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O Pragmatismo no Supremo Tribunal Federal Brasileiro Margarida Lacombe Camargo Introducao Um dos pontos principais da Teoria do Direito, enquanto drea especifica do conhe- cimento, é o de distinguir 0 Direito dos demais fendmenos sociais. Especificamente, das demais ordens normativas. Verificar a autonomia do sistema juridico frente a outros siste- mas que com ele interagem mais de perto, bem como, e este é um tema central, a sua rela~ 0 com 0 campo moral. Procura-se tracar, no ambito da Teoria do Direito, caracteristi- cas gerais da norma, suas fontes e principios que norteiam a funcdo adjudicativa. Por isso se ocupa nao apenas dos elementos préprios da norma, como também dos limites e alcan- ce da sua interpretacio e aplicacio. Autores, como Joseph Raz, defendem uma linha mais. analitica e conceitual da Teoria do Direito, que nesse sentido corresponderia a “um con- junto_de proposicées verdadeiras e sistematicamente relacionadas sobre a natureza do _Direito”, propondo-se a explicar a natureza do Direito. Daf parte para toda uma discussao acerca de como aquilo que as pessoas percebem o direito se transforma em um conceito, com caracteristicas universais.2 Outros, porém, privilegiam a pratica como propulsora do Direito,3 acreditando que categorias e generalizagdes nao tém significado fora de nossas praticas e atividades, isto é, fora da experiéncia.4 E nesse sentido, acreditamos serem os jul- -gados dos tribunais uma fonte privilegiada de anélise, pois neles podemos verificar como \da; a partir do problema que requer solugio legal. Serd esta, aqui, a nossa abordagem.5 TO niio positivismo, que ao contririo do positivismo vé uma relagio necesséria entre 0 Direito e a Moral, pode aqui ser bem retratado com Alexy e Dworkin. Para este tiltimo, “el derecho no es algo distinto de la moral sino uma parte de ésta. Esta es la forma en la que entendemos la teoria politica: como parte de la ‘moral entendida em términos més amplios, pero distinguible y con su proprio fundamento porque es apli- cable a unas estructuras institucionales especificas. Podrfamos pensar en la teoria del derecho como una parte especial de la moralidade politica, caracterizada por un ulterior refinamiento de las estructuras insti- ‘tucionales”. Ronald Dworkin. La justicia com toga. Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 45. Alexy, a seu turno, desde 1978 defende a “tese do caso especial”: “O discurso juridico como um caso especial do discurso pritico geral”. Cf. Robert Alexy. Teoria de la argumentacién juridica. Madrid: 1989, pp. 205 e segs. Para o autor, ¢ sob uma perspectiva democratica, “a argumentagio juridica racional depende nao s6 do caré- ter cientifico da Jurisprudéncia, mas também da legitimidade das decisdes judiciais’. Cf. Idem. Ibidem., p. 19. CE. J. Raz, R. Alexy, e. Bulygin. Uma discusién sobre la teoria del derecho. Madrid: Marcial Pons, 2007. 3 Nesse aspecto podemos apontar alguns autores i ‘Neves e Peter Haberle, além de conhecidos pragmatistas, como Richard Posner. 4 C£ Steven L. Winter. “The next century of legal thought?”. Cardozo Law Review, vol.22:747, p. 749. 5 Vale anotari, como diferencial teérico, abordagens analiticas como a de Frederick Schauer. Na primeira frase do seu livro Playng by the rules, 0 autor anuncia que “Este libro es um ejercicio de aislamiento anali- KR Margarida Lacombe Camargo Compreendemos 0 Direito como uma ciéncia que se ocupa da pratica, e por isso dela nao pode se dissociadar. Assim, a norma juridica, criada para disciplinar situaées concre- tas, s6 ganha sentido e, portanto, s6 pode ser compreendida, quando efetivamente aplica- da pela autoridade competente, isto é, quando concretizada. Nao é por outra razao que Friedrich Miller apresenta uma estrutura concretizan- te da norma juridica, composta do “programa da norma” e do “Ambito da norma”. O programa da norma é aquele que “dirige e limita as possibilidades legitimas e legais da concretizacdo materialmente determinada do direito no ambito do seu quadro”, enquanto o Ambito da norma ¢ 0 recorte da realidade social que pode ser regulamenta- do pelo programa da norma.6 Sendo, entdo, o mbito da norma a sua parte din&mica. E © contexto social, suscetivel a mudangas que é, garante a atualizagao constante da norma, enquanto o texto mantém-se intacto. Essas premissas nos conduzem a uma visao t6pica do Direito, pois é o problema concreto, ¢ os interesses em pauta, que pro- yocam a acdo dos tribunais e a interpretagio da norma. Sabemos que interpretagio e aplicagéo nao séo momentos dissociados, porque a interpretagao _problema. Mesmo o alcance da norma, tomada em abstrato, sé pode ser delimitado pelas hipéteses de aplicacao prdtica que conseguimos formular. Ensinamos aos alunos © que tem nos cédigos, a partir de experiéncias passadas ou de experiéncias que podem ser formuladas hipoteticamente como exemplo. Gontudo, um problema novo, nao antes suscitado, pode provocar um alcance até ento desconhecido do texto da lei, criando regra nova.7 Por isso sabemos que texto e norma nao se confundem, sendo esta © resultado da interpretacao daquele.8 ‘A norma, resultado da interpretagdo, permitiré, por sua vez, a subsungao do caso A hipétese que ele mesmo provocou. Robert Alexy chama a regra originada da interpretacao, ‘ico, lo cual significa que es deliberada u desvergonzadamente ‘irrealista”. Cf. Las Reglas en Juego. Madrid Marcial Pons, 2004, p. 49. A preocupagio do autor é a de que as regras, ainda que provenientes da pratica, reflitam sempre uma hipétese geral e abstrata capaz de organizar essa mesma pritica. Portanto, é na capa- cidade de generalidade e abstragdo das normas que a ciéncia do direito deve se ocupar. 6 Friedrich Miller. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 41042. 7 Um bom exemplo é 0 HC 82424/RS, de-2002, em que se conferiu ao crime de racismo um alcance desco- nhecido pela doutrina patria. Caso o paciente, Zigfried Elwanger ndo tivesse publicado livros de conteiido anti-semita dificilmente imaginariamos, no cenério brasileiro, que 0 disposto no art. 5° da Constituigao alcangatia 0 povo judeu. Contudo, a decisao deste HC deu origem a seguinte regra: “Todo aquele que publi- car livros de contetido anti-semita comete crime de racismo”, Resta saber, porém, se essa regra alcangard apenas livros, ou outros tipos de publicacZo; ainda, outros tipos de manifestacéo artistica e cultural. 8 — Emsentido semelhante a teoria concretizadora de Miiller temos também a proposta de Castanheira Neves, para quem “o critério normativo que uma qualquer fonte jurfdica interpretanda se proponha oferecer, para ‘uma concreta realizacao do direito, s6 pode oferecé-lo ai pela mediagio da interpretagio ~ ‘a norma seré tal ‘como ¢ interpretada’-; e sobretudo que a interpretagio, ao propor-se referir o sentido normativo dessa fonte interpretanda is concretas exigéncias ou ao mérito concreto do problema juridico a resolver, para que poss ser dele um critério adequado de solugio, traduzir-se-4 sempre numa normativamente constitutiva ‘con- cretizagio”. A. Castanheira Neves. O Actual Problema Metodolégico da Interpretagao Juridica I. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 13. © Pragmatismo no Supremo Tribunal Federal Brasileiro de norma adscrita que, uma vez fundamentada com base nos direitos fundamentais, ganha status de regra, a ser aplicada também em situagées essencialmente semelhantes.9-10 ‘udo isso para dizer que é antes na pratica dos tribunais que devemos estudar _conhécer o Direito. Todavia, conforme sustenta Ronald Dworkin, a interpretagio do Di- reito depende da concepgio que dele se tenha. “Uma vez que ¢ importante [...] © modo como os juizes decidem as causas, também é importante saber o que eles pensam que seja o Direito”.11 E é justamente esse pensamento que procuraremos encontrar no fut cae _mento dos votos dos magistrados. No caso, os votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal Brasileiro. Dadas essas consideragées iniciais, nos ocuparemos especificamente de mostrar a concep¢ao pragmatica do Direito em algumas decisées do STF. Nao se trata de um traba- Iho baseado em percentual demonstrativo, mas de estudo de casos que possam ser toma- dos como exemplo real de uma maneira de decidir e de conceber o Direito. Nao importa, no momento, se a concepgao que se tem do Direito antecede ou nao o ato de julgar. Importa perceber que a prética nos transmite uma certa compreensao do Direito, muito provavel de se tornar repetitiva. E, cuidando-se da mais alta Corte do pais, o conhecimen- to dessa pratica é de todo relevante. Antes, porém, cabe tracarmos as caracteristicas basi cas do pragmatismo juridico, e que orientam a andlise proposta. E um trabalho de Teoria do Direito, mas que tem por objeto os julgados do Supremo Tribunal Federal. Por isso, de especial interesse para 0 Direito Constitucional. Ainda que nem todos os casos tenham sido concluidos, foram considerados votos_ relevantes sob 0 ponto de vista de sua consisténcia légica e forte poder de persuasa Correspondem a posicionamentos importantes dos ministros, muitos dos quais, como é 0 caso do Ministro Gilmar Mendes, exercem notéria lideranga no Tribunal. Portanto, posi- 6es possiveis de serem sustentadas e de retornarem a cena. Ainda que eventualmente se trate de um voto vencido, sua tese ndo morreu, a merecer, portanto, nossa consideracio. 1. Caracteristicas do pensamento pragmatista: O Pragmatismo é uma corrente de pensamento que nasce nos Estados Unidos em meados do século XIX, com Charles Sander Peirce e William James, criadores do chama- 9 “Como resultado de toda ponderacio jusfundamental correta, pode formular-se uma norma de direito fun- damental adscrita com cardter de regra sob a qual pode ser subsumido o caso.” Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 98, 10 Na construgéo de uma dogmética dos direitos fundamentais, Alexy desenvolve a idéia de que além das normas de direito fundamental diretamente estatuidas pelo Direito posto, existem também aquelas que disciplinam uma situagao concreta, e so resultado da ponderacdo. E assim, por conterem uma fundamen- tacZo jusfundamental correta, tornam-se também norma de direito fundamental. Assim, no famoso Caso Lebach a regra resultado da interpretagio (ponderacio) apresenta a seguinte estrutura: SI + S2 +3 +S4 7 R, sendo S$ os pressupostos fiticos que devem estar presentes também hos casos futuros. Eis a norma em referéncia: “uma informagdo televisiva repetida ($1) que ndo responde a um interesse atual de informa- ‘cao (S2) sobre um fato delitivo grave ($3) e que pie em perigo a ressocializacao do autor (S4 ) esté jus- fundamentalmente proibida (R)”. 11 Ronald Dworkin. O Império do Direito. Sio Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 5. Margarida Lacombe Camargo do Clube Metafisico.12 Durante o século XX, e na seqiténcia dos debates daquele grupo ori- gindrio, brilhou o nome de John Dewey. Em meados do século XX, o pragmatismo 6 apro- x priado pela Filosofia de base analitica. Para o Direito, propriamente, nao tinha maior sig- nificado. A Filosofia do Direito concentrava-se no debate acerca do realismo e do anti-rea~ lismo. Atualmente, porém, vemos crescer a importancia desse debate no 4mbito da Teoria do Direito. Sinal disso é a critica que Ronald Dworkin faz ao pragmatismo, notadamente a Richard Posner, uma das principais referéncias do pragmatismo juridico contempora- neo.13 No livro Império do Direito, Dworkin defende a idéia do Direito como integridade em oposicao ao pragmatismo e ao que chama de convencionalismo. Posner responde as exiticas diferenciando 0 pragmatismo do positivismo, pelo excesso de formalismo que este_ iltimo gera, bem como & importancia excessiva que dé ao ato de autoridade, principal- mente quando a interpretacao fiel do precedente produz resultados absurdos e nao condi- zentes com a realidade. Pragmatismo surge, e até hoje ganha maior acolhida, nos Estados Unidos. Tem sua ver- dadeira origem em Peirce,!+ mas foi encampado e amplamente divulgado por William James!5 12 © Clube Metafisico foi um grupo informal de debate filoséfico constitufdo por estudiosos ligados, em sua maioria, & Universidade Harvard, nos Estados Unidos. O grupo surgiu em 1871 e foi extinto em 1879: nos rimeiros cinco anos concentrou-se no estudo do pragmatismo e nos tiltimos anos privilegiou o idealismo de autores como Hume, Kant e Hegel. A composicao heterogénea do grupo resultou na investigacao de assuntos diversificados — metafisicos, psicoldgicos, politicos, morais e juridicos. Os integrantes mais ilustres do Clube Metafisico foram Charles Peirce, William James e Oliver Wendell Holmes, Jr. Os dois iltimos ‘mantiveram-se integrados ao grupo mesmo depois de sua guinada para 0 idealismo. Ver: SHOOK, John. The Pragmatism Cybrary.: http://www-pragmatism.org/history/metaphysical_club-htm, acessado em 11 de ‘maio de 2007. 13 Alguns dos principais textos do autor sobre o tema sfo: 1) Overcoming Law. Harvard University Press, 1995. 2) Frontiers of Legal Theory. Harvard University Press, 2001. 3) “Legal Pragmatism”. Methaphilosophy, vol. 35, n. 1/2, Januray 2004. MA: Blackwell Publishing, 4) “What has Pragmatism to Offer Law?". 5) Law, Pragmatism and Democracy. Harvard University Press, 2005. How Judges Think. Harvard University Press, 2008 14. O texto de Peirce mais esclarecedor sobre o Pragmatismo, e que mais influenciou seus seguidores, é “How to make our ideas clear” (1878), pubicado nos Collected Papers. Cambridge, Mas.: Harvard University Press, 1931-1958. Nele Peirce busca estabelecer condigées de fazermos nossas idéias claras, ou alcangar uma apreensio clara do que entendemos por realidade, independentemente de dispormos sobre a verdade. “To know what we think, to be masters of our own meaning, will make a solid foundation for great and weighty thought.” How to make our ideas clear, p. 82. Segundo Peirce, a aco do pensamento é provocada pela irritagao da diwvida, e cessa quando se logra a cren- a. A crenga, por sua ver, transformar-se-é em habito a partir do momento que nos informa como devemos atuar em situacées semelhantes. Nossas concepgdes geram a crenga, que provoca 0 habito, e © significado das coisas resulta dos efeitos sobre os nossos sentidos. Logo, as idéias que temos em nossas mentes corres- pondem aos conhecidos efeitos sensiveis das coisas. Dai sintetiza Peirce, em sua conhecida “maxima prag- ‘matista”, as condigdes para alcangarmos a clareza de nossas apreensbes: “Consider what effects which might conceivably have practical bearings, we conceive the object of our conception to have. Then, our concep- tion of these effects is the whole of our conception of the object.”, p. 88. 15 William James publica em 1907 uma série de conferéncias sob o titulo Pragmatismo. Nelas dé seu testemu- nho no sentido de que o termo pragmatismo, proveniente da palavra grega pragma, ou a¢do, da qual vém as nossas palavras pritico e pritica, 6 trazida pela primeira vez por Peirce, apés salientar que nossas cren- as sio regras de ago. Nesse sentido, para atribuirmos significado ao pensamento necessitamos determinar (© Pragmatismo no Supremo Tribunal Federal Brasileiro na primeira década do século XX. Vinte anos depois aparecem as ligdes de John Dewey, 16 que parte de uma forte critica ao predominio da teoria e do pensamento abstrato dissociado da pri- tica, nos termos da filosofia moderna. Por isso, traz essa questo no subtitulo de um de seus principais trabalhos, The quest for certainty: a study of the relation of knowledge on action, publicado em 1929.17 Nele Dewey apresenta idéias bisicas sobre 0 que podemos entender hoje como pragmatismo, apesar de evitar 0 uso desse nome; prefere falar em “filosofia expe- rimental” 18 Da farta literatura sobre o tema, podemos extrair algumas das principais caracteris- ticas do pragmatismo juridico, que passam a nortear nossa anilise.!9 Antifundacionalismo — A perspectiva antifundacionalista mostra que a verdade nao se_encontra em prinefpios e conceitos dados ou previamente construidos. Os conceitos, advindos da experiéncia pretérita, constitu ‘pratica. Portanto, um pensamento aberto, sempre sujeito a verificacdo. Nao se trata de um pensamento fechado, condicionado a subsungao do fato concreto a uma verdade anterior- mente dada.20 Nesse aspecto o pragmatismo juridico negaré uma vinculacio necesséria com a dogmitica, abrindo-se para o consequencialismo.2! bas ‘que conduta ele esta apto a produzir: aquilo que é para nds o seu nico significado. E, assim, “para atingir ‘uma clareza perfeita em nossos pensamentos em rela¢do a um objeto, precisamos apenas considerar quais, 05 efeitos concebiveis de natureza pritica, que 0 objeto pode envolver — que sensagdes devemos esperar dai, € que reagdes devemos prepara’. Esse € o princfpio de Peirce, diz James, o principio do pragmatismo, que permaneceu inteiramente despercebido por vinte anos até que ele, William James, na reuniao filoséfica do professor Howin, na Universidade da California, trouxe-o & baila novamente. A época, 1898, segundo James, parecia propicia 4 acolhida do pragmatismo. A palavra pragmatismo espalhou-se a ponto de confi- gurar em varias publicagées filoséficas. “Em todas as bandas damo-nos conta do movimento pragmético, falando as vezes com respeito, com contumélia, raramente com perfeito conhecimento de causa. i eviden- te que o termo se aplica convenientemente a um mimero de tendéncias que até aqui tm carecido de um nome geral, e que veio para ficar”. Cf. William James, Pragmatismo e outros ensaios, Rio de Janeiro: Lidador, 1967, pp. 44 ¢ 45. 16 Um dos textos onde mais diretamente Dewey se ocupa do Direito & “Logical, Method and Law”. The Philosophical Review, vol. 33, n. 6, nov. 1924, pp. 560-572. 17 Esta obra foi traduzida para 0 espanhol sob o titulo La busca de Ia certeza. México, Buenos Aires: Fondo de Cultura Econémica, 1952. 18 Sobre os fundamentos do pragmatismo juridico, no filoséfico, sugerimos a leitura do texto “Fundamentos Tedricos do Pragmatismo Juridico”, escrito por Margarida Lacombe Camargo e publicado na Revista de Direito do Estado, vol. 6, abril/junho 2007, Rio de Janeiro: Renovar. 19 Para distinguir as caracteristicas do pragmatismo juridico, aos textos jé apontados nas notas anteriores acres- centamos: 1) Brian Buttler (The University of North Carolina at Asheville), “Essays in Philosophy”, A Biannual Journal, vol. 3, n.2. 2) Thamy Pogrebinschi, Pragmatismo — teoria social e politica, Rio de Janeiro: Relume Dumaré, 2005. 20 Conforme Richar Posner, “The pragmatist is antidogmatic. He wants to keep debate going and inquiry open. Recognizing that progress comes not merely through the patient accretion of knowledge within a given frame of reference — the replacement of one perspective or world view by another — that open new paths to knowledge and insight, the pragmatist values freedon of inquiry, a diversity of inquirers, and expe~ rimentation.” Overcoming Law, p. 6. 21 Conforme ja sugerido anteriormente, 0 consequencialismo para o pragmatismo néo se confunde com a interpretagao axiolégica ou teleolégica, tal como tratado pela doutrina tradicional. O pragmatista no esté comprometido com a garantia de valores e objetivos tragados pelo legislador. Cf. Margarida Camargo, Fundamentos Tedricos do Pragmatismo Juridico. RDE, n. 6, especialmente p. 205. 367 Aas ‘Margarida Lacombe Camargo antifundacionalismo, de alguma maneira se confunde com o anti-essencialismo, porque o mundo dos valores, dos universais e das esséncias nao diz muito ao pragmatista, que se ocupa dos desafios que a prética apresenta.22 Contextualismo ~ Considerando que o conhecimento parte de hipéteses a serem confirmadas na pratica, a forca do contexto sobressai. Assim, a pressio das circunstdncias passa a melhor dim: wr do problema. E visto o Direito como pratica social, o pragma- tismo juridico assume uma dimensao tépica, pois as questdes de ordem pratica é que nor- feardo a interpretagao e aplicagéo da norma. E a partir do problema entao que a busca da solugao se di. O Direito € dindmico, voltado para questdes praticas. Portanto, Direito construido antes nos Tribunais, do exclusivamente no Poder Legislativo. Instrumentalismo — Ja que o pensamento se volta para conseqiiéncias de ordem pratica; © Direito, neste aspecto, assume uma postura construtiva, vez. que interfere efetivamente na Tealidade. Trata-se de um poderoso instrumento de orientacao da conduta social, conforma- ‘da pelos possiveis resultados que provoca na sociedade, cujo alcance extrapola as partes em conflito. Q aspecto instrumental, nesse aspecto, aponta para o viés politico da Direito,23 O instrumentalismo, nesse aspecto, possui alcance sistémico.24 ica do pragmatismo mostra que o conhecimen- o da vida, Volta-se para o futuro, na medida em que se pauta “as Conseqiiéncias da acdo, A decisio sobre a-melhor-conduta, nesse aspecto, é aquela que ‘se pauta na consideracdo dos efeitos de um e de outro comportamento: “Se eu agir assim, ‘Scorer isso; se agir de outra maneira, os resultados serao outros”. Portanto, as conse- qiiéncias possiveis de serem antevistas norteiam a tomada de decisio, e assim nao se tem compromisso com principios e valores. Logo, o pragmatista procura estar bem informado sobre a operacionalidade dos fatos, suas propriedades e provaveis efeitos causados por alternativos cursos de acio.25 Interdisciplinariedade — A abertura para as varias 4reas do conhecimento que mel- hor possam informar sobre os efeitos da ago também é um desdobramento do pragmatis- mo. O conhecimento especializado, de natureza cientifica, tem 0 condao de tornar previ- sfveis os efeitos da aco, possibilitando o seu melhor dimensionamento.26 Duas observagées sobre o pragmatismo cabem ainda ser feitas. A primeira é a sua distingao relativa ao utilitarismo. Enquanto esta corrente de pensamento defende o 22 Cf. Margarida Camargo. Fundamentos Teéricos do Pragmatismo Juridico. RDE, n. 6. 23 “Lawis understood by the pragmatist as a social tool oriented to social ends.” So, “the ultimate criterion of pragmatic adjudication is simply reasonableness with reference to social policy”. Cf. Richard Posner, “Legal Pragmatism”, cit., p. 151. 24 “Legal pragmatism requires the judge to consider systemic consequences and not merely case-specific con- sequences. By ‘systemic consequences’ I mean such things as the effect on commercial activity of judges’ disregarding the actual wording of a contract or failing to adhere to legal precedents on which the com- mercial community has come to rely.”. 25. CF. Richard Posner. Overcoming Law, p. 5. 26 “Being antimetaphysical and antidogmatic, the pragmatist views scientific theories as tools for helping human beings to explain and predict and, through explanation, prediction, and technology, to understand and control our physical and social environment.” Richard Posner, Overcoming Law. Harvard University Press, 1995, p. 7. © Pragmatismo no Supremo Tribunal Federal Brasileiro alcance de bens e valores previamente acertados, justamente distribuidos e aptos a serem consumidos, a “utilidade” para o pragmatismo apa: um valor volétil. Aquilo que vier a se mostrar util, na pratica concreta, servird como, experiéncia acumu- ada as hipéteses capazes de nortear novas experiéncias. A verdade, vista dessa maneira, € dinamica e sempre.sujeita A confirmacao, dada sua utilidade pratica. O uso possibilita a compreensio da ago, e assim orienta novas condutas. Portanto, nao se trata da verifi- car 0 acerto do que passou, mas de verificar se algo mostrou-se titil, a ponto de servir de ‘Grientagio para a agdo Futura. ~—~A segunda observacao refere-se a grande critica que recai sobre 0 pragmatismo juri- dico: falta de seguranga social pelo desapego do juiz 4 norma posta pela autoridade legiti- ma e competente, que é 0 legislador. Essa critica ¢ respondida por Richard Posner do seguinte modo: o juiz. pra 5 conseqiién ista, pelo préprio fato de ter em mira as conseqiiéncias da sua ado, na pritica nfo quer desapontar a populagio,.que espera garantia e previsibilida- de de suas acées, conforme a lei, Isso leva a que o juiz. considere : seriamente as leis e os pre- 3 cedentes judiciais. Sabe que existe grande expectativa da sociedade sobre as suas agdes. Caso 0 juiz nao a ofereca, fere a sociedade cuja credibilidade é garantida pelo respeito a0 Direito posto. Afinal, o Direito existe, antes de tudo, para oferecer seguranga & sociedade. Contudo, segundo Posner, é antes por razées de ordem pragmitica do que propriamente valorativa, que o juiz pragmatista segue o Direito posto.27-28 Para Posner, “in brief, all thought is social, its purpose action in the present or futu- re. We are not the slaves of our history, traditions, and precursors; they are our instru~ ments’.29 E mais: 0 pragmatismo é pritico Interessa-se antes pelo que funciona e é titi “It is there- fore, foward looking, valuing continuity with the past only so far as such continuity can help us cope with problems of the present and of the future.”30 2. Estudo de casos Com 0 intuito de demonstrar a feicgdo pragmatista do Supremo Tribunal Federal Brasileiro, foram selecionados, para efeitos de andlise, quatro casos que podem ser toma- dos como exemplo: 1- as ADI 2240-7/BA e 3489-8/SC; 2- a SS 3154-6/; 3- a Recl 4335- 5/AC; 4- os MI 67 e 712. 27 De acordo com Posner, “There might be pragmatic reasons why it would be good for judges to consider themselves morally bound to follow precedent rather than free to make a pragmatic judgment in each case whether to follow precedent”. “Applied to law, pragmatism woul treat decidion accordin to precedent as a policy rather than as a duty.” Overcoming Law. Harvard University Press, 1995, pp. 125. 28 Em Law, Pragmatism and Democracy, Posner distingue 0 pragmatismo filos6fico, “Orthodox pragmatim do pragmatismo juridico, que chama de “Recusant pragmatism”, pp. 35 e seg., bem como responde a criti- cas que geralmente recaem sobre o prgamtismo juridico, como é 0 caso do particularismo, Cf. Capitulo I, intitulado “Legal Pragmatism”, bem como texto de mesmo nome, indicado na nota. 29. Richard Posner. Overcoming Law. Harvard University Press, 1995, p. 15. 30 Idem. Ibidem., p. 4. at 369 Margarida Lacombe Camargo 2.1. A forca normativa dos fatos e o caso dos municfpios (ADI 2240-7/Bahia, data 09/05/2007, Relator Min. Eros Grau, andlise do voto do Min.Eros Grau; e ADI 3489-8/SC, 09/05/2007, Relator Min. Eros Grau, andlise do voto do Min. Gilmar Mendes) 2.1.1. ADI 2240-7: andlise do voto do Ministro Eros Grau © PT pede declaracgdo de nulidade da lei que criou 0 municipio de Luis Eduardo Magalhaes na Bahia, em 2002, decorrente do desmembramento de dois distritos. O muni- cipio foi criado em ano de eleicées municipais (contexto), quando ainda se encontrava pendente a promulgacao da lei complementar federal prevista no § 4°, do art. 18, da Constituicdo, com redacao dada pela Emenda Constitucional 15/96, a definir o perfodo em que 0s municfpios podem ser criados. Esse dispositivo constitucional, assim emendado, revoga lei complementar do estado da Bahia, que dispde sobre 0 assunto. Além disso, argiti-se que a lei baiana fere o regime democratico previsto na Constituicio, vez que res- tringe 0 Ambito do plebiscito, a populacao envolvida, bem como divulga os estudos sobre a viabilidade do novo municipio em momento posterior & realizagao do plebiscito. © governador do estado, por sua vez, defende a constitucionalidade do preceito ata cado sob 0 argumento de que o plebiscito foi realizado pela Justica Federal, e que “é pos- sivel, ante a inexisténcia de lei complementar federal que determine o periodo dentro do qual poderd ocorrer a criagio de municipio, que este perfodo seja indicadono ordenamen- to juridico estadual”.3! A Assembléia Legislativa entende, como base suficiente, que a Constituigao Federal prevé o desmembramento de municipios. Seria este “um poder abso- luto” e, por conseguinte, a legislagao baiana havia primado pela razoabilidade ao fixar 0 intervalo de criagao de municipio entre um ano, no maximo, e seis meses no minimo, das eleicdes municipais. O Min. Eros Grau inicia 0 seu voto destacando os seguintes fatos, que toma como ponto de partida para o seu raciocinio: (1) até aquela data nao havia sido produzida a lei complementar federal prevista no art. 18, § 4°, da Constituicao; (2) 0 municfpio foi efeti- vamente criado ha mais de 6 anos, assumindo existéncia de fato como ente federativo dotado de autonomia; (3) no seu territério foram exercidos atos préprios ao ente federati- ‘vo: em julho de 2001 foi promulgada sua lei orgénica, e até maio de 2006 haviam sido san- cionadas mais de duzentas leis municipais; foi eleito seu prefeito e vice-prefeito, bem como vereadores em eleigées realizadas pela Justica Eleitoral; foram instituidos e arreca- dados tributos de sua competéncia; servigos foram prestados e exercido 0 poder de policia; foram ainda, nesse municipio, realizados casamentos, registrados nascimentos e.ébitos. O munic{pio, ao fornecer dados ao IBGE, mostra mais uma vez sua existéncia de fato. E, “em boa-fé, os cidadaos domiciliados no municipio supdem seja juridicamente regular a sua autonomia politica”. Essa conclusio ganha reforgo légico com 0 argumento de que 0 pré- prio STF também teria colaborado para 0 desenvolvimento da boa-fé da populacao. Do contrério, o Tribunal poderia ter se manifestado logo no momento da propositura da aco. 31 Particularmente tenho duivida se a omissio do legislador federal confere poderes suplementares ao ente fede rativo. Mas penso que no, vez que se trata de dispositfvo especifico que confere poderes expressos & Unio, 370 © Pragmatismo no Supremo Tribunal Federal Brasileiro Nao 0 tendo feito, diz o Min. Eros Grau, “permitiu a consolidacdo da situagao de excegio que a existéncia concreta do municipio caracterizaria”. © contexto apresenta, assim, 0 estado de excecao. Conforme anota 0 Ministro na continuagao do seu voto, a interpretacio literal e a aplicagdo automética desse dispositivo, mediante simples exercicio de subsungio, condu- ziria & automitica declaragio de inconstitucionalidade da Lei que criou o municipio Luis Eduardo Magalhaes. No entanto, decidir no sentido da inconstitucionalidade do munici- pio geraria “conseqiiéncias perniciosas”. “Por isso esta Corte nao pode limitar-se a pratica de um mero exercicio de subsunca0”. Confirma-se, ainda, a existéncia de fato de um ente federativo dotado de autonomia. “O nomos do seu territério foi nele instalado. O Municfpio legislou, de modo que uma par- cela do ordenamento juridico brasileiro é hoje composta pela legislagao local emanada desse ente federativo cuja existéncia nao pode ser negada”. De outro lado, Eros Grau estabelece uma linha de coeréncia com o que deixara con- signado anteriormente na ADI 3685, relativamente ao “principio da seguranca juridica”, dos fatos”3? ¢ da “seguranga” (face A estabilidade das relagées juridicas constitufdas) como categorias que servem de embasamento & decisio, aparece uma “linha de coeréncia” com Gilmar Mendes, no MS 24.268, e com os agravos regimentais no RE 348.364, de que fora relator. Cita também Miguel Reale, quando sustenta que “o tempo transcorrido pode gerar situagées de fato equiparveis a situagdes juridicas, ndo obstante a nulidade que origina- riamente as comprometia”.33 Em reforco a sua linha argumentativa, ainda que discrepante da posico consolidada pelo Tribunal até entio,34 outras categorias e principios retirados da doutrina, de outros julgados e de trabalhos teéricos sio também ressaltadas pelo Min. Eros Grau. Com Gilmar ‘Mendes reconhece a “protecao confianca” como pedra angular do Estado de Direito; e seguindo Karl Larenz, sustenta que a consecugdo da paz juridica, o princ{pio da confianca eo da seguranga, daf decorrente, so elementos nucleares do Estado de Direito material, de contetido ético que se expressa no principio da boa-fé.35 “No caso do Municfpio de Luis Eduardo Magalhies, que existe, de fato, como ente federativo dotado de autonomia municipal, a partir de uma decisao politica, estamos diante de uma situagao excepcional nao prevista pelo direito positivo, porém insta- ada pela forga normativa dos fatos.” 32 Essa categoria Eros Grau retira de Jellinek, em Teoria General del Estado. 24 ed., México: Fondo de Cultura Econémica, 2002, pp. 319 e segs. A idéia é a de que a origem ea existéncia da ordem juridica encontra ori- gem na existéncia do Estado, cujas relagbes reais precedem &s normas em funcio delas produzidas. 33. Miguel Reale, em Revogagio e Anulamento do Ato Administrativo, capitulo que tem por titulo Nulidade e ‘Temporalidade. Apud Almiro do Couto e Silva, em Os princfpios da legalidade da administracio publica e da seguranca juridica no estado de direito contempordneo. Revista da Procuradoria Geral do Estado, Publicagées do Instituto de Informatica Juridica do Estado do Rio Grande do Sul, v. 18, n. 46, 1988, pp. 11-29. 34 Perelman anota que de acordo com a légica argumentativa o esforgo de quem rompe a inércia € muito 35. Karl Larenz, Derecho Justo. Madrid: Civitas, 1985, pp. 91, 95 ¢ 96. 371 ‘Margarida Lacombe Camargo O Ministro parte da premissa de que a normalidade do sistema é condigao para a sua validade. A anormalidade, ao contrério, nos conduz.a excepcionalidade. No caso, entende que a omissio do Poder Legislativo consiste em moléstia ou desvio do sistema. A omissio do Legislativo, segundo anota, instala uma fissura na ordem constitucional, e como “as normas sé valem para as situagdes normais”, “a criagio do Municfpio de Luis Eduardo Magalhaes importa, tal como se deu, uma situacdo excepcional no prevista pelo direito positive”. A anormalidade, da forma como é compreendida, justifica a excepcionalidade do reconhecimento de validade do Municipio. Some-se a isso, uma outra premissa mais forte: a realidade, confirmada pela produ- so de efeitos. “No caso, existe uma realidade material, um Municipio, em ente federativo dotado de autonomia politica. Nao é possivel retornarmos ao pasado, para anular esta rea- lidade, que produziu efeitos e permanece a produzi-los. [...] A supressio dessa autonomia, afirmada por efeitos concretos produzidos, consubstancia franca agressio a estrutura fede- rativa, ao principio federativo. A decisio politica da criagéo do Municfpio violou a regra constitucional, mas foi afirmada, produzindo todos os efeitos dela decorrentes.” Mas como 0 Legislativo se omitiu, ao deixar de produzir a lei complementar necessaria, e o ente fede- rativo surgi, assumindo existéncia concreta, a declaragio de inconstitucionalidade agra~ vou a moléstia do sistema. No caso, a lei (constitucional) encontra uma realidade nao ima- ginada pelo legislador (consituinte derivado), e dai o surgimento da excepcionalidade. E ao fazer incidir a lei em situag4o ou contexto distinto do imaginado, o impacto ¢ pior. Daf a visio pragmatista, ditada pela forga do contexto e pelos efeitos da decisio, a prevalecer sobre uma visdo normativa. “Se da aplicacao de uma norma resulta um desvio de finalida- de a que ela se destina, ela finda por no cumprir o seu papel, ela deforma.” Constituicao e realidade néo podem ser isoladas uma da outra.36 Um normativis- ta radical, diz Eros Grau, diré que 0 Municfpio de Luis Eduardo Magalhies jamais foi criado em termos formais: tratar-se-ia de uma afirmagao correta no mundo do “dever ser”. Mas, conforme diz 0 Ministro, vivemos no mundo do “ser”. das abstraces” poderiamos dizer que 0 Municipio nao existe, “e o debate com quem habita o esse mundo, o mundo do dever ser, nada promete de util”. Dessa forma, 0 Ministro Eros Grau radicaliza sua propensio pragmitica: 0 direito, circunscrito ao 4mbito normativo, mundo do dever ser, no se mostra util e, por isso, perde validade. direito incorpora a realidade e, por isso, a existéncia real do Municipio encontra-se no interior do ordenamento. jomente no mundo © estado de excegio é uma zona de indiferenga capturada pela norma. De sorte que nao é a excecdo que se subtrai a norma, mas ela que, suspendendo-se, dé lugar A exce- do — apenas desse modo ela se constitui como regra, mantendo-se em relagdo com a excecao.37 36 Konrado Hesse, lembrado por Eros Grau. 37. Nesse ponto cita Giorgio Agambem: Homo Sacer ~ 0 poder soberano e a via nua. Belo Horizonte: UFMG, 2004, pp. 26 € 27. 372 \ % © Pragmatismo no Supremo Tribunal Federal Brasileiro E outra: se a declaragao de inconstitucionalidade declara mulo 0 ato, é como se ele nao existisse. Mas, nas palavras do Ministro, “no podemos fingir que 0 Munic{pio nao existe.” Ness¢ sentido, da declaracio de id iu Jecorre a decl constitucionalidade institucional do Municipio de Luis Eduardo Magalhaes. Poder-se-ia concluir aqui que Eros Grau fere, de morte,-o principio da nulidade dos atos. declarados inconstitucionais. Pelo menos os atos que se firmam em decorréncia dos efei- ‘Ws que produzem. “Trata- fato formalistas da seguinte “Este caso nao pode ser examinado no plano do abstra- cionismo normativista, como se devéssemos prestar contas a Kelsen e nao a um ordem concreta”. “A esta Corte, sempre que necessario, incumbe decidir regulando também essas situagées de excegio. Mas esta Corte, ao fazé-lo, nao se afasta do ordenamento, eis que aplica a norma & excegio desaplicando-a, isto é, retirando-a da excecio.”38 Podemos dizer que o ativismo judicial do STF,.39 na sua funcio normativa, aqui da as caras, Conforme o Ministro Eros Grau, na tarefa de concretizar a Constituigao a Corte pro- move a sua forca normativa e a sua fungdo estabilizadora, reportando-se & integridade da ordem concreta da qual ela a representacao mais elevada no plano do direito posto. Indica aqui a idéia de um direito pressuposto. E mantendo uma postura pragmatica, contingencia ainda mais a norma, Sustenta que a aplicagaio da Constituicao “exige a consideragao no apenas dos textos normativos, mas também de elementos do mundo do ser, os fatos do caso e a realidade no seio e Ambito da qual a decisdio em cada situacao ha de ser tomada”. No caso, pergunta o que menos sacri- fica a forca normativa futura da Constituigo e a sua fungao de estabilizacao: a agressio a regra do § 4° do art. 18 da Constituigao do Brasil ou a violaco ao principio federativo? E novamente ataca 0 formalismo: “... 0 direito ndo [deve ser compreendido] somente como um esquema de coeréncias formais, mas como um plano da realidade social”. Por fim defende que a situacio de excecdo em pauta ha de ser resolvida mediante a inclusio do Municfpio de Luiz Eduardo Magalhaes no estado de normalidade. E mais uma ‘ez impulsionado pelos efeitos que a decisdo pode gerar, conclui que “por certo a afirma- Go da improcedéncia da ADI nao servird de estimulo a criagio de novos municipios, indiscriminadamente. Antes, pelo contrario, hd de expressar como que um apelo ao Poder Legislativo, no sentido de que supra a omissio constitucional que vem sendo reiterada- mente consumada”. E assim decide: “As circunstncias da realidade concreta do Munic{pio de Luis Eduardo Magalhdes impoem seja julgada impr 1, Por fim anotamos que, pela “forca dos fatos”, & qual o Ministro Eros Grau atribui forca normativa, afasta-se a aplicagao da norma constitucionalmente posta. Donde se con- clui que o contexto prevalece sobre o texto (legal). 38 Agambem, apud Eros Grau, Ob. cit., p25. 39 Ativismo judicial na medida em que o resultado do trabalho da Corte interfere na seara de um outro poder. ‘No caso, o Legislativo. Nio apenas atua em um caso de lacuna, como assenta sua competéncia normativa em momentos ditos de excegio. 373 ‘Margarida Lacombe Camargo Também as conseqiiéncias, pela possibilidade de provocagio do caos, fazem com que 0 aplicador da Tei se afaste do direito posto. A linha de raciocinio do Ministro é a de que a forca dos fatos, ou contexto, caracteriza um estado de exce¢ao, ou anormali- dade, a justificar a nao observancia da norma posta, criada apenas para situagdes de normalidade. 2.1.2. ADI 3489-8/SC, voto do Ministro Gilmar Mendes Em voto-vista, nesta ADI, 0 Ministro Gilmar Mendes retoma 0 sentido do voto do Relator, também o Ministro Eros Grau, quando este jé havia alertado a Corte para “as conseqiiéncias drasticas de uma eventual declaragéo de inconstitucionalidade da lei impugnada”, nos mesmos moldes da ADI estudada anteriormente. O objeto desta ADI novamente é a inconstitucionalidade de municipio criado sem base constitucional ade- quada, qual seja, a lei complementar federal exigida pelo art. 18, § 4°. Hé um fato con- sumado: 0 desmembramento do municipio. Realidade esta que nao pode ser ignorada, principalmente porque cidadaos de boa fé confiaram na autonomia do novo ente fede- rativo. E mais, a criagdo do novo municipio proveio de manifestacao politica e um novo anomos foi nele instalado. A partir dessas consideracées, 0 Ministro Gilmar Mendes ressalta 0 principio da seguranca jurfdica: “... hé toda uma situago consolidada que nao pode ser ignorada pelo Tribunal”. “Creio que o Tribunal ja se encontra plenamente inteirado das graves repercussées de ordem politica, econémica e social de uma eventual deciséo de incons- titucionalidade”. E uma vez superada esta etapa, passa a se concentrar nos contornos da decisio, de forma que esta se torne, na maior medida poss{vel, menos gravosa & reali- dade concreta. Ao se medir o acerto da decisao nos seus efeitos, o sangue faz. pulsar forte as veias pragmatistas do Ministro Gilmar Mendes. Afinal, o que esté em pauta, antes de tudo, é um problema concreto, e no seu entender “a solugio para o problema no pode advir da simples decisaio de improcedéncia da acao.” Ha que se medir seus efeitos. E assim retoma dois temas de sua predilegdo: a modulagao dos efeitos da declaracao de incons- titucionalidade e a ponderagdo de valores. Nessa perspectiva, o principio da seguranga_ juridica, condizente as relacées contrafda de boa-fé, colide com o principio da nulida- de da lei inconstitucional. Ao contrario da jurisprudéncia do STF, que reiteradamente tem declarado inconsti- tucionais as leis estaduais, posteriores 4 EC n° 15/96, instituidoras de novos municipios, por auséncia de lei complementar prevista pelo art. 18, § 4°, da Constituigao, 0 Ministro Gilmar Mendes, apoiado em_experiéncia estrangeira, busca técnicas alternativas de deci so no controle de constitucionalidade, decorre 40 40 No caso, cita Garcfa de Enterria: “... mais do que o juiz de outros ambitos da justica, pode e deve o juiz.cons- titucional nao perder de vista as conseqiiéncias”, (Justicia Constitucional: la doctrina prospectiva em la declaracién de ineficécia de las leyes inconstitucionais. In: Revista de Direito Piblico, n. 92, out./dez. de 1989, pp. 12-13. 374 Bie: © Pragmatismo no Supremo Tribunal Federal Brasileiro “Em outras palavras, a admissio formal do princfpio da nulidade ndo impediu a adogao de técnica alternativa de deciséo naqueles casos em que a nulidade poderia revelar-se inade- quada ou trazer conseqiiéncias intolerdveis.” Em conclusio, temos que a superacio do principio da nulidade dos atos declarados inconstitucionais dé-se por raz6es de ordem pragmatica. Esta agora é a regra, para nds. E ‘a modulagio dos efeitos fica a critério do julgador, em cada caso, conforme anilise das con- seqiiéncias provocadas pela decisio declaratéria de inconstitucionalidade, Resta, assi superada, segundo as palavras de Gilmar Mendes, a f je/nulidade”, anteriormente dominante e, por conseguinte, a “relativizacio do vetusto dogma kelseniano do ‘legislador negativo”. “O principio da nulidade somente hé de ser afastado se se puder demonstrar, com base numa ponderacio concreta, que a declaragio de inconstitucionalidade ortodoxa envolveria o sacrificio da segurana juridica ou de outro valor constitucional materializé- vel sob a forma de interesse social”. Conforme destaca, a ndo aplicacao do principio da nulidade baseia-se em principio juridico, de algada constitucional, e nao em consideragées de politica judicidria. E pela légica da proporcionalidade chega-se a justeza da declaracao th de inconstitucionalidade: ponderam-se os “interesses afetados pela lei inconstitucional.e aqueles que seriam eventualmente sacrificados em conseqtiéncia da declaracio de incons- titucionalidade”.4! Por tudo, “o Tribunal deve adotar uma formula que, reconhecendo a inconstitucionalidade da lei impugnada ~ diante da vasta e consolidada jurisprudéncia sobre o tema -, resguarde na maior medida possivel os efeitos por ela produzidos.”. E assim vemos, mais uma vez, uma postura mais focada nas conseqiiéncias e efeitos da decisio, do que propriamente no que traz 0 direito p endo que esta é uma manifestagao for- temente construida para servir de precedente da Corte.4? 2.2. O “pensamento do possivel” (SS 3154-6, de 2007, Relator Min. Ellen Gracie. Andlise do voto do Min. Gilmar Mendes) Na Suspensio de Seguranga n. 3154-6, do Rio Grande do Sul, o Supremo Tribunal Federal assume posigao importante acerca das condicées de incidéncia de norma posta. Trata-se de uma regra da Constituicao do Estado do Rio Grande do Sul, prescrita no seu 41 Vide o epflogo & Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy, quando o autor esclarece que no juizo da ponderagio o intérprete considera os efeitos hipotéticos que uma ou outra decisio provocaria. Um niti- do viés pragmatista. 42. As duas ADIs foram julgadas praticamente em conjunto, reiterados os argumentos dos principais votos em ‘uma e outra. Protagonizam o julgamento os Ministros Eros Grau, relator em ambos os casos, e Gilmar Mendes, autor de voto-vista também em ambos os casos. A decisio, em um e outro, foi a mesma: € declara- daa inconstitucionalidade, mas nao a nulidade, por 24 meses. As palavras do Ministro Gilmar Mendes, condutoras da decisio, so as seguintes: “Voto no sentido de, apli- cando o art. 27 da Lei 9.868/99, declarar a inconstitucionalidade sem a promtincia de nulidade da lei impug- nada, mantendo sua vigéncia pelo prazo de 24 (vinte e quatro) meses, lapso temporal razodvel dentro do qual poderé o legislador estadual reapreciar 0 tema, tendo como base os pardimetros que deverso ser fixados na lei complementar federal, conforme decisio desta Corte na ADI 3682.” 375 ah Margarida Lacombe Camargo artigo 35, que estabelece que “o pagamento da remuneragdo mensal dos servidores pibli- cos do Estado e das autarquias seré realizado até o ultimo dia titil do més do trabalho pres- tado”, sendo que a constitucionalidade deste dispositive jé foi declarada pelo STF. Procura-se impugnar a decisio da Governadora daquele Estado, que determinou que 0 pagamento fosse realizado, ainda que excepcionalmente, no primeiro dia titil de abril daquele ano. A linha de argumentacio de defesa foi toda ela pautada na crise financeira do ente federativo, a justificar o afastamento da regra, independentemente da manuten- do de sua validade.43 Para enfrentar a questo, 0 Ministro Gilmar Mendes traga consideracdes acerca do_ “pensamento do posstvel”, tomando por base -os trabalhos de Gustavo Zagrebelsky e Peter _ Haberle. Anota que “é préprio da jurisprudéncia realizar positivamente a ‘concordancia rdtica’ das diversidades”, isto é: um “modo de pensar do possivel”. Algo particularmen- ireito do nosso tempo, que contempla sociedades plurais-eheterogéneas. I ntido, possivel é aquilo que se vincula as alternativas apresentadas em determi- nado contexto politico e social. “Possivel”, segundo Haberle, “é apenas aquilo que pode ser real no futuro”, Para o pragmatista, possivel ¢ 0 pode se mostrar xitil em momento futuro. O uso hipotét s alternativas dimensionam.os efeitos da acdo.e, por conseguinte, antevé o ‘seu acerto. Por outro lado, 0 contexto, no caso do Rio Grande do Sul, apresenta um quadro de anormalidade que vem justificar 0 afastamento da regra, criada, conforme se entende, para situagdes de normalidade: as previstas pelo legislador. O contexto fitico extraordindrio fez, entdo, com que 0 Ministro conchuisse que a medida da governadora nao desbordou os pardmetros da razoabilidade e da proporcionalidade. A medida é tépica e, portanto, ndo invalida a norma, que continua intacta para produzir efeitos. Por fim, a suspensio da segu- ranca, conforme pretendida pelos autores da ago, provocaria o chamado “efeito multipli- cador”, diante da existéncia de intimeros servidores em situagao potencialmente idéntica aquela dos associados do impetrante. Outro tipo de conseqiiéncia. Por tudo conclui-se que a derrotabilidade da regra teve como justificativa uma situagdo de crise; de caréter excepcional. O direito, na_visio_do.Supremo Tribunal federal, circunscreve-se,.entio, a0 que.é possivel, conforme os. vétios_interesses em sauta. E a partir da andlise das varias hipoteses de incidéncia que as circunstancias nos permitem ver, é que a decisao serd tomada. Mas como o direito se volta para problemas de ordem pratica, é na pratica que devémos buscar suas possibilidades concretas. No caso, 0 antifundacionalismo da teoria pragmatista mostra sua visio dinAmica,veltada_para o_ futuro. A excepcionalidade, por outro lado, isola a medida do sistema, passando a nao fazer parte do rol de precedentes judiciais. Contudo, ainda que a instrumentalidade néo se verifique, limitagdes de ordem pratica prevalecem sobre o prescrito em regra anterior, a caracterizar 0 pragmatismo da medida. 43. Vale destacar que, nos termos da Lei 4.348/64, o deferimento do pedido de suspensio de seguranca encon- trar-se amparado na grave lesio & ordem, & satide, & seguranga e & economia piblica. 376 Pragmatismo no Supremo Tribunal Federal Brasileiro 2.3 Novo contexto normativo e muta¢&o constitucional (Recl 4335-5/AC, Relator Min. Gilmar Mendes. Anilise dos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau)44 A partir da anéllise da Rel 4335-5/Acre, e com base no pragmatismo juridico, cuida- se de verificar se a criago legislativa e a jurisprudéncia dos tribunais geram um novo con- texto (normativo) capaz de modificar a Constituicdo, sem expressa alteracio do seu texto; fenémeno conhecido como “ itucional”. A questdo gira em torno do uso do instrumento da Reclamaca tos erga omnes de decisio proferida em sede de controle difuso. Encontra-se sob julgamento no Supremo Tribunal Federal a Reclamagio 4335, do Estado do Acre, em que se discute a possibilidade de serem estendidos os efeitos de uma declaragao de inconstitucionalidade inter partes, proferida no HC 82.959-SP, para outro julgado. Trata-s alid 2°, § 12, da Lei 8.072/90, Lei de Crimes. Hediondos, que veda a progressao de regime em caso d te crimes hediondos. O julgamento foi interrompido em abril de 2007, com o pedido de vista do Ministro Ricardo Lewandowski, mas dois votos bastante significativos jé foram disponibilizados, e serdo objeto de nossas consideragées: 0 voto do relator, Ministro Gilmar Mendes, e 0 voto-vista do Ministro Eros Grau. juiz da Vara de Execugdes Penais do Estado do Acre fixou comunicado em diver- sas dependéncias do Férum de Rio Branco — Acre, com o seguinte teor: Comunico aos senhores reeducando, familiares, advogados e comunidade em geral, que A RECENTE DECISAO PLENARIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL proferida nos autos do habeas corpus n. 82.959, A QUAL DECLAROU A INCONSTI- TUCIONALIDADE DO DISPOSITIVO DA LEI DOS CRIMES HEDIONDOS QUE VEDAVA A PROGRESSAO DE REGIME PRISIONAL (art. 2°, § 12, da Lei 8.072/90), SOMENTE TERA EFICACIA A FAVOR DE TODOS OS CONDENADOS POR CRI- MES HEDIONDOS OU A ELES EQUIPARADOS QUE ESTEJAM CUMPRINDO PENA, a partir da expedico, PELO SENADO FEDERAL, DE RESOLUGAO SUSPEN- DENDO A EFICACIA DO DISPOSITIVO DE LEI declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 52, inciso X, da Constituig&o Federal. O Ministro Gilmar Mendes, relator da Reclamacao em epigrafe, ndo concorda com a posicao do autor da mensagem, ¢ responde, ao julgar, apoiando-se na pratica recente do Supremo Tribunal Federal. 44 Em 19/04/2007 o Plenario do STF decidiu que: “Apés 0 voto-vista do Senhor Ministro Eros Grau, que jul- ava procedente a reclamacao, acompanhando 0 Relator; do voto do Senhor Ministro Sepiilveda Pertence, julgando-a improcedente, mas concedendo habeas corpus de oficio para que ojuiz examine os demais requi- sitos para deferimento da progressio, e do voto do Senhor Ministro Joaquim Barbosa, que reclamagio, mas igualmente concedia o habeas corpus, pediu vista dos autos 0 Senhor Mii Lewandowski. Ausentes, justificadamente, o Senhor Ministro Celso de Mello e a Senhora Ministra Cérmen Liicia. Presidéncia da Senhora Ministra Ellen Gracie". 377 ‘Margarida Lacombe Camargo projeto do Ministro Gilmar Mendes tem sido, a olhos vistos, 0 de buscar maior racionalidade e otimizagao & jurisdigao nacional, com a convergéncia da primeira e segun- da instancias estaduais para o STF. Aproveita agora, entdo, para, a partir de um exercicio de sistematizagao da jurisprudéncia recente da Corte, concluir pela mutagio do texto do artigo 5, X, da Constituigdo Federal. Recolhe decisdes que reconhecem a extensao dos efei tos da declaragao de inconstitucionalidade de um determinado texto para outro semelhan- 0 distinta, como também leis mais recentes, como a ago civil publica, cujos efei- tos extrapolam os interesses da parte. F 0 que o Ministro Gilmar Mendes chama de “con- texto normativo™.5 Com. sca caracterizar 0 progressivo esvaziamento do sistema de ntrole difuso, que culmina no afastamento do Senado Federal desse proceso, bem como o fortalecimento do controle concentrado de inconstitucionalidade. Como pano de fundo, “+ ¢ argumento constante, temos 0 contexto politico institucional de crise da marosidade na_ { prestagao jurisdicional ¢ as incertezas causadas pela divergéncia de interpretagdo das nor- mas no territério nacional. Podemos aqui tomar como hipétese a visio pragmatica da Corte em procurar, na pratica, ao resolver problemas concretos, acertar 0 modelo de juris- digdo com vistas ao seu melhor funcionamento. Como ponto de partida o Ministro Gilmar Mendes apresenta um novo contexto nor- matiyo, distinto do que teria dado origem ao instituto da suspensao da execucio da lei pelo Senado Federal, baseando-se nos seguintes argumentos: 1) A origem da receita norte-americana deve-se ao sistema da common law, que tem nos seus julgados um papel de feigdo incidental, necessitando, portanto, de um poder competente para declarar, em definitivo, a nulidade da norma eiva- da de inconstitucionalidade. Nesse aspecto, 0 Ministro demonstra que a regra entre nés nunca foi bem compreendida, conforme registram os debates das assembléias constituintes. 2) _O mesmo nao ocorre em sistemas de controle concentrado, como 0 nosso, em que é reconhecido Suprema Corte o poder de atuar como legislador negativo, retirando a validade de lei declarada inconstitucional. Afinal, a fortiori, “se 0 Supremo Tribunal pode, em aco direta de inconstitucionalidade, suspender liminarmente a eficécia de uma lei, até mesmo de uma Emenda Constitucional, por que haveria a declaracio de inconstitucionalidade, proferida no controle incidental, valer tio-somente para as partes?” Conclui, entéo, que a tinica res- posta plausivel para a manutengio do instituto da suspensio pelo Senado, é 0 fato de ele assentar-se em razdes de indole exclusivamente histéricas. 3) _ O instituto da suspensio da execucao da lei pelo Senado falha ao no alcancar a “interpretagdo conforme”: “todos os casos de interpretagio conforme a Constituicéo ndo podem ter a sua eficdcia ampliada com o recurso ao instituto da suspensao de execugio da lei pelo Senado Federal”, O mesmo para 0s casos de declaragéo de “inconstitucionalidade parcial sem redugao de texto”. 4 __ Contexto formado por normas provenientes tanto da producdo jurisprudencial quanto da produgio legislativa. 378 © Pragmatismo no Supremo Tribunal Federal Brasileiro 4) Com base no art. 97 da Constituicio, fica dispensado o encaminhamento do tema constitucional ao Plenério do Tribunal, quando o Supremo Tribunal jé tenha se pronunciado a respeito. “Esse entendimento# marca uma evolucio no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, que passa a equiparar, praticamente, 0s efeitos das decisdes proferidas nos processos de controle abstrato e concreto”. 5) _OSTF reconhece o efeito vinculante da declaragao de inconstitucionalidade de lei municipal sobre lei de idéntico teor em sede de Recurso Extraordinario. ficando caracterizado, assim, “o efeito vinculante dos fundamentos determi nantes da decisio exarada pelo Supremo Tribunal Federal no controle de cons- titucionalidade do direito municipal”. E com isso dispensdvel, no caso de mode- Ios legais idénticos, a submissio da questo a Plenério (aplicaco do artigo 557, caput, e § 1*-A, do CPC). 6) © controle de constitucionalidade exercido no ambito das ages coletivas, como as acées civis piblicas e os mandados de seguranca coletivo, em princi- pio inter partes, na realidade produz alcance bem maior. © que torna mais uma vez comprovada a inutilidade da suspensio da norma pelo Senado Federal. 7) A ADPF estabeleceu uma ponte entre os dois modelos de controle, atribuindo “ eficacia geral a decisdes de perfil incidental. ‘A propésito, o Ministro reitera ainda assertiva jé de todos conhecida: a ampliacio do rol de legitimados a propor aco direta de inconstitucionalidade nao apenas reforco controle abstrato, como também procurou corrigir o sistema geral “Toda vez qué se Outorga a um Tribunal especial atribuicdo para decidir questdes consti: tucionais, limita-se, explicita ou implicitamente, a competéncia da jurisdic ordindria para apreciar tais controvérsias”. Incongruéncias de ordem teérica, a respeito da atuacao do Senado no sistema de con- trole da constitucionalidade das leis, também sao destacadas; dentre elas o princfpio da nuli- dade. Uma vez inexistente 0 ato normativo, nao cabe ao Senado suspender sua execucio, mas antes dar ampla divulgacio a declaracao de nulidade conferida pelo STF. Nesse sentido, nao se mostra necessiria a ingeréncia de outro poder para suspender os efeitos de algo que 0 Judiciério ja declarow inexistente, com efeitos ex-tunc, de acordo com a teoria da nulidade. O novo contexto normativo apresentado leva, por outro lado, a mitigacao do tradi- cional modelo de separacao dos poderes. Tudo a indicar que, na pratica, fica dispensa a manifestacao do Senado Federal. O Ministro Gilmar Mendes reconhece que “por razées de ordem pragmitica, a juris- prudéncia e a legislacao tém consolidado férmulas que retiram do instituto da ‘suspenséo da execucao da lei pelo Senado Federal’ significado substancial ou de especial atribuicao de efeitos gerais a decisio proferida no caso concreto”. E daf a indicagio, a seu ver, de uma releitura do papel do Senado no processo de controle de constitucionalidade: um caso de mutago constitucional. 4% Ag, Rig Aln, 167.444, Rel. Min. Carlos Veloso, 1995. 379 ‘Margarida Lacombe Camargo © conjunto de decisées judiciais e legislativas provocou, segundo sua linha argu- mentativa, uma significativa reformulagao do sistema juridico, a exigir nova compreen- so do texto constitucional. Fenémeno conhecido na doutrina como “mutagdo constitu- cional” ou “reforma da constituigao sem expressa modificaco de texto”. Fulminado pelo fenédmeno da mutagao constitucional estaria entao, conforme demonstrado, o art. 52, X, da Constituigao Federal. “A pratica dos wltimos anos, especialmente apés 0 advento da Constituigao de 1988, parece dar razo, pelo menos agora, a Lticio Bittencourt, para quem a finalidade da decisao do Senado era, desde sempre, ‘apenas tornar ptiblica a deci- sio do tribunal, levando-a ao conhecimento de todos os cidadios”, escreve Gilmar Mendes em seu voto. O Ministro Eros Grau, em voto vista, para enfrentar o tema da mutacao consti- tucional concentra-se no campo teérico da hermenéutica juridica. Ancora sua argu- mentagéio nos extremos da rigidez exegética e da elasticidade dos termos; certeza e adequagao social, que pode levar o intérprete para além do texto. Retoma distingo ja de todos conhecida entre texto e norma, procurando mostrar que “o processo legisla~ tivo termina no momento do texto e a norma vem depois; em outro processo, da inter- pretagdo.” Distingue, pois, uma dimensio constitucional textual e uma dimensio cons- titucional normativa, que nfo aponta para uma ciséo na dindmica juridica. Trata-se de um sé processo. ‘Apresenta o contexto sobre o qual a questo se pée: o crescimento do ntimero de lit gios e a multiplicagao de processos idénticos no ambito do sistema de controle difuso, por stia vez decorrentes da precariedade da paz social. Um Judiciério como “arena em que se joga a luta de classes”. presenta, entao, alguns principios de natureza tedrica, como base para decisio. 1) A interpretagio é uma prudéncia, e por isso nao saber puro, separado do ser. 2) Anorma encontra-se em estado de poténcia involucrada no texto; o intérprete a desnuda. A norma brota do texto; do seu enunciado. 3) _O intérprete auténtico ¢ dotado de legitimidade para produzir normas e atua- lizar o direito. 4) Como efeito da mutacdo constitucional temos a substituigo de um texto por outro. “O intérprete extrai do texto norma diversa daquelas que nele se encon- travam originariamente involucradas, em estado de poténcia. H4, entéo, mais do que interpretacio, esta concebida como processo que opera a transformacao de texto em norma. Na mutago constitucional caminhamos nfo de um texto a uma norma, porém de um texto a outro texto, que substitui o primeiro. Daf que a mutaco constitucional nao se dé simplesmente pelo fato de um intérprete extrair de um mesmo texto norma diversa da produzida por um outro intérpre- te, Isso se verifica diuturnamente, a cada instante; em razio de ser, a interpre- tagiio, uma prudéncia. Na mutagio constitucional hé mais. Nela ndo apenas a norma é outra, mas o préprio enunciado normative é alterado.” No caso em tela, passamos do texto 380 © Pragmatismo no Supremo Tribunal Federal Brasileiro [compete privativamente ao Senado Federal suspender a execucio, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisdo definitiva do Supremo Tribunal Federal] para outro texto: [compete privativamente ao Senado Federal blicidade A suspensio da execu- Ho, operada pelo Supremo Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisao definitiva do Supremo]. Ocorre mutagao, entdo, quando o texto ndo se mantém mais adequado & tradi- do [= A coeréncia] do contexto. E mais uma vez aflora a idéia de que mutagio é determinada pela mudanga no contexto. f a “forca normativa dos fatos”. E a razio pratica, de fundo, a nortear a posic¢ao do Supremo, é a de conferir maior eficdcia as suas decisdes. 2.4, A regulamentacdo do direito de greve pelo Supremo Tribunal Federal (MI 670,47 de 25/10/2007. Relator Min. Mauricio Correa. Andlise dos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. MI 712,48 de 25/10/2007. Relator Min. Eros Grau. Andlise dos votos dos Ministros Eros Grau, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski. Sobre a regulamentacao do direito de greve no servico ptiblico existem dois manda- dos de injungao que podem ser analisados conjuntamente, Ambos tiveram inicio em anos consecutivos, 2003 e 2004, com julgamentos retomados, apés pedidos de vista, em 2006. Hi referéncias mtituas de um e de outro durante o julgamento, como se fosse a mesma dis- cussfio, chegando-se identidade de texto, por exemplo, nos votos do Ministro Lewandowski num e noutro. No fundo, nao importa se a greve é de servidores do Poder 47 Decisio: O Tribunal, por maioria, conheceu do mandado de injungio e propés a solugo para a omissio legislativa com a aplicacao da Lei n° 7.783, de 28 de junho de 1989, no que couber, vencidos, em parte, 0 Senhor Ministro Mauricio Corréa (Relator), que conhecia apenas para certificar a mora do Congresso Nacional, ¢ os Senhores Ministros Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa e Marco Aurélio, que limitavam a decisio a categoria representada pelo sindicato e estabeleciam condigdes especificas para o exercfcio das paralisagdes. Votou a Presidente, Ministra Ellen Gracie. Lavraré 0 acérdio o Senhor Ministro Gilmar ‘Mendes. Nao votaram os Senhores Ministros Menezes Direito e Eros Grau por sucederem, respectivamen- te, aos Senhores Ministros Septilveda Pertence e Mauricio Corréa, que proferiram voto anteriomente. Ausente, justificadamente, a Senhora Ministra Carmen Licia, com voto proferido em assentada anterior. Plenério, 25.10.2007. 48. Deciséo: O Tribunal, por maioria, nos termos do voto do Relator, conheceu do mandado de injungio e pro- p6s a soluco para a omissio legislativa com a aplicacao da Lei n° 7.783, de 28 de junho de 1989, no que cou- ber, vencidos, parcialmente, os Senhores Ministros Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa e Marco Aurélio, que limitavam a decisio & categoria representada pelo sindicato e estabeleciam condigbes espectfi- cas para o exercicio das paralisagdes. Votou a Presidente, Ministra Ellen Gracie. Nao votou o Senhor ‘Ministro Menezes Direito por suceder ao Senhor Ministro Sepiilveda Pertence, que proferiu voto anterior- mente. Ausente, justificadamente, a Senhora Ministra Cérmen Liicia, com voto proferido em assentada anterior. Plendrio, 25.10.2007. 381 Margarida Lacombe Camargo Judicirio (MI 712-8 Para) ou de policiais civis (MI 670-9 Espirito Santo); 0 que se ques- tiona é a extensio do Mandado de Injuncao com relacao ao direito de greve no servico public. Por isso, nos reportaremos A manifestacao de cada Ministro, indiferentemente se proferidas em um ou outro julgado. Verifica-se uma preocupagao constante de assinalar a evolugdo por que passou o ins- tituto do mandado de injuncao no Supremo Tribunal Federal, apés a sua inclusao no orde- namento juridico brasileiro, com a Constituigao de 1988. No inicio, de forma timida, 0 mandado de injungio limitava-se a reconhecer a omissio do legislador, e 0 prejuizo do gozo de um direito fundamental, para declarar a mora e chamar a atencao da autoridade competente para suprir a omissio (MI 107). Depois o Tribunal resolve que, findo o prazo conferido ao legislador para suprir a lacuna existente, estaria a parte interessada autoriza- da a pleitear, em juizo proprio, o beneficio solicitado (MI 283), ou mesmo autorizada a imediatamente gozar do direito pretendido (MI 232 e 284). Paralelamente a toda essa discussio, e mediante mandados de injuncao sucessivos, pleiteava-se, junto ao STF, 0 exercicio do direito de greve no servico piibico. Inicialmente a Corte limitou-se a alertar 0 Congresso Nacional para editar a lei faltante (MI 20,485 e 585); mas, em determinado momento o Ministro Carlos Velloso autorizou 0 uso provis6- rio, pelos servidores piiblicos, da lei de greve relativa aos trabalhadores em geral, Lei 7783/89, (M631). Com base na experiéncia da Corte, o Ministro Gilmar Mendes enxerga um viés nor- mativo, erga omnes, do mandado de injungao. Em primeiro, pela identificagao do manda- do de injungdo com a constitucionalidade por omissio, parte do controle concentrado de constitucionalidade. E em segundo, pela possibilidade de se estender norma existente a casos correlatos, dada a forca do precedente. O Ministro vé agora a possibilidade de, con- forme também assinalada pela Corte, proceder-se a “uma intervengao mais decisiva” para a regulamentacio do direito de greve dos servidores piiblicos, pelo préprio Judiciério. Na questo de ordem no mandado de injungdo 712-8, quando o impetrante, Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judicidrio do Estado do Pard, pediu a desisténcia do feito, o Relator, Ministro Eros Grau, indeferiu o pedido destacando que o mandado de injungao visa dar maior efetividade ao direito fundamental, ainda nao exercido em razio da omissao legislativa, nao conferindo, portanto, protecao apenas ao impetrante. O resul- tado daquele mandado de injungao nao afetaria apenas o patriménio juridico do Sindicato impetrante, mas de todos os servidores ptiblicos do Poder Judicidrio do Estado do Para. Portanto, nao se trata de contemplar um direito subjetivo, mas de garantir a efetividade da Constituicao, no seu sentido objetivo, cujo impacto é geral. Apés, ento, elaborar o tracado légico do mandado de injungdo, conforme interpre- taco conferida pela Corte, o Ministro Gilmar Mendes passa a inclui-lo no rol das ages que completam o sistema de controle abstrato de inconstitucionalidade. E 0 faz, de forma pragmitica, face o contexto e os efeitos que a omissio provoca na sociedade. Em suas pala- vras, “a nao-regulacao do direito de greve acabou por propiciar um quadro de selvageria com sérias conseqiiéncias para o Estado de Direito. [...] Nesse quadro, nao vejo mais como justificar a inércia legislativa e a inoperdncia das decisdes desta Corte”. Contudo, podemos constatar que o que distingue a situagdo atual das anteriores, é a falta de razoabilidade da omissio. Apés 17 anos de promulgada a Constituigao, 0 382 © Pragmatismo no Supremo Tribunal Federal Brasileiro Congreso Nacional, em que pese os varios projetos-de-lei existentes, no conseguiu se mobilizar em torno da questao, mantendo a Constituigao impossibilitada de produzir os efeitos para os quais foi criada. O fato novo é 0 excesso na omissao. Situagao que abre a possibilidade para uma atuacao mais enérgica do Judiciario diante do Legislativo. Chega- se a dizer que “nesse contexto, é de se concluir que nao se pode considerar simplesmente que a satisfagio do exercicio do direito de greve pelos servidores ptiblicos civis deva ficar submetido a juizo de oportunidade e conveniéncia do Poder Legislativo”. A situagao fati- ca e as conseqiiéncias danosas da omissio, ficeis de serem percebidas, vieram alterar sig- nificativamente a posicao anterior da Corte, ainda que toda ela marcada por uma perspec- tiva tépica, ou seja, problemética. Vé-se claramente como a construcao pretoriana deu-se a partir dos varios problemas levados a Corte pela via do mandado de injuncao. O Ministro Celso de Mello, por sua vez, ressalta a primazia do interesse pitblico, registrando a “omissio abusiva”, a “superagdo excessiva de prazo razoavel” e 0 “inaceitével inadimplemento” do Poder Legislativo de emanar regramentos normativos exigidos pelo constituinte origindrio. Tudo isso de forma a “impedir o desprestigio da prépria Constituigao, consideradas as graves conseqiiéncias que decorrem do desrespeito ao texto da Lei Fundamental, seja por aco do Estado, seja, como no caso, por omissao — e prolon- gada inércia - do Poder Puiblico”. Nesse sentido podemos dizer que, mais uma vez, por forca do contexto e das conseqiiéncias do caso concreto, 0 mandado de injungao ganha novos contornos. Passa, agora, claramente, a assumir uma postura de criagdo normativa. Criagdo esta, fruto do interesse subjetivo do impetrante somado ao poder-dever do Estado, de editar a norma faltante. Assim registra 0 Ministro Celso de Melo, “o direito a legislacao s6 pode ser invocado pelo interessado, quando também existir — simultaneamente impos- ta pelo préprio texto constitucional, a previsio do dever estatal de emanar normas”. Portanto, podemos concluir que se trata de um direito que o cidadao tem & norma; por definicio, geral e abstrata. O Ministro Eros Grau, a seu turno, inicia 0 voto com particular atengao para os efei- tos ou utilidade da decisio. Se o problema é garantir o direito consagrado na Constituicao, que se faca algo destinado a tal fim. Isso, de acordo com a caracteristica antifundacionalis- ta do pragmatismo, significa evitar consideragdes de ordem abstrata, vinculadas a valores dissociados da pritica. Afinal, se o direito se volta para problemas concretos, citcunscritos a.uma determinada experiéncia pratica, é a realidade que deve informar o acerto da deci- so. Assim o Ministro retoma a distinc&o, também pragmatica, apresentada por Friedrich Miller, entre texto e norma, sendo esta o resultado da interpretacdo/interpretacao daque- le. Mas soma a isso 0 aspecto instrumental do direito que, conforme uma visio sistémica. ‘Ao se considerar 0 impacto da deciséo para toda a ordem juridica, ela passa a ser tomada como precedente, com alcance para além das partes. Nesse momento, o Ministro transfor- ma a norma em texto a ser incorporado ao ordenamento juridico positivo.49 Cuida-se da 4 A respeito, cabe trazer a colagdo suas palavras: “O Poder Judicisrio, no mandado de injunco, produz norma. Interpreta 0 direito, na sua totalidade, para produzir a norma de decisio aplicével a omissio. ff inevitével, porém, no caso, seja essa norma tomada como texto normativo que se incorpora ao ordenamento juridico, a ser interpretado/aplicado. Dé-se, aqui, algo semelhante a que se hé de passar com a simula vinculante, ‘que, editada, atuaré como texto normativo a ser interpretado/aplicado”. “No mandado de injungio o Poder 383 ‘Margarida Lacombe Camargo hipétese de “intervengao supletiva” do Poder Judiciério sobre os demais poderes, no caso de “demora incompativel com 0 que se possa ter como previsto e programado pela Constituigao”. Dai surge o seguinte problema: deverd a norma supletivamente formulada pelo tri- bunal regular apenas o caso concreto a ele submetido ou abranger a totalidade dos casos constituidos pelos mesmos elementos objetivos, embora entre sujeitos diferentes? O Ministro defende a segunda alternativa, nos seguintes termos: “... a atividade normativa dofinada pelo principio da isonomia, que exclui a possibilidade de se criarem tantas nor- mas regulamentadoras diferentes quantos sejam os casos concretos submetidos ao mesmo preceito constitucional”. A formacao supletiva resulta antes do dever-poder do Tribunal superior criar, supletivamente, a norma regulamentadora faltante. Trata-se, na visio de Eros Grau, de uma fung&o normativa do Supremo Tribunal Federal, que ndo se confunde com a fungio legislativa. A fungao estatal, expressio do poder estatal no sentido material, de acordo com o Ministro nao se confunde com suas funcées organicas, conforme o crité- rio institucional. Vimos que consideradas as conseqiiéncias da omissio legislativa, bem como 0 con- texto decorrente da omissio, 0 caso acabou por se resolver com a adogao proviséria das regras aplicaveis no ambito privado. E aqui cabe assinalar o papel instrumental do poder jurisdicional. O tribunal decide de forma prospectiva, voltada para o futuro, em lugar do que geralmente se espera do aplicador da lei, que é a solucao de problema pretérito, como acdo (ja) realizada, & luz de hipétese ou valores previamente definidos. 3. Conclusao Procuramos identificar, a partir dos casos e votos selecionados, a presenca do pensa- mento pragmatista no Supremo Tribunal Federal. Outros poderiam ainda ser incorpora- dos ao rol dos escolhidos. Na ADI 3510-0, por exemplo, vimos como o excedente de embriées, decorrente da técnica de fertilizacdo, é um fato a buscar solugo que, por sua vez, se abre para conseqiiéncias benéficas ao processo de cura de doengas neurodegenera- tivas. No caso, a interpretacao de base formalista, sobre o significado e alcance da expres- so “direito a vida”, ou mesmo da palavra vida, como talvez fosse de se esperar, conforme a visio mais tradicional do Direito, cedeu & pressio das circunstancias e das conseqtiéncias da decisio. Também na Rcl 4810-1, sobre a improbidade administrativa e a prerrogativa do foro privilegiado, verificamos que o afastamento da Lei 8.429-92 (Lei de Improbidade Administrativa) deu-se sob 0 argumento de que a condenacao de autoridade politica por juiz singular poderia gerar um quadro gravoso de instabilidade politica e social. E no MS. 24.405-4, a manutencio do anonimato de quem oferece dentincia ao Tribunal de Contas, ao contrario do que sugere a lei (Lei 8.43/92), é afastada pela antevisio de um quadro de “denuncismo irresponsivel”. Contudo, no julgamento da ADPF 144, sobre a apreciacao da Lei Complementar n. 64/94, que dispde sobre as condigdes de inelegibilidade aos cargos Judicidrio nao define norma de decisio, mas enuncia a norma regulamentadora que faltava para, no caso, tornar vidvel o exercicio do direito de greve dos servidores piiblicos”, 384 © Pragmatismo no Supremo Tribunal Federal Brasileiro legislativos, encontramos um Supremo Tribunal Federal aferrado ao texto de lei, art. 14, § §», da Constituigio Federal, bem como menos ativista, ao contrério do que havia demons- trado no caso da fidelidade partidaria (MS 26.602, 26.603 e 26.604) e na regulamentagdo do direito de greve (MI 712 e 670-9). Contudo, apesar de Richard Posner dizer que o pragmatista possui razées (também pragmaticas) para defender um Judicidrio discreto,30 entendemos que o pragmatismo abre terreno para o ativismo judicial. Nao € por outro motivo que o Supremo Tribunal Federal, principalmente pelas palavras de seu presidente, 0 Ministro Gilmar Mendes, vem se preo- cupando com a questao da sua legitimidade politica, seja para criar ou modificar normas (ADI 3510-0), seja para decidir de forma distinta do que quer a opiniao publica (ADPF 144). Na ADI 3510-0 inaugura o tema da “representagdo argumentativa”, e na ADPF 144 projeta a idgia de “democracia critica”, conforme Zagrebelsky.5! 3} “Judicial activism properly so-called is a view of the capacity and responsibility of courts relative to other agencies of government. A pragmatist might have good pragmatic reasons for thinking that courts should maintain a low profile.” Richard Posner. Overcoming Law, p. 5. 51 Gustavo Zagrebelsky. La crucifixién y la democracia. Barcelona: Ariel, 1996. 385

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