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CASARIN. Isaiah Berlin Afirmaçao e Limitaçao Da Liberdade
CASARIN. Isaiah Berlin Afirmaçao e Limitaçao Da Liberdade
2008
ISAIAH BERLIN:
AFIRMAÇÃO E LIMITAÇÃO DA LIBERDADE
RESUMO
Este texto propõe-se a oferecer uma análise crítica da liberdade liberal tal como formulada por Isaiah
Berlin, e entendida substancialmente como liberdade negativa. Tal entendimento da liberdade, em diversas
de suas formulações, segue sendo hegemônico no debate contemporâneo sobre liberdade, direitos e suas
circunstâncias. Com base nessas considerações, tentamos demonstrar que a liberdade negativa não é capaz
de promover a autonomia individual -bem cuja proteção é a sua sempre alegada razão de ser-sem recorrer
a um projeto de justiça distributiva que leve em conta elementos da crítica de inspiração socialista ao
liberalismo.
PALAVRAS-CHAVE: liberdade; liberalismo; direitos; Isaiah Berlin.
Recebido em 22 de fevereiro de 2007. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 16, n. 30, p. 283-295, jun. 2008
Aprovado em 24 de maio de 2007.
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telectual a que Benjamin Constant já dera contri- que as respostas podem coincidir parcialmente e
buição decisiva. que em alguns pontos há sobreposição das esfe-
ras de uma e outra liberdade (BERLIN, 2002a, p.
Feitas essas considerações, passemos propri-
229).
amente à obra de Berlin, ou aos aspectos dela que
aqui desejamos abordar: a discussão em torno da O autor não inaugura o debate, mas entra para
liberdade liberal, de seu valor e sua relação com a tomar partido inequívoco em favor da forma ne-
democracia, tema presente em diversos dos en- gativa de liberdade, única verdadeira e merecedo-
saios, artigos e conferências que a compõem. O ra do nome, segundo ele. Com a palavra, mais
autor parte da distinção – recorrente no terreno uma vez, o próprio Berlin: “O sentimento funda-
da Teoria Política e Constitucional – já plenamen- mental da liberdade é a liberdade dos grilhões, do
te estabelecida em seu tempo e tão cara ao libera- aprisionamento, da escravidão por outros. O res-
lismo entre “liberdade positiva” e “liberdade nega- to é extensão desse sentido, ou então é metáfora”
tiva”. Berlin retoma assim os dilemas e a termino- (BERLIN, 1981, p. 32).
logia de Constant na defesa do liberalismo, princi-
A palavra “negativa” justaposta a “liberdade” é
palmente contra seus detratores mais à esquerda
também uma descrição de seu funcionamento: a
nessa época “de extremos”.
liberdade é negativa porque opera “negativamen-
A questão é: de que liberdade estamos a tratar, te”, ou seja, pela não-interferência alheia naquelas
já que o próprio Berlin chegou a contabilizar cer- esferas protegidas da vida do indivíduo, dos gru-
ca de 200 sentidos para o termo? Há, portanto, pos e das associações. Bastaria, portanto, que os
que o definir. “Coagir um homem é privá-lo de potenciais violadores da liberdade não realizassem
liberdade”, diz ele, em uma antecipação de qual a intervenção para que a liberdade se efetivasse.
seria a sua concepção. Dentre os 200 significa- Se tomamos a liberdade de imprensa como exem-
dos da palavra, somente dois guardariam relevân- plo, bastaria que o Estado não realizasse uma ope-
cia para a política contemporânea, pois seriam ração de censura para que se formasse uma im-
capazes de mobilizar e articular as variáveis pre- prensa livre de amarras cumprindo sua função
cisas de identificação política: os conceitos nega- informativa. A inviolabilidade de domicílio seria
tivo e positivo da liberdade. O autor (re)define-as garantida pela não-invasão do domicílio por parte
por meio de duas questões, formuladas de diver- do Estado. Mas e se um particular, movido por
sos modos: o sentido negativo é aquele derivado seus desejos, paixões e interesses, resolver violar
da questão: “Qual é a área em que um sujeito – a esfera de direitos negativos de outrem? Bem,
uma pessoa ou um grupo de pessoas – é ou deve para coibir semelhantes intenções ou punir even-
ter permissão de fazer ou ser, sem a interferência tuais violações, caberia ao Estado manter um apa-
de outras pessoas?” ou, em termos mais simples: rato policial-preventivo e judicial-punitivo. As li-
“Até que ponto sou governado?” (BERLIN, 1981, berdades de consciência (na qual se pode incluir a
p. 23). O segundo sentido, “positivo”, por sua religiosa), expressão, locomoção, a inviolabilidade
vez, é aquele resultante da seguinte indagação: “O de domicílio, o direito à integridade física e um
que ou quem é a fonte de controle ou interferên- conjunto de regras destinadas a garantir certa
cia capaz de determinar que alguém faça ou seja racionalidade e proporcionalidade no sistema pe-
uma coisa em vez de outra?”, ou ainda: “Por quem nal compõem o núcleo duro dos chamados direi-
sou governado?”. Se quisermos colocar em ter- tos negativos. Merece uma extensa discussão,
mos ainda mais simples, podemos identificar as impossível de fazer-se aqui, a pretensão de serem
liberdades como “liberdade de” e “liberdade para”. estes os direitos de maior exigibilidade, por um
Diante de tais categorias, alguém familiarizado com lado, e, por outro lado, a questão de que eles ga-
a história e a terminologia do liberalismo dificil- rantam-se e realizem-se simplesmente de maneira
mente pode deixar de fazer associações com ca- “negativa”. Neste momento, limitamo-nos a afir-
tegorias semelhantes: liberdade individual e mar que, tradicionalmente, esses direitos sempre
autogoverno coletivo, liberalismo e democracia ou, foram tidos em alta conta pelo liberalismo, pois
ainda, liberdade dos modernos e liberdade dos são em grande parte direitos de privacidade e, como
antigos, conforme a nomenclatura que se prefira. sabemos, a estipulação de uma área de individua-
Embora afirme que as liberdade positiva e negati- lidade e de privacidade apresenta-se como uma
va sejam absolutamente diferentes, Berlin admite valiosa conquista liberal. Entenda-se que não se
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As “raposas” de que nos fala são aqueles que “justiça”. De acordo com Berlin, dessa
se deram conta de que a vida humana não pode incomensurabilidade deriva a futilidade inerente a
ser regida, explicada ou guiada por um único prin- qualquer objetivo para o qual todos os esforços e
cípio, um único valor, uma única doutrina, os projetos humanos devessem contribuir ou tender
“pluralistas”. A riqueza mesma da vida consistiria ou que tivesse a pretensão de fornecer um crité-
na diversidade e na pluralidade conflitante de pon- rio de julgamento para os objetivos dos seres hu-
tos de vista, valores e objetivos considerados vá- manos (KENNY, 2000, p. 1028). Berlin identifica
lidos e verdadeiros pelos seres humanos. O con- em Maquiavel o iniciador da tradição intelectual
flito “diversidade de valores” versus “valor úni- pluralista, argumento cuja prova seria a possibili-
co”, colocado como está, pode ser entendido como dade da gama larga de leituras e interpretações
uma idéia destinada a promover a convivência entre que costumam ser feitas de sua obra, na qual va-
diferentes. Mas seria então o pluralismo de valo- lores cristãos e fundados nas virtudes cívicas re-
res apenas um relativismo respeitoso de valores e publicanas e pagãs conviveriam lado a lado, sem
de concepções do bem – impedindo o Estado li- a pretensão de exclusivismo ou exclusividade,
beral de levar a cabo ações que punam ou incenti- garantindo-lhe (a Maquiavel) um lugar honroso
vem concepções determinadas do bem – e surgi- entre as “raposas” intelectuais.
do da consciência da diversidade humana? Se acei-
Mas qual a conseqüência pretendida por Berlin
tamos a hipótese de que o pluralismo corresponde
ao afirmar tal incomensurabilidade? O que o
a essa velha idéia liberal, estaríamos contra as pre-
pluralismo de valores parece indicar é a impossi-
tensões do próprio Berlin, que pretendia assinalar
bilidade última de harmonização dos grandes bens
a originalidade do conceito. Ora, é verdade que
valorizados pela humanidade sem que ocorram
em uma sociedade de massas, urbana e democrá-
perdas e renúncias, pois esses valores não se aco-
tica, o respeito pelo Estado às liberdades individu-
modam automática e harmonicamente uns aos
ais e aos direitos civis tende a contribuir para a
outros, mas disputam espaço em cada escolha
formação de um ambiente de diversificação de
humana relevante. O aspecto dilacerante da
estilos de vida, de interesses, de opiniões e de
incomensurabilidade entre os valores perpassa a
concepções do bem em geral. A pluralidade emer-
vida humana em todas as dimensões, tornando as
ge como resultado natural da promoção da tole-
escolhas feitas pelos homens (mesmo aquelas de
rância e do oferecimento de um desenho das ins-
repercussão apenas na vida privada) extremamente
tituições destinado a proteger as escolhas de pla-
dolorosas. Os valores relevantes são assim vistos
nos de vida feitos pelas pessoas. Nesse caso, como
a priori como rivais, não inter-relacionáveis de
vimos acima, a pretensão de Berlin de que o
maneira racional: qualquer tentativa de combinar-
pluralismo seria algo original não poderia ser sus-
se de maneira relativamente harmoniosa “liberda-
tentada.
de” e “justiça”, por exemplo, estaria destinada a
No entanto, o pluralismo de valores não é ape- fracassar, pois a justiça avançaria sobre a liberda-
nas um fato decorrente do oferecimento às pes- de ou a liberdade obrigaria a justiça a recuar. Essa
soas da liberdade para escolher o plano de vida parece ser a função mais evidente do “pluralismo
que mais lhes convenha: há realmente algo mais a como valor” dentro da obra berliniana e é capaz
compor esse conceito. O pluralismo berliniano de explicar sua defesa da liberdade negativa como
descarta a possibilidade de encontrar-se uma ver- a única maneira de promover a liberdade individu-
dade última, um grande valor último, uma harmo- al sem riscos: “O pluralismo, com a dose de liber-
nia ou uma grande utopia capazes de reger a vida, dade ‘negativa’ que acarreta, parece-me um ideal
que tende a ser múltipla, plural e anárquica no que mais verdadeiro e mais humano do que as metas
se refere a essas características. A rejeição do daqueles que buscam nas grandes estruturas dis-
monismo gira em torno não só da compreensão ciplinadas e autoritárias o ideal de autodomínio
de que nenhum dos grandes valores humanos é ‘positivo’ por parte de classes, povos ou de toda
absoluto, mas também da consciência de que as a humanidade” (BERLIN, 2002a, p. 272).
circunstâncias da vida inevitavelmente impõem o
Assim, a liberdade negativa não poderia ser um
choque entre eles. Em suma, a principal idéia por
valor dentre outros a promover a autonomia indi-
trás do conceito de pluralismo é uma difusa no-
vidual porque ela não pode ser combinada com
ção de incomensurabilidade entre os grandes va-
outros valores. Tratar-se-ia de uma escolha dolo-
lores humanos, como “liberdade”, “igualdade”, ou
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rosa, mas necessária. Entre liberdade negativa e ploração de categorias polarizadas, despreza o jogo
justiça, Berlin escolhia a primeira. Embora reco- dialético entre ambos os pólos e o autor faz uma
nhecesse alguns de seus limites na promoção da opção inflexível por um deles.
autonomia individual – limites apontados pelos
III. O ANTIPATERNALISMO
críticos –, era a autonomia individual possível. Se
aceitamos essa incomensurabilidade, então a li- Mas enquanto parte dos críticos do liberalis-
berdade não pode ser conjugada com a justiça, mo questionava a liberdade negativa por sua fali-
ou, se pode, deve sê-lo com todo o cuidado e em bilidade e insuficiência na promoção da autono-
doses muito pequenas da última, porque é a inten- mia, havia aqueles que atacavam o liberalismo
sidade da combinação que pode trazer o “risco”. objetando a própria autonomia individual. Essa
parcela dos adversários do liberalismo situada à
Admitamos por um instante que Berlin esteja
esquerda era-o nos seguintes termos: uma vez que
correto ao diagnosticar uma incomensurabilidade
o eu-juiz-de-mim-mesmo dos liberais talvez não
terrível, dolorosa e inafastável entre os valores
tenha as condições de escolher ou de discernir
arquetípicos. Por que motivo a liberdade indivi-
seus verdadeiros interesses, já que muitas vezes
dual é que deveria ter prioridade às custas de ou-
sua percepção do mundo é prejudicada pelo véu
tros valores igualmente relevantes? Porque a li-
da ideologia, qual a razão para defender uma or-
berdade negativa, diria provavelmente Berlin, é o
dem normativa (a liberal) cuja justificação esteja
único dos bens realmente comprometido com a
na autonomia individual? De acordo ainda com
autonomia individual de maneira não ambígua;
essa crítica, a escolha dos verdadeiros interesses
Constant já afirmava que uma sociedade moderna
de um indivíduo seria algo capaz de realizar-se de
sem ela seria simplesmente intolerável. Em Berlin,
maneira plena somente após sua emancipação real
o pluralismo representa o compromisso com a
e simbólica em relação a uma estrutura econômi-
diversidade – e a diversidade é o preço da justiça.
ca, social e política de caráter profundamente in-
Mas até que ponto podemos dar crédito a essa justo e alienante; ou seja, a autonomia seria poste-
incomensurabilidade? Será verdade que valores rior à emancipação (que se realiza de outra manei-
arquetípicos não podem ser promovidos ra, por meio de outros processos) e em conseqü-
concomitante em um mesmo sistema político? A ência dela, mas não se realizaria na própria esco-
idéia de que liberdade e igualdade, ou liberdade lha dos fins últimos da vida feita por indivíduos
individual e justiça, estão cada qual de um lado de relativamente “incapazes” disso. O indivíduo con-
uma gangorra, de modo que se uma delas ascen- creto estaria muito melhor representado na esco-
de necessariamente o fará às custas do descenso lha de seus interesses por um determinado grupo
da outra, não nos parece apenas implausível, mas de quem se houvesse removido esse véu ideológi-
também um modelo primitivo demais para expli- co que tantas visões enevoava.
car as complexas interações entre a liberdade, a
Há aí o perigo latente – deixa aproveitada pe-
igualdade e a justiça social nas sociedades con-
los liberais – de o auto-arvorado intérprete das
temporâneas. Consideremos esses três valores:
escolhas individuais e coletivas descambar para o
não poderíamos afirmar que cada um deles pode
mais brutal totalitarismo em nome de um porvir
prestar-se a ser interpretado de tal maneira que
emancipatório permanentemente adiado. Nos dias
estejam prenhes de ambos os outros? A liberdade
que correm – quando temos o peso da história do
não carrega em si mesma uma dimensão igualitá-
século XX sobre nossos ombros – é mais natural
ria e justa e, reciprocamente, o mesmo não se dá
manifestarmos ceticismo para com concepções
com os outros dois bens, grávidos de muitos sig-
políticas que exigem a entrega de nossa autono-
nificados? Na verdade, parece bastante difícil sus-
mia e responsabilidade (ainda que relativas) a mãos
tentar uma contradição ontológica entre liberda-
alheias ou que apelem a argumentos paternalistas,
de, igualdade, justiça ou outros bens. Na era do
fundados em um conhecimento pretensamente
capitalismo industrial em que Berlin escrevia, a
superior e elevado de nosso próprio bem-estar. É
autonomia individual não podia ser considerada
certo que concepções desse tipo podem impor-se
com seriedade e adequadamente promovida sem
pela força, mas evidentemente lhes faltaria o re-
que se tivessem em conta questões de igualdade e
quisito básico da legitimidade. Faltaria legitimida-
de justiça, combinadas com a liberdade individual
de política a alguém que julga representar melhor
“negativa”. Seu pensamento, constituído pela ex-
que nós mesmos nossos próprios interesses em
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favor de uma utopia de realização futura e incerta. Uma objeção como essa pode perfeitamente
Esse espírito cético casava-se muito bem com as estar fundada em um compromisso ainda mais
características do autor de que estamos a tratar, forte com a autonomia individual. Um compro-
definido por Perry Anderson como “um liberal de misso profundo com a promoção desse valor ne-
características tipicamente inglesas –socialmente cessita encontrar uma razão bastante mais rele-
humano, empírico e cético” (ANDERSON, 2002a, vante para desconsiderar completamente outras
p. 301). Berlin rejeitava energicamente concepções formas de arrebatar dos indivíduos sua capacida-
políticas que arrebatavam do indivíduo a capacida- de de escolha e de agir como sujeitos morais, como
de de avaliar seus próprios interesses e aspirações. as privações intensas de bens básicos, por exem-
O “eu” empírico é o único verificável: “A bipartição plo. Mencionamos um certo grau de justiça
do ‘eu’ entre um eu empírico e um eu mais alto, distributiva como um elemento necessário para a
entre um eu real e outro eu ideal, este pretensamente promoção da autonomia individual (se o que se
identificado com instituições, nações, igrejas e par- tem em mente é a identidade e a liberdade indivi-
tidos, raças, classes, que se autoproclamam os ver- dual de todos, não somente de alguns), mas isso
dadeiros intérpretes dos ‘verdadeiros’ interesses do tem apenas um caráter exemplificativo. Podería-
eu mais alto, constitui algo em franco confronto mos imaginar centenas de mecanismos e regula-
com o sentido da auto-identidade. Os discursos mentações institucionais necessários para prote-
fundados na harmonia total com os outros, ger a capacidade individual de “ser dona de si
centrados nas formas coletivas de identidade em mesma”, que podem perfeitamente ser combina-
detrimento da identidade individual são inconsis- dos com as liberdades clássicas, e que no entanto
tentes, pois isso é incompatível com os pressupos- estão além delas. A nenhum liberal ocorre negar,
tos mais elementares da auto-identidade e do indi- por exemplo, que o consentimento estritamente
vidualismo”, conforme diz Berlin (1981, p. 24). voluntário dos súditos é um requisito básico de
legitimidade política hoje, consentimento apurado
Bem, essa defesa contundente da autonomia
por meio de um procedimento-padrão eleitoral. Mas
individual é parte da estratégia argumentativa de
um liberal também é capaz de reconhecer a exis-
valorização da concepção negativa de liberdade,
tência de processos de manipulação coletiva e o
já que o liberalismo seria, das doutrinas políticas
desenvolvimento de instrumentos cada vez mais
disponíveis, a mais comprometida com esse en-
sofisticados de psicologia de massa que permi-
tendimento de autonomia. Mais uma vez: se po-
tem, senão controlar, ao menos influenciar parte
demos concordar com Berlin a respeito da impor-
importante da opinião pública, mesmo nas demo-
tância da liberdade negativa para promover a au-
cracias liberais com plena e irrestrita vigência dos
tonomia do “eu”, não podemos deixar todo o peso
direitos políticos e civis. Isso não reduz a impor-
de promover essa autonomia nas costas da liber-
tância e a necessidade dos direitos políticos e ci-
dade negativa, pois parece claro que ela não é ca-
vis, mas exige medidas em outras frentes. Sabe-
paz de tanto: há outras ameaças que pesam sobre
mos que a concentração dos meios de comunica-
a liberdade individual incapazes mesmo de serem
ção em poucas mãos tende a tornar o público mais
detectadas por um desenho institucional excessi-
suscetível à manipulação, por exemplo. Portanto,
vamente dependente da concepção negativa de li-
uma regulamentação dos meios de comunicação
berdade. Álvaro de Vita afirma: “Qualquer versão
que promova ou incentive a fragmentação e a di-
do liberalismo político tem entre suas preocupa-
versidade pode diminuir a influência que grupos
ções centrais a de tratar os indivíduos como res-
mais poderosos teriam em um contexto regula-
ponsáveis por suas próprias preferências e pelos
mentado de maneira mais frouxa. Não queremos
fins que escolheram seguir em suas vidas. Isso
estender-nos muito sobre esses pontos; o que
responde em larga medida por aquilo que o pen-
desejamos é afirmar que a liberdade, a autonomia
samento liberal entende por liberdade” (VITA,
e a identidade individuais estão muito além do mero
1993, p. 69). Entretanto, a liberdade não pode ser
compromisso com um núcleo de liberdades ga-
uma variável completamente abstrata e alheia a
rantidas de maneira negativa. Em outras palavras,
suas circunstâncias, ou, como nos lembra o mes-
há diversas e sofisticadas formas de alienação do
mo Álvaro de Vita, não podemos pressupor que
“eu”: elas também podem ser denunciadas em
as condições de escolha e de manejo individual
nome de um compromisso forte com a autono-
estejam presentes, mesmo estando claro que não
mia individual e não para escamotear o “eu
estão (idem, p. 70).
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empírico” dos indivíduos, como temia Berlin. A Podemos identificar uma sutil mudança de
autonomia moral tem alguns pré-requisitos (de opinião de Isaiah Berlin ao longo de sua vida no
manutenção física da vida, por exemplo) que não que se refere às duas liberdades, ou ao menos
podem ser ignorados, ainda menos em nome da uma mudança de tom com respeito à sua opinião
autonomia moral. a respeito da “ameaça” representada pela liberda-
de positiva. No texto de 1958, Berlin revelava-se
IV. A AMEAÇA VINDA DO PÓLO POSITIVO
não só desconfiado ou prudente, mas francamen-
O terceiro gênero de argumento de Berlin con- te hostil em relação ao papel do componente posi-
tra a liberdade positiva evoca antigos medos e tivo da liberdade em uma sociedade liberal e tam-
desconfianças liberais e está freqüentemente apoi- bém à possibilidade de conciliar e combinar os
ado em razões empíricas ou históricas escolhi- dois pólos da liberdade: “Isso [liberdade como
das; diz respeito às relações entre os dois gêneros esfera garantida contra a interferência alheia] está
de liberdade ou à maneira como Berlin vê e explo- quase no pólo oposto dos objetivos daqueles que
ra essas relações. A expressão de receios eventu- acreditam em liberdade no sentido ‘positivo’ – de
ais sobre a possibilidade de a soberania do povo autogoverno. Os primeiros querem refrear a au-
sobrepujar e desconsiderar a dos indivíduos esta- toridade como tal. Os últimos a querem em suas
va presente em muitos dos liberais do século XIX, próprias mãos. Essa é uma questão cardinal. Não
como Tocqueville e o “pais da pátria” estaduniden- são duas interpretações diferentes de um único
ses, que dessa maneira expunham suas reservas conceito, mas duas atitudes profundamente diver-
para com a democracia (e com a promessa de gentes e irreconciliáveis para com os fins da vida”
isonomia levada um pouco mais longe que a (BERLIN, 2002a, p. 266; sem grifo no original).
isonomia “perante a lei” do liberalismo). De qual- Ou então: “Devo estabelecer uma sociedade na
quer modo, a tirania da maioria não é uma preo- qual haja regras que a ninguém seja permitido cru-
cupação exclusiva da órbita liberal, mas represen- zar. Posso dar nomes diferentes a essas regras.
ta um tema recorrente dentro da própria teoria [...] Pois está claro que não se pode esperar mui-
democrática. A tradicional e recorrente (no pen- to do governo das maiorias; a democracia como
samento liberal) dicotomia entre liberdade e de- tal não está logicamente comprometida com esse
mocracia ora assume a característica de oposição mínimo de liberdade e historicamente às vezes
franca, ora de oposição eventual, com possibili- falhou em protegê-lo” (ibidem). E mais: “Talvez o
dades de superposição, subsistindo na forma de principal valor dos direitos políticos – ‘positivos’
uma antinomia sempre latente. Por vezes, um au- – de participar do governo seja, para os liberais, o
tocrata “bondoso” é menos temido que os usos de ser um meio de proteger aquilo que eles consi-
que a multidão pode fazer da isonomia democráti- deram um valor supremo, a saber, a liberdade in-
ca. Berlin expressou-se do seguinte modo: “A li- dividual – ‘negativa’” (ibidem). Assim, os valores
berdade em sentido negativo não é incompatível da liberdade positiva e da democracia ficam de-
com certos tipos de autocracia, ou pelo menos gradados a uma função instrumental para prote-
com a ausência de autogoverno. A liberdade nes- ger as conquistas da liberdade negativa, o que é ir
se sentido preocupa-se principalmente com a área além da subordinação da primeira à segunda. Até
de controle, não com a fonte” (BERLIN, 2002a, mesmo Benjamin Constant e Stuart Mill foram
p. 235). É verdade que um sentido minimalista de capazes de afirmar uma conexão mais generosa
liberdade pode ser encontrado até mesmo no inte- ou menos reticente entre liberalismo e democra-
rior de um Estado autocrático e com ele conviver cia, estatuindo a possibilidade de um compromis-
razoavelmente bem, conforme alguns exemplos so mútuo entre a liberdade negativa e o
históricos podem confirmar; portanto, a liberda- autogoverno democrático. Na verdade, ambos iam
de liberal não necessita coexistir com a forma ainda mais além: julgavam tal conexão fundamen-
democrática1. tal e indispensável para a manutenção dessas li-
berdades, embora demarcassem didática e enfa-
ticamente a diferença entre soberania do povo e
1 O exemplo citado por Perry Anderson (2002a, p. 302) é soberania dos indivíduos.
o do Império Austro-Húngaro dos Habsburgos, em que
vigiam “procedimentos legais, liberdades civis, liberdade Ao fim e ao cabo, as possibilidades de chegar
de imprensa e organização política, mesmo que não assem- a uma solução de compromisso entre as duas li-
bléias eficazes ou governo responsável”. berdades seguem como algo vago e pouco pro-
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missor e a mirada de Berlin em direção à liberdade cia, em determinada situação, ser promovida às
positiva não abandona o viés de desconfiança. O expensas da liberdade individual, ou a igualdade a
autogoverno coletivo tem seu valor bastante de- expensas da realização artística, ou a misericórdia
preciado e diminuído na métrica berliniana, rara- às expensas da eficiência [...]?”; “Entre valores
mente se apresentando como algo dotado de va- categóricos em conflito não pode haver soluções
lor intrínseco. Para ele, a liberdade positiva não é fixas e categóricas” (idem, p. 27). Um dos dois
um complemento da liberdade negativa, que, jun- valores avançará sobre o outro, se levamos a sé-
tamente com ela, comporia uma versão da liber- rio sua afirmação de que valores absolutos em
dade maior que ambas. choque “não podem ser resolvidos pela síntese”
(idem, p. 28). A liberdade negativa continuava a
Algum tempo depois, Berlin corrigiu esses “ex-
ser sua preferência manifesta e grande valor de
cessos” – a expressão mais uma vez é de Perry
referência.
Anderson (2002a, p. 304) – em relação à sua fé
quanto à suficiência da liberdade negativa na pro- Por vezes, Berlin chega perto de acolher as
moção da autonomia individual. Em um texto pu- objeções de seus adversários, admitindo a valida-
blicado anos mais tarde (já em 1969), Berlin vol- de de considerar-se de maneira distinta a liberda-
tou um pouco atrás em relação a isso: nesse texto de e as condições de seu exercício: “Se um ho-
reconhece que a forma negativa da liberdade pode mem é muito pobre ou muito fraco para fazer uso
ter uma face bastante perversa (a que se refere de seus direitos legais, a liberdade que esses direi-
como “darwinismo social”): “liberdade para os tos lhe conferem não significam nada para ele,
lobos quase sempre significa morte para os cor- mas a liberdade não é, dessa forma, aniquilada”.
deiros”. Para ele, os excessos do individualismo e “Liberdades inúteis devem ser tornadas úteis, mas
do laissez-faire “levaram a violações brutais da não são idênticas às condições indispensáveis para
liberdade negativa – de direitos humanos básicos, sua utilidade” (idem, p. 27). Em outro trecho, re-
inclusive o de livre expressão ou o de associação” conhece a “progressiva e consciente subordina-
(BERLIN, 1981, p. 25). Reconhece também que ção de interesses políticos a interesses sociais e
“As liberdades legais são compatíveis com extre- econômicos. [...] Por outro lado, depara-se-nos a
mos de exploração, brutalidade e injustiça” (idem, convicção de que a liberdade política é inútil sem
p. 26). Arremata, em seu influxo um pouco mais o poder econômico necessário para usá-la e, em
à esquerda: “[...] as responsabilidades do Estado conseqüência, a negação implícita ou explícita da
para com seus cidadãos precisam crescer e cres- contraposição de que a oportunidade econômica
cerão, em vez de diminuírem [...]” (ibidem). Nesse só pode ser utilizada por homens politicamente
momento Berlin estatui e reconhece que formas livres” (idem, p. 61). Assim, acaba corroborando
extremas do liberalismo econômico (com sua ên- uma das principais razões pela qual a liberdade
fase dogmática na liberdade negativa) podem es- negativa (ao menos sua versão de liberdade nega-
tar em contradição com as promessas de emanci- tiva) é alvo do ceticismo de muitos: admite que
pação individual do liberalismo político. No en- não se trata de um bem para o desfrute de todos:
tanto, “a despeito de seus excessos”, diz ele, “a “A liberdade de uma sociedade, uma classe ou um
liberdade negativa não tem sido historicamente grupo, nesse sentido [negativo] de liberdade, é
deturpada por seus teóricos com tanta freqüência medida pela força dessas barreiras e pelo número
ou tão efetivamente para tornar-se algo tão obs- e importância dos caminhos que mantêm abertos
curamente metafísico, socialmente sinistro ou a seus membros – se não para todos, pelo menos
afastado de seu significado original quanto sua para grande parcela deles” (BERLIN, 2002a, p.
contrapartida positiva” (ibidem). Assim, apesar de 272; sem grifos no original).
ser um “objetivo universal válido”, a liberdade
Contudo, Berlin não dá maiores conseqüênci-
positiva continua a representar o papel histórico
as a essas observações: o desconforto trazido por
de um “disfarce para o despotismo em nome de
elas conduz a um arremate resignado. O reconhe-
uma liberdade mais ampla”.
cimento da incapacidade de a liberdade negativa
As razões para a hostilidade e a desconfiança realizar a autonomia individual de todos vem rente
estão na já conhecida “incomensurabilidade entre com um chamado à prudência e um alerta aos
os valores”. Assim, as liberdades positiva e nega- riscos de “combinar” a liberdade com a justiça ou
tiva podem chocar-se de maneira irreconciliável e a igualdade. Na métrica berliniana, cada coisa é o
nesses casos há que escolher: “Deve a democra- que é: liberdade é liberdade, igualdade é igualdade.
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se; a população israelense de origem árabe está momento ou uma configuração institucional a par-
privada de uma série de direitos conferidos aos tir do qual a liberdade negativa passaria a
cidadãos judeus, estes majoritários; o mesmo ocor- constrangê-la. Creio que somos todos capazes de
re com os norte-irlandeses católicos, também pri- imaginar configurações institucionais da liberda-
vados de facto de direitos básicos pela maioria de negativa em que os coparticipantes de uma
protestante. Enfim, são inúmeras as possibilida- comunidade política poderiam ser oprimidos e
des de que haja um aniquilamento “democrático” constrangidos em seus objetivos de vida de ma-
dos direitos civis de minorias. Entretanto, pode- neira arbitrária em plena vigência de direitos polí-
mos da mesma maneira listar diversos exemplos ticos e civis. Por exemplo, em situações de extre-
de minorias que negam a extensão de direitos ci- ma desigualdade material na qual a concepção de
vis à maioria da população: o apartheid sulafricano liberdade (negativa) vigente atribuísse suprema
e a dominação sunita no Iraque (cuja população é prioridade, digamos, à proteção do direito de pro-
majoritariamente xiita) são apenas dois exemplos. priedade daqueles que já são proprietários, em
De qualquer modo, podemos objetar que uma es- detrimento mesmo das condições de reprodução
trutura de dominação assim dificilmente pode ser mínima das condições de vida dos mais destituí-
identificada como algo independente de outras dos. Certamente uma contradição marcada entre
estruturas mais amplas: provavelmente ela neces- o bem que a liberdade negativa alega defender – a
sitaria de reforço por privações econômicas e ser autonomia individual – e a justiça distributiva é o
nelas apoiada, por exemplo. resultado de uma construção política e não de um
confronto ontológico entre liberdade e justiça.
Retornando ao tema da definição da liberdade
positiva, a clareza da liberdade negativa não bene- Berlin afirma que “o critério da opressão é o
ficia sua “rival”. Dizer que a liberdade positiva papel que acredito estar sendo desempenhado por
representa os direitos de participação política que outros seres humanos, direta ou indiretamente,
propiciam o autogoverno coletivo não é suficien- com ou sem intenção, para frustrar meus dese-
te, porque às vezes parece significar algo mais: jos. Ser livre, nesse sentido, para mim significa
Berlin dá-nos a impressão de que não tem em mente não sofrer a interferência dos outros. Quanto maior
apenas a soberania popular e o risco de ela supe- a área de não interferência, mais ampla a minha
rar a soberania individual. Mais que os próprios liberdade” (BERLIN, 2002a, p. 229). Poderíamos
direitos político-democráticos, a liberdade positi- perguntar se a opressão econômica está abarcada
va seria a instrumentalização da isonomia política por esse critério, uma vez que o arranjo social e
para adquirir-se isonomia econômica, um com- econômico (tanto quanto o arranjo político em
promisso com a igualdade maior do que o próprio sentido mais estrito) pode tolher-nos considera-
Berlin julga conveniente ao liberalismo. Assim, velmente a liberdade e a autonomia e produzir in-
concluímos que a liberdade em seu sentido positi- terferências alheias das mais sérias em nossos
vo representa um amálgama mais ou menos propósitos. A reiterada objeção de socialistas e
maleável de representações do bem comum e de democratas radicais ao caráter “formal” da liber-
seus pressupostos igualitários. Mas o fato é que dade negativa permanece sem respostas na obra
não necessitamos ver um fantasma totalitário em de Berlin. A liberdade, tão valorizada e proclama-
cada vez em que se levam mais a sério alguns dos da pelos liberais, realmente perderia o sentido ou
impulsos igualitários presentes na própria teoria estaria ameaçada se se fizesse acompanhar de um
liberal. Formulações liberais anteriores a Berlin, mínimo de condições materiais para gozá-la, em
contemporâneas e posteriores a ele julgam a igual- vez de ser considerada exclusivamente de modo
dade e a participação política não só importante abstrato?
mas fundamental para realizar as promessas libe-
Podemos apontar também problemas lógicos
rais.
em como se constrói a associação entre liberdade
No que se refere às relações entre essas duas positiva e a autocracia. Como afirmou Perry
representações da liberdade, já dissemos que sob Anderson: “A evidência entre essa ligações [entre
o ponto de vista da sustentação da autonomia in- o autoritarismo e a liberdade positiva] é essencial-
dividual a dicotomia perde bastante de sua força. mente circular: o despotismo moderno comprova
Se é a autonomia individual que está em foco, os perigos do ideal de liberdade positiva, portanto
poderíamos perguntar-nos se não haveria um aquele ideal deve haver contribuído para a ascen-
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são do despotismo” (ANDERSON, 2002a, p. 300). Podemos observar ainda que, em matéria de
E se é verdade que regimes democráticos cami- direitos e de liberdades, a distinção entre direitos
nharam democraticamente para o autoritarismo, positivos e direitos negativos não tem muito sen-
podemos afirmar com base em observações tido dos pontos de vista de sua eficácia ou do
empíricas de igual relevância que “as catástrofes bem que se tem em mente proteger: a autonomia
do século XX não começaram como Berlin às individual, entendida como a oportunidade de bus-
vezes sugere, com correntes obscuras em círcu- car o que se entende como valioso na vida e que
los mínimos de emigrados socialistas [conspiran- seja capaz de fazer a vida valer a pena ser vivida.
do contra a liberdade], mas na carnificina da Gran- Destituições de liberdades “negativas” costumam
de Guerra, quando a civilização liberal preparou a ser combinadas com violações de liberdades “po-
Europa para a barbárie moderna” (idem, p. 315). sitivas”. A privação de direitos civis a determina-
do grupo (majoritário ou minoritário) necessita
Além do mais, Berlin deixa de lado o fato de
apoiar-se na privação dos direitos políticos. Isso
que a liberdade negativa tem componentes positi-
só é facilitado se esse grupo encontrar-se em si-
vos: ela mesma é uma conquista coletiva e, em-
tuação de fragilidade econômica séria, portanto
bora seja desfrutada individualmente, é um bem
sem o gozo de direitos econômicos e sociais. As-
comum, coletivamente conquistado, e necessita
sim, as múltiplas constrições sobre a liberdade
ser coletivamente garantido. Se a todos diz res-
individual somam-se e complementam-se. Viola-
peito uma vida privada e inviolável, a inviolabilidade
ções de liberdades raramente vêm isoladas umas
e a privacidade necessitam ser garantidas pela es-
das outras. Mas desconsideremos isso e
fera pública. A conquista, a construção e a pre-
detenhamo-nos apenas nos direitos civis mais ele-
servação da liberdade negativa passam pela liber-
mentares. Violações de direitos civis podem ser
dade positiva. Por que razão passar ao largo des-
prevenidas por meio de determinados mecanis-
sa evidência, exceto por capciosidade? Se assim
mos institucionais: um desenho institucional pode
não for é que estará seriamente ameaçada a con-
prevenir violações de direitos que ocorreriam sob
cepção negativa de liberdade. Ameaças bastante
outra formação institucional. A pouca atenção que
mais concretas insinuam-se contra a liberdade
Berlin dá ao tema não deixa de ser curiosa, uma
negativa e contra os direitos civis e políticos em
vez que o desinteresse pela estrutura jurídica de
ambientes em que imperam severas desigualda-
salvaguarda da liberdade negativa é infreqüente
des sócio-econômicas: o surgimento de uma
entre os liberais (ANDERSON, 2002a, p. 305).
plutocracia costuma produzir estragos sérios no
valor eqüitativo dessas liberdades, degradando-as Em Berlin, há o reconhecimento tímido, mas
e conferindo razão aos que afirmam seu caráter claro, da insuficiência da liberdade negativa como
prescindível. Mas para Berlin, o justo sequer se instrumento da promoção da liberdade humana.
coloca como uma variável relevante da moralidade Preocupações como as esboçadas acima e mani-
política. festadas em diversos momentos sobre a necessi-
dade de um Estado que fosse além de suas fun-
Como muito bem observou Anderson, a ques-
ções negativas, somadas à admiração por Franklin
tão da autodeterminação nacional é outro ponto
Roosevelt e por seu New Deal e à animosidade
que representa um elemento capaz de confundir,
que liberistas intransigentes votavam-lhe (idem,
diluir a oposição entre liberdade positiva e liberda-
p. 302) valeram a Berlin a possibilidade de culti-
de negativa, já que “em dado momento, não pode
var uma auto-imagem de um homem da esquerda
ser confundida com nenhum dos dois tipos de
moderada. Contudo, sua identidade como um li-
liberdade, em outro, representa uma forma híbri-
beral moderadamente igualitário parece advir mais
da de liberdade com elemento de ambas. Ela ten-
por auto-identificação do que derivar de compo-
de a reabilitar o sentido positivo colocado sob sus-
nentes de sua obra (KENNY, 2000, p. 1030) ou
peita” (ANDERSON, 2002a, p. 314). A caracteri-
nela produzir conseqüências. Não se podem co-
zação das liberdades positiva e negativa é por de-
lher nela elementos capazes de corroborar essa
mais elusiva: suas fronteiras não são claras, as
identidade, pois sua obra não reserva qualquer
categorias têm a flexibilidade que cada circuns-
papel importante, qualquer protagonismo às ques-
tância exige-lhes e a própria relação de Berlin com
tões de justiça distributiva – salvo por vagas men-
as categorias criadas por ele mudou conforme al-
ções como as colhidas acima, distribuídas ao lon-
teraram-se as circunstâncias (KENNY, 2000, p.
go de seus escritos. Mas há também, paralela-
1031).
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ISAIAH BERLIN: AFIRMAÇÃO E LIMITAÇÃO DA LIBERDADE
mente um tom de resignação quanto à insuficiên- liberais da Europa ocidental, que no século XIX
cia da liberdade negativa. Se por um lado é insufi- progressivamente passaram de oligarquias a demo-
ciente, é tudo quanto podemos almejar sem cor- cracias plenas: afirmava-se que tal realização colo-
rer os riscos de perdê-la e portanto deve ser o caria em risco a liberdade individual. Já no curso
ponto final da luta humana por liberdade: os que do século XX a retórica da ameaça às liberdades
tentaram ir mais adiante do que ela perderam-se individuais voltou a ser ouvida quando da extensão
no autoritarismo deslavado. Esse é o caminho de direitos de seguridade social para toda a popula-
percorrido por suas inquietações sobre as limita- ção da mesma Europa ocidental (idem, p. 60ss.).
ções da liberdade negativa. Em geral, o que pode-
Alguns não escutaram as advertências de
mos escutar é uma insegura mas clara manifesta-
Berlin, ousando tomar a liberdade negativa como
ção de oposição aos projetos emancipatórios pre-
um ponto de partida, mas sem dela abrir mão.
sentes no interior do próprio liberalismo. A timi-
Outras visões liberais enriquecem o entendimento
dez da manifestação mal é capaz de encobrir-lhe
sobre a liberdade, ao incorporar-lhe a noção de
o caráter conservador.
justiça e ao debilitar a velha dicotomia entre liber-
Em suma, as reflexões de Berlin abusam do que dades e direitos “positivos” e “negativos”. Esse
Albert Hirschman denominou “argumento da ame- enriquecimento do conceito de liberdade não se
aça”, um dos componentes da “retórica da deu sem a assimilação de certas críticas às liber-
intransigência” (HIRSCHMAN, 1996a). Ameaças dades liberais formuladas a partir da esquerda,
semelhantes foram brandidas quando do processo dialogando de maneira mais transigente com ou-
de universalização dos direitos de voto nos estados tras vertentes e tradições do pensamento político.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Modern Political Theory. Political Studies,
Oxford, v. 48, n. 5, p. 1026-1039.
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ISAIAH BERLIN: AFFIRMING AND CONFINING LIBERTY
Júlio César Casarin
This text offers a critical analysis of the liberal concept of freedom as it has been elaborated by
Isaiah Berlin, who has understood it basically in the negative. This understanding of freedom, in its
numerous formulations, has remained hegemonic within contemporary debates on freedom, rights
and their circumstances. Based on such considerations, we have tried to demonstrate that when
freedom is conceived of in the negative, it is unable to promote individual autonomy – exactly that
which it supposedly exists in order to protect – without resorting to a project of distributive justice
that takes elements of the socialist-inspired critique of liberalism into account.
KEYWORDS: Isaiah Berlin; liberty; liberalism; rights; distributive justice.