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CAPÍTULO 2
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CENAS PEDAGÓGICAS DE “UM CANTO EM CADA CANTO”
Com suas atividades iniciadas no ano de 2002, neste capítulo, são recortes de um estudo de caso
o Projeto “Educação Musical Através do Canto etnográfico (ANDRADE, 2015)1. A escrita transita
Coral - um canto em cada canto” (Projeto UCCC), entre o passado e o presente, pois apresenta aspectos
localizado em Londrina-PR, revela-se como uma históricos, como a origem e os objetivos do Projeto,
proposta singular de musicalização. O dia a dia e procedimentos pedagógicos que são característicos
pedagógico, de um fazer musical contextualizado, da ação músico-educativa, mantidos até os dias
apresenta histórias, experiências e memórias que atuais.
merecem ser compartilhadas: as vozes infantis que
ecoam na cidade, as canções ensinadas no espaço
escolar, os encontros semanais permeados pela
“CANTO DO POVO DE UM LUGAR”:
ludicidade, a alegria do palco, da criançada, dos
CONTEXTUALIZANDO O PROJETO UCCC
cantos – geográficos, socioculturais e sonoros – que
proporcionam experiências significativas. A ideia de propor um projeto de educação musical para
ser desenvolvido nas escolas municipais de Londrina,
Entre os anos de 2002 a 2012, tive a oportunidade
surgiu em uma conversa entre as professoras Lucy
de atuar como monitora e conviver com as
Maurício Schimiti e Magali de Oliveira Kleber. Em
especificidades do Projeto UCCC. Participei na
entrevista, Lucy explicou que como docentes do curso
construção da metodologia de ensino e aprendizagem
de Licenciatura em Música da Universidade Estadual
do repertório coral, compartilhei com as crianças e
de Londrina, havia o interesse em desenvolver algum
os colegas o riso, a farra e os desafios em diversas
trabalho, investindo nas escolas públicas:
situações. Tenho apreço pelo trabalho desenvolvido
e por tomar parte de uma iniciativa relevante para o Ele [o Projeto] surgiu em conversa [...] dentro da
campo da educação musical brasileira. Universidade em que a gente pensava que tinha
que fazer algum trabalho, nós tínhamos quase que
O envolvimento com o Projeto e a maneira de pensar uma missão de fazer algum tipo de trabalho dentro
e propor a prática coral contribuiram para algumas do município, dentro das escolas que pudesse [...]
inquietações profissionais, levando-me ao curso de aproveitar um pouco da nossa formação e investir
mestrado em Educação Musical na Universidade nas escolas públicas. E aí nós sentamos, eu lembro
Federal da Paraíba. O desligamento do Projeto no de ter sentado um dia com a Magali para conversar
final do ano de 2012 originou um distanciamento, um pouco sobre isso (Entrevista, Lucy, 01/04/2014).
1. A pesquisa que desenvolvi teve como objetivo central: compreender concepções, conteúdos e metodologias de ensino e de aprendizagem
que caracterizam a formação musical no Projeto UCCC. A discussão teórica considerou as perspectivas da educação musical em espaços
e situações diversificadas (ARROYO, 2002a, 2002b; QUEIROZ, 2013), tais como, os projetos sociais (OLIVEIRA, 2003; KLEBER, 2006, 2014;
NASCIMENTO, 2014; SOUZA, 2014), as relações entre música e cultura (MERRIAM, 1964; NETTL, 1983; GEERTZ, 1989) e o canto coral como
modalidade músico-educativa (BARTLE, 1993; LAKSCHEVITZ, 2006; LECK, 2009). Para a elaboração deste capítulo foram trazidos trechos da
dissertação e dados coletados por meio de pesquisa documental, realização de entrevistas, grupos focais e aplicação de questionário. As
fotografias que ilustram o capítulo são originárias da dissertação e, também, de registros mais atuais que compõem o acervo do Projeto.
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UM CANTO EM CADA CANTO
motivações que contribuiu para a elaboração de uma muito fácil de você começar a fazer a educação
proposição que atendesse o maior número de alunos musical, você está com todo instrumento na mão [...]
possível. O Projeto UCCC foi pensado como uma ação- (Entrevista, Lucy, 01/04/2014).
a não ser a voz, você não depende de muito material, participantes para os aspectos sociais, contribuindo
por exemplo, aquisição de instrumentos. Não! Você para modificações comportamentais na escola, no
já está com os instrumentos ali disponíveis. Basta o ambiente familiar e no seu entorno. Para alcançar
que? Você se propor a fazer, ter é claro esse arsenal esses objetivos, uma rede de diálogos foi construída,
todo, conhecimento e até o material pedagógico articulando e engajando diferentes personagens,
que a gente usa, e ter crianças. Mas, é uma forma conforme ilustra o gráfico à seguir:
2. Em 1992 a Secretaria Municipal de Cultura do município de Londrina estabeleceu a Lei Municipal de Incentivo à Cultura (Lei nº 5.305/92). Na
sequência, uma nova Lei (Lei nº 8984/02) estabeleceu o Programa Municipal de Incentivo à Cultura (PROMIC). O PROMIC “propunha a realização
das políticas públicas na forma de parcerias entre Estado e sociedade civil, com os cidadãos se envolvendo em sua elaboração e execução”
(LONDRINA, 2005). O programa de Incentivo à Cultura – PROMIC, por intermédio do FEPROC (Fundo Especial de Incentivo à Cultura), favorece a
disponibilização de recursos financeiros necessários para a execução e manutenção da Política Cultural do Município de Londrina.
3. O Projeto Canto na Escola foi uma ação da Fundação Cultural de Ibiporã (cidade vizinha de Londrina), proposto e coordenado por Oleide Lelis.
4. Coralzinho Coralzão foi uma proposta de coro infantil desenvolvida em Londrina por Oleide Lelis e a professora Lilian Almeida.
5. É importante esclarecer que, apesar da ideia inicial surgir da conversa entre docentes da Universidade Estadual de Londrina, o Projeto UCCC
não possui nenhum vínculo com esta instituição.
6. Depois de alguns anos Oleide assumiu a submissão do Projeto no PROMIC, enquanto que Lucy manteve suas atividades como coordenadora
artística. Atualmente, Oleide mantém as atividades de coordenadora pedagógica e monitora, mas a submissão do Projeto no PROMIC passou a
ser realizada pela Associação Cultural Um Canto em Cada Canto.
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CENAS PEDAGÓGICAS DE “UM CANTO EM CADA CANTO”
As atividades do Projeto tem como ponto de partida a aprovação anual no PROMIC, via Secretaria
de Cultura. Com a definição da quantidade de escolas que serão atendidas a Secretaria de
Educação faz as indicações. Os diretores consultados e que se posicionam favoravelmente
para receber o Projeto disponibilizam a estrutura física (sala com cadeiras) e um professor que
faz a ponte de comunicação entre os educadores musicais e a direção escolar, além de auxiliar
no acompanhamento dos alunos e no cuidado e manutenção de uniformes e instrumentos
musicais7. Geralmente é realizada uma reunião com os pais e/ou responsáveis, no início do
ano letivo, para explicar a proposta e enfatizar a importância da assiduidade e pontualidade
dos alunos nos ensaios e nas apresentações. A participação é voluntária e necessita apenas
da autorização dos responsáveis. Cabe aos educadores musicais – coordenadora pedagógica,
coordenadora artística e monitores (regentes e tecladistas) – o desenvolvimento da proposta
músico-educativa que tem como público-alvo alunos matriculados do 2º ao 5º ano do ensino
fundamental. A rede de diálogos conta, ainda, com o apoio da Associação Cultural Um Canto
em Cada Canto que trabalha na captação de recursos oriundos de promoções e de encontros
beneficentes8 e a mídia local que divulga e registra as ações do Projeto.
7. Os ensaios são conduzidos com o auxílio de um teclado, adquirido com verba captada pelo Projeto e que fica armazenado na escola.
8. O Projeto é mantido com a verba aprovada no PROMIC e atividades promocionais da Associação. Basicamente as despesas incluem o
pagamento dos monitores, aluguel de ônibus para transporte dos alunos nos ensaios e apresentações, compra e reposição de uniforme,
instrumentos musicais e materiais de escritório, despesas com alaboração e impressão de convites e programas de concertos, entre outros.
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UM CANTO EM CADA CANTO
de 1h30min, reuniões semanais de planejamento básico [...] para a sobrevivência. (Entrevista, Lucy,
entendeu? Desde as reuniões, [...] da gente discutir o ensaios e as apresentações se constituem como as
repertório, fazer o repertório em conjunto, de eu ir em situações centrais de vivência musical. Através de
cada escola. Então [...], esse modelo a gente já tinha. um planejamento sistematizado, essas situações
Eu acredito que um dos grandes sucessos [do Projeto apresentam-se como oportunidades de construção
UCCC] foi porque já tinha experimentado lá [em sonora coletiva, bem como de ensino e aprendizagem
Ibiporã], já sabia que dava certo, já tinha resultados de conteúdos vinculados a prática coral. Os ensaios
fantásticos (Entrevista, Oleide, 04/04/2014). são momentos de encontros regulares entre os alunos
e os monitores. De maneira lúdica e estruturada,
As escolas atendidas pelo Projeto UCCC, localizadas os ensaios preparam os participantes para as
em diferentes regiões, trazem como característica a apresentações.
diversidade sociocultural. Para Lucy,
No contexto do Projeto, cabe ao monitor regente a
São crianças de todas as regiões da cidade. responsabilidade de conduzir o ensaio. Entretanto, o
Algumas regiões bem mais carentes [...] de recursos monitor tecladista também colabora nas atividades
financeiros de toda ordem, que eu acho que é a educativas e na condução de trechos em que as
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Ensaio 2019
(Foto Valéria Felix).
canções possuem duas vozes. Não há classificação vocal, como soprano e contralto, mas apenas
“grupo 1” e “grupo 2”. Nesses casos, cada grupo direciona a atenção para um dos monitores.
A regência compartilhada, entre os monitores nos ensaios, antecipa a regência simultânea de
dois ou mais regentes nos ensaios e concertos gerais, tendo em vista a quantidade de alunos9.
A participação do monitor tecladista no ensino de uma das vozes evidencia características
metodológicas da proposta educativa do Projeto UCCC, pois com a presença de um monitor
à frente de cada grupo, o processo de aprendizagem das canções e seus aspectos estruturais
tende a ocorrer de forma ágil e dinâmica.
Os conteúdos desenvolvidos nos ensaios podem ser identificados como explícitos e implícitos.
Conteúdos explícitos referem-se ao material sonoro presente no repertório. A monitora Gilcene
de Oliveira explicou que “a gente não pega assim ‘ah nós vamos trabalhar altura, nós vamos
trabalhar duração’. Não, a gente trabalha altura, duração, forma, [...] mas com base e a partir
do repertório que foi escolhido” (Entrevista, Gilcene, 11/04/2014). A monitora Carla Nishimura
reforçou este pensamento ao afirmar que os conteúdos encontram-se no próprio repertório,
evidenciando a importância das canções no processo de ensino e aprendizagem musical:
9. O Projeto já realizou concertos gerais com aproximadamente 300, 500 e até 800 crianças.
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UM CANTO EM CADA CANTO
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Ensaio:
organização
das filas
(ANDRADE,
2015)
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um aluno que tem o dia a dia marcado por desafios Tem coisa que eu já cantei cinco, seis vezes no ensaio
e eu estou vendo que naquela hora eles não estão
e que sofre com a desestruturação ou descaso
perdendo o foco e eu estou podendo repedir mais
familiar, um ensaio divertido e contagiante torna-se
para que eles possam ouvir [...] e depois reproduzir
significativo não apenas por aquilo que é ensinado,
com mais nitidez. Eu cheguei em um ensaio que eu
mas por causa do deleite despertado e da alegria de
acho que eu repeti “então agora só quem vai ouvir
participar de uma atividade coletiva que proporciona
de olho fechado, quem vai ouvir com sorriso, quem
prazer e satisfação.
vai ouvir assim, agora só a professora fulana, agora
vou cantar para a lâmpada, agora vou cantar para o
Por meio de atividades lúdicas, os educadores colocam
ventilador, agora vou cantar para a Elaine”. Entendeu?
em prática estratégias de ensino em que os alunos
São maneiras de você trabalhar um determinado
não percebem o tempo passar e participam imitando
trecho, determinada frase que você consiga alcançar
ou repetindo o mesmo fragmento melódico ou rítmico
a criança sem que ela canse, sem que ela perca
diversas vezes. Gilcene explicou que existem maneiras
muito o interesse, repetindo várias vezes. É isso que
de conduzir a aprendizagem das canções repetindo a gente faz, de formas diferentes (Entrevista, Oleide,
algumas vezes: 04/04/2014).
10. Das 11 escolas participantes do Projeto em 2014 (ano em que realizei a coleta de dados), acompanhei os ensaios de 4 escolas. Estas foram
indicadas pela coordenadora pedagógica, Oleide Lelis.
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O acervo de materiais didáticos utilizados no dia a dia mencionados evidencia uma metodologia dedicada à
do Projeto traz também alguns instrumentos musicais. efetivação de estratégias apropriadas, nas quais os
O teclado apresenta-se como o principal instrumento, conteúdos abstratos e considerados difíceis de serem
porém, vez por outra os monitores utilizam escaleta, compreendidos no universo infantil são vivenciados de
flauta doce soprano e um pequeno metalofone, forma concreta, divertida e contextualizada.
empregados na execução melódica de canções em
O questionário11 aplicado e respondido por 751 alunos,
desenvolvimento. Instrumentos de percussão como o
revelou as ideias sobre as atividades do Projeto. Ao
caxixi, pandeiro, coco, clavas e reco-reco são usados
perguntar “qual a sua opinião sobre a maneira que
com bastante frequência na exemplificação de
as professoras do Projeto UCCC ensinam música?”,
sequências rítmicas e na associação de comandos,
um total de 86% dos alunos marcaram “gosto muito”,
além de esporadicamente serem manuseados por
12% anotaram “gosto pouco” e 2% responderam “não
alunos.
gosto”. Ao questionar “como são os ensaios?”, 84% dos
A utilização de recursos visuais e sonoros demonstra alunos responderam “divertidos”, 13% assinalaram
que não há limites para o seu uso, desde que sejam “normais” e 3% indicaram “chatos” (ANDRADE, 2015,
bem empregados e colaborem na compreensão p. 136). Esses dados destacam o envolvimento
dos conteúdos trabalhados. Em um dos ensaios, a dos alunos com a ação pedagógica, permitindo a
monitora Carla utilizou uma pequena sombrinha para confirmação de que os procedimentos empregados
o desenvolvimento de exercícios respiratórios. Ao apresentam-se adequados e significativos para a
abrir a sombrinha, os alunos deveriam inspirar, sem maioria dos alunos participantes.
ruído, e conforme era fechada lentamente, os alunos
deveriam expirar. O controle de entrada e saída de ar foi “CANTAR E CANTAR E
transferido, posteriormente, na execução do fraseado CANTAR”: AS APRESENTAÇÕES
das canções em processo de aprendizagem. Além
Os ensaios do Projeto UCCC ganham uma nova
de trabalhar com o controle de entrada e saída de ar,
conotação quando alguma apresentação está
essas atividades serviram de antecipação de possíveis
agendada. Nessas situações, o discurso dos monitores
dificuldades de fraseado encontradas no repertório.
envolve a responsabilidade de mostrar o trabalho
A análise dos planejamentos de ensaios, revela um desenvolvido até então, além do respeito com o público
conjunto de atividades fundamentadas em diversos que merece uma apresentação bem preparada. No
educadores musicais como, por exemplo, jogos de planejamento das atividades e nos documentos
escuta do ambiente sonoro propostos por Murray elaborados para submissão do Projeto nos editais
Schafer, de movimentação do grupo elaborados por do PROMIC, as apresentações são previstas como
Thelma Chan e Teca Alencar, e exercícios de respiração contrapartida cultural. Assim, o Projeto propõem
e relaxamento encontradas no livro “Iniciação Musical” concertos didáticos nos espaços escolares, concertos
de Josette S. M. Feres. A utilização de todos os recursos gerais nos encerramentos dos semestres e outras
11. Aproximadamente 800 crianças participaram do Projeto em 2014. A aplicação do questionário ocorreu entre os dias 09/05/2014 e 11/06/2014.
O questionário trazia 17 questões assim organizadas: 12 questões com três alternativas de resposta (não gosto, gosto pouco e gosto muito / não
é importante, é pouco importante e é muito importante / chatos, normais e divertidos) e 5 questões com duas alternativas de resposta (sim e não
/ português e outras línguas / porque gosto e porque sou obrigado). Com o objetivo de facilitar o preenchimento por alunos em estágios iniciais
do processo de alfabetização, as alternativas de cada questão eram indicadas por um texto e um gráfico que procurava representar o sentimento
ou a emoção relativa à alternativa. As perguntas cujos alunos assinalaram mais de uma resposta ou deixadas em branco foram anuladas.
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apresentações à convite da comunidade local. De também, das pessoas que estão lá (Grupo focal,
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Os ensaios que precedem uma apresentação focam o repertório que será executado
e os monitores incentivam os alunos quanto à assiduidade e à responsabilidade frente
ao compromisso assumido. Os alunos ficam felizes e nervosos, pois para alguns será
a primeira apresentação como coralistas no Projeto UCCC. A monitora Carla, salientou
que “a apresentação também é um momento de crescimento individual” referindo-
se ao processo inerente à prática coral de aprendizagem, exposição e avaliação do
processo (Grupo focal, M. Carla, 09/06/2014).
Como encerramento das atividades são realizados os concertos gerais. Estes são
antecedidos por ensaios marcados por uma série de momentos: a saída da escola
de ônibus, rumo ao local do ensaio; o encontro com as crianças de outras regiões
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13. Nos ensaios gerais as peças são executadas com a instrumentação que será utilizada nos concertos.
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Para Oleide a escolha do repertório é uma das etapas mais difíceis, uma vez que
as canções precisam respeitar a extensão vocal da criança. O comentário de Lucy
reforça esta preocupação:
Então, as músicas, se estiverem escritas em uma tessitura que não é adequada à voz
das crianças, a gente tenta alterar ou mudar de música. Se por algum motivo “ah, isso
daqui acho que [...] não dá para mexer ou talvez não ficasse bom, ou a gente não devesse
alterar” a gente então escolhe outro repertório (Entrevista, Art. Lucy, 01/04/2014).
A maioria das canções apresenta linhas melódicas entre o ré3 e o ré414. A monitora
Tatiane afirmou que a definição de uma canção em detrimento de outra depende da
14. Das 128 canções desenvolvidas entre os anos de 2002 e 2014, duas canções tinham o sib2 como altura mais grave e oito peças o si2. O fa4
também aparecia em algumas canções, mas como nota de passagem.
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altura e do registro, de como a canção “vai soar [...], fácil, que todo mundo tem certeza que eles vão dar
de acordo com a anatomia da criança, de toda essa conta. Então, acho que é isso, nível de dificuldade,
parte fisiológica” (Entrevista, Tatiane, 07/04/2014). aquilo que mais naturalmente eles vão responder
Os comentários salientam a importancia de respeitar pela fala, pelos movimentos corporais (Entrevista,
Tatiane, 07/04/2014).
a tessitura e a necessidade de conhecimentos
específicos sobre a fisiologia da voz infantil15. Os primeiros ensaios de cada ano, são dedicados ao
aprendizado da manossolfa16. Por meio de brincadeiras
Além da extensão vocal, as dificuldades técnicas
e com a participação de alunos que frequentaram o
norteiam a definição do repertório. As peças
Projeto em anos anteriores, os monitores conduzem
desenvolvidas trazem predominantemente estruturas
a execução dos gestos associados aos nomes das
melódicas em graus conjuntos, poucos cromatismos,
notas musicais. A partir de então, os alunos aprendem
pequenos saltos com intervalos de terças maiores e
a melodia da “Canção dó, ré, mi”17 e são estimulados
menores e dificuldades técnicas passíveis de serem
a executar a manossolfa simultaneamente conforme
solucionadas, acarretando execuções em nível técnico
cantam os nomes das notas musicais de dó a sol.
satisfatório. As dificuldades técnicas características
Depois desse processo, a canção é explorada em sua
do repertório do Projeto concentram-se na execução
totalidade, abrangendo a divisão de vozes, o fraseado,
de saltos, fraseados e articulações vocais.
as variações de intensidade e demais elementos
Não pode ser nada muito elaborado porque são técnicos e estruturais. Esse procedimento esclarece
crianças que não têm muita vivência de cantar. o equilíbrio evidenciado na fala da monitora Tatiane,
Então, tem que ser algo muito simples para que elas
no qual os desafios inerentes ao repertório são
possam fazer bem, dentro da realidade delas e a
apresentados de maneira progressiva, respeitando o
gente possa apresentar. Se for algo muito complexo,
nível de dificuldade e iniciando com a aprendizagem
aí vai gerar uma frustração porque não vai dar conta
de elementos aparentemente mais naturais.
[...] (Entrevista, Carla, 10/04/2014).
15. Sobre a extensão vocal infantil, veja também a discussão de Sobreira e Boechat (2015).
16. De acordo com Silva (2011, p. 73), “a manossolfa é uma sequência de gestos manuais utilizada na aprendizagem de alturas. Cada altura
possui um gesto correspondente. Cada gesto deve ser feito pelo professor e alunos ao cantarem a altura correspondente”. A utilização da
manossolfa torna o solfejo visualmente concreto.
17. Ensinada e executada desde a primeira edição do Projeto, a “Canção dó, ré, mi” apresenta-se como um símbolo da prática musical por
possibilitar a vivência do solfejo, o aprendizado da manossolfa e a execução à duas vozes.
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questão da melodia, se não é tão difícil. Então, a imprescindível. Sobre isto, Lucy argumentou que:
gente verifica porque realmente é uma musicalização
A letra é um critério, a gente nunca colocaria em um
através do canto coral. Então, algumas músicas não
ensaio uma letra, uma música com uma letra que
dá para a gente ainda executar (Entrevista, Gilcene,
fosse ofensiva a algum princípio moral, que talvez
11/04/2014).
pudesse prejudicar a formação das crianças. [...] Esse
é um cuidado, é um critério que a gente tem quando
Fica claro que, no processo de definição do repertório,
[...] escolhe as partituras porque nós estamos lidando
o conhecimento contextual é extremamente com a formação das crianças [...] (Entrevista, Lucy,
importante. Uma canção considerada bonita e 01/04/2014).
adequada ao universo infantil pode não ser incluída
no repertório por apresentar dificuldades extremas em
Tendo em vista que o repertório abrange canções em
sua execução. As características sonoras dos grupos
diferentes idiomas, o trabalho com o texto envolve
corais formados nas escolas atendidas pelo Projeto
a compreensão contextual e a pesquisa sobre a
UCCC, contribuem na definição do repertório quando
pronúncia correta das palavras. A monitora Élbia
sinalizam quais dificuldades técnicas são passíveis de
afirmou que “o grupo se preocupa muito com a letra,
serem superadas e quais ainda não são.
o que vai estar ensinando, o que vai estar passando”
Com relação a divisão de vozes, de maneira geral, as (Entrevista, Élbia, 07/04/2014) e Gilcene enfatizou que,
canções apresentam a estrutura de cânone, melodias “como educadora e também com o pensar social, a
sobrepostas e independentes, ostinatos ou peças gente usa o critério de que tenha uma mensagem [...]
em uníssono. A separação em dois grupos tem educativa e que vá construir algo para aquela criança”
Além da divisão de vozes, o conteúdo poético O quinto critério para a seleção do repertório diz respeito
recebe destaque apresentando-se como um critério aos estilos, gêneros musicais e diversidade cultural.
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18. A última pergunta do questionário, de número 17, trazia um espaço em branco para o aluno que assinalasse “não gosto”, em alguma questão
anterior, pudesse escrever quais aspectos do Projeto causavam-lhe insatisfação.
19. O Guia Prático é uma coletânea de 137 peças vocais “baseadas em temas extraídos do Cancioneiro infantil”, criadas e organizadas por
Heitor Villa-Lobos (1941). O projeto inicial contemplava dois volumes, porém somente o primeiro foi concluído. “O Guia Prático – 1º Volume
seria publicado no seu formato definitivo de tomo único nos anos [19]40 (pelos Irmãos Vitale)”. Em 2009, a FUNARTE reeditou o material; a nova
publicação foi organizada em três Cadernos e uma Separata (VILLA-LOBOS, 2009).
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