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TEXTOS Inquietagdes de uma clinica em mudanca José Catlos Garcia No exercicio da clinica, nos deparamos atualmente com dificuldades € questées diferentes das que Freud enfrentou. Este artigo discute algumas delas, a partir da experiéncia do autor e das teorizagées de Sandor Ferenczi. jerenczi foi, sem diivida, um dos primeiros psica- nalistas a abordar sistematicamente a questio da técnica analitica, principalmente no que diz respeito 4 postura do analista como elemento de facilitagdo ou restric para a comunicagio do paci- ente, Ele insistia que deverfamos manter uma postura natural com 0 paciente, a menos afetada possivel, pela idéia estereotipada de que poderia haver um modelo te6rico idealmente adequado para a agio do analista. Um dos aspectos mais importantes estudados por Ferenczi foi a atualizagao da vivencia traumatica do pa- lente no vinculo transferencial com o analista. Em seu Diario Clinico', ele nos conta que sua maneira de com- preender a atualizacao transferencial expunha 0 desencontro de pontos de vista entre ele e Freud. Para Freud, © analista nao deveria atuar no drama 85 presentificado na transferéncia, a nfo ser no sentido de ajudar o paciente a se dar conta de que o passado insis- teem se repetir. Tecnicamente, no me parece que Freud jamais tenha alterado esta visio da transferéncia, em- bora possamos considerar que, teoricamente, com a in- trocucao do conceito de pulsto de morte, ele nos tenha permitido viskumbrar uma compreensio um tanto dife- rente. Este, porém, € um tema que ndo desenvolverei neste momento, Ferenczi , no entanto, tinha com certeza uma ma- neira muito particular de ver a questo, € expressou-se da seguinte: maneira José Carlos Garela &prolessor © membra do Departamento Formagio Bscandise do nso Sages Sapentae, mes bm Pada Cia ob IPUSE. Pereurso n° 25 - 2/2000 TEXTOS «se adotamos esse ponto de vista € tentamos desde o inicio apresentar 0 eventos a0 paciente ‘como imagens mnésicas € nao da realidade presente, ele poce acom- panhar a nossa linha de pensamen to, mas fica imobilizado na intelectual € nao atinge o sentimen- to de convicgao"™ Penso que esta afirmacao faz aflorar a razio primeira deste tra- balho, 4 que minha questio inter- roga exatamente se uma maior mo- bilidade do analista com relacio a0 enquadre nao viria a permitir que fosse ampliada a condigio de simbolizacio das experiéncias emo- cionais do paciente. Algumas contribuicdes de Ferenczi F € com este proposito que in- troduzo aqui algumas idéias de Ferenczi, que me parece serem ca- pazes de oferecer subsidios para podermos continuar pensando a técnica para além dos limites onde Freud a deixou. £ principalmente a visio que Ferenczi tem da presenga do ana- lista, como capaz de produzir um ensejo de atualidade as vivencias transferenciais, que estou procuran- do destacar para atender aos. pro- positos de minha reflexdo sobre a técnica. Nao pretendo colocar em ‘questi todo 0 alcance do pensa- mento conceitual de Ferenczi, mas apenas aproveitar de sua sensibili- dade no exercicio da clinica psi nalitica para dialogar com ele so- bre alguns aspectos que na técnica freudiana, em minha opiniio, nao se desenvolveram, Antes porém, gostaria de fazer uma breve referéncia ao pensamen- to de Cassirer, sobre a questao da temporalidade, que me pareceu bastante conseqtiente com a visio de transferéncia que estou privile giando. Fle diz. que: *O organismo nunca est localizado em um tinico instante. Em sua vida, trés tempos - passado, presente ¢ futuro - formam um todo que nao pode ser dividido em seus elementos individuais.”* ‘A maior mobilidade do analis- ta frente a sua tarefa remete princi- palmente 2 possibilidace de reco- nhecer que niio s6 0 que esta repri- mido se insinuaré na cena analiti- ca, mas também a demanda por um campo de experiéncia que aponta para 0 nao vivido, para um poten- Gial que o sujeito nao pode, até en- to, utilizar tido de dominar sua rotina, como também cumuli-o de caricias, dei- xando-o, 4 mesmo tempo, seduzi- do e atormentado. No decorrer da infaincia ocor- reu um episédio no qual ele foi surpreendido numa aproximago sensual de sua ima, o que Ihe resultou numa notivel surra, O pai executou 0 castigo - que a mae deci- diu - para que depois ela pudesse Ihe dizer que, na verdade, ele s6 poderia mesmo contar com ela. Ae frente a sua tarefa remete principalmente a pos ibilidade de reconhecer que no s6 o reprimido vai se insinuar na cena analitica. Recentemente supervis caso, apresentado por u Cuja questio era pocler compreen- der por qué o paciente teria aban- donado 0 tratamento. Ela 0 descre- yeu como um rapaz cujo relaciona mento com os pais era marcado por uma caracteristica que poderia ser descrita como reveladora de um sujeito que nao conseguia se afas- tar psiquicamente dos pais, fican- do completamente a mercé dos mes- ‘mos, especialmente da mie. O re- lacionamento dos pais parece, h ‘muito, ter sucumbiclo 4 monotonia de se ignorarem; porém, com res- peito a0 rapaz a coisa muda de fi- gura. A mae nao 56 espreita todos (05 movimentos que ele faz no sen- 86 Atualmente © rapaz no consegue prolongar conversas com garotas, pois fica assustado imaginando que elas possam pensar que ele s6 se aproxima clelas porque esta pensan- do em sexo. Ble procura analise - ou melhor, 4 mie procura por ele - no momen- to em que teve uma crise de ange no teatro onde assistiam juntos a uma pega que, segundo sua des- cticao era bastante excitante. Foi a mae quem marcou a entrevista ¢ © acompanhou a primeira entrevista com @ analista, embora ele ja tenha completado vinte anos. Durante © tratamento, ele se queixa que a mie invade seu quarto, que fica dando beijos melados € nojentos fem seu pescoco € que no pou- pa nem da recomendacao de que ele olhe para os dois lados antes de atravessar a rua. Como disse, esse paciente abandonou o tratimento e, duran- te a superviso do caso, discuti com sua analista algumas questées das quais quero aqui selecionar uma, para exemplificar meu ponto de vis- ta sobre a importincia do analista emprestar sua escuta ao que esta mais além do reprimido. A analista tinha uma boa com- preensio da dinimica na qual o paciente estava enredadlo e fazia in- tervengées tentando mostrarlhe a relacao de sua angiistia com o seu aprisionamento edipico ¢ a conse- qUente limitagao de sua vida emo- ional. Em varios momentos, a ana- lista pontuava a referéneia transfe- rencial no material apresentado pelo paciente e circunscrevia 0 que para ela era uma repeticao da vivéncias com a mae. Conversamos a respeito disso ¢ fomos podendo entender que, embora as interpretagdes realmen: te apontassem para contetidos ver- dadeiros sobre as vivencias do pa- iente, isso nao the propiciava ali- vio algum; antes, criava uma condi- ho igualmente claustrofobica no espaco analitico na medida em que a analista, como a mie dele, acom- panhava de perto seu pensamento ituava a si propria como refer ia transferencial dos mesmos. Interpretar os contetidos rep: midos, aparentemente, nao foi o suficiente ¢ minha opiniao é de que, nna verdade, esse garoto jamais pode experimentar seu mundo interno como sendo um espago de intimi- dade © segredo, onde fosse possi- vel praticar 0 existir para 0 desejo sem ser devassado pela intromissiio do outro. Penso que era isso que ele precisava encontrar na andlise - poder estar com alguém sem ter que falar tudo, revelar tudo, Até o mo- ‘mento em que fosse possivel cons- truir um contomo de si que o fize se sentir-se abrigado e Ihe permitis- se a escolha de confiar na possibili- dade de um encontro com 0 outro, que jé nao seria mais, incondicio- nalmente, sem saida Para que o paciente pudesse ter acesso a recursos que até entio nao tinham se desenvolvido, dado que 05 vinculos estabelecidos por ele cram marcados apenas pela estereotipia dla repeti¢ao, a analista precisaria criar condigées para um novo tipo de experiéncia do pacien- Pe que ele precisava encontrar na andlise — poder estar com alguém. sem ter que falar tudo, revelar tudo. te, qual seja, a possibilidade de es tar sozinho na presenga do outro. Esse seria o ponto de urgéncia na demanda do sujeito que deveria ser atendido, antes de mais nada, para garantir a continuidade de seu vinculo com a analista € 0 prosse- guimento de um processo analitico que, af sim, teria que abarcar 0 cam- po da transferéncia onde se atuali- zam_ 0 contetidos reprimidos. An- tes desse momento ser atingido, parece-me que a transferéneia em jogo era de outra ordem, diferente 87 daquela por onde se insinua 0 de- sejo na configuracao edipica atuali- zada com o analista. Acredito que neste caso © paci- ente colocava a analista diante da possibilidade de reconhecer que ele tinha uma necessidacle mais primi- tiva, que seria a sua earéncia de um espaco psiquico onde ele pudesse sentir-se seguro contra a invasio pelo outro. Ferenczi, em uma de suas pri meiras proposicoes, no sentido de desenvolver e ampliar 0 campo da terapéutica analitica, adotou uma formulacao que chamou de técnica ativa, Nesta perspectiva, ele seguia © exemplo de um procedimento de Freud que, com algumas de suas pacientes, principalmente histéricas, langara mio de sugestées diretas a elas. Um dos exemplos que podem ilustrar esse manejo € 0 caso de Elizabeth von R. relatado por Freud nos Estudos sobre a histeria * Flizabeth, como todos sabem, estava atormentada pela morte da rma e vivia intensos sentimentos cle culpa relacionados a seu desejo amoroso pelo cunhado,agora vi Vo. Freud langa mao de um proce- dimento drastico no qual pede a paciente que va visitar 0 timulo da inma com o objetivo visivel de promover um incremento de tensio na paciente e, quem sabe, fazer aflorar com mais intensidade a conilitiva inconsciente. Outra forma através da qual Freud tentou lidar com situacoes clinicas que, segundo sua observa- ho, haviam chegado a um momen- to de impasse, foi determinar um tempo preciso para o término da andlise, como ele nos contou no aso clinico do Homem dos Lobos: “Determinei - mas no antes que houvesse indicios dignos de confianga que me levassem a julgar que chegara 0 momento certo - que © tratamento seria concluido numa determinada data fixa, nao impor- tando 0 quanto houvesse progredi- do. Eu estava resolvido a manter a data; e finalmente o paciente che- TEXTOS gou A conclustio de que eu estava falando sétio."" Muito tempo depois, ao reto- mar a questio da técnica no tra- balho “Anilise terminavel e inter- minavel’, afirma que empregou a técnica da fixagio de tempo para © término da andlise em varios casos. Fez também neste texto alguns comentarios importantes sobre o tema “86 pode haver um veredicto sobre o valor desse antificio de chan- tagem: € eficaz desde que se acerte com 0 tempo correto para ele. Mas nao se pode garantir a realizacao completa da tarefa. Pelo contrario, podemos estar seguros de que em- bora parte do material se tome aces sivel sob a pressiio da ameaga, ou- tra parte sera retida e, assim, ficard sepultada, por assim dizer, e perdi- da para nossos esforcos terapéu- ticos, pois uma vez que tenha fixa do 0 limite de tempo, nao poders ampli-lo; de outro modo, o pacien- te perderia toda a Fé nele"® (© que podemos perceber que a proposicao dessas alteragoes téc- nicas da parte de Freud visavam, em primeiro plano, a suplantar situa- oes de acirramento resistencial durante © processo de andlise. Mas, por outro lado, também estava con- templada a possibilidade de que essa mudanga na técnica pudesse propiciar uma reducao significativa do tempo de anilise, sempre reco- nhecido como extremamente longo, Gostaria de assinalar aqui que ‘a questio da resistencia poder es- tar apontando para uma dlificulda de do analista em reconhecer o que esté sendo demandado pelo paci- ente. Por exemplo, no caso de mi- nha supervisionanda, a insisténcia em interpretar a suposta transferén- cia edipica com a analista sem antes dar conta de elementos de outra ordem como a incapacidade do paciente de refugiar-se da inva- slo pelo outro. Ou ainda, usando como exemplo 6 proprio Freud com seu caso do Homem dos Lobos, que privilegiou o que ele entendia ser uma transferéneia neurdtica, no con- texto da referéncia edipica, e nao se deu conta de uma situacao subjacente que apontava para uma transferéncia mais regredida com elementos da clinica da psicose. Voltando a Ferenczi, ele nos diz, © seguinte sobre a técnica ativa: ‘Quando o doente abandona ativi- dades voluptuosas ou se obriga a to, a de instalar um incremento de tensio no vinculo transferencial pela confrontacao com situagdes dotadas de potencial para ativacio de vivéncias traumaticas. Outra im- portante reflexio sobre 0 trabalho do analista seria feita por Ferenczi em seu artigo “A elasticidade da téc- nica psicanalitica”: “Levanto aqui um problema que até o presente A intengao seria a de instalar um incremento de tensio no vinculo transferencial, pela confrontagao com situagdes dotadas de potencial para a ativacao de vivéncias traumaticas. praticar outras carregadas de desprazer, novos estados de tensio psiquica surgem, sobretudo acirra- mentos desta tensio, que vio per turbar a quietude das regides psi quicas afastadas ou profundamen- te recalcadas que a anilise até en- Wo nao alcancara, de forma que suas seqtiéncias encontrem - sob a forma de idéias significantes - 0 ca- minho da consciéncia.”” A aplicabilidade desse recurso técnico, no entanto, estaria condi cionada a uma série de cuidados que Ferenczi nao se poupou de ex- plorar. Dentre eles, Ferenczi consi- dera que este procedimento nunca deveria ser utilizado no inicio de um tratamento, devendo ser reservado para situagdes nas quais se verifica uma paralisagio da cura num pro- cesso terapéutico bem estabelecido. A intengo precipua seria, portan- 88 nunca foi colocado, o de uma even- tual metapsicologia dos processos psiquicos do analista, no decorrer da anilise. Seus investimentos os- cilam entre identificaca0 (amor objetal analitico), de um lado e auto controle ou atividade intelectual, de outro, Durante seu longo dia de tra- batho, ele nao pode nunca se en- tregar ao prazer de dar livre curso a seu narcisismo e a seu egoismo, na realidade; € mesmo no fantas- ‘ma, apenas por curtos momentos Nao duvido que uma tal sobrecar- ga - que afora af no se encontra na vida - cedo ou tarde exigiri a ela- boracio de uma higiene particular do analista.”* A questo que Ferenczi desta- cava neste artigo era exatamente a de que o analista se constitui como tal a partir de sua propria ai lise. Apenas a condicao de ter sido efetivamente analisado.permitiria a0 analista poder dar conta dessa intensa exposicao ao outro - que ele chamou, neste texto, de sentir com. Esta definicio parece apontar para a possibilidade de que o analista pudesse entregar-se a um contato mais profundo com as experiéncias que fossem desperta- das nele pelo contato transferencial com 0 paciente. Retomo a colocagio de Ferenczi quando aponta para’a necessidade de se levar em conta a metapsi- cologia dos provessos psfquicos do analista, o que, mais uma vez, pa receria conduzir para a questio da atualidade no vinculo transferencial, que retiraria 0 analista da. imposs vel posico de neutralidade para articulé-lo & condigio de artifice na cena do encontro. Ferenczi, todavia, nao se dete- ve ai, mas manteve uma preocupa- ‘clo constante com as questes liga- das & técnica. Isto 0 levou a uma ‘outra proposi¢ao que foi aos limi tes do que chamou andilise muita, ‘onde propunha que analista de- via expor-se ao paciente sem mas- caramentos € reconhecer seus sen- timentos para com ele, Em outras palavras, devia permitir que o paci- ente reconhecesse € analisasse os complexos do analista Para Ferenczi: "Certas fases da andlise miitua representam, cde uma parte e de outra, a rentincia com- pleta a todo constrangimento © a toda autoridade; a impressto que se tem € a de duas criangas igual- mente assustadas que trocam suas experiéncias, que, em conseqiién- cia de um mesmo destino se com preendem e buscam instintivamen- te tranqillizar-se.”” Sem necessariamente colocar em julgamento os aspectos criticos, que por outro lado ele proprio le- ‘vantou no texto acima citado, 0 que ‘me parece importante destacar € 0 fato de que Ferenczi insistiu que era essencial 0 reconhecimento da sen- sibilidade do paciente para com o ser do analista. E, em conseqtién- ia disso, propés a utilizaca ca deste recurso para beneficio da anilise naquilo que ela inevitavel- ‘mente tem de miitua. Ferenczi considerava que pretensa neutralidade analiti Eee, insistiu que era essencial 0 teconhecimento da sensibilidade do paciente para com o ser do analista. principalmente quando se traduz pelo nao reconhecimento do ser hist6rico do analista mascarado pelo ser técnico levaria, inevitavel- mente, a impasses intransponiveis no progresso de uma andlise. As- sim sendlo, 0 analista nao s6 deve- ria se dar conta de sua propria trans- feréncia como fazer dela instrumento de comunicacio com o paciente, Além do que, @ regra fundamental que rege 0 analista, a atengao flu- Juante, depende essencialmente da possibilidade de que, em sua pré- ria andlise, ele tenha podido dar conta de seus conflitos, de forma a poder abandonar-se aos movimen- 89 tos transferenciais do analisando sem buscar refiigio na rigidez, para impedir a vivéncia de seus movi- ‘mentos contratransferenciais. Com isso, a condigio de simbolizacdo das experiéncias emocionais duran- te 0 proceso analitico poderia ser consideravelmente ampliada, na medida em que o analista conseguis- se superar suas resisténcias € com isso propiciar 20 paciente a possi- bilidade de expor-se de forma mais regredida e dependente. Abbusca da realizacao simbélica Quando alguém que procura anilise fala comigo ao telefone decidimos por um horirio que nes seja comum, chegard entio 0 mo- ‘mento em que esta pessoa se apre- sentari diante de mim no espaco do ‘meu consult6rio. O que ela veri? ‘Como conformara esse espaco? Como o representard? Certamente no € a mesma coisa para cada um dos pacientes que j4 tive em trata- ‘mento; eu no sou 0 mesmo € 0 con- sult6rio nao é © mesmo - somos fru- tos de um recorte da transferéncia sempre diferenciado, As variagdes so enormes: tanto das percepcdes do consultério, quanto daquelas que dizem respeito a mim diretamen- te. E quando pergunto sobre a forma de representagio que cada paciente pode fazer do campo perceptive devo acrescentar que, talvez, esta condigao precise ser colocada de uma perspectiva que admita a possibilidade de que a representacao seja circunstancial e dependente do momento transfe- rencial vivido pelo paciente. Fator que, novamente, estaria apontando para um melhor uso do enquadre como campo propiciador de recor tes simb6licos por parte do pacien- te; desde que o analista esteja aten- toa esse potencial Uma paciente que jé estava co- migo havia alguns anos interrom- peu-se no que dizia para me per- guntar se as cadeiras a sua frente jé TEXTOS estavam ali antes. Nao s6 estavam, como ela prdpria jf estivera sent: da em uma delas durante o periodo de entrevistas, Outra paciente elo- giou meu quadro novo que igual- mente estivera no mesmo lugar des- de 0 inicio do seu tratamento. Os exemplos seriam intimeros, mas que me interessa reforcar com eles é esse carter de apropriacio e, vezes, de desapropriacao perceptiva por parte dos pacient Gostaria de organizar um pou co as idéias que comecei a explorar aqui, iniciando por esclarecer e de- finir 0 conjunto de elementos que agrega: 0 espaco fisico do consu t6rio, os limites contratuais que de- finem o funcionamento e manuten- io da andlise € ainda, a presenga do analista - como espaco potenci- al analitico, Em outras palavras, es- vidade simbslica do homem™. E acrescenta que a0 homem estaria vedada a condi¢ao de contato dire~ to com as coisas em si; ao homem restaria conversar consigo mesmo. Winnicott e 0 espaco potencial analitico Para ir adiante no desenvolvi- ‘mento desta tematica de um espago que intermedia a realidade eo mun- do interno do homem quero referir, ‘© quanto antes, que as concepcoes de Winnicott de objeto transicional € fendmenos transicionais serviram- ‘me como clara referencia para pen- sar sobre essas questOes. Em seu trabalho de 1951 sobre o tema, ele comenta: O espaco analitico seria construido em torno e pelo contorno de dois tipos de vivéncias: por um lado a realidade externa, e por outro a Projecao transferencial do mundo interno do paciente. Pago potencial para simbolizacao de experiéncias emocionais. Quando reflito sobre essas questées, que sio de inegivel im- portincia, sou conduzido a descr ‘glo feita por Cassirer, da condigao primeira de humanizagao - a utili zaco de simbolos - quando afirmou que o homem vive numa dimensio propria de realidade. Diferentemen- te dos animais, para o homem a re~ alidade fisica (natural) “parece re- ccuar em proporgao ao avango da ati- “ssa rea intermedidria de experiéncia, incontestada quanto a pertencer & realidade interna ou externa (compartilhada), constitui a parte maior da experiéncia do bebé, através da vida, € conser vada na experimentagio intensa que diz respeito as artes, a religito, ao viver imaginativo € ao trabalho ientifico criador.”" Penso que esse seja o ideal de utilizacao do espaco potencial ana- Iitico: permitir o surgimento da for- 90 (ca criativa da atividade onirica para que o paciente possa usd-la de mo- do imaginativo €, poderfamos ain- da acrescentar, em um espago de transicionalidade. O espago analiti Co, portanto, seria construido em tomo ou pelo contomo de dois tipos de vivéncias: por um lado a realidade externa € por outro a projecao transferencial do mundo interno do paciente. E nesta cena transicional que analista e paciente so alternadamente sujeito © obje- to de uma realidade especial que convida a sonhar. Winnicott faz 0 seguinte comentario a respeito des- te t6pico: “Introduzi os termos objetos transicionais ¢ fenOmenos transicio- nais para designar a ‘rea interme- didria de experiéncia, entre o pole- gar € 0 ursinho, entre o erotismo oral e a vertladeira relagao de obje- to, entre a atividade criativa primé: ria € a projecio do que ja foi intro- jetado, entre o desconhecimento pri- mario de divida € 0 reconhe- —ci- mento desta.”!? E curioso pensar como a pala: vta, no espaco analitico, presta-se a esse papel de transicionaliclade, ja que nés a retiramos do contexto mais objetivo referido ao c6digo de comunicagao que nos serve de re- feréncia social e a escutamos -a par- tir de Freud - como associagao livre. Gostaria de deixar claro, porém, que nao restrinjo a palavra este potencial. Cada gesto de que sejam capazes paciente ¢ analista poder revelar esse mesmo recur- 80. Quero ampliar essas questoes trazendo alguns elementos de mi- nha experiéncia clinica para ilustrar © que chamei de potencial de simbolizagio do proceso analitico, Para tanto, farei uma breve referén- a0 caso de uma jovem mulher que sofria com uma grave anorexia nervosa, Seus padecimentos eram traduzidos de forma direta na fragi- lidade apequenada de seu corpo e por sua fugidia vitalidade, Durante um momento particu- larmente dificil de sua andlise co- migo, tentei dizer-Ihe algo que eu acreditava pudesse promover novas associagdes €, quem sabe, retiré-la de seu aparente imobilismo. Ela se sentia triste, desamparada e fazia longos siléncios intermediados por queixas monstonas © repetitivas. Disse-Ihe alguma coisa tentando referenciar seu sofrimento a alguns gtadavel. Aos poucos, foi tendo uma vivéncia de reconhecimento de si ‘mesma, que me disse nunca ter ex- perimentado antes € que, por isso, sentiu-se muito grata a mim. Nao creio que possa dar conta desse momento de minha clinica apenas langando mao de parime- ‘ros que poderiam servir para situ- A palavra consistente contornou o corpo da paciente, tal qual acontece quando uma crianga contorna com tracos de lapis sua pequenina mao. elementos de suas associagées ¢, no final dessa interpretagao, mais longa que titil, acrescentei que ela comunicava seu softimento como se tentasse alcangar uma sensagio que fosse consistente. A seqiiéncia dessa intervengio nos encontrou num profundo e du- radouro siléncio. De minha parte restou a ignordncia e a solidao mas, de alguma maneira, nao havia exas- peragdo ou ansiedade para produ- zir intervengoes. Na sesso seguinte a paciente deitou-se no diva e ficou ainda al- gum tempo em sua quietude até que, brandamente, mas com muita emocio, comecou a me contar sua experiencia da sesso anterior. Dis- sse-me que ao ouvir a palavra consis- tente, teve uma sensagio estranha pelo corpo, mas que nao era desa- agdes em que uma representacao liberada do jugo da repressiio. Nes- te caso, a compreensio que tive me fez pensar que a palavra, consisten- le, contomou © corpo da paciente tal qual acontece quando uma cri- nga contorna com tracos de lipis sua pequenina mao. Foi uma expe- rigncia de limites, de corporeidade € de preenchimento substituindo a estereotipia clo queixume monoto- no e da palavra vazia. Talvez esse exemplo clinico possa propiciar um maior aprofun- ddamento do que tenho insistido em chamar de um “melhor aproveita- mento do potencial de simbolizay ‘no encontro analitico”. A concepcao de encontro nao traz em si, nem a idéia de anulago de um dos ele mentos, nem a idéia de justaposi- ‘sao dos mesmos mas; uma visio que a1 concebe a virtualidade de um lugar psiquico entre analista e paciente. Essa virtualidade teria o potencial da transicionalidade. Assim, no caso citado, a pala vra consistente é tomada nessa con- digo de transicionalidade, ¢ eu a produzo niio por uma premeditac? racional: ela me surpreende e dota- se de um potencial que s6 encontra tradugio no movimento transferen- ial da paciente. Ela se apossa dis- s0 como instrumento revelador dla possibilidacle de integrar uma nova vivencia a respeito de si mesma. £ muito importante reconhecer esse movimento de integracao e gratida0 numa paciente cuja forma caracte- ristica de existir tem sido a anorexia Sto variadas as situacoes nas quais nos vemos envolvidos com um alcance nao premeditado - an- tes inusitado - quando fazemos uso de uma interpretacio. O paciente, no melhor dos casos, também nao ‘ouve de forma linear a légica impli cita em nossas palavras; ele sonha com elas, encanta-as com significa- ‘co propria. Um paciente certa vez me con- tava sobre seus afazeres profissio- nais com velocidade e preenchimen- to compulsivo de seu tempo de ani- lise. Havia, no entanto, algo de novo em nossa hist6ria juntos que era o fato de, em alguns momentos, surgirem questoes do paciente que apontavam. para sua impossibilida- de de explorar 0 novo, insinuando- se ai a possibilidade de vislumbrar as restrigOes de sua liberdade en- quanto ser desejante. Fiz, uma inter- pretagao que visava a resgatar esse elemento do novo que se insurgi na transferéncia usando os elemen- tos de suas associacdes. Acho que de fato fiz, uma boa interpretagdo, mas o mais interes- sante foi que 0 paciente provavel- mente nem a ouviu e, se ouviu, com certeza nao fez conta dela. Aconte- ce que numa das frases que cons- trui usei a palavra ignorante para estabelecer um contraponto a idéia de conbecedor - aquele que domi TEXTOS ‘na um saber - mas pouco importa a intencao que eu tenha tido € sim o feito desestruturante que a palavra promoveu. O paciente se apossou dela retirando-a de todo contexto que eu Ihe havia emprestado € isso acabou permitindo que trabalhasse- mos questées que eu em momento algum. premeditara Nao estou, todavia, creditando mérito ao puro acaso. O que de fato acredito com toda sinceridade € que temas separadas, ainda que inter- relacionadas." Consideragdes finais Creio que esta visio do campo analitico expde e amplia nossas con- digdes de reconhecimento do poten- ial de apreensio simbélica como um importante instrumento para a exploragao de um limite terapéutico O que de fato acredito com toda a sinceridade € que tanto analistas quanto pacientes podem de fato ser mais criativos do que aquilo que suas limitadas consequéncias thes permite aprender. tanto analistas quanto pacientes podem de fato ser mais criativos do que Ihes permite aprender suas li mitadas consciéncias, Penso que estes acontecimen- tos talver, sejam exatamente o tipo de experiéncias que Winnicott quis circunscrever com a idéia de transicionalidade, isto é, uma 4 de experimentagio € de criagao. Ele a define assim: “Trata-se de uma area que nao € disputada, porque nenhuma rei- vindicagao € feita em seu nome, exceto que ela exista como lugar de epouso para o individuo empenha- do na perpétua tarefa humana de manter as realidades internas ¢ ex- que va além da interpretacao de sentido para um contetido reprimi- do. Isto nos possibilita, portanto, aumentar nosso alcance técnico na abordagem dos quadros psicopa tol6gicos que Freud julgava inaces- siveis ao trabalho analitico por nao permitirem © estabelecimento de uma transferéncia nos moldes da neurose. Situacdes clinicas como as psicoses, por exemplo, que exigem do analista um intenso trabalho de constructo simbélica diante de um aparelho psiquico marcado pela espoliacao deste tipo de contetido. Destaco ainda, como procurei de monstrar ao longo deste trabalho, que mesmo a anilise das neuroses 92 aleanga outros niveis de profundi- dade quando o analista concebe sua posic¢io transferencial como indo além da mera repeticao do mesmo. Penso ter deixado claro que minha intengao nao era a de explo- rar todo referencial conceitual dos pensamentos de Winnicott € Ferenczi, Lancei mao de suas idéias porque elas me possibilitam lidar com a clinica, li onde a técnica freudiana, em sua formulagio clas- sica, me deixa ao desamparo. Ou seja, quando os pacientes precisam fazer uso do espaco potencial ana- ico para construir recursos de simbolizagao que ainda nao am sido possibilitados por suas ex- periéncias anteriores, NoTAS 1S. Ferencai= Didi Cinco, So Palo, Livi. Marine Fontes Eors, 1990, 2S Ferencal rlongimenos da tena aa em Paicandise™ fn Bertor Petcamaiicae Rio de Jane, Lira Taro tos, 9885, 3. EiGasier™ fa sobre bomen ado ‘toe ida curs nnn So Pal, “vara Martins Foes Eitri, 19, 5, 4. 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