, em A condigzo humana, de nossa irteverstvel insergo no tempo: A Terra é a quintessencia da condigio humana, e, ao que 81 sabemos, sua natureza pode ser singular no universe, a tinica capaz de oferecer aos seres humanos um habitat no qual eles podem mover-se ¢ respinar sem esforgo nem artificio. O mundo — artificio humano — separa a existéncia de um ambiente ‘meramente animal: mas a vida, em si, permanece fora deste’ mundo artificial e através da vida o homem permanece liga-\ do a todos 03 serés vives. pottica e tentarmos compreender nesta o desdobrar-se de uma experiéncia, de uma reflexao ¢ de uma confidéncia do poeta. De imediato, do reconhecimento da “vor lirica’, voltamo-nos para a necessidade de responder & questo: Quem é poeta? Leitura do poema E nesse espaco de vida que se forma a nossa experiéncia do # mundo e da linguagem. Na experiéncia de vida de cada um, con- frontam-se e reduzem-se a unidade — ao seu intimo, dificil pro- | Poética, poesia, poema cesso de articulacio — linguagem, sentimento, mundo, Acolher a poesia é dar abrigo a esta voz, € a uma relacao entre o Eu e 0 © que faz. de um poema um poema? O titulo do poema, Mundo. Que voz ¢ esta que nos fala com tanta intensidade? — “Poética” — esté carregado de miiltiplas determinagées. Um grande professor, Flivio di Giorgi, lembrou certa vez, em aula, que estudar a etimologia das palavras é buscar as muiltiplas rafzes da formagio do sentido. Poctica, do grego poiein (Fazer, criar) & Estou farto do lirismo comedido Indicando os diferentes modos de claboracio da experiéncia “o estudo da criago poética em si mesma’®, Poema, do grego poiein (fazer, criar, produzir), &, em grego, 0 que é ou foi criado pela mao do homem, um termo equivalente a artefito, resultado de arte, artesanato). O que se discute a partir do termo poética € \ uma reflexio sobre a criagio, e como, nesta, a experiéncia do na arte € no texto literdrio, um atento aos muiltiplos planos do real, outro que tende & deformagao do real, Gilda e Antonio Candido procuram ver o que dé unidade a textos de ritmos e formas to diversos. E esbogam uma interprecacéo de Estrela da vida inteira’, caracterizando 0 Eu lirico desses poemas: 3 mundo ¢ a arte da poesia vem se interligar. Esperévamos, pois, uma arte de poesia. Mas 0 poema vai se propor algo que se distin- gue nitidamente da elaboragio de uma poética formal, de uma A nossa atengito é despertada inicialmente pela voz Urica deste Eu, que, ao construir os poemas, nos acompanha a cada ae ; deur eee ea meen aed dloutrina ou ciéncia da poesia, mas tenta dar uma expresso dire- tamente poética & experiéncia do lirismo. Nesta experiéncia, através da palavra de um poeta, com o que entramos em contato? A palavra desse poeta estabelece uma mediagao entre pottica e lizismo, procura fazer-nos refletir sobre um momento de uma ctise, de um processo de cisao social ¢ psiquica, de que a lirica do 4 século XX dé um testemunho. Os poemas de Manuel Bandeira trazem sinais dessa voz, que deveremos tentar distinguir e caracterizar. Abre-se, a quem os quiser ler e ouvir, a experiéncia de um conhecimento da’ solidao e de uma possibilidade de comunhao; a ela, porém, sé poderemos reconhecer ao nos colocarmos a escuta da expressio 82 JORGE KOSHIVAMA | LEITURA DE POESIA 83 Poética A lIitica € sempre uma resposta a uma experiéncia, Nao é uma experiéncia fora da histéria. Se voltarmos as rafzes, aos tadi- cais de poesia, poema, poérica, verificaremos, como indicamos acima, a intima associago entre trabalho, linguagem, poesia. Pela raiz verbal poiein, o poema aparecia como a condensagio de um trabalho, mas, este é um nome tardio. Antes da diferenciagao de poética ¢ poesia de outros termos também utilizados para designar aqueles que exerciam essas atividades, o aedo dava nome simultaneamente Aquele que exercia a arte do canto e a arte de narrar; & elogiiéncia de um tecer, com sua musica ¢ linguagem, a unidade de uma histéria. Mas, pouco a pouco, esse trabalho, de que Homero era o exemplo maximo, passou pata outras méos. A poesia é esse trabalho de, através de uma experiéncia com o Ser, lembrar e custodiar, mediante a forca de uma lin- guagem bela e memordvel, aquilo que, nomeando-nos, é o sinal de uma comunidade auténtica. A intensidade ético-religiosa da Tepresentacado que Werner Jaeger nos oferece da vida e da ago do poeta, definindo-o como Educador, mostrando os herdis de Homero nao como forcas cegas, mas como seres humanos auté- nomos que lutam para dominar essas forcas e pata cumprirem, com autonomia, sua vida, contrasta com o realismo aristotélico. Jaeger recorda que “o homem nao quer ser ou permanecer cego”; em face da Ate ou da Moira, 0 homem conserva a claridade da razo, mesmo no reino sombrio do Hades: Homero concebe a ate, tal como a moira, dum modo estrita- mente religioss, como uma forga religiosa & qual o homem mal poderia resistir. No entanto, principalmente no Canto IX, ohomem aparece, seniio como senhor de seu destino, ao menos como autor inconsciente dele, Hd uma profinda necessidade no 84 JORGE KOSHIYAMA _fato de serem precisamente 05 Gregos, para quem a agito herbi- ca do Homem se situa no mais alto lugar, a sentir como algo de demoniaco 0 trégico perigo da cegueira e a eterna oposigao & acto e & aventura, enquanto a resignada sabedoria asidtica tentava evitar o perigo pela inagdo e pela remtincia. A frase de Heréclito: nog awd pone Saytov encontra-se no termo de um caminbo criado e percorrido pelos Gregos no conhecimento de seu destino, O poeta que criou a figura de Aquiles estd no inicio dese caminho’. Contrasta, com isso, o realismo do estagirita, ao considerar a estrutura € a representacao poética das acdes humanas, partindo de processos ¢ questées de técnica postica. Discutindo os erros dos poetas € as objegdes que lhes sio feitas pels criticos, Aristételes anota: Outra questdo ¢ a categoria do erro, conforme fira os princt- pios da arte, ou de outro dominio. Com efeito, ignorar que a corca nto tem galhos é erro menos grave do que pintd-la numa figura irreconhectvel. Além disso, se a censura é de que indo representam os originais quais so, quigd os tenham figu- rado quais deviam ser. Séfocles, por exemplo, dizia que ele representava 0s homens como deviam ser e Euripides, como eram. Essa a solugao; se, porém, nem sio como sito, nem como deviam ser, a solusao é que “asim consta’s por exemplo, no caso dos deuses. Talvez. ndo os facam melhores, nem como séo na realidade, mas como ocorreu a Xenéfanes; “t como dizem’. As vezes, quigd, nito haja havido melboras,¢ sim representou- se como costumava ser; no caso das armas, ‘lancas a prumo, conto fincado no chao” porque esse era 0 costume do tempo, como ainda hoje na Iltria®. J& em Euripides, lembra ainda Jaeger, estamos diante de dramas e destinos individuais. Arist6teles constata uma cisdo en- LEITURA DE POESIA 85 tre um modo de representar © poeta como testemunha hist6rica de uma comunidade, ou entio como alguém que afirma uma perplexidade individual diante de todos os valores, diante do mundo. E a partir desta linhagem de poetas, de testemunhas de uma oposigao entre a consciéncia ¢ 0 mundo, que se inicia com Eurfpides, que se constitui a poesia do Ocidente. Agora, que Manuel Bandeira tenha dado o titulo de “Poé- ica” a esse poema é significativo de dois modos. Em primeiro lugar, representaria um esforco de compreender, novamente, nao uma arte da poesia, mas 0 que nela é nascimento, condigao de uma experiéncia; em segundo lugar, o que se quer é definir uma arte poética, ou compreender a experiéncia da poesia? O tema da ctiagdo poética é um dos fios condutores desse poema de Ban- deira. Mas, se podemos, no caso de um poeta do século XX, falar de uma arte poética — ou de seu contrério —, de que modo deveremos entender esse processo? Talvez tentando pensar as relagées que o poeta brasileiro estabelece entre pottica ¢ lirismo. Poética ¢ lirismo 1 Estou farto do litismo comedido 2 Dolirismo bem comportado 3 Dollitismo funcionétio puiblico com livro de ponto [expediente protocolo e manifestagies de [aprego ao sr. diretor. 4 Estou farto do lirismo que: pata ¢ vai averiguar no [dicionério o cunhe vernéculo de um vocdbulo Deve-se pesar a relacdo entre podtica e lirismo, E & cutioso que, no primeiro verso de um poema, trabalhe-se a relagio entre poética e lirismo. Em nenhum momento do pocma, Bandeira fala de poesia, mas, sempre de lirismo. Para compreender a ori- 86 JORGE KOSHIYAMA gem do lirismo, devemos voltar a considerages sobre a Paética de Aristételes. As nogoes de poética e de poesia sao histéricas; distinguindo a Poética da Teoria da Argumentagio e do Discurso (a Retérica), ele caracteriza a pocsia ¢ a teoria dos génetos poéti- cos, distingue a epopéia, a tragédia ¢ a comédia. Detenhamo-nos no tratamento dado ao ditirambo, pois é nele que encontramos a origem do lirismo. Os ditirambos eram os poemas corais entoa- dos nas tragédias. O coro era acompanhado por instrumentos como o aulis (forma de citara arcaica), a lira e diversos instru- mentos de percussio, Deste instrumento, a lira, derivou o termo litismo, como sinénimo de canto, Depois de Safo de Mytilene, ou de alguns passos, quase incompreensiveis, nos ditirambos de Estesicoro Arquiloco, o verdadeiro sentimento Iitico sé reapa- receria seiscentos anos depois, nas Tristes de Ovidio, nas jarchas mogérabes?, nos cantos dos trovadores e em Dante, Caracteriza-se a lirica como um processo de separacio entre © canto e 0 epas (a arte de narrar). O canto, que volta-se, mediante Tecusas sucessivas, para a interioridade pura, terminaria condu- zindo a um conceito de poesia e a poéticas da negatividade em que a consciéncia e a palavra constroem-se dialeticamente. Ou 0 canto reflui para si mesmo, mimetizando ¢ reiterando a cisio social ¢ psiquica, ou ele constréi-se como uma resposta a esta cisao. Ainda no século pasado, Leopardi recusava-se a cindir, em sua Ifrica, 0 canto € 0 pensamento, a visio da natureza e a hist6ria. A cisio apresenta duas faces, uma que indica um insula- mento do poeta, que se colocaria como um ser maldito, e outta, sombria, em que a nobreza de um poeta como Mallarmé era negada. A recusa do “lirismo comedido” representa algo que vai além da inegavel preocupagao de Bandeira, naquele momento, 1928, de intervir em um debate sobre o futuro da poesia, debate em que ele participava como uma forca construtiva, ¢, a0 mesmo tempo, LEITURA DE POESIA 87 impulsionando e passando a Emflio Moura e Carlos Drummond de Andrade — ou a todos os que 0 amavam ¢ acolhiam — 0 testerunho insubstituivel de sua poesia. Ela é um exemplo de fidelidade ao canto, que, nascido do coragao, expressa-se, nesses versos, apenas por uma caracterizacéo negativa ¢ dialética do lirismo, ¢ isto em toda a série dos versos iniciais do poema. O gesto de recusa (“estou farto de”) é reforgado pelo movimento entoacional de um verso que se espraia, como uma onda ritmica. Como que se retoma, aqui, 0 movimento de uma fala, que rompe nossa expectativa de uma determinacao conceptual de “poética”. O que temos é uma expressao direta, indignada: 1 Estou farto do lirismo comedido 2 Dolirismo bem comportado 3 Dolirismo funcionério piblico com livro de ponto [expediente protocolo e manifestagées de fapreco ao st. diretor. 4 Estou farto do lirismo que péra e vai averiguar no [diciondrio o cunho vernéculo de um vocdbulo Propée-se uma ruptura contra todos os que operam no nfvel da retérica, que, por exemplo, separam os termos poéticos dos nao poéticos. Na circunstancia de 1928, é claro, é contra os passadistas, ou melhor, € contra os ndo-poetas que cle se ditige. Manifesto Abaixo os puristas ‘Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais ‘Todas as construg6es sobretudo as sintaxes de excegao Todos os ritmos sobretudo os inumeréveis eI Aw 88 JORGE KOSHIYAMA O poeta imita agora no o tom de uma conversa, mas 0 tom de um manifesto. Em um primeiro modo de ler, esses pre- ceitos de poética podem ser aproximados seja de propostas do ultrafsmo!” seja das propostas cubo-futuristas!2, Mas, se os lermos como propostas de uma poética prépria, pessoal, o que houve foi uma ampliagao de ritmos, de possibilidades de criar. Em autores de menores possibilidades criativas, como Oswald de Andrade, houve uma adesio de modo mais estrito a um tinico tipo de rup- tura parodistica, sintético-semantica, que se reitera em uma linha conceitual. Manuel Bandeira nio se deixou prender a uma obrigatoriedade desses processos ritmicos, desses preceitos, mas ao colocar-se como programa operatério: 8 Todos os ritmos sobretudo os inumerdveis valeu-se desses ritmos inumerdveis para dar uma musicalidade cextraordinéria a “Evocagio do Recife”, Em sua poesia e na de Car- los Drummond de Andrade, o verso livre acolhe esses “ritmos inumerdveis”, mas também disciplina-se: € antes de tudo verso. 9° Estou farto do lirismo namorador 10 Politico 11 Raquitico 12 Sifilftico Eis que se retoma, quase integralmente, o ritmo ¢ o movi- mento da primeira estrofe, com uma deslocagio de acento para a rima — usada porém de um modo irénico: “Politico/ Raqui- tico/ Sifilitico/”. 13. De todo lirismo que capitula a0 que quer que seja [fora de si mesmo. Através das caracterizagbes negativas usadas até agora, ch gamos ao que é lirismo. Mas, 0 que é lirismo? Ao recusar acei LEITURA DE POESIA 89 © que “capitula ao que quer que seja fora de si mesmo”, pela recusa do ndo-lirismo, dese nao-canto, negando as negasdes, percebemos as determinagdes reciprocas de lirismo e poesia. ra, essa identidade & a mais dificil de caracterizar, pois o que nela vive é um modo de set. O que capitula nao é poesia, quem capitula nao é poeta. Resistir, no capitular, é um modo de exis- téncia do ser e do “si mesmo” (0 Self'de Jung). A afirmagéo do lirismo em si mesmo, que nos parecia uma estranha determi- nagio do principio de identidade e nio-identidade, esta afir/ magio da identidade do ser humano consigo e com os outros, d uma presenga que 0 trabalho da linguagern © a poesia fun deixa de ser, para nés que o lemos, um paradoxo, pois o litism 6 agora referéncia imediata ao Seif & identidade fundamental entre ser humano e ser humano. ‘O lirismo em si mesmo” € aquela experiéncia com a linguagem, em que se funda, para nés € para os outros, a lembranga e a possibilidade de uma comu- nhio auténtica. E 0 canto, que é feito da mediagao entre vi mundo, linguagem, da escolha nossa, é palavra de um vivente. Mas, antes, temos de passar por mais uma série de negacées. Talvez esta estrofe seja a menos necessétia; seu métito é 0 de constituir uma ponte a partir da qual seja posstvel a afirmagao do lirismo: 14 De resto nao é lirismo 15 Sera antes contabilidade, tabela de co-senos secretirio [de amante exemplar com cem modelos de [cartas ¢ as diferentes maneiras de agradar &s [mulheres, etc. O lirismo € ditirambo, didlogo coral. “Que ¢ homem” pergunta 0 coro em Fdipo-Rei. O lirismo é 0 que se afirma em face desta tiltima série de negagées. Nao capitular. Veja-se, agora, a afirmagio. Quem sou? Como vivemos? Que é a identidade de 90 JORGE KOSHIYAMA lirismo € poesia, em um nivel mais profundo, se quisermos nao definir mas sentir a sua realidade, mesmo se isto é possivel ape- ras a partir de graves feridas: 16 Quero antes o lirismo dos loucos 17 O lirismo dos bébados 18 O lirismo dificil e pungente dos bébados 19 O lirismo dos clowns de Shakespeare E curioso que, ao passar das negacoes para a afirmacio, aparecem versos medidos: uma redondilha maior (7 sflabas), uma redondilha menor (5 sflabas) ¢ dois versos de arte maior, como se fosse de modo a fazer-nos perceber que esta nao ¢ possi- vel, sem uma miisica ou uma cadéncia e um determinado ritmo livremente aceito. O lirismo dos loucos O litismo é a renovagio do canto ditirimbico. Se 0 lirismo, isto é, a expressio do ser humano que é portador da experiéncia poética, ndo pode capitular “ao que quer que seja fora de si mes- mo’, é estranho que cla seja nomeada mediante categorias nega- tivas. Ao escrever “o lirismo dos loucos”, Bandeira no estaria voltando ao Romantismo? Nao necessariamente. Porque o louco nomeia a margem de fora, 0 lado mais obscuro, a partir do qual és nos movemos até alcangar, pela experiéncia da linguagem, a possibilidade de nos colocarmos & procura de uma comunhio. Mas 0 louco, que teré de comum com o litismo, ou, mais preci- samente, com este poeta, a nao ser a dor, o sentimento de uma perda, de uma nostalgia? De modo muito mais radical que o liri- 0, 0 louco define-se por faltas, por caréncias, por uma retracéo frente ao mundo. A poesia é porém a afirmagéo de uma identi- LEITURA DE POESIA 91 dade. Apesar da aproximagio roméntica entre loucura € poesia, a ela nao poderia elevar-se Kaspar Hauser, em seu insulamento irreversivel, sem palavras. Porém, Isidoro Blikstein lembra-nos que, para Kaspar Hauser, a paisagem do mundo é indecifrivel, talvez porque a experiéncia do mundo seja anterior & “codifi- cago lingiiistica” 3. ‘Talvez Manuel Bandeira fale do “lirismo dos loucos”, do “liismo dos bébados/ o dificil e pungente lirismo dos bébados”, movido pela necessidade de dar nome &s palavras dos homens, mas, reconhecendo que vivemos em um periodo de crise, de uma cisio social e psiquica exasperada, ao dar nome as palavras ¢ aos sofrimentos dos homens, entrega-nos, em custédia, 0 no- me ea identidade de seres igualmente feridos. Esta identificagao do poeta a seres marginais, a seres feridos, a seres minimos, dé- nos a medida da pungéncia e da compaixao caracteristicas de sua poesia. Aquilo de que Manuel Bandeira fala é do contetido de uma poética negativa, para levar-nos & experiéncia do Lirismo em si mesmo. A experiéncia da palavra, que encontra a sua sintese mais alta na poesia, é emogio. E apenas porque o lirismo pro- pée-se como projeto conservar plena ¢ integra recordagéo da experiéncia individual ¢ social, que 0 poeta pode integrar a experiéncia de seres que vive & margem e trazé-los, com a forga compassiva de sua emogio e de seu canto, para junto de nés. 20 no quero mais saber do lirismo que nao é libertacéo No meio da excentricidade em que vivemos, em meio 4 dor, & solidao, ao espanto frente ao desenraizamento do presente, irrompe, como um grito de vida e de esperanga — nostalgia de uma comunhio, essa palavra que nos repde, mesmo corporal- 92 JORGE KOSHIYAMA mente, a caminho. Finalmente, compreende-se o lirismo como emogéo, como pungéncia, mas, a0 mesmo tempo, como um caminho em que se resgata a meméria de uma unidade. Saber-se vivo — lembra o poeta japonés do século XVII Matsuo Bash6, mestre na vida e na arte da poesia — é sentir que estamos a cami- nnho, em viagem. Extrema afirmago de madureza ¢ do canto ne- cessdtio. Ao identificar a experiéncia humana, 0 lirismo ea liber- tagéo, Manuel Bandeira deu nome & poesia, resgate e sinal nosso, vivo. Deut nome & poesia em si mesma. Lirismo, libertagéo. Reflexes Caracterizar o lirismo em si mesmo é manter-se no ambito de algo que pode ser compreendido como uma poética pessoal, prépria a Manuel Bandeira, ou deveria esta compreensio da poe- sia como libertacio ser colocada como um conceito igualmente coletivo de poética? Neste caso, se o texto em exame tem relagbes com outros textos de poesia e poética do século XX, do Moder- nismo europeu e do Modernismo brasileiro, quais séo elas? Por outro lado, ao pensar a relacio entre 0 Todo e as Partes, lembra- mos que a relagio entre poética ¢ lirismo deve ser repensada, Localizando 0 poema na obra de Manuel Bandeira e no Modernismo brasileiro ‘Telé Porto Ancona Lopez lembra-nos, no Preficio a edigéo critica das Poesias completas de Mario de Andrade, da necessidade LEITURA DE POESIA 93 de precisar a circunstancia e de localizar cada poema na obra do poeta, na histéria dos movimentos literdrios ¢ culturais!4. Precisar 0 sentido de alusoes ¢ de propostas dos grupos ¢ dos escritores modernistas, por volta de 1930, permite-nos pensar o significado de “Poética” no desenvolvimento da obra de Manuel Bandeira e de uma visio de poesia. Qual o significado deste poema e da poesia de Manuel Bandeira para Mério de Andrade e para poetas mais jovens, como Carlos Drummond de Andrade? Formalmente, “Poética” € um poema escrito em versos livres. E a recuperago de um momento de uma conversa, reto- mada a partir de um certo instante, Mas 0 poema é “forma” (Aristételes). © poema imita sucessivamente o tom de uma con- versa, 0 tom de um orador popular (“lirismo raquitico/ (...] inu- meraveis”). A explosio exasperada, segue-se um movimento de volta para si, de escuta interior, de confidéncia, “Poética” & 0 décimo poema de Libertinagem, 4° livro de Manuel Bandeira. Poesias (1924) reunira seus livros anteriores (Cinza das horas, Carnaval, Ritmo dissoluto). Ritmo dissoluto ja retine poemas como “Os sinos”, “Quando perderes o gosto hu- milde da tristeza”, “Meninos carvoeiros”, “Baldezinhos”. Todos esses so poemas essenciais de sua obra. Em Libertinagem, 0 poc- ma “Poética” aparece ao lado de “Nao sei dancar”, “Camelés’, “Cacto”, “O porquinho da India’, “Evocagao do Recife”, “Vou-me embora pra Pasdrgada”. Com esses poemas, “Poética” entra em uma relacao dialética, uma vez que tais poemas vio responder & proposta de poética de nosso autor, pelas formas mais estranhas, de auto-ironia, de humor pungente, de “ligdes de infancia” (“Ca- melés”, “Evocagao do Recife”), de sonho, de libertacao. Entre 1924 e 1930, desenvolvem-se, de um lado, as aventu- ras paralelas da criagao de Macunaima e Cobra Norato, No plano da poética ¢ da criagdo literdria, textos de Mario de Andrade, Losango cigui e A poesia de 30, sintetizam um dos pélos da reno- 94 JORGE KOSHIYAMA vacio literdtia, e 0 Manifesto da Antropofagia também procurava ampliar a liberdade de ctiag4o, reconduzindo-nos a uma escuta do mito, do lendério e do inconsciente. Em “Revistas re-vistas”, posficio da Revista de Antropofagia, Augusto de Campos analisa © quadro cultural daquele perfodo. Mas, ele valoriza, na poesia daquele momento, um tinico aspecto, que aparecia sob as formas de uma critica da linguagem. Cabe assinalar um veio em que a poesia se cala, Embora se encontrem, no Martim Cereré, alguns veios de ouro, estes se perdem, porém, no meio de discursos em que a fala e a ideologia se enrijeceram em retérica congelada. ‘Ao resenhar, em A poesia de 30, Poemas de Augusto Frede- rico Schmidt, Alguma poesia de Carlos Drummond de Andrade, Poemas, de Murilo Mendes, ¢ Libertinagem de Manuel Bandeira, Mitio de Andrade aponta a busca de um equilibrio entre uma liberdade interior de criagdo e uma poesia que se busca ¢ se cons- 116il5. Neste clima, qual a posigo de Manuel Bandeira e qual 0 sentido com que este poema intervém nesse debate sobre os rumos da poesia? Bandeira propée simultaneamente uma poética de libertagéo, mas, a0 mesmo tempo em que se volta contra as propostas da poesia anterior, ele vai colocar-se, para poetas mais jovens que ele, como Carlos Drummond de Andrade, como exemplo de alguém que procura a poesia em uma confidéncia. No debate em curso naqueles anos, a sua intervengéo marcou um ponto de s6brio reconhecimento de que a poesia no pode ser procurada em formas exteriores ao sentimento que se quer exprimir, sejam essas processos discursivos ou retéricos, ¢ que a poesia é, enquanto lirismo, aquilo que dé nome & nossa identi- dade humana, Poética de um grupo, coletiva? Tal como Bandeira a coloca, em sua poesia e nas cartas a Mario de Andrade e a Carlos Drummond de Andrade, a sua poética volta-se, com forga, contra tudo 0 que € negacio da poesia. Em relagio & sua ptdpria poesia, a forca de sua linguagem compassiva, com a sua LEITURA DE POESIA 95 pungéncia, é a de alguém que nos fala e resgata para nés, na solidéo em que vivemos, um sentimento de comunhio. Acima da circunstancia, uma poética essencial Acima do seu valor de intervencao no debate sobre a poe- sia dos anos 20, esta é uma poética essencial. Emogio ¢ palavra alcangam-nos. E, por isto, melhor que todos, péde ler-te Carlos Drummond de Andrade: Nao € 0 canto da andorinha, debrugada nos telhados [da Lapa anunciando que vida passou & toa, & toa Nio é 0 médico mandando exclusivamente tocar um [tango argentino, diante da escavagao do pulmao esquerdo e do pulmo [direito infiltrado. Nao sio os carvoeirinhos raquiticos voltando [encarapitados nos burros velhos. Nao sio os mortos do Recife dormindo profundamente [na noite. Nem € tua vida, a vida do major veterano da guerra do [Paraguai, a de Bentinho Jararaca ou a de Christina Georgina Rossetti: é tu mesmo, é tua poesia, tua pungente, inefavel poesia, ferindo as almas, sob a aparéncia balsimica, queimando as almas, fogo celeste, ao visité-las; 0 fendmeno poético de que te constitufste o misterioso [portador 96 JORGE KOSHIYAMA € que vem trazer-nos na aurora 0 sopro quente dos [mundos, das amadas exuberantes e das [situagées exemplares de que nao [suspeicdvamos. ¢ pode mesmo dizé-lo: © poeta melhor que nés todos, 0 poeta mais forte — mas, haverd lugar para a poesia? (“Ode no cingiientendrio do poeta brasileiro”) Drummond, poeta secreto, mais marcado pela dor e de to- dos o mais reticente em relacio 4 comunicabilidade da experién- cia pottica, transforma Manuel Bandeira no representante de todos os poetas e vé nessa pungéncia t4o préxima de seu descon- certo e de sua indignacéo, de seu sentimento de desconsolo, de desconfianga ¢ de amor, um lugar que permite um intimo aco- thimento ao ser humano. E isto, que se pense nas santas palavras de Antigona, era 0 que o poeta e miisico Séfocles indicava como sua missio: nomear, na intimidade do coragio, a possibilidade de um reconhecimento rec{proco, que é, igualmente, acolhimento a0 Ser. Do lirismo em si A liberdade moderna de ritmos, a que corresponde uma gran- de mobilidade no arranjo da frase, ésigno de que se descobrin ¢ se quer conscientemente aplicar na prética do poema, 0 principio duplo da linguager: sensorial, mas discursivo, finito, ‘mas aberto,clelico, mas vetorial LJ Ora, a arte pottica, nivel mais alto ¢ mais livre de organiza- LEITURA DE POESIA 97 40 da matéria fonica, pode ou no reproduzir este ritmo frésico. O dilema, historicamente posto e resolvido em cada texto pottico, é julgar se a composigao literdria deva destacar do fluxo oral a esséncia nua da alternancia, e fixd-la, quer dizer: deva extrair dos varios ritmos da linguagem 0 metro, 0 nimero's, Ao definir a dupla vocagio da poesia moderna, a alternan- cia entre uma liberdade de ritmos ¢ padrées formais estritos, Alfredo Bosi aproximou a poesia da musica e de uma forma que, no limite, visaria capturar a esséncia da temporalidade. Cons- truindo-se como miisica, ela, porém, rompe com esse padrio, e quer construir um espago dentro do tempo. A poesia de Bandeira, porém, independe dessa oposicao entre a liberdade de ritmos e Os processos ¢ padres formais, pois, além de reunir os dois mo- mentos, expande-se até abolir as fronteiras entre poesia e prosa, € responde por um conceito e por uma experiéncia do lirismo, que é palavra que empenha o set humano como um todo, ¢ ape- nas nesse sentido pode ser compreendida enquanto criagio. No lirismo, a experiéncia foi reconduzida 2 intimidade absoluta, on- de a palavra tem seu enraizamento!’. O lirismo, que aproxima negatividade ¢ reflexio, é a relagao entre a expressio e a intimidade do si mesmo, de uma pottica que ¢ libertago, apenas por ser con- fidéncia, que nos abre a possibilidade de uma escuta, de acolhida de comunhao com todos os seres vivos. Um poema coloca-se como momento de uma cadeia que une poeta ¢ leitor. E algo como uma conversa entre duas pessoas, ou, para usar a expresso de Martin Buber, é um Eu-Tu. Assim Martin Buber descreve uma relagao interpessoal de natureza dia- légica, nao solipsista, que a relagao direta do homem com Deus ¢ é a norma para as relagdes entre os seres humanos. Somente, no lugar da palavra frégil, fluente, que aguarda e espera a resposta do interlocutor, um poema € algo que se coloca em uma telagéo 98 JORGE KOSHIYAMA em que a palavra construida pelo poeta recusa a transitividade e a fragilidade de uma conversa, Um poema é uma formasio, uma palavra que vai & procura de alguém que a ouga e a faga sua, As duas metéforas da “fratura” e da “supléncia” colocam-se, em O ser ¢ 0 tempo da poesia, do professor Alfredo Bosi, como indi- cadores de uma relacio entre poesia linguagem. O poema, como descreve Aristételes, modelo para o ser humano, nao se acha tio longe dessa concepgao de poesia como forma de reco- nhecitnento reciproco. Nao haverd forma de compreender essa margem da poesia, em sua proximidade e distancia — os sinais que nos fazem essas miiltiplas linguagens? Em nossa histéria, nés trazemos conosco “no apenas os nossos feixes” (Salmo 125), mas também os nossos cAnticos. Notas 1 Conheso apenas um registro, raro, de uma leitura de alguns de seus poemas, ers ‘que ouvi na caa do compositor Willy Corea de Oliveira 2.No primeiro capieulo de A condigéo humana, Hannah Arendt reavalia as con- digbes da existéncia humana na Terra: ‘o nascimento ¢ a morte: a natalidade e a mortalidade” (p. 16). Na Introdugéo a esse livro, Celso Lafer escreve: “O primeiro item a ser mencionado ¢ originalidade do ponto de partida de Hannah Arends, quando ela afirma que a natalidade, € nao a mortalidade, é a categoria central do pensamento politico” (p. VIII), Ngo apenas do pensa- mento politico, diriamos. © que ela quer, em seu ensaio, érefletir sobre 0 sen- tido de nossa condigéo: “o novo comego inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o reoém-chegado pode iniciar algo de novo, isto &, agit. Neste sentido de iniciativa, todas 2s atividades do homem possuem um elemento de agio, e portanto, de natalidade. Além disso, como a acto é a atividade politica por celina a maaidade ¢ no — ide constituir a categoria central do pensamento politico contraposto 20 pensamenco tmetafsies' A vite ana ea condo, humana”, p. 18). Exami- mar 0 que signifi, 3 lu dessa inves episemeligca, o problema da na humana, a guestio mibi factus sum ("a questio que me tornei para mim mame” de Santo meee © problema central de A condigéo humana. ; Hannah, op. cit., “Prélogo”, p. 10. 4 nde, Manuel. Evela da vide intra 7-04, Rio de Janeiro, José Olympio, 1979. LEITURA DE POESIA 99

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