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Jurema Alcides Cunha Livre-docente em Psicologia Clinica, Doutora em Filosofia, Professora aposentada dos Cursos de Pés-Graduacbo em Psicologia da Pontificia Universidade Catdica do Rio Grande do Sul Pesquisadora associada ao Instituto de Psicalogia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Colaboradores PSICODIAGNOSTICO-V 58 edicdo revisada e ampliada 3¢ Reimpressao Versio impressa desta obra: 2003, 2007 eRe esta id O problema Jurema Alcides Cunha Orisetizancnica & um process, desen cadeado quase sempre em vista de um en- caminhamento, que tem inicio numa consul- ta, a parti da qual se delineiam os passos do exame, que constitui uma das rotinas do psi célogo clinico. Entretanto, tal tipo de avalia- 40 decorre da existéncia de um problema pré- Vio, que psicélogo deve identificar e avaliar, para poder chegar a um diagnéstico Nao obstante, entre a emergéncia de sinais ou sintomas precoces e incipientes, nem sem- pre féceis de detectar ou de identificar, ea che- gada & primeira consulta, podem surgir mui- tas diividas, fantasias e busca de explicagées, que retardam a ajuda, podem agravar 0 pro- blema e, eventualmente, interferem na objeti- vidade do relato do caso. Dizem que “os sintomas estao presentes quando os limites da variabilidade normal sao ultrapassados” (Yager & Gitlin, 1999, p.694). Entao, se considerarmos a aparente continui- dade entre ajustamentos que as mucancas de rotina impéem, os estados emocionais asso- ciados a acontecimentos da vida didria, as rea- c6es a situagées estressantes fregilentes e os sintomas iniciais de um transtorno mental, evi- dencia-se a dificuldade de julgar quando se configura um problema que necessita de uma avaliagio clinica, € tal dificuldade tanto pode ser sentida pelo sujeito como pelas pessoas que 32 Junewa ALanes Cunsa convivem com o paciente, inclusive por aque- las que podem ser classificadas como agentes de saiide mental (como professores, orienta- dores, padres, médicos, etc). Ja em 1970, Shaw e Lucas lembravam que muitos pais hesitam em considerar certo com- portamento do filho como motivo de preocu- pagio, alegando que muitas criangas podem apresenté-lo, no que muitas vezes tém razao, Freqiientemente, é a falta de distingéo entre desajustes ocasionais e prolongados que faz ‘com que as pessoas confiem no tempo para que desaparecam. As vezes, hé certa toleran- cia quanto a comportamentos que devem ser superados, seja porque deixaram de ser pro- Porcionais as suas causas, porque uma deter- minada idade foi ultrapassada, por normas mais flexiveis do ambiente ou, ainda, porque alguém da familia apresentava os mesmos sin- ‘tomas na infancia, Quando o problema ocorre com um adul- to, pode-se verificar uma tendéncia a enfren- télo sem ajuda, ou uma tentativa de explicé- lo em termos de fatores circunstanciais ¢, as- sim, talvez resolvé-lo através de mudangas ex- temas. De qualquer maneira, desde o surgi- mento do problema e até a consulta, “a natu- reza ea expressao dos sinais e sintomas psi- quiatricos so profundamente alteradas pelos recursos pessoais, capacidades de enfrenta- mento [coping] e defesas psicolégicas do pa- ciente" (Yager & Gitlin, 1999, p.692). Esta préhistéria de um estudo de caso é importante porque a percepcio da dificulda- de, a gravidade maior ou menor atribuida a um ou a varios sintomas, as duvidas sobre a existéncia de patologia, a confiabilidade de quem possa ter sugerido uma avaliagao psico- légica, para nao falar em atitudes preconcei ‘tuosas sobre a possibilidade de doenca men- tal, além de outros fatores, tudo pode influir na dinamica da interagao clinica, na maior ou menor atitude de colaboragéo durante a tes- tagem e na seletividade das informacées pres- tadas. Conseqiientemente, se a consulta foi precedida de uma fase tumultuada e critica, com forte sobrecarga emocional, pode haver uma facilitagao da ocorréncia de percepgoes distorcidas, de fantasias variadas e de um in- cremento de defesas dificultando a coleta de dados, Cabe, pois, a0 psicélogo examinar as cunstancias que precederam a consulta, ava- liar as maneiras de perceber o problema e de- limité-o, atribuindo a sina e sintomas sua sig- nificagéo adequada, Esta nao é uma tarefa fa- Gi, principalmente para o psicdlogo iniciante SINAIS E SINTOMAS Fala-se em sinais e sintomas na psicologia ena psiquiatria, mas tal terminologia € oriunda da medicina. Em sentido lato, tais termos tém uma acep¢ao comparavel nas trés éreas. Em gera, referem-se a sinais, para designar comporta- mentos observaveis, "achados objetivos” (Ka~ plan & Sadock, 1999b, p.584), enquanto 0s sin- ‘tomas séo experiéncias do sujeito, s4o por ele sentidos, Entretanto, essa diferenciagao se tor- na vaga ou praticamente inexistente no ambi to da doenga mental, porque esta envolve es- tados internos, psicopatologia subjetiva, di cil de descrever. E, “em comparacao com os transtornes médicos” ~ salientam Yager e Git- lin (1999) ~ “os transtornos psiquidtricos nao podem ser entendidos sem uma completa ava- liago e compreenséo do amplo contexto das queixas do paciente” (p.694). Por outro lado, ‘0s medos, por exemplo, sé sentids pelo su- jeito, mas também podem se expressar atra- vés de comportamentos observéveis. Parece que, se tomarmos num sentido am- plo, adistingéo torna-se uma questéo de pon- to de vista. Shaw (1977), por exemplo, afirma- va que “sintoma é um sinal” (p.8), porque se torna significative na medida em que eviden- cia uma perturbagéo. Entio, € considerado ‘como um sinal de perturbasio, que pode pre- cocemente servir de alerta, mesmo que nao tenha sido registrada qualquer queixa explici- ta, isto é, mesmo que nao tenha se verficado 2 identificagao de um sintoma Por outro lado, na pratica, fala-se em sin- toma quando parece possivel atribuir-the uma significagao mais clinica. Pode-se, en- tao, afirmar “que os sintomas esto presen- tes quando 0s limites da variabilidade nor- mal séo ultrapassados” (Yager & Gitlin, 1999, .693) CCRITERIOS USUAIS DE DEFINIGAO DE UM PROBLEMA Um problema é identificado quando séo reco- nhecidas alteragdes ou mudancas nos padrées de comportamento comum, que podem ser percebidas como sendo de natureza quantita- tiva ou qualitativa Se, como observam Kaplan e Sadock (1999b), a maioria das manifestagées de trans- tormos psiquidtricos representa variacées de di- ferentes graus de um continuum entre saiide mental e psicopatologia, entéo, na maior par- te das vezes, as mudancas percebidas so de natureza quantitativa, Pode-se falar, em primeiro lugar, em altera- ‘goes autolimitadas, que se verificariam pela presenga de um exagero ou diminuigéo de um padrao de comportamento usual, dito normal Tais mudangas quantitativas podem ser obser- vadas em varias dimensées, como na ativida- de (motora, da fala, do pensamento), no hu- mor (depressao vs. euforia), em outros afetos (embotamento, excitacao), etc, Freqiientemen- te, esse tipo de alteracées surge como respos- taa determinados eventos da vida, e a pertur- Pscoowendsnca-V_ 33 basio & proporcional as causas, ficando cir cunscrita aos efeitos estressantes dos mesmos. Nao obstante, se sua intensidade for despro- porcional as causas e/ou tal akteracio persistir além da vigéncia normal dos efeitos das mes- mas (por exemplo, no luto patolégico),jé pode ter uma significagao clinica. Naturalmente, deve ser considerada a possibilidade de outras variagées, quando uma alteracéo aparentemen- te pareceu ser autolimitada, mas reaparece sob diferentes modalidades, numa mutagao sinto- matica, ou da mesma maneira, repetitivamen- te, de forma cilia, Por certo, esses critéios de intensidade e/ ou persisténcia podem ser também aplicados 8 dimensio desenvolvimento, considerando os limites de variabilidade para a aprendizagem de novos padrées de comportamento, para certos comportamentos imaturos serem supe- rados, em determinadas faixas etarias. Por exemplo, o controle definitivo do esfincter ve- sical deve ser alcancado, no maximo, a0 redor dos trés anos. Entao, um episédio de aparente fracasso em fase posterior nao teria maior sig- nificagso, se fosse uma reagio a uma situagao estressante, Mas sua persisténcia ja pode re- presentar um sinal de alerta,justficando-se tima avaliagao clinica Note-se que aqui estamos utiizando. um julgamento clinico. Entretanto, sobre questoes de desenvolvimento, ha muita coincidéncia entre 0 senso comum e 0 que é sancionado pela ciéncia, A expectativa social, porém, as vyezes, nao é corroborada pelas normas © cos- tumes de uma ou outra familia. Nota-se que, na pratica, as familias podem diferir na deter- minagio de quais sao os limites da variabilida- de normal, por rigidez ou, pelo contrério, por protecionismo. Iso faz com que determinado comportamento paresa sintomtico num de- terminado ambiente familiar, mas nao em ou- tro. Por outro lado, nem sempre os problemas que chamam a atengao da familia so clinica- mente os mais significantes. Num estudo de 80 criangas, realizado por Kwitko (1984), hou- ve diferenga quanto a média dos sintornas in formados e a registrada pelos técnicos duran- teo exame. Por outro lado, as queixas de fami liares referiam-se mais a sintomas que pertur- 34. Junewa ALanes Cunsa bavam a rotina da vida cotidiana, ignorando alguns sintomas mais graves. Quando as mudancas percebidas sao de natureza qualitativa, habitualmente chamam ‘a atengéo por seu cunho estranho, bizarro, idi- ‘ossincrasico, inapropriado ou esquisito e, en- tao, mesmo o leigo tende a associé-las com dificuldades mais sérias. Apesar disso, ainda ‘que sejam geralmente tomadas como sinal de perturbagao, eventualmente poderio ser expli- cadas em termos culturais ow subculturais. Porle-se afirmar que “um comportamento ou ‘experiéncia subjetiva definidos como sintoms- ticos em um contexto podem ser perfeitamen- te aceitéveis e estar dentro dos limites normais em outro contexto” (Yager & Gitlin, 1999, .694), Uma manifestagao inusitada, do pon- to de vista qualitative, deve, assim, ser julgada dentro do contexto em que 0 individuo esta e, como sintoma, sera tanto mais grave se for compelida mais por elementos interiores do {que pelo campo de estimulos da realidade, que & praticamente ignorada. Entretanto, € preci- so ficar bem claro que um sintoma ‘inico nao tem valor diagnéstico por si, o que vale dizer ‘que nenhum sintoma é patognoménico de uma determinada sindrome ou condigao reconhe- ida. Assim, “todos os sintomas psiquidtricos devem ser considerados como inespecificos ~ vistos em uns poucos e, mais provavelmente, ‘em muitos transtornos” (Yager & Gitlin, 1999, .694). Dada a relatividade dos critérios usuais na definigao de um problema, a abordagem cien- tifica atual para a determinacao diagnéstica advoga o uso de crtérios operacionais.E, pois, necessario que o paciente apresente um certo nimero de caracteristicas sintomatolégicas, durante um certo periodo de tempo, para ser possivel chegar a uma decisio diagnéstica PROBLEMAS PSICOSSOCIAIS E AMBIENTAIS: ACONTECIMENTOS DA VIDA © conceito de estresse, termo cunhado no Ambito da pesquisa endocrinolégica, pela me- tade do século XX, teve o seu sentido extrema- mente expandido para explicar, de um modo geral, “a relagio entre o individuo e 0 ambier tee se comprovou partcularmente itil duran- tea Segunda Guerra Mundial” (Klerman, 1990, p34) Na realidade, pode-se dizer que a impor- tancia atrbuida ao estresse, no campo da sai- dle mental, é de certa maneira herdada do cor ceito de crise que, originério de investigacées com sobreviventes de desastres, por vezes de grandes proporgées, resultou aplicavel a uma arande variedade de situagées pessoais. Atual- mente, crise se refere mais a uma reacao, as- sociada & especificade de uma situaga0 ou fase, e envolve uma perturbagao, relacionada com a dificuldade de manejé-la pelos meios tisuais, Pode-se afirmar que o conceito de crise extremamente itil em termos de diagnosti- co, especialmente para o entendimento do fun- cionamento psicolégico do individuo em por tos nodais do desenvolvimento, por exemplo. Ja a énfase do conceito de estresse pare- ce que esti no impacto, no fato de se const tuir como um fator potencial para conse- aiiéncias futuras, que podem variar em ter- mos do poder do estressor e da vulnerabili- dade do sujeito Durante a Segunda Guerra Mundial, foram desenvolvidos extensos projetos para pesqui sas sobre “o papel do estressor como um pre- cipitador da doenca mental” (Klerman, 1990, .34), A comprovacio supostamente encontra- da pelas observagées de estressores em situa- 56e5 de guerra foi aplicada a estressores cvis © Cau como uma luva no ambiente de insatisfa- so da comunidade psiquiatrica da época com © modelo médico, que adotou a pressuposi so teérica de um continuum de satide mer taldoensa mental, dando ao impacto provo- cado pelo estresse a signficacao de um fator- chave para o desenvolvimento de transtoros mentais ‘Ainda no DSMUI-R (APA, 1987), que a com- portava a avaliagio multiaxial,havia a orienta- so de avaliar a gravidade da ocorréncia de estresse, no ano anterior, quanto a0 “desen- volvimento de um novo transtorno mental”, *recorréncia de um transtomo mental anterior” e quanto 8 “exacerbacéo de um transtorno mental ja existente” (p. 18). Dado o rigor cientifico introduzido nas pes- quisas sobre estresse, poucos cientistas assu- miriam hoje em dia uma posicéo tao extrema- da, Ainda se mantém como um conceito extre- mamente importante, no que se refere a duas categorias diagnésticas, 0 Transtorno de Estres- se Agudo e 0 Transtorno de Estresse Pés-trau- matico. Ademais, 0 Eixo IV do DSM-IV (APA, 1995) ainda é reservado para “o relato de pro- blemas psicossociais e ambientais que podem afetar o diagnéstico, tratamento e prognésti- co dos transtornos mentais", especificados nos Eixos |e Il (p.30). Por exemplo, embora pesquisas salientem a existéncia de uma associagao entre fatores socioeconémicos e esquizofrenia, "poucos te- Sricos sustentam, atualmente, que um ambien- te socioeconémico fraco causa esquizofrenia, mas poucos duvidam que este tem um efeito importante sobre o seu curso” (McGlashman & Hoffman, 1999, p.1035), A AVALIAGAO DA PSICOPATOLOGIA* Num sentido lato, psicodiagnéstico consiste, sobretudo, na identificacao de forsas e fraque- zas no funcionamento psicolagico e se distin- gue de outros tipos de avaliagao psicolégica de diferencas individuais por seu foco na exis- téncia ou nao de psicopatologia, Falando em psicopatologia, é bom lembrar que pesquisadores nessa area tém destacado modelos de psicopatologia utilizados, Referem- se ao modelo categérico e ao modelo dimen- sional (Dobson & Cheung, 1990). © modelo categérico, de enfoque quali tivo, exemplifica-se pelo julgamento clinico sobre a presenga ou nao de uma configuragéo de sintomas significativos. J4 o modelo dimen- sional, de enfoque quantitativo, exemplifica- se pela medida da intensidade sintomatica. Tradicionalmente, © psiquiatra tem dado mais énfase ao modelo categérico, embora “Grande parte deste tema fol apresentado pela autora, no Vill Congresso Nacional de Avaliagio Psicoldgica, Porto Alegre, 1999. Pscoowendsrca-V 35 cada vez mais néo ignore a importancia do modelo dimensional. J4 0 psicélogo, na prati- ca, costuma dar énfase a0 modelo dimensio- nal. Na realidade, avaliar diferencas individuais envolve algum tipo de mensuragao. Além di so, 0 enfoque quantitativo oferece fundamen- ‘0s para inferéncias com um grau razoavel de certeza, Mas 0 psicélogo utiliza, também, 0 modelo categérico. Na maioria das vezes, po- rém, associa 0 enfoque quantitative e 0 qual tativo, no desenvolvimento do processo psico- diagnéstico, utilizando estratégias diagnést cas (entrevistas, instrumentos psicométricos, técnicas projetivas e julgamento clinico) para chegar ao diagnéstico Eevidente que, conforme o objetivo, 0 pro- cesso diagndstico tera maior ou menor abran- géncia, adotaré um enfoque mais qualitative ou mais quantitativo, e, conseqiientemente, 0 elenco de estratégias ficard variével no seu riimero ou na sua especificidade Embora 0 psicodiagnéstico tenha um do- minio préprio, 0 seu foco na existéncia ou nao de psicopatologia torna essencial a manuten- go de canais de comunicagao com outras areas, precisando o psicélogo estar atento para questées que séo fundamentais na determina- sao de um diagnéstico. TRANSTORNOS MENTAIS E CLASSIFICAGOES NOSOLOGICAS Se abrirmos o Novo Dicionario Aurélio (Ferrei- ra, 1986), na pagina 1.703, vamos encontrar que transtorno é sinénimo de perturbacéo mental. Entende-se que se pode categorizar, como tal, uma diversidade de condigées, que se situam entre 0 que se costuma caracterizar como nor- malidade e patologia, Portanto, é uma expres- s8o menos compativel com a antiga concep- 40 de doenga mental. Nao obstante, temos de convir que, semanticamente, bastaria o ter= mo transtomo, embora a sua significacdo no modificasse a critica feita & expressao transtorno ‘mental, que, “infelizmente, implica uma distin. Go entre transtornos ‘mentais’e transtornos “fi- sicos’, que é um anacronismo reducionista do dualismo mente/corpo” (APA, 1995, p20). 36 Junewa ALones Cunsa No DSM-IV (APA, 1995), é reapresentada a definicéo de transtorno mental que foi inclui- da no DSM e no DSIM-IIFR, nao por parecer especialmente adequada, mas “por ser tao uti quanto qualquer outra definigéo disponivel” (p-»i) Na traducao brasileira dessa classificacao, consta que transtorno mental pode ser con- ceituado “como uma sindrome ou padréo com- portamental ou psicolégico clinicamente im- portante, que ocorre no individuo", registran- do-se, a seguir, "que esta associado com sofri- mento (..) ou incapacitagéo (..) ou com um risco significativamente aumentado de sofri- mento atual, morte, dor, deficiéncia ou perda importante da liberdade” e, ademais, “nao deve ser meramente uma resposta previsivel e culturalmente sancionada a um determinado evento, por exemplo a morte de um ente que- ride", Além disso, independentemente da cau- sa original, “deve ser considerada no momen- to como uma manifestacao de uma disfuncao comportamental, psicolégica ou biolégica no individuo” (p.xxi). Comportamentos socialmen- te desviantes nao sao considerados transtor- nos mentais, a ndo ser que se caracterizem como sintoma de uma disfuncao, no sentido 8 descrto. ‘A partir dessa conceituagao, vé-se que & cla- ra.a exigéncia de uma associagéo com sofri- mento ou incapacitacao ou, ainda, com isco de comprometimento ou perda de um aspec- to vitalmente significante. Em segundo lugar, fica evidente que os sintomas devam ser com- portamentais ou psicolégicos, embora possa haver uma disfuncao biolégica. Em terceiro lugar, esse conceito descaracteriza os servicos ¢ 05 membros da comunidade de saiide men- tal como agentes de controle social, no mo- mento em que considera que um conflito en- tre individuo e sociedade pode ser identifi- cado como um desvio, condendvel pelos pa- drdes sociais, mas que, por si, nao é tido como transtorno mental, a menos que, a0 mesmo tempo, constitua o sintoma de uma disfuncao, Essa caracterizacao de transtorno mental & apresentada pelo DSM-IV, que & a edicdo mais recente da classificagao oficial nos Estados Unidos. Depois de muitas modificagées em re- lagao a abordagem e classificagao da psicopa- tologia, durante 0 século XX, 0 DSM-IV recapi- tulou 0 conceito de transtomos distintos, mas com um enfoque “atedrico com relagéo as cau- sas" (Sadock & Kaplan, 1999, p.727). 0 mode- lo pode ser considerado categérico, masa clas- sificagéo nosolégica passou a se basear em ci ‘érios operacionais ou critérios diagnésticos es- pecificos, que constituem “uma lista de carac- teristicas que devem estar presentes para que © diagnéstico seja feito” (Sadock & Kaplan, 1999, p.727), Isso nao pressupde “que todos 15 individuos descritos como tendo © mesmo transtorno mental so semelhantes em um grau importante” (APA, 1995, p.xe). 0 DSM-IV prevé a possibilidade de uma ava- liagao multiaxial, sendo que toda a classifica- io dos transtornos mentais consta nos Eixos | ell, O Eixo Ill prevé a incluso de transtorno fisico ou condigao médica adicional. 0 Eixo IV 6 reservado para o registro de problemas psicossociais e ambientais, e no Eixo V é fei- to 0 julgamento do nivel geral de funciona- mento do paciente, conforme a Escala de Ava- liagdo Global de Funcionamento (vide APA, 1995, p.33). © DSM-IV & compativel com a classificagao utilizada na Europa, a CID-10, desenvolvida pela Organizagéo Mundial da Satide (OMS, 1993). "Todas as categorias usadas no DSM-IV io encontradas na CID-10, mas nem todas as. ‘ategorias da CID-10 estdo no DSM-IV" (Sado- ck & Kaplan, 1999, p.727). Para quem trabalha com psicodiagnéstico, & essencial a familiaridade com os sistemas de classificagéo nosolégica, j4 que a nomenclatu- ra oficial dos transtornos é extremamente itil na comunicagao entre profissionais, além do fato de que outros documentos, como atesta- dos, além de laudos, podem exigir 0 cédigo do transtorno de um paciente. Confira cuidado- samente todos os critérios a partir de suas hi- péteses diagnésticas, pondere bem sobre todas as caracteristicas do caso, examine 0 que diferencia 0 caso de outros transtornos e te- nha em mente critérios usados para a exclusio de outros diagnésticos (Consulte 0 capitulo Uso do Manual, no DSM-IV, bem como Sadock & Kaplan, 1999, p.737). Pscooiendsnco-V_ 37 O contato com o paciente Maria da Graca B. Raymundo expresso contato, da raiz latina contactum (Carvalho, 1955), quer dizer exercitar 0 tato, com vistas ao toque dentro de uma relagdo de influéncia e de proximidade (Ferreira, 1986). De forma metaférica, no processo psico- diagnéstico, 0 papel do psicélogo é 0 de tate- ar pelos meandros da angiistia, da descon anga e do sofrimento da pessoa que vem em busca de ajuda. Tatear, entao, é lidar com as ingmeras resisténcias a0 processo, sentimen- tos ambivalentes e situagées desconhecidas, Primeiramente, € preciso ter clareza de que a sintomatologia ja se fez presente e manifesta em periodo anterior a marcagao da consulta, e de que, certamente, varias formas de driblar 0 sofrimento foram experimentadas e varias ex- plicagées foram empregadas, resultando no incremento da angustia. Essas resisténcias po- dem passar, também, pelo desconhecimento do que seja o trabalho com um profissional em Psicologia, pelos esteredtipos culturais em tor- no da érea psi e dos preconceitos sobre quem requer esse atendimento, No caso de criangas ou adolescentes, as dificuldades sao freqtien- ‘temente relacionadas com a influéncia de com- panheiros, atribuidas & indisciplina ou a "pro- blemas de idade”, As resisténcias mais imperiosas ficam por conta das questées internas, pois esto sob a regéncia de ananke, a Necessidade, a Grande 38 Junewa ALaves Cunsa Senhora do Mundo Subterraneo ou mundo psiquico inconsciente (Hillman, 1997). Ela ma- nifesta sua forca inexoravel por desvios, como a desordem, a desarmonia, a aflicao diante de si proprio e no trato com as coisas do mundo ircundante, Como consequéncia, a propria pessoa procura conviver com os seus sintomas, ‘ea familia tenta tolers-los, mas ha limites para © sofrimento e para a tolerancia, Frequente- mente, 0s sintomas séo observados por alguém mais, por uma pessoa com certo poder de in- fluéncia, que pode assumir o papel de agente de sade, como um professor, uma assistente social, um médico, ou, provavelmente, uma ddessas pessoas é procurada, para apoio e acon- selhamento, de onde surge a deciséo de busca de ajuda, ‘A pessoa em sofrimento chega para o pri- meiro contato com o psicélogo premida pela necessidade de ajuda e pela necessidade de rendiéo e de entrega Aatitude de respeito do psicélogo, ou seja, ‘© “olhar de novo", com 0 coragao, em conjun- to com o paciente para a sua confltiva, livre de critcas, menosprezo e desvalia, basilar no ‘exercicio de tocar a psique, para uma ligagso de confianca. Estabelecer a proximidade neces- séria para a consecugéo do processo significa mostrar ao paciente que as dificuldades pare- ‘cem nao ir embora enquanto nao forem pri- meiro bem acolhidas. A solucéo sé ganhara espago e lugar se houver contato. ‘As atitudes de esperanca (Hillman, 1993) e da aceitacao por parte do psicélogo, da an- giistia e “da luta entre os opostos”, enquanto expressdo da “verdade psicolégica do eterno jogo de antagonismos" (Silveira, 1992, p. 116), so fundamentals para a pessoa que vem para © primeiro contato, dentro do proceso psico- diagnéstico, MOTIVOS CONSCIENTES E INCONSCIENTES ‘A marcacao da consulta formaliza um proces- so de trabalho psicolégico jé iniciado (Jung, 1985), precedido de intensa angiistia e ambi- valéncia. Corresponde 8 admisséo da existéncia de algum grau de perturbacao e de dificuldades que justificam a necessidade de ajuda, A emer- géncia de fortes defesas nesse periodo pode, por vvezes, mascarar as motivacées inconscientes da busca pelo processo psicodiagnéstico. Também, nos casos em que 0 paciente & encaminhado por outrem ao psicélogo, 0 mo- tivo aparente pode ser a propria solicitagao do exame ou fato de ter sido mobilizado por cole- gas, amigos, parentes. Nessas circunstancias, © paciente pode ter uma percepsao vaga de sua problematica, mas preferir chegar ao psi- célogo pelo reforso de um encaminhamento médico, por exemplo. Pode haver algum nivel de consciéncia do problema e lhe ser muito dolorosa a situagao de enfrentamento de sua dificuldade. Assim, por suas resistencias, 0 pa- ciente pode negar a realidade e depositar num terceiro a responsabilidade pela procura, Portanto, ha uma tendéncia para que 0 motivo explicitado ao psicblogo seja o menos ansiogénico e o mais toleravel para o paciente ou, ainda, para 0 responsavel que o leva. Em geral, nao & 0 mais verdadeiro. Consequentemente, ha tendéncia para ex: plicitagao dos motivos, conforme a gradacao © apropriacao, pela consciéncia do paciente. ‘As motivacées inconscientes esto no nivel mais profundo e obscuro da psique. Consti- ‘tuem-se nos aspectos mais verdadeiramente responsaveis pelas afligées do paciente. Cabe ao psicélogo observar, perceber, es- cutar com tranqiilidade, aproximar-se sem ser coercitivo, inquiridor, todo-poderoso. Somen- te assim se criam o silencio necessério ¢ 0 es- aco para que o paciente revele sua intimida- de, ou sendo, denuncie os aspectos incoerentes ‘econfusos de seus confitos. Para tanto, é sobre- modo importante observar como 0 paciente tra- ta.a si proprio e as suas dores. Isso passa pelo vesti-se, pelo comunicar-se verbalmente e ndo verbalmente, pela linguagem corporal, pelo con- teiido dessas comunicag6es. Todlo movimento corpéreo deve ser considerado como indicative da realidade interior e expressio do psiquismo (Zimmermann, 1992). Assim, 0 psicélogo pode decodificar as variadas mensagens que recebe, discriminando 0 quanto ha de reconhecimento do sofrimento, das motivagdes implicadas, del- neando o seu projeto de avaliacio. Quando os pais levam a crianga ou 0 ado- lescente ao psicdlogo, pode ocorrer que o su- jeito constitua “o terceiro excluido ou inclut- do” (Ocampo & Arzeno, 1981, p.36). Se ignora ‘© motivo, é excluido. Mas é preciso investigar se esta realmente incluido, porque pode ocor- rer 0 fato de os pais verbalizarem 0 motivo, porém nao o mais verdadeiro ou o mais autén- tico, dentro de sua percepcao, Iss0 se di em fungao de fantasias sobre © que pode aconte- cer em face da explicitacéo do que & mais do- loroso e profundo e, portanto, do mais oculto. Sea realidade esta sendo distorcida, podem advir algumas dificuldades para o psicodiag- néstico, caso 0 psicélogo nao perceba e/ou nao altere essa situagao. Em primeiro lugar, 0 pro- ‘cesso pode ser iniciado com 0 contlito deslo- cado, comprometendo a investigagio. Em se- ‘gundo lugar, 0 paciente percebe a discrepan-

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