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NUM ANIA AUSS.(0 CARCI OC LARC AR Rene ACLS Cla ee ee ee) Estudos opresentados no forum de Discusséo promovido pela FGV-EAESP, pela Fundacao Hewlelt e pela Experiéncias em Discussio Fundagéo Ford, com o apoio da ONG Visio Mundicl, do Institute Ethos de Responsobilidade Social, do Instituto de Acdo Empresarial pela Cidadania de Pernambuco, do SEBRAE - PE e da Empresa Hamaracé de Transportes, nos dias 15 e 16 de agosto de 2002. Versio preliminar e restrita aos participantes do Forum de Discussao Sear ANSTITUTO SOCIOAMBIENTAL Data tI J DESENVOLVIMENTO SOCIOECONOMICO LOCAL: RELAGGOES SOLIDARIAS NA PEQUENA PRODUGAO FORUM DE DiscussAo PROMOVIDO PELA FGV - EAESP, FUNDACAO HEWLETT, FUNDAGAO FORD, COM 0 APOIO DA VISAC MUNDIAL, INSTITUTO ETHOS, INSTITUTO DE AGAO EMPRESARIAL PELA CIDADANIA DE PERNAMBUCO, ‘SEBRAE/PE £ EMPRESA ITAMARACA DE TRANSPORTES. RECIFE, 15 - 16 DE AGOSTO DE 2002 TEATRO HEAMILO BORBA FILHO — BAIRRO DO RECIFE is Acervo| EN FAZENDO ARTE E INVENTANDO NOVAS TRADICOES: A EXPERIENCIA DE COMERCIALIZAGAO DA ARTE BANIWA Lucia Peixoto Calil” 1. CONTEXTO GERAL Arte Baniwa @ a marca que identifica o artesanato produzido pelo povo Beniwa, que desde 1997 vem sendo comercializado pela Organizagao Indigena da Bacia do Icana, no ambito de um projeto de desenvolvimento de alternativas econémicas sustentaveis para a regio do Alto Rio Negro, Aetnia Baniwa faz parte do grupo lingtiistico Aruak e integra uma populagao de pouco mais de 12 mil pessoas, distribuidas no Brasil, Colombia e Venezuela. No territorio brasileiro, este povo totaliza cerca de 4.200 pessoas e acupa a maior parte de uma vasta area (quase 100 mil quilémetros quadrados) no noroeste do estado do Amazonas, mais conhecida regionalmente como “Cabega de Cachorro”, distribuindo-se em comunidades e sitios localizados ao longo do rio Igana e de trés de seus principais afiuentes (tios Aiari, Cuiari e Cubate). Como muitas outras etnias desta regiéo, os Baniwa desenvolveram formas sofisticadas de adaptagao a um meio ambiente que, devido a acidez dos solos e & escassez de peixes nos trios, se caracteriza como relativamente pobre; e um conjunto de estratégias diversificadas de exploragdo dos recursos naturais disponiveis. Estas estratégias estao refletidas no padrao de assentamento, na densidade de ocupagdo territorial, nas praticas de interc€mbio econémico estabelecidas com outros povos indigenas, e no conhecimento empirico da biologia e da botanica regionais que os identifica como bons horticultores e pescadores. “Todo homem (Baniwa) saberé dizer onde se encontram as melhores terras para a colocagéo das rogas, onde procurar frutas e onde buscar a caga’’. © povo Baniwa 6 também reconhecido por sua habilidade ertesanal, sendo os tnicos fabricantes na regiao dos raladores de mandioca feitos de madeira e pontas de quartzo, e os principais produtores de urutus e balaios de aruma. A produgao artesanal para venda é uma atividade antiga entre este povo, sendo responsavel por uma de suas poucas fontes de renda. * Lacia Peixoto Calil 6 erquiteta, com mestrado no El Colegio de México - México. Exerce atividades de gonsultoria em gestéo de projetos, na empresa Sel da Terra — Consultoria em Desenvolvimonto Social. TFOIRN-ISAIMEC-SEF. Povos indigenas do Alto e Médio Rio Negro. Uma introdugao a diversidade cultural @ ambiental do noroeste da Amaz6nia Brasileira. Mapa-livio. 1998. p. 65. 128 p. 5 Contudo, somente a partir dos tltimos cinco anos, a produgao artesanal Baniwa assumiu uma forma de economia auténoma e autodeterminada. A mudanga de sfatus desta atividade tem sido, desde entao, conduzida por trés organizagies da sociedade civil: © Federagao das Organizagdes Indigenas do Rio Negro ~ FOIRN, fundada em 1987, no momento das lutas pela regularizagao das terras indigenas e pautando-se pela defesa dos direitos coletivos e bem-estar dos povos indigenas desta regido. Atuaimente, a FOIRN congrega 42 associagées, representantes de 22 povos, distribuidos em mais de 680 comunidades localizadas ao longo dos principais cursos d’agua e terras secas da bacia do aito Rio Negro. * Organizagao Indigena da Bacia do Igana ~ OIBI, criada em 1992 para a defesa dos direitos e bem-estar dos povos Baniwa e Kuripako, congregando 17 associagdes" e relacionando- se com outras entidades indigenas do alto Igana e do rio Aiari. A sede da OIBI localiza-se na comunidade de Tucuma-Rupita, e na cidade de Séo Gabriel da Cachoeira encontra-se em etapa final de instalagéo uma sub-sede, que ira funcionar como centro de apoio logistico para as operagées comerciais da entidade. Sendo uma organizagdo ainda jovem, a OIBI tem consolidado sua presenca no cenério politico-institucional da regido a partir de indmeras iniciativas voltadas para a defesa dos interesses das comunidades filiadas e da promogo social dos povos Baniwa e Kuripaco. + Instituto Socioambiental — ISA, fundado em 1994 como uma organizagao civil sem fins lucrativos para atuar no campo dos direitos sociais coletivos e difusos relativos ao meio ambiente, patriménio cultural, direitos humanos e dos povos, concentrando suas ages em quatro grandes areas do pais: Regiéo Metropolitana de Sao Paulo, Vale do Ribeira-Sao Paulo, Parque Indigena do Xingu-Mato Grosso e Alto Rio Negro-Amazonas. Nesta ultima regio, 0 ISA implementa o Programa Rio Negro - PRN, cujos objetivos gerais se orientam para a promogéio do desenvolvimento sustentavel da Bacia do Rio Negro. A médio prazo, o PRN® se desdobra no Programa Regional de Desenvolvimento indigena Sustentavel do Médio e Alto Rio Negro, implementado, em parceria com as organizagdes indigenas locais, ? Sao elas: Sao José, Jacaré Pogo, Santa Rosa, Tapira-Ponta, Santa Marta, Juivitera, Arapaco, Tarumd, Pupunha, Tucumd-Rupita, Jandd-Cachoeira, Maud-Cachoeira, Trindade, Aract-Cachoeira, Siusi-Cachoera, Tucunaré-Lago e Tamandua. * Este programa envolve inimeras atividades, tais como a implantacao de uma rede de radiofonia, a publicago de uma série de livros de autores indigenas, projetos de geracdo de renda com uso sustentavel de fecursos minerais (pisciculture, manejo florestal, artesenato), a criegéo de um banco de dados socioambientais georeferenciados, satide e nutrig2o, e a demarcacéo de terras. 6 outras ONGs e instituigdes governamentais que atuam na regido, e orientado para o fortalecimento politico, institucional, cultural, social e econémico dos povos indigenas desta regio e suas organizages representativas. As linhas de agdo deste programa contemplam projetos especificos para a defesa territorial, a satide e a educagdo, a criagdo @ desenvolvimento de alternativas econdmicas sustentaveis. 2. RESGATE HISTORICO As origens da experiéncia de comercializagao da Arte Baniwa remontam ao ano de 1997, quando se inicia a fase final do proceso de demarcagao das terras indigenas do Alto Rio Negro‘, Por forga desta circunstancia, as atividades de exploragao mineral que vinham sendo realizadas pelo povo Baniwa, e que eram responsdveis pela geragao de pequena renda monetaria, tiveram que ser suspensas. Altemativamente, muitos homens retomaram as habilidades proprias de sua cultura, e passaram a produzir cestaria de aruma para venda. Vista a partir de uma perspectiva mais fonginqua, esta iniciativa corresponde ao terceiro estagio de uma histéria que, até os dias atuais, pode ser fracionada em trés grandes momentos. © primeiro momento antecede 0 contato desta etnia com a sociedade extema. Naquele tempo, a arte do trangado do arumé era tradicionalmente dominada pelo cotidiano da vida social, constituindo uma atividade tipica dos homens adultos que, por meio dessa habilidade, demonstravam sua capacidade de prover as condigdes materiais para a vida em familia, De suas maos salam os urutus, balaios, jarros, peneiras e tipitis utilizados na colheita da mandioca e no preparo de seus derivados (farinha, beiju, tapioca), além de tapetes © brinquedos para as criangas (0 conhecido “agarra moga”) e miniaturas. Como expressao artistico-cultural do povo Baniwa, as pegas produzidas diferenciavam-se pelo tipo de trancado, estilos de acabamento e desenhos, estes illimos contendo claras referéncias a sua rica mitologia e religiosidade. O segundo momento corresponde ao periodo de quase 300 anos que transcorre desde os * 0 proceso de reconhecimento dos direitos sobre as terras indigenas do Alto Rio Negro consumiu quase 25 anos de Lutes ininterruptas Os trabalhos de demarcagao foram realizados entre abril de 1997 e abril de 1998, sob a administragéo da FOIRN e co ISA; ¢ a homologagao do titulo de posse da atual extensao de 10,6 milhdes de hectares contiguos ocorreu em 1998. Malores detalhes podem ser encontrados em FOIRN- ISAIMEC-SEF. Op cit. nota 1 7 y Tt) primeiros contatos com a sociedade branca até o inicio da ultima década de 90. Durante a maior parte deste periodo, 0 povo Baniwa, como de resto toda a populagdo indigena da regio, sofreu as mais violentas formas de exploragao econémica. A escravidao e o trabalho forgado na agricultura e na construgao civil foram inicialmente impostos pelas “tropas de resgate” portuguesas ainda no século XVII; e, a partir do século XIX, aos militares sucederam- se missiondrios jesuitas, carmelitas, capuchinhos e franciscanos autorizados a praticar a catequese, contribuindo largamente para a exploragao do trabalho indigena, sobretudo em atividades extrativistas, Segundo consta, a chegada das missdes religiosas é contemporanea da presenga dos regat6es, um tipo de comerciante que baseava sua atividade no sistema de escambo e que mantinha os indios em permanente situagdo de dependéncia econémica. Por esta época, 0 artesanato de aruma comegou a ser utilizado como moeda no comércio ribeirinho dominado pelos regates, sendo trocado por roupas, sal, armas e munigéo, além de outros bens produzidos pela sociedade extema e que, através do contato, passaram a fazer parte de seu consumo. Durante este longo periodo, a venda da produgo artesanal se alternava com outras atividades econémicas nos seringais, piagabais, no garimpo e na construgo civil, quase sempre sob regime de trabalho forgado ou submetido & exploragao violenta®. No século XX, sobretudo a partir da quarta década, a agdo missionaria seguiu marcando presenga na regido, contribuindo para coibir os abusos dos comerciantes e para, progressivamente, liberar os indios do trabalho forgado e da violéncia, & qual eram submetidos no regime de patrées e regatdes. Mas, ao lado dessa contribuigao, deixou as marcas de seu desprezo as formas autéctones de cultura e organizaco social, abolindo rituais religiosos e de iniciagdo, proibindo a atividade dos pajés, e destruindo enfeites e instrumentos de misicas cerimoniais, sem, contudo, fazer desaparecer a arte do trangado do aruma. Até 0 inicio da ultima década do século passado, a cestaria de aruma continuou ocupando lugar de destaque como expresso cultural dos Baniwa e como moeda no sistema de escambo ainda dominado pelos regatdes. No inicio da década de 90, as liderangas indigenas Baniwa, que conduziam 0 processo de constituicao da OIBI, j4 haviam identificado a perversidade desse sistema que, além de impor relagdes desfavoraveis de troca - nas quais * Relatos antropoldgicos datados das primeiras décadas do século XX ja apontavam *... 0 clima de terror em que viviam os indios, vitimas dos abusos dos comerciantes colombienos e brasileiros, que mantinham os indios no sistema de patronagem, sendo forgados @ pagar dividas que nunca expiravam @ obrigando-os ainda @ suportar humilhagdes e abusos contra suas mulheres”. FOIRN-ISA/MEC-SEF. Op.cit, p.01. 8 figurava, por exemplo, a proporgao de uma dizia e meia de urutus para uma calga jeans, ou duas dizias e meia deste cesto, para uma rede -, induzia a uma permanente dependéncia dos artesdos que empenhavam sua produgao para liquidar as dividas contraidas com os regatées. O terceiro momento, j& anunciado na introdugao deste capitulo, esta determinado pelo retorno & atividade artesanal no ambito do Programa Rio Negro, e como uma forma organizada e sustentavel de gerago de renda familiar. Antes, contudo, de configurar o Arte Baniwa como um projeto estruturado, a FOIRN havia experimentado a organizagao de outras atividades econémicas. Entre estas, ganha destaque a de exploraggo da columbita-tantalita®, desenvolvida com o apoio da FUNAI e suspensa pouce tempo aps ser iniciada, devido a falta de regulaco normativa para esta atividade em terras indigenas e também em virtude dos trabalhos de demarcagao das terras na regido. Estes trabalhos vinham sendo acompanhados de perto pela FOIRN e pelo ISA e exigiam a ativa participagdo da populace indigena’, pois eram estas as pessoas que conheciam cada palmo do territério, 0 percurso dos rios e igarapés, as areas alagaveis e as terras firmes perenes, a localizagao precisa dos espacos ocupados por comunidades e suas rogas. A habilidade manual dos indios, o grau de enraizamento da pratica de comercializagao da cestaria em sua cultura — que, néo obstante a flagrante exploragao @ qual estava submetida, constitula praticamente a Unica possibilidade de acesso a produtos que, por forga da mudanga de hébitos, isolamento fisico e por necessidade de seguranga, haviam se tomado indispensaveis -, e a compatibilidade da produgao artesanal com a vida social das comunidades foram determinantes para a escolha desta atividade como experiéncia-piloto de formas alterativas de geragao de renda. ‘As primeiras iniciativas nesta perspectiva datam de 1993/94, durante uma feira de organizagdes indigenas da Amaz6nia quando, pelo contato com uma empresa de cosméticos, © A columbita-tantalita & um mineral de grande valor comercial - utlizado na indastria de alta tecnologia para a produgo dos componentes que permitem o fluxo de correntes em dispositivos eletrénicos -, que pode ser empregado na indéstria quimica, farmacéutica, automotiva, aérea, na produgéo de tolefones colulares, aparelhos de som e video, chips para computadores, etc. (2001. Cable News Network. Material gentilmente gedido por Ricardo Bresler, EAESP/FGV). 7 © artigo 3° do Decreto 22 de 04/02/91 estabelece que os “trabalhos de identificagao e demarcacao realizados até entéo poderiam ser considerados somente com a aprovacéo dos grupos indigenes interessados”. Em reunizio convocada pela FUNAI em junho de 1996 e realizada com a presenca da FOIRN e do ISA, ficou decidido que 0“... processo de demarcagéo deveria ser mobilizador e participative em todes @ OIBI obteve sua primeira encomenda de 5 mil unidades de urutus. Apés esta, seguiram-se outras experiéncias intermitentes, mas, tal como a primeira, com resultados econémicos pouco animadores. A falta de qualidade do produto constituia a principal causa para este parco resultado, impondo uma perda média de 20% a 30% no valor dos lotes vendidos diretamente a comerciantes. A crescente afirmacao da OIBI e a abertura de novos canais de comercializagao com 0 apoio do ISA propiciaram, de imediato, um importante incremento na renda dos artesdos, uma vez que 0 prego da duzia de urutus passou a ser 38% superior do prego pago em Sao Gabriel da Cachoeira*. Nesta operagdo, o capital da OIBI era parte dos recursos repassados pelo convénio de cooperagéo ICCO/FOIRN e se destinava a remunerar os artesdos e os custos de transporte e comercializagéio. Nao obstante 0 progresso que o novo sistema de comercializagao representava, a metodologia empregada para o calculo do prego do produto era precaria, baseando-se no principio geral de “pagar pela qualidade e pela satisfagdo do produtor’’, e em vagas referéncias de equivaléncia mercantil com bens normalmente adquiridos pela populagao indigena na cidade. Durante quatro anos, a atividade envolveu um pequeno numero de artesdos e se desenvolveu de forma independente do Programa Regional de Desenvolvimento indigena Sustentavel do Alto e Médio Rio Negro. Em 1997, a articulacdo interinstitucional FOIRN/OIBV/ISA sistematizou a experiéncia acumulada até entéo no projeto Arte Baniwa, incorporando-o ao PRN. os niveis, \do reuni6es nas comunidades, produggo de material informativo e 0 aproveitamento de méo-de-obra indigena”. FOIRN-ISA/ MEC-SEF. Op. cit,, p. 106-111. ® Conforme nos informa Beto Ricardo, os pregos pagos pelo artesanato Baniwa em Sao Gabriel da Cachoeira sempre foram muito baixos, em decorréncia do “costume depreciativo de trocar o arlesanato indigena por roupas usadas", instituldo pela misséo calélica. RICARDO, Beto. Arte Baniwa. FOIRN-ISA. ‘$80 Gabriel da Cachoeira — So Paulo, 2000, p. 7. ® Depoimento prestado por André Fernando, em 16 de maio de 2002, em Sao Gabriel da Cachoeira. ” Consta que as primeiras tentativas de estabelecimento de prego de venda da dizia de urutus adotaram como parémetro 0 preco da calca jeans no mercado local, posteriormente substituide pelo prego de um violgo. *' Este programa envolve intmeras atividades, tals como 2 implantagao de uma rede de radiofonia, a publicagao de uma série de livros de autores indigenas, projetos de geragao de renda com uso sustentavel de recursos minerais (piscicultura, manejo florestal, artesanato), a criagao de um benco de dados socioambientais georeferenciados, satide e nutrigao, ¢ a demarcacdo de terres. 10 ‘Acervo| ce 3. ARTE BANIWA: PROJETO DE PRODUGAO E COMERCIALIZAGAO DE ARTESANATO DE ARUMA O projeto Arte Baniwa 6 um dos componentes da linha de agdo denominada “Alternativas Econémicas Sustentaveis’ do PRN, caracterizando-se como uma experiéncia-piloto de corganizago do sistema de produgo e comercializagao de cestaria indigena, com valor cultural e ambiental agregados, autogerido e financeiramente rentavel, e organizacional e culturaimente compensador para 0 povo Baniwa. Desde 1997, quando comegou a ser implementado, as agdes do projeto tém se orientado para @ criagéo das condigbes operacionais e de infra-estrutura necessatias para viabilizar os seguintes objetivos: 1. Valorizar o patriménio cultural e ambiental de uma regido da Amazénia brasileira onde vivern 10% da populagao indigena e 10% da diversidade étnica nativa do pais, em 10,6 milhdes de hectares de terras demaroad: 2. Animar a produgo sustentavel de objetos de aruma, como uma forma de reciclagem e disseminagdo de uma tradig&o cultural indigena milenar; 3. Identifier nichos duradouros de mercado, que acolham o valor agregado cultural e ambiental dos produtos e sejam compativeis com a capacidade de produgéo das comunidades; 4. Implantar um sistema de produgao por encomenda, que tenha capacidade de respostas a0 crescimento esperado da demanda através de crescimento horizontal da base produtiva, mantendo a qualidade e aprimorando 0 uso dos recursos naturais; 5. Gerar renda para os produtores indigenas e suas associagées; 6. Contribuir para o uso sustentavel dos recursos naturais numa regiéo socioambientalmente singular, no noroeste da Amazonia Brasileira; 7. Servir como projeto demonstrativo para incentivar outras associagées indigenas da regio a desenvolverem projetos semelhantes; 8. Capacitar a FOIRN e associagées filiadas no gerenciamento de projets”. A gestéo do projeto Arte Baniwa esta diretamente sob a responsabilidade da OIBI que, em sua implementagao, conta com o apoio politico e institucional da FOIRN e tecnico do ISA. Os recursos financeiros que sustentam as agdes do projeto provéem de doagdes realizadas, “7 1SA, Arte Baniwa — Cestaria Indigena de Aruma do Rio Negro. Piano de Negécios. Apresentado ao Fundo: 4 Tat) Ez direta ou indiretamente, por diferentes organizagbes da cooperagao nacional e internacional (ICCO, Horizont3000, Amigos da Terra, Embaixada da Dinamarca, FUNASA, Rainforest Foundation, FNMA/MMA e PPG7). Na articulagao constituida para a implementagao do projeto, as organizagées participantes desempenham diferentes papéis: + a OIBI compete sua gestéo integral, a mobilizagao dos artesdos, a organizagao de oficinas de treinamento, a coleta, o transporte, 0 controle de qualidade da produgo, o gerenciamento da comercializagao e o controle financeiro e contabil do projeto; ‘+ AFOIRN, 0 apoio politico, institucional e as facilidades de logistica requeridas na cidade de ‘S40 Gabriel da Cachoeira, proporcionando instalagdes, equipamentos e veiculo para as atividades de escritério, recepgao, controle de qualidade, etiquetagem e transporte focal do artesanato, enquanto aguarda a conclusdo das obras e instalagdes do entreposto local da IB; * a0 ISA competem as atividades de documentago, assessoria técnica ¢ apoio comercial na promogao do artesanato (criagao da logomarca, divulgagdo e assessoria de imprensa), assessoria na comercializagdo (identificagao de mercados e estabelecimento de condiges de venda) e apoio na mobilizagéo de recursos para o projeto (elaboracao do plano de negocios e assessoria na formulagdo de projetos de captacao de recursos). Como estratégia central de implementagao, o projeto Arte Baniwa orienta-se, por um lado, para @ organizagao e melhoria da qualidade da produgdo artesanal, @ partir do envolvimento de artesdos e da preservagao de seus habitos de vida; e, por outro, para a articulagéo da produgéo artesanal com 0 mercado consumidor, por meio da identificagao de compradores, organizagao do transporte e do desenvolvimento de instrumentos de apoio & comercializacao. Incluem-se, entre estes tltimos, a formulagao de um plano de negécios e de um conjunto de pegas promocionais e de marketing. Coerente com esta estratégia e visando viabilizar 0 alcance dos objetivos 1, 2 € 4, em 1999 foi realizada uma oficina na comunidade de Tucumé-Rupita. Contando com a presenga de 19 mestres artesdos de 10 comunidades, esta oficina permitiu a divulgagao de suas técnicas de trangado e acabamento ¢ fincou as bases para o estabelecimento do que, posteriormente, passou a ser considerado 0 “padrao OIB! de qualidade” do produto artesanal. Nesta mesma nacional do Meio Ambiente / MMA. Julho de 2001. Mimeo, 47pp. 12 Tar) Ev oporiunidade, fol elaborado o primeiro plano de negécios para a Associagao e produzido material video-fotografico para a divulgagao comercial prevista na estratégia de marketing. As primeiras experiéncias comerciais no contexto do projeto decorreram de contatos comerciais proporcionados pelo ISA com os dirigentes da ExpoFlora — Holambra, para o fornecimento de urutus que seriam utilizados como cachepds para as flores e plantas vendidos naquela feira. Cerca de 200 arteséos de varias comunidades do Igana se envolveram na produgéo de 2 mil unidades, num empreendimento sem patrocinio e cujo resultado financeiro estava inteiramente vinculado as vendas realizadas. E, apesar dos esforcos realizados para estabelecer um prego “justo”, 0 elevado custo de participagao na feira gerou resultados insatisfatérios para os arteséios: dos 200 originalmente envolvidos, apenas 19 permaneceram no projeto. Para a OIBI, 0 insucesso econémico da participagdo na ExpoFlora foi compensado por importantes aprendizagens no campo da organizagao cooperativa e da comercializagao e, adicionalmente, rendeu © contato comercial com a Tok&Stok. Naquela ocasiao (1998), esta empresa adquiriu experimentalmente todas as sobras da produgao Baniwa que nao haviam sido vendidas na feira (cerca de 1300 unidades). E, pouco tempo depois, fez sua primeira ‘encomenda, de 100 duzias do urutu grande, pagando o prego de R$ 58,00 por diizia - um aumento que representa quase trés vezes 0 prego originalmente alcangado no mercado de ‘S40 Gabriel da Cachoeira. Nao somente pelo atrativo deste prego, mas também pela impossibilidade de os 19 artesdos que permaneceram fiéis & proposta da OIB! cumprirem o prazo acertado com a Tok&Stok, esta encomenda conduziu ao aumento do nimero de produtores envolvidos, que passou para 45. O sucesso das vendas - precedidas por uma campanha de divulgagdo, publicagao de um livro e evento de langamento — representou novo estimulo para a ampliagao dos arteséos envolvidos. Em maio de 2002, quase uma centena e meia de artesdos, distribuidos em 16 comunidades a0 longo do médio e baixo Igana, encontravam-se cadastrados na OIBI. Os beneficios da comercializago atingem cerca de 20% da populagao desta etnia no Brasil 4, CADEIA PRODUTIVA DO ARTESANATO BANIWA © processo de produgao, transporte e comercializacao do artesanato Baniwa, detalhado no 13 Oa préximo capitulo, indica os elos da cadeia produtiva, cuja principal caracteristica reside no controle de sua maior parte pela propria comunidade, aqui representada pela OIBI. Em cada uma das etapas, os atores envolvidos desempenham papéis diferenciados e recebem beneficios imediatos conforme descrito no quadro a segui Atores envolvidos na cadeia produtiva do artesanato Baniwa Heres rae i "] Banrisios imeaiates: OIET (aietoria) —] E Yesponsavel por toda a gestao do processo, alé a etapa centrega da produgao 20 comprador. Parte destas fungbes & “Taxa de administragao ‘exercida em sistema de rodizio entre os diretores, om plantdes de_| de aproximadamente 5% ‘aproximadamente dois meses em S20 Gabriel da Cachoeira. _| sobre. o montante das Exeouta o contrate de qualidade, tramites Rscais para despachar a | vendas. rmercadoria para outras cidades. ‘GiBI (Giretor em” | Divuiga as encomendas recebidas, anota 6 compromisso individual | a plantao em e produgao, confere a producto entregue, registra a forma de Tucumé-Rupita) | pagamento desejada pelo artesdo. Faz 0 pagamento creditado. “GIBT (mambros de [A Wripulagao do bongo (eis pessoas) € responsdvel pelo ~~ Rammuneragao pelo associagbes recolhimento da produgdo e pelo transporte entre as comunidades | trabalho e alimentagSo filadas) @ So Gabriel da Cachoeira. Ao longo desse percurso, agencia | (aproximadamente ajudantes para o transbordo da mercadoria nas corredeiras e _| RS 800,00 por viagem) cachosiras 20 longo do ro Igana, ‘OiIBI (membros de” | Ajudam no desembarque e reembarque da mercadoriaena | Gralificagao monetaria__ associagses |transposigo do bongo nos desnivels do tio gana, Além da pelo trabalho (entre filadas @ ‘tipulagao, s80 necessétias pelo menos outres seis pessoas nesta | RS 12,006 moradores etapa. R$ 15,00 por pessoa). ribetrinhos) ‘Artesée cadestrados producdo entregue. “Riiesios no- | Familates ou no dos artesaos cadastrados, 6 por eles agregades, | Dependendo das cadastrados participam de etapas especificas do processo de produgo relagdes de parentesco (ou de “subcontratagao" ccontatos comerciais realizados em S80 Paulo, ‘Assossoria institucional na definicgo de estratégias de desenvolvimento do projeto, atuacao politica e articulagso da OIBI com outras instituigSos indigenas, governamenteis o da ‘cooperagao nacional e intemacional. <0 trabalho, pode haver istribuigdo do resultado da venda do artesto ‘titular. ‘periéncia no desenvolvimento de projetos econdmicos sustentéveis em cardter demonstratvo. 14 FOIRNIFUNAT | Gessao de caminhao e do motorisa para transportar a mercadoria_| Fortalecimento das ‘até 0 porto de Camanaus. relagbes interinsttucionais ‘Lojista (aqui ~~~ Venda do ariesaniaio para 0 consumidor final. ‘identidads comercial representado pela diferenciada; ¢ imagem Tok&Stok) de responsabliidade social. ~/ Adquire 08 produios e divulga-os em seus circulos de télagées.””” | Satisiagéio pessoal com © produto (beleze, qualidade, funcionalidade). Oportunidade pare ‘oxercer consumo “Consuimidor final consciente. 5. A PRODUGAO DO ARTESANATO BANIWA Mantendo a tradigao cultural, a produgo artesanal Baniwa convive com as demais atividades de subsisténcia das comunidades, sem interferir significativamente na vida social e familiar dos arteséos, que seguem dedicando grande parte de seu tempo & caga, & pesca, & roga (em que os principais produtos cultivados séo mandioca, batata doce, cara, abacaxi, banana, pupunha e pimenta), a limpeza de caminhos e a construgao da casa. Normalmente, a coleta e © preparo do material e seu trangado se realizam nos intervalos entre estas atividades. Seguindo esta mesma tradig&o, a produgdo artesanal é quase que totalmente do dominio de homens adultos, sendo pouco significativa a presenga de mulheres e jovens nesta atividade. Via de regra, 0 envolvimento de familiares (mulheres jovens) acontece na fase de acabamento do produto ou diante de uma necessidade familiar que demanda maior volume de recursos monetérios: a aquisigo de uma canoa (localmente conhecida como bongo), de motor de popa, a construgao da casa, ou qualquer outro investimento de maior monta. Mas, mesmo nestas cirounstancias, a produgao é vendida em nome do homem. Outra caracteristica marcante dessa produgao € que, além da habilidade manual, ela envolve sélido conhecimento de boténica, pois, além do aruma, até outras oito espécies vegetais podem estar presentes na confecgao da cestaria, destinando-se a pintura, acabamento e embalagem. 15 Tt) A convivéncia pacifica entre a vida tradicional e a produgéo artesanal é fomentada pela OIBI, para a qual “(a idéia do) projeto 6 nao atrapalhar a vida nas comunidades. O artesSo é que determina quando e quanto vai produzir’."* Porém, a regularizagéo do sistema de comercializacao, a partir do aumento da freqiiéncia de encomendas, ja representa uma mudanga no planejamento da rotina dos artesos, mantendo-os em estado de “alerta”, isto é, prontos para responder a demanda. 5.1 — A etapa de produgao Em sua esséncia, 0 processo de produgdo para venda nao difere daquele destinado ao consumo préprio; contudo, na primeira situagéo, ele é desencadeado pelo aviso da encomenda. Devido a precariedade dos meios de comunicagao, a divulgagao da encomenda ainda configura um périplo, repleto de mediagdes: A loja faz contato com 0 ISA, em Sao Paulo, que avisa a FOIRN em Sao Gabriel da Cachoeira, que comunica as condigées da encomenda 4 OIBI, que entra em contato com sua referénoia em Tucuma-Rupité. Pelo radio, Armindo (atual tesoureiro da Associagao e piloto do barco) alerta as comunidades sobre o volume e a data de entrega e programa a producao com cada arteséo individuatmente ™ © artesao, entdo, ajusta sua rotina diaria, reservando pelo menos um dia para cortar 0 aruma'®; e, dependendo da espécie"®, entre 100 e 200 colmos podem ser extraidos neste intervalo de tempo. Com esta quantidade, ele est apto a produzir uma duzia de urutus no sistema de encaixe, isto é, duas meias dizias, com diémetros e alturas decrescentes, de tal modo que 0 cesto maior contém o imediatamente menor e, assim, sucessivamente, até o menor de todos. As outras espécies utilizadas na pintura, acabamento e embalagem da cestaria implicam processos especificos de extragdo @ preparo, Eventualmente, 0 corante & adquirido de comunidades que se especializaram em seu preparo, e, neste caso, as formas de obtengao podem variar entre a compra ou a troca de produtos. * Depoimento de André Fernando, Irineu e Mario, entre os dias 15 € 18 de maio, durante visita de campo realizada a So Gabriel da Cachoeira. ™ Sintese das explicagdes dadas por André Fernando, Irrigue e Mario. *® Dependendo da incidéncia e da qualidade da espécie de aruma, nas proximidades da comunidade, este {gmpo pode ser diialado peta necessidade de ir buscé-lo mais longe. "as espécies mais empregadas neste artesanato so Péapoa Kantsa e Halépana 16 Tat) Ez Em sua integridade, o processo de produgo artesanal implica 0 conhecimento dos procedimentos que antecedem a etapa do trangado. Os tdpicos a seguir descrevem a seqiiéncia de passos observados na produgdo apés a extragdo do aruma, desdobrando-os nas atividades que compdem cada um deles: + Preparo da matéria-prima: Ja. Os talos de aruma podem ser usados com a casca 1b. ou podem ser raspados e 1c. areados no rio. 2. Quando se utilizam cores no trangado, os talos sao previamente pintados com pigmentos naturais que 2a, precisam ser preparados 2a1, se em vermelho, retirando as sementes do urucu, e moendo-as; ou extraindo um corante das folhas de uma planta, amassando-as e coando a pasta; 2a2. se em preto, raspando a cinza dos foros ou a fuligem de querosene ou leo que se acumula nas latas ou lamparinas. 2b. Também ¢ preciso preparar o fixador dos pigmentos, extraindo-se a seiva viscosa do ingé ou de outras drvores. Para isso, tem-se que retirar pequenas lascas da entrecasca, moé-as e, depois, espremer a massa no tipiti. 2c. Uma vez pronto, o fixador deve ser homogeneamente misturado ao pigmento. 2d. J& se pode, entdo, pintar os colmos e 2e. deixé-los ao sol para secar. + Descorticagéio dos colmos: depois de secos, apés o tingimento, ou em até sete dias apés extraidos, os colmos so desbastados em talas milimétricas e de largura homogénea. + Trangado das talas: o tipo de trangado pode variar segundo 0 produto em execugao ou a habilidade do artesdo. 7 + Acabamento: esta etapa também exige a extragdo de cipés e fibras vegetais que serao usadas para amarrar a taquara da borda dos cestos. Para produzir duas meias diizias, o arteséo consome cerca de duas semanas de trabalho, sem prejuizo de suas demais atividades rotineiras. Mantida esta produtividade média, a0 longo de 50 a 60 dias — periodo este estabelecido pela OIBI para reunir 100 dizias -, a producéo média individual pode atingir um volume de quatro diizias (ou oito meias dizias) de urutus””, 5.2 — A etapa de coleta e transporte da produgio artesanal Cinguenta dias aps a divulgagéo da encomenda, Armindo inicia a viagem, recolhendo a produgéo dos artesdos de cada comunidade, conferindo a quantidade entregue com a que foi prometida, anotando o crédito de cada um. Também registra a forma de pagamento desejada: se em espécie ou em mercadorias. Neste titimo caso, lista os itens, suas especificagdes, quantidades e tamanhos (se forem roupas ou sapatos) '*. A coleta do artesanato observa as regras gerais estabelecidas durante a oficina de treinamento realizada em Tucumé-Rupita em fevereiro de 2000. Afora o prego da duizia, que periodicamente tem sido aumentado, todas as demais regras se orientam para regular as relagdes entre 0 arteso e a OIBI, no Ambito das operacées comerciais, e contemplam os seguintes topicos"*: - Produgao entregue em dizias e previamente embaladas. - Pagamento realizado em parcela Gnica, em espécie ou seu equivalente em mercadorias. Esta produtividade coincide com a média geral de 4,48 dizias por artesdo cadastrado, de acordo com 0 fgsumo das vendas realizadas no ano de 2000, registrado pela OIE ™ Idem, nota 12. *° FERNANDO, André. Relatorio da OIBI sobre reunio com artesdos - Localidade: TucumS-Rupita / rio Igana. 21 de fevereiro de 2000. Mimeo. E interessante notar que o enunciado das “regras de trabalho” é precedido da apresentago de seus objetivs (‘.. controlar qualidade de nosso produto... (e) forma de pagamenia de acordo com a realidade do atual projeto...’} e € conciuldo com a observacao de que “Quem ‘nao concordar com a forma de pagamento, 6 s6 nao trabalhar para nao prejudicar as pessoas que querem trabalhar. O trabalho vai continuar’. © tom desta observacao deixa claro 0 poder deliberative da reunigo e, sobretudo, 0 poder normativo da OIBI. 18 - Controle da entrega e da qualidade do produto por meio de fichas individuais dos artesaos. - Penalidades aplicadas por meio de desconto do valor devido, para as entregas abaixo da cota comprometida pelo artesdio ou sem embalagem. + Embalagem: todas as pecas produzidas so encaixadas e acomodadas dentro de um cesio trangado especialmente para servir de embalagem (os paneiros). Os paneiros s30 amarrados dois a dois, formando um volume cilindrico. + Embarque: os seis tripulantes do bongo da OIBI, ajudados por artesaos e moradores ribeitinhos, acomodam até 100 divzias de urutus por viagem Comega entéo o transporte, descendo o rio Igana, até chegar em Sao Gabriel da Cachoeira™. Durante esta viagem, que pode durar de 10 a 15 dias, a carga precisa ser desembarcada e reembarcada, e o bongo precisa ser carregado a cada uma das 10 corredeiras do rio, transpondo os desniveis nas costas da tripulagao e dos moradores ribeirinhos. E, quanto mais avanga rio abaixo, mais volumes se acumulam, tornando ainda mais necesséria a ajuda dos ribeirinhos. Ao chegar em Sao Gabriel, outras etapas se agregam as anteriores: ‘© Desembarque no porto de Camanaus: distante 30 km da cidade de Sao Gabriel da Cachoeira, 0 resgate do artesanato neste porto exige os bracos da tripulagao do bongo e de ajudantes locais, além da colaboragéo da FOIRN ou da FUNAI, que cedem um caminho e motorista para transporté-lo até a cidade onde as peas seréio submetidas a0 controle de qualidade e a etiquetagem. Até maio de 2002, esta operagdo ainda era realizada na sede da FOIRN, mas em breve passaria para um dos salées do “entreposto” da OBI". ® id. Ibidem, nota 12. * as obras desta edificagao estavam quase concluldas, faltando apenas a ligacao de energia elétrica e @ construggo de uma edicula nos fundos do terreno para alojar membros da diretoria da OIB! durante os seus periodos de plantéo na cidade. A sede da OIBI esta localizada na periferia de cidade de Séo Gabriel da Cachoeira e 6 composta por dois amplos saldes independentes; cada um deles com instaiagdes sanitarias, varandas e ponto telefénico, 19 * Controle de qualidade: antes de ser etiquetada, a produgéo passa por vistoria de qualidade, separando-se do conjunto as pegas fora do padrao estabelecido. Este padrao foi determinado pela OIB! (Oficina de Treinamento Tucumé-Rupita, 1999), a partir dos critérios de tamanho, diémetro, composicao grafica e acabamento. Posteriormente, outros critérios foram introduzidos, ajustando caracteristicas do produto as exigéncias do mercado”, * Etiquetagem: esta etapa visa a identificagdo do produto com a marca Arte Baniwa estampada numa etiqueta. * Emisséo de nota fiscal: por forga normativa (Secretaria da Fazenda do Estado do Amazonas, Resolugao n° 025/90), a produgdo artesanal goza de isengdo tributaria do ICMS, mas nao est dispensada da emissdo de nota fiscal avulsa, na Delegacia Fazendaria de S40 Gabriel da Cachoeira. Depoimento prestado por diretores da OIB! indicam que esta operagao, embora de carater simples, nem sempre ocorre sem atropelos de Ultima hora, causados por atrasos no transporte da produgéo até a cidade de S80 Gabriel da Cachoeira ou nas etapas de etiquetagem/reembalagem. Note-se que o cumprimento dos prazos da encomenda exige a sincronizagao de todas as etapas que precedem o embarque para Manaus, com o cronograma de viagens dos barcos que partem de Camanaus descendo o rio Negro; e qualquer imprevisto pode significar o adiamento da emissdo da nota fiscal e, inclusive, a impossibilidade de embarcar a mercadoria na data prevista”. © Transporte: uma vez etiquetada e novamente embalada, a produgao é levada de volta ao porto de Camanaus, para ser transportada a Manaus e depois a Belém e Sao Paulo, uma viagem de cerca de 4600 km, que pode durar até 30 dias, e que envolve varios transbordos e diferentes meios de transporte (barco, balsa, caminhao). 5.3 - O estabelecimento do prego de venda do produto artesanal A fixago do prego do produto é, ainda hoje, um exercicio que mescia critérios subjetivos & objetivos. No primeiro caso, os critérios buscam associar a revitalizagéo cultural com o desenvolvimento de alternativa econémica sustentavel; e, no segundo, so determinados ® jf ultima encomenda feita pela Tok&Stok especifica a redugio do tamanho padréo dos urutus, visando 2 agilizer 0 escoamento deste produto nas lojas. (© embarque da mercadoria sem a nota fiscal 6 um risco que a OIBI aprendeu 2 no correr. Em pelo ‘menos uma ocasio, 0 artesanato embarcado nestas condigées foi apreendido pela Fiscalizacao Fezendaria ‘em Manaus, representando perda total para @ OIBI. 20 Tt) pelos custos de administragao, transporte e comercializagao. O caleulo do custo também & influenciado pelos pregos praticados no mercado para produtos similares. Contudo, néo ha elementos claros que explicitem os itens que compdem os custos da etapa de produgao (valor dos materiais utilizados e da forca de trabalho, principalmente), @, portanto, sua apropriagso é feita de forma subjetiva ou, em ultima instancia, por contraste com produtos industrializados do interesse dos artesdos (roupas, redes, violéo, etc... Em sua esséncia, esta situagao ndo difere daquela que se observa para outros grupos de arteséios do estado do Amazonas (e, de resto, na maior parte do Brasil) que, segundo informa estudo do SEBRAE™, nao sabem informar os critérios que adotam para fixar 0 prego do produto artesanal. Em grande parte, esta dificuldade decorreria da predominancia do uso de materiais extraidos da flora e da fauna pelo proprio arteso ou por membros de sua familia, no exigindo o desembolso monetario para serem adquiridas; mas estaria também determinada pela auséncia de alternativas econémicas para a forga de trabalho, Ambas circunstancias induziriam a atribuigao de custo. No caso dos Baniwa, a eventual excegao dos corantes que eventuaimente so adquiridos ou trocados com povos de outras etnias, todas as matérias-primas utilizadas séo extraidas da floresta nas imediag6es das rogas familiares ou ao longo dos caminhos que conduzem a elas, no onerando monetariamente 0 artesdo. Quanto ao fator trabalho, considerando-se que o artesanato esta estreitamente associado & rotina da vida social e familiar, torna-se ainda mais dificil dimensionar 0 seu valor, no 86 devido @ auséncia de indexadores adequados, mas também devido a dificuldade de dimensionar com preciso 0 tempo médio real empregado na produgao para venda. Pesquisa de alocagao de tempo nesta atividade, realizada nas comunidades de Santa Rosa € Trindade*, indica o consumo de 50 a 100 horas para a produgdo de uma duzia de urutus pelo sistema de encaixe. Depoimentos colhidos em Sao Gabriel da Cachoeira estimam a necessidade de duas semanas para completar este mesmo volume de produgdo. E, além destes parametros, estima-se um dia para coletar 0 aruma (e, possivelmente, alguns outros SEBRAE/AM - SUDAM. Perl do artesanato do Amazonas. Manaus: SEBRAE-AM/Programa de Desenvolvimento Empresarial © Tecnolégico, 1969. 120 p. Segundo este estudo, 82% dos artesdos do estado encontram-se nesta situagao. Quendo desagregado, 0 porcentual dos artesdos do interior — incluidos entre estes, os de origer indigena ~ se eleve para 62%. ® SHEPPARD et. al. Avaliagdo preiiminar da sustentabilidade socioambiental da produgdo comercializagao do artesanato de aruma no Alto Igana. Relatério preparado para o ISA. Mimeo, julho de 2001. 21 i materiais empregados no acabamento e na embalagem das pegas) e dois dias inteiros para confeccionar um urutu grande. Assim, deduzidos os itens cujos pregos estéo estabelecidos pelo mercado — como o combustivel consumido, o frete pago no transporte da produgao até Sao Paulo ou, ainda, os gastos com a administragéo de todo 0 processo -, 0 estabelecimento do prego de venda da produgao artesanal Baniwa tem sido fixado pelo método de aproximagées tentativas ao valor que, subjetivamente, atende “ao que os produtores querem receber", como assinalado no Plano de Negocios para a comercializagdo do artesanato, Na pratica, procura-se seguir uma *... politica de pregos que leve em consideragao os custos no seu aspecto étimo, os niveis de prego praticados pelos produtos similares e substitutos e que fortalega a marca Arte Baniwa...’*°. Em julho de 2001, era a seguinte a composigao porcentual do custo no atacado, da duzia de urutus Modelo GG, vendidos em Sao Paulo: Composigao do custo da produgao e comercializagao do artesanato Baniwa Temde Casto “[ Walor? aazia (RS Porcentual Remuneracao do ariesdo 204,00 ~ 76,40 ‘Custos na fase de produgao 3,48 1,34 Custosdeadministagdo | 1269 | 495. ‘Custo de transporte 26,84 10,31 ‘imprevistos F32 7,66 ‘Taxa de administragao O1BT 8,64 3,32) Total 260,17 99,98 Fonte: OIBI, 2000. Quando comercializado nestas mesmas condigSes em Manaus, o prego total tinha uma redugao de cerca de 8%; e, em So Gabriel da Cachoeira, esta redugao podia chegar a 10%. Historicamente, 0 prego de urutus evoluiu de R$ 18,00 a dizia (prego praticado no mercado de Sao Gabriel da Cachoeira, antes da oficina de treinamento de Tucuma-Rupitaé em 1999), para R$ 58,00/dizia (primeira venda para a Tok&Stok, 2000), atingindo R$ 110,00 na atualidade (vendas realizadas para a Tok&Stok, até junho de 2002), sendo o produtor remunerado com aproximadamente 62% deste valor. Em termos econémicos, esta evolugso ®° ISA. Plano de Negécios, Arte Baniwa — Cestaria Indigena de Aruma do Rio Negro. Verso apresentada 20 Fundo Nacional do Meio Ambiente / MMA. Coordenagao de Carlos Alberto Ricardo e André Fermando. 2001, 48 pp. 22 re EN refiete 0 éxito da comercializagao no mercado de Sdo Paulo e responde as expectativas de satisfagao dos artesdos cadastrados. Nao obstante isso, a partir de 2001, a possibilidade de seguir inoorporando aumentos ao valor unitario do produto comega a apresentar sinais de esgotamento, pelo menos no que se refere a sua compatibilidade com a politica de margem de lucro do principal comprador da produgao Baniwa. Na perspectiva deste comprador, ha um prego étimo que satisfaz a empresa dentro de seus critérios de remuneragdo. Acima deste limite, o produto tenderia a “encalhar’, e as condigdes da operagao comercial teriam que ser revistas, sob o risco de deixar de interessar a empresa. De fato, a medida que a OIBI passou a aproximar o valor da produgao artesanal aos critérios de satisfagao dos produtores — associando os parametros subjetivos e objetivos de dimensionamento de custo comentados no tépico anterior -, 0 prego na prateleira das lojas se elevou a um valor acima da capacidade aquisitiva do consumidor tipico. Esta circunstancia desequilibrou o ritmo das vendas finais, com os cestos de menor tamanho sendo vendidos mais rapidamente do que os maiores. ‘© que acontece normaimente é que os agentes de mercado adotam uma politica padrao para © estabelecimento do prego final do produto, n&o reconhecendo na pratica os fatores que — por seu valor cultural e ambiental agregado, pela proposta de desenvolvimento social que encerra, ou qualquer outro que nao estritamente comercial ~ o diferenciam de outros produtos similares. Na pratica, esta politica explicita uma compreensdo apenas parcial do conceito de responsabilidade social no que diz respeito a origem do produto e aos produtores. Para a Tok&Stok, importa ser identificada como uma empresa ecologicamente correta, um trago de sua imagem publica que vem sendo divulgado em seus catdlogos e pegas promocionais e expresso na divisdo de objetos “campo na cidade", uma linha que, em méveis @ acessérios de decorago, valoriza a aparéncia e a origem natural das matérias-primas empregadas. Em relagdo ao artesanato Baniwa, a Tok&Stok reconhece, por exemplo, as dificuldades que encerram o transporte do artesanato desde as comut lades até Sao Paulo. ‘Também considera que a aquisicao mais freqiiente de lotes menores — como rege sua politica geral de compras — implicaria maior complexidade operacional para a OIBI, além da majoragao de pregos, devido a elevagdo do custo de transporte. Em sua visdo, a “transgressao" dessas regras gerais constitui-se em uma concessao que visa a estimular 0 fortalecimento do empreendimento Baniwa. 23 Tar) Porém, e apesar da concessao feita, & ainda incipiente sua compreensao sobre as condigses subjetivas © objefivas que cercam a produgao destes artigos e sua insergéo no mercado. Assim, ao nivelar os produtores destes artigos com produtores industrializados, sob o argumento de que esta 6 a “lei do mercado” ¢ que organizagSes comunitarias artesas devem se adaptar a elas, a empresa esta, de fato, contribuindo indiretamente para fortalecer a situagao de desigualdade em que vivem e produzem estas comunidades, relterando as condigdes desvantajosas de insergao destes produtores no mercado. Para contornar a discrepancia entre o que € considerado “prego justo” para os Baniwa e “prego adequado” para o mercado, alguns artificios comegam a ser introduzidos. A primeira encomenda da Tok&Stok, em 2002, por exemplo, redefiniu a composigao das duas meias dizias que integram a unidade de produgao, misturando cestos originarios de dois conjuntos distintos: na nova dizia formada, os dois cestos maiores, correspondem as duas pecas maiores da duzia “média” (isto 6, a que comega com o diametro de 30cm), e os quatro restantes so provenientes da dizia pequena””. Desse modo, foi possivel chegar a um prego. intermediario ajustado ao poder aquisitive dos consumidores desta loja. 5.4~ As operagées de venda e o volume comercializado Comparado com o ano de 1998, quando dentro da estratégia definida para implementar o projeto iniciou-se a identificagao de vargjistas, o volume anual de pegas comercializadas vem apresentando grandes oscilagdes, como mostra a tabela a seguir. Evolugao das vendas de artesanato Baniwa 1998 1296 7 875,00 1995 7260 10 207,17 2000 7680 56 622,00 2001 2004 24 612,00 2002 Tae 21 033,00 Fonte; lnstifuto Socioambtental *Até juno ™* Mudanga no tamanho das pegas 7 Esta alteragao foi bem aceita pelos artesdos. Contudo, hé que se considerar seu significado no contexto da inser¢ao da produgao artesanal no mercado. Depoimentos colhidos junto ao SEBRAE-AM indicam ser esta uma tendéncia de adapiacao delicada e nem sempre feliz, pois, se permite o maior escoamento dos produtos ertesanais, também abre espaco para sua descaracterizago cultural ou, mesmo, utiitéria 24 Tat) Neste periodo, o pico de vendas, ocorrido em 2000, coincide com o langamento nacional da marca Arte Baniwa, apés as vendas realizadas nos anos anteriores ainda em carter experimental. Este langamento apoiou-se numa grande campanha de promogdo, que contou com a edicao de video, exposigao fotografica, publicagao de livro de bolso e insergao de matérias em cadernos especializados de jomais de circulagao nacional. A queda nas vendas em 2001 — que atingiram apenas 43% do movimento registrado no ano anterior, numa proporgéo muito inferior as expectativas da OIBI -, seria explicada pelo esfriamento das atividades de divulgagio, associado a uma relativa retragaio do mercado. Considerando a experiéncia acumulada com a Tok&Stok, passado o boom de seu langamento, 0 produto “diluiu-se" no interior das lojas, néo se destacando dos demais produtos expostos. Esta empresa reconhece falhas em sua estratégia de promogao dos produtos artesanais, néo somente dos de origem Baniwa, mas de todos os demais com os quais trabalha. Em parte, justifica a empresa, estas falhas séo inerentes ao sistema soif- service adotado, que prescinde da orientagao de vendedores; e reconhece que a promogéio do produto artesanal é discreta, ou seja, esta quase que exclusivamente apolada nas eliquetas que acompanham os obdjetos expostos, podendo ser mais dirigida, com a utilizagao de cartazes, impressos em sacolas e outros meios de comunicagao. Mas talvez o aspecto mais importante em relagao as operagées comerciais da OIBI resida em sua capacidade de estimular 0 aumento da produgao anual de modo a manter um fluxo constante de vendas ¢ atender 4 demanda potencial jé identificada no Plano de Negécios. Segundo este Plano, h4 um mercado consumidor interno com poder aquisitivo e nivel cultural capaz de absorver a produgao artesanal Baniwa. Este mercado € atingido por empresas da area de decoragao e artigos para a casa “... interessadas num produto diferenciado, de qualidade, com valor cultural e ambiental agregado e cuja comercializago possa render, além de lucro financeiro, dividendos para sua imagem institucional’. A este mercado — que, por sua capacidade de realizar compras de grande porte e, portanto, de reduzir 0 custo unitario das operagdes comerciais e de transporte, ocupava a primeira posigao na lista de clientes potenciais da OIBI -, agregava-se 0 nicho de vendas corporativas, constituido por empresas que, numa perspectiva de responsabilidade social, adquiririam 0 produto para consumo interno. op.cit. nota 25, p27. 25 Dentro do primeiro nicho de mercado, a Tok&Stok é, ainda hoje, a principal empresa compradora, sendo responsdvel pela maior parte das vendas por atacado realizadas pela OIBI. Experiéncias pontuais foram também realizadas com o grupo Pao de Aguicar, em 2001, mas processo interno de reorganizagao desta empresa impediu que novas operagies fossem feitas e, atualmente, este contato esté praticamente abandonado. No segmento varejista, pequenas vendas tém sido feitas a lojas especializadas em artesanato, sobretudo em Manaus. Neste segmento, as pegas entregues s&o predominantemente aquelas que se encontram fora do padrao de qualidade defendido pela OIBI ou, alternativamente, se originam de produtores néo-cadastrados. No nicho corporativo do mercado, duas operagdes foram feitas no ano de 2000: a primeira delas, com a Natura SA, para o formecimento de embalagens para cosméticos, no langamento da linha Ekos; e a segunda, para a Susano, numa operagao de pequeno porte associada ao langamento do papel, e que resultou na venda de cerca de 20 dizias de urutus para serem usados como lixeiras de papel. O limitado numero de compradores ¢, sobretudo, a primazia de um sobre todos os demais, claramente, gera um grau de dependéncia que, a médio prazo, pode comprometer as relagdes dos produtores Baniwa com 0 mercado e, até mesmo, a viabilidade do empreendimento em todas as suas dimensées culturais, sociais e econdmicas. A Tok&Stok, por exemplo, ja se manifestou a este respeito, reivindicando a exclusividade na comercializaco por atacado deste produto. Em realidade, esta empresa ndo se sente a vontade para impor clausula de exclusividade na comercializagao da produg3o Baniwa, embora tampouco se sinta confortavel com a possibilidade de concorréncia, que tenderia a banalizar 0 produto e a diluir 0 efeito de associé-lo a sua imagem publica. Nesta circunstancia, a empresa optaria por suspender as operagdes. Na esséncia desta ambigiiidade esté o reconhecimento da expresso artistica e cultural milenar — uma produgao “ingénua genuina”, nao contaminada por modismos -, uma circunstancia muito diferente da que se observa em outros produtos de origem artesanal, em relagdo aos quais a empresa aplica critérios de exclusividade total ou parcial. Mas mesmo considerando a hipétese de que esta exclusividade viesse acompanhada de retornos positives em termos dos objetivos que orientam o projeto Arte Baniwa — isto 6, além de gerar renda para os artesdos e receita para a OIBI, divulgassem o valor cultural e ambiental agregado, diferenciando este produto de varios outros de origem artesanal -, ainda 26 ‘Acervo| EN assim haveria 0 risco de submeter 4 produgdo & 6tica unilateral de apenas um representante do mercado. Visando a reduzir este risco ¢ néo comprometer o nicho conquistado com a Tok8&Stok, o ISA e a OIBI vém analisando outras possibilidades de comercializagao, entre as quais se incluem vendas avulsas e encomendas de pequeno porte via Internet ¢ correio normal e exportagao. Neste Ultimo caso, e contrariando a orientacao de privilegiar o mercado interno, a estratégia visaria a contornar as dificuldades impostas pela reivindicagao informal de exclusividade apresentada pela Tok&Stok, que restringem as possibilidades de privilegiar operagdes com grandes cadeias de varejistas. Tendo em vista 0 potencial do mercado externo, 0 ISA e a OIBI tém sido orientados pelo SEBRAE-AM em relagdo aos aspectos legais @ fiscais da exportagao”®, e, por meio de indicagées da Viso Mundial, foram feitos contatos iniciais com compradores holandeses. 5.5 - Perspectivas para a produgao artesanal Baniwa Ao longo dos quase quatro anos de implementaco do projeto, o ISA esteve a frente de praticamente todos os contatos comerciais de maior porte, nao somente por desfrutar de uma rede de relagées interinstitucionais e (inclusive) pessoais, que favorece a identificagao de oportunidades, mas também pelas deficiéncias de infra-estrutura que ainda limitam a capacidade operacional da OIBI ~ e que se espera que sejam brevemente superadas com 0 término das obras e instalag6es do entreposto em S40 Gabriel da Cachoeira®. Se por um lado, ambas organizagées avaliam a inexisténcia de restricSes a demanda pelo produto ~ 0 que néo significa que 0 mercado n&o precise ser ainda melhor explorado —, por outro, consideram que o “.. constrangimento maior 4 expansao do negécio é a propria oferta (do produtoy’*', estando a capacidade de produgiio ainda muito aquém da meta de colocar anualmente 1000 duzias de cestos no mercado, De fato, os registros da produgao no ano de 2001 mostram uma produtividade individual ainda ® Carina editada pelo SEBRAE-AM lista 14 otapas do processo de exportacao, varias das quais exigem cumprimento de pré-condigdes juridicas e organizacionais. Ver SEBRAE-AM. Artesanato: passo @ passo ara exportacao. Ediggo SEBRAE, Manaus, 2001. 28 pp. Dificuldades de comunicacao inscrevem-se entre estas deficiencies. A OIB! esté anelisando as possibilidades técnicas e financeiras de instalacao de um sistema de energia solar para suprir a intermitencia no fornecimento de energia elétrica em Sao Gabriel da Cachoeira. Com este sistema, sera possivel manter- ‘se permanentemente conectada a internet. Além disso, 0 equipamento da sede com mobilidrio permitira 0 funcionamenio reguiar do escrtério. * Beto Ricardo, em entrevista concedida em 19 de maio, no escritério do ISA em Séo Gabriel da Cachoeira. 27 muito inferior 2 média atual do conjunto dos artesdos, que, como jé se viu, foi de 4,48 dtzias/ano. Observando-se o volume entregue individualmente pelos 103 artesdos que participaram das vendas naquele ano, verifica-se que 24% produziram apenas uma dizia de urutus; 60%, até quatro diizias; 20%, entre 5 e 8 dizias; e 16%, acima deste volume. Reiterando estes dados, ha indicios de que os constrangimentos ao aumento da producao decorrem do circulo vicioso do atual sistema de vendas por encomenda. Explicitada nos objetivos do projeto, a adogao do sistema de vendas por encomenda responde aos principios de expansdo horizontal da produgao (envolvimento crescente do numero de artesdos) e de manutengao da produtividade média compativel com a rotina da vida familiar e social das comunidades Baniwa. Por sua vez, estes principios se fundamentam na expectativa de preservacao da cultura tradicional. Na pratica, o sistema de encomendas impée a descontinuidade do processo de produgao comercial que, como jé se viu, s6 é desencadeado mediante o pedido de compra; mas pode ser compreendido como uma contingéncia da atual capacidade operacional da OIBI, incluindo sua capacidade de comercializacao. Neste sentido, percebe-se sua funcionalidade por evitar 0 comprometimento da organizago com um volume de produgao cujo escoamento mercanti! ainda nao esté plenamente equacionado. Em outras palavras, isso significa que a capacidade produtiva do artesanato Baniwa esté determinada pela capacidade de comercializagao que, sendo ainda limitada, restringe as possibilidades efetivas de imediata expansdo da produgo, 0U seja, 0 circulo vicioso criado pelo sistema de comercializagao por encomendas™. Nos patamares atuais, a meta de comercializagao de 1000 duzies anuais corresponde a quase dez vezes o volume de pegas comercializadas em 2001. E, na perspectiva da aplicagéo do principio de expanséo horizontal, exigiria a incorporagao de 80% dos homens Baniwa adultos. Este condicionamento implica 0 esforgo concentrado no treinamento de arteséos que, mesmo sendo conhecedores das técnicas basicas do trangado, produzem num padréo de qualidade inferior ao que é exigido pela marca Arte Baniwa. Para manter este padrao, a OIBI tem promovido novas oficinas de treinamento todos os anos, guiadas pelo principio de que “O importante de tudo 6 produzir qualidade do que produzir quantidade”.°* Mas a exigéncia de qualidade, longe de ser uma questéo meramente técnica, envolve * Esta percepgéo € compertilhada pelo ISA, que considera que o “crescimento da produgao esta sendo ‘embargado pela auséncia de canals de comercializagac’. Beto Ricardo, nota anterior. * FERNANDO, André. | Relatorio da Oficina de Artesanato. Tucuma-Rupita, 23 a 30 de abril de 1999. 28 Acervo| LEN aspectos subjetivos ~ “fazer com vontade, com trangililidade e gostar do trabalho que faz’** — e extrapola a finalidade comercial, envolvendo 0 reconhecimento da legitimidade da OIBI nas comunidades que ainda demonstravam niveis significativos de resisténcia ao projeto. Para estas, a énfase na qualidade do produto se contrapée ao sistema anterior quando “.. os regatées compravam de qualquer tamanho e qualidade..."*. Conversando com professores de comunidades que nao aderiram de imediato & experiéncia, foi possivel associar esta resisténcia com a percepgdo em relagdo ao papel da OIBI neste empreendimento. Segundo esta percepgdo, caberia a esta Organizacdo “correr atrés do mercado” para escoar a producao do povo, o que significaria, de fato, estimular a produgao € 0 acesso de um numero maior de artesdos aos beneficios da comercializagao via OIB! Fortalecida pelos resultados positivos iniciais da comercializacao, esta percep¢ao nao foi acompanhada, porém, de equivalente compreensdo sobre a complexidade das operagdes comerciais ~ que, além da identificagao de compradores potenciais, exige toda uma série de célculos relacionados com a logistica, de modo a propiciar resultados financeiro positivos ~ gerou insatisfacéo com aquilo que aparentava ser um tratamento desigual entre os artesdos cadastrados e os ndo-cadastrados: enquanto para os primeiros estaria reservado o nicho “nobre" do sistema de comercializagao, isto 6, as vendas asseguradas pelas encomendas recebidas, para os demais, caberiam as oportunidades de venda em menor porte, surgidas no segmento das lojas especializadas em artesanato, vendas avulsas ou, eventualmente, o nicho corporativo. Esta desigualdade, mais evidente na fase inicial do empreendimento, ainda é real, embora outras sejam as razGes para sua existéncia. Na perspectiva da OIBI, nos primeiros anos, ela decorreu da adesdo (ou rejeigdo) das comunidades a proposta de implementagao de alternativas econémicas sustentaveis que rompiam com as relagdes de dependéncia aos regatdes e patrées que ainda persistiam no imaginario de algumas comunidades. Atualmente, justificar-se-ia pela defesa da Arte Baniwa como uma marca que, além do valor cultural ambiental agregado, tem efetivo valor comercial e pelas dificuldades ainda encontradas para manter um fluxo continuo de encomendas. Na experiéncia acumulada, ambos fatores estao Mimeo S Idem. © Encontro realizado em 19 de maio, no entreposto da OIBI, com professores das escolas rurais participantes do curso de formagao continuada. 29 intrinsecamente associados. Pegas fora do padrao respondem por cerca de 4% de “perda” relativa® da produg&o entregue em So Gabriel da Cachoeira. © rompimento do circulo vicioso do sistema de encomendas depende, portanto, da capacidade de a OIBI realizar os objetivos sociais de sua estratégia econdmica, isto é, identificar novas altemativas de venda, de modo a manter um ritmo mais ou menos constante de produgdo, e envolver maior nimero de artesdos sem perda dos atributos que caracterizam a marca Arte Baniwa. Somente assim, este produto estara qualificado para modalidades regulares de venda nos nichos de mercado ja identificados ou que venham a ser incorporados no futuro préximo & sua carteira de clientes. Pelo lado do mercado, aqui representado pela Tok&Stok, hé uma interesse genuino de, inclusive, ampliar 0 volume comercializado anualmente. Para esta empresa, o artesanato Baniwa se diferencia de outros por sua qualidade, efeito plastico, e homogeneidade dos lotes adquiridos, além, @ ébvio, de suas referéncias étnicas. Estas ultimas atraem um consumidor também diferenciado que, a semelhanga do que ocorre com os alimentos organicos, busca na aquisigdo deste tipo de produto a satisfagao de suas necessidades objetivas e subjetivas. A adequada equacéo de prego e atributos intrinsecos favorece resultados positivos nas vendas a varejo. Além disso, o fornecimento via OIBI garante @ regularidade e a quantidade dos estoques, condigao esta importante para a politica da empresa de manter a mesma variedade de artigos em todas as suas lojas. E, por ultimo, mas nao menos importante, contribui para consolidar sua imagem publica como empresa ecologicamente correta e socialmente responsavel. Todos estes fatores traduzem a satisfagéo da empresa, fundamentando sua avaliacao positiva sobre a possibilidade de comercializar um volume anual de aproximadamente 4600 pegas, ou seja, 1600 conjuntos de trés tamanhos de urutus e, inclusive, de experimentar outros produtos: balaios, peneiras ¢ jarros. 6, IMPACTOS DA EXPERIENCIA NA CADEIA DE PRODUGAO, NA CULTURA E NO MEIO AMBIENTE © quadro a seguir apresenta um mapa genérico dos impactos da experiéncia de comercializagao do artesanato Baniwa, distribuindo-os segundo sua natureza (impactos econémicos, culturais, socials e ambientais) e incidéncia (tomando-se como unidade de * Esta perda é relativa porque nao resulta na devolugéio do produto, mas apenas na sua ndo-incluséo no lote encaminhado para os grandes varejistas de S80 Paulo, 30 analise os arteséos e suas familias, as comunidades onde vivem, as organizagdes diretamente envolvidas na experiéncia e a sociedade em geral). Para efeito de visualizagao, 0s impactos identificados estao graduados segundo a intensidade em que ocorrem: de mais forte (tonalidade mais escura) ao mais fraco (tonalidade mais clara), passando por duas posigées intermediarias. Natureza e incidéncia do impacto da comercializagao da Arte Baniwa Tncidéncia Categoria! jeeEEeEE pee See : “Arieséos ‘Sociedade subcategoria de impacto Comunidade | Organizagoes familias ‘em geral T. Econémicos 1a, Renda “4b: Estritira econémi cadeia produtiva “ier Eonar regional 2. Culturais/sociais 2a Resgate/valorizagao de - tradigao cultural : ‘2b identidade cultural e ~~ ‘auto-estima ‘3 Ambientais 3a.Sustentabilidade das espécies vegetais usadas Em alguns casos, especificados nos t6picos explicativos a seguir, estes impactos séo ainda muito incipientes e, por esta raz&o, configuram muito mais possibilidades ou tendéncias do que ocorréncias ja registradas. 6.1 - Impactos econémicos 6.1.1 - Geragao de renda e beneficios financeiros a) Renda para o artesao e economia familiar A alividade artesanal é percebida como um trabalho mais agradavel do que qualquer outro da ‘experiéncia da populagao Baniwa (SHEPPARD et al., 2001), pois permite a sua realizago no 31 Tt) ambiente familiar, sem quebra das condigdes de conforto as quais os artesdos estéo acostumados (alimentagao assegurada, convivio com os parentes, rotina didria mantida, etc.). Além disso, a renda auferida com esta atividade esté determinada pela vontade/necessidade do produtor, regulando @ proporgao de tempo a ser dedicado em sua execugdo. Por si s6, estes dois fatores pesam positivamente a favor do empreendimento, rompendo com a experiéncia de servidao que antecedeu a implementagao do projeto, Na perspectiva da renda familiar, o Arte Baniwa também gera impactos positivos, como se vera a seguir. Com base no prego das vendas realizadas para a Tok&Stok, em junho de 2001, os artesdos diretamente envolvidos nesta atividade obtiveram ganhos de R$ 204,00/ dizia do urutu grande. Considerando-se a meta de produgo anual estimada pela OIBI (1000 duizias) e a produtividade média dos artesdos (4 dizias anuais), 0 empreendimento pode gerar um ingresso médio de RS 816,00 por artesdo/ano, ou o equivalente a RS 68,00/més. Este ingresso corresponde a cerca de 82% da renda média domiciliar da populagao de Sao Gabriel da Cachoeira’”. Professores reunidos em Sao Gabriel da Cachoeira, para o curso de formagao continuada do projeto de educagao, testemunham que, embora de pequena monta, a renda auferida com a venda de produtos artesanais representa uma garantia para o sustento da familia: “O pai sente que pode sustentar a familia, comprar roupas, comprar as coisas que precisa para trabalhar. O pai que nao pode sustentar os filhos fica triste"**. Esta fala explicita bem em que dimensdo da vida familiar a renda gerada é importante: na aquisigéio de produtos manufaturados e industrializados, j4 que a alimentagao basica esta garantida pela roga e pelas atividades de caca e pesca. O acesso a bens de consumo facilita 08 trabalhos ligados & subsisténcia familiar, aliviando o peso da lida na roga, da preparagéo de alimentos e das atividades de caga e pesca, pois possibilita a aquisigao de implementos agricolas simples (enxada, machado e facdo, por exemplo), de utilitarios para a casa (panelas, baldes, bacias, fornos de ferro — substituindo os antigos péali de cerémica), além de lampiées, espingardas e munigdo, linhas e demais apetrechos de pesca. Além disso, a renda obtida com a comercializacao do artesanato desobriga as familias de destinar parte de sua produgao alimentar para 0 escambo. Assim, o esforgo realizado no trabalho na roga passa a ser “7 Ver dados sobre renda domiciliar no item 6.1.3 a seguir. ** Depoimento de Raul, professor da Escola Péanhali, em S80 Gabriel da Cachoeira, no dia 16 de maio de 2002. 32 Tat) Ez determinado apenas pelas necessidades de alimentagao da familia. A quisa de precisar o significado desta renda, procedeu-se a um levantamento dos pregos dos produtos predominantes na pauta de consumo dos Baniwa™. A composi¢ao da “cesta” de consumo pode apresentar grandes variagdes, dependendo do tamanho da familia, idade e sexo de seus componentes, e do conjunto de bens materiais sob sua posse (implementos agricolas, ufilitarios domésticos, etc.), considerado seu estado de conservagéo e “°, mas € Obvio o fator determinante funcionamento. *O importante é levar um pouco de tudo... para 0 estabelecimento de prioridades: a disponibilidade monetaria. Em primeiro plano sao adquiridos roupas, utensilios de cozinha, material de pesca, sabao, pilhas, querosene e sal; em sequéncia, a lista de compra pode incluir relégio, rédio gravador, espingarda ou violéo. Por Lltimo, e condicionada & possibilidade do artesdo “aumentar” sua produtividade (envolvendo artesdos ajudantes sob sua titularidade), & possivel realizar investimentos de maior porte, ‘como a compra de uma rabeta. Lista de pregos de produtos adquiridos no mercado de Sao Gabriel da Cachoeira Fiodyis "]UnidsdeT TRS PROT FHSS | DAERMOT TIPO] PRPO RT Alimentos Afigosdevesuiao Tgicar Saca 30 kg eos ‘Adulto 20,00 ~ 60,60 Sal 3x65 30 KG Tnfani 7000 Aiigos de uso comesHCS = Raulio | 800-25 00 ~~ Unidade Camiseta infant | ~3,00— 13,00 Balde Gee. Unidade 500 ‘Sandals Par 300 aluminio Tampio Unidade 30,00 | MaRar querosene fee Tantema Unidade 350 ‘Ancinho Panela gde- Unidade 20500 Evade aluminio Pies Ox 2a pares | 15,00 Espnngarda Unidade 620,00 Gueresene TDiiros F000 Facto Uridade 7000 a Padeomédio | 1000-7400] |linhade pesca} —Carretel | —250-8.00 * Os pregos estéo cotados no mercado de Séo Gabriel da Cachoeira e foram fornecides por André Femendo e Irineu (OIBI), em entrevista realizada em malo de 2002, e por Antonio, indio Tuyuca, fesponsavel por logistica, em contato telefénico realizado em julho de 2002. * André Fernando, em entrevista concedide em 18 de malo, em Sao Gabriel da Cachoeira, 33

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