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CIP-Brasil, Catalogacao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ PS64 Pesquisa em artes cén: : textos e temas / Narciso Telles, orga- nizador, - Rio de Janeiro : E-papers, 2012. 138p. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7650-358-3 1, Artes cénicas - Pesquisa - Brasil. 2. Artes cénicas - Estudo e ensino - Brasil. I. Telles, Narciso, 1970- 12-6656, CDD; 792.0981 CDU: 792(81) Marco de Marinis? Tradugao: André Carreira Devo advertir que faz algum tempo que ja nao me interesso qua~ se pela semiética do teatro no sentido estritamente disciplinar — do termo (se tal sentido existe verdadeiramente, por outro lado). Meus interesses atuais se dirigem para uma nova teatrologia que se esforca por ser multidisciplinar e experimental ao mes- 1, Este texto reproduz comunicagao apresentada em uma mesa 1 0 futuro da semistica do teatro que teve lugar em Atenas em janeiro guns fragmentos desta comunicagao foram, no entanto, utiliza aberta a Eugenio Barba em resposta a uma sua, (Barba De) 40 do espanhol por André Carreira. Texto também. ci en Escena en Latinoamérica: teorta y practica' llettieri e Eduardo Rovner, Galerna/GE _ 2. Professor de Histéria da Cen e e, consequentemente, funcionar como epis} Oe isaplines coe estudos teatrais. A reflexio que eu quero, ‘propor nesta ocasido se inscreve no centro 08 meus interesses. te6ricos atuais e - ainda que ela nao seja exp! icitamente semiéti- ca—aborda nada menos que as questoes que, segundo creio, de- veriam ser importantes para quem se ocupa da andlise semi¢tica do teatro no sentido estrito do termo. Tomo como ponto de partida uma carta muito importante es- crita por Constantin Stanislavski em fevereiro de 1937, um anoan- tes de sua morte. A carta esta dirigida a Aleksej Ivanovic Angaroy, membro da Cheka, policia politica, que havia reclamado ~a pro- pésito do seu livro O trabalho do ator sobre si mesmo —a obscuri- dade de termos como “intui¢ao’, “inconsciente” etc. exigindo que Stanislavski respondesse “concretamente as pessoas sobre 0 sig- nificado do sentimento artistico”. Aqui esto os fragmentos mais importantes da resposta do grande ator e diretor russo: Meu livro nao tem pretensdes cientificas. Meu fim € exclusivamente pratico. Quero ensinar aos atores principiantes uma correta aproximacao & arte. A terminologia que eu adotei neste livro nao foi inventada por mim, mas sim pela pratica, pela linguagem dos formados e dos principiantes. Eles mesmos, no transcurso do trabalho, encontraram as definicdes de suas sensacdes artisticas. Sua ter minologia € valida em porque 6 compreensivel | Para todos os que entram em contato com aarle, (Stanislavski, 1988, p, xv)3 Quero deter minha aten 40 (€ a do lei juena asefinal de Stanislavsk 640 (@ a do leitor) sobre a ped! a 4, Meu artigo pode ser enfocado como sinensalo de interpretacao dessa expressao. : ensivel para iodas dhe ae experién 1993: 208)*. Eu nao tenho ainda aposslbiidade deren xt em russo, mas proponho adotar a versaio de Barba porque é mais valida e mais ambigua (e pode resultar titil a discussao, como se vera posteriormente). Em todo caso, 0 objetivo que Stanislaviski se propGe ao escre- da ver esta carta a Angarov € muito claro: defender seu trat acusacao de misticismo (acusagao perigosa naqueles tempos. precisando que os termos que ele utiliza nao tém nenhuma pre- tensao cientifica, se trata de jargdo de trabalho que emprega as vezes expressdes obscuras, inclusive esotéricas, mas para se refe- rir a coisas muito concretas e muito precisas - assim sendo bem compreensiveis “para todos que tém experiéncia da arte”. Sem nenhuma dtivida Stanislaviski pensa aqui nas pessoas do teatro, em todos aqueles que trabalham em nivel pratico no teatro, e em primeiro lugar nos atores, Este episddio, junto a outros semelhantes que concernem a Meyerhold, Artaud e Grotowski, serve a Barba para abordar a espinhosa questao dos equivocos e mal-entendidos que a lin- guagem dos artistas-tedricos nao cessa nunca de provocar nos historiadores do teatro e nos teatrdlogos. A principal razao deste mal-entendidos lhe parece muito clara: Quando Stanislaviski fala de “inconsciente’, Meyerhold (a propésito de palavras) do “bordado. sobre atrama dos movimentos” ou Craig da “Uber- Marionette’, os equivocos nao nascem da falta de precisao ou do carater metaférico da expressao, mas do fato de que somente algumas poucas pes- 4. Grifo de De Marinis, Ter experiéncia da arte mento i se trata da conclusao do capitulo Il, intitulade Defini Tau ne justamente a definicao de’ “Antropologia Teatraly, afirma que uma das vantagens dessa nova aproxima¢ao a0 teatro, reside no fato de permitir superar esse tipo particular de etno- centrismo “que observa 0 teatro sob o ponto de vista somente do espectador, isto é, do resultado”, e negando assim 0 ponto de vista complementar do processo criativo dos atores e dos outros praticos (ibid., 25). Segundo o diretor ftalo-dinamarqués, fun- dador do Odin Theatret, esse tipo de etnocentrismo tem muitos condicionamentos, e além disso condiciona a pesquisa histérica sobre o teatro: A compreensao histérica do teatro est4 normal- mente bloqueada e esgotada pelo feito de ignorara légica do processo criativo, ¢ pela incompreensao para com 0 pensamento empirico dos atores, isto 6, @ causa da incapacidade de superar os limites estabelecidos pelo espectador. (...) Comumente (.) que escreve a histéria do teatro enfrenta com Os testemunhos que surgem de improviso, sem ter uma experiéncia suficiente dos processos artesa- nais dos espetdculos, Consequentemente, corre 0: tisco de nao fazer da historia mais que amontoado de deformacoes da meméria. (Ibid., p. 26) 0 sintagma “ter experi- 7 is do espetdculo” nao re- die © equivalente da formula stanislaviskia- da arte’, dos, 0s espetaculos, a rigncia do espectador « pat 0s produzem. No entanto, nao fica claro a prime anatureza, quais sao os caracteres dessa experiéncia direta dos processos artesanais da criacao teatral que o historiador do tea- tro deveria adquirir. Se trata somente de uma experiéncia pas- siva, enquanto “observador participante” (segundo a formula elaborada sobre o campo da antropologia cultural), ou se trata também de uma experiéncia ativa prdtica? Ou ainda mais, do conjunto de uma e da outra? E dificil encontrar uma resposta precisa a respeito no livro de Barba. Nao obstante, conhecendo-o desde faz muito tempo, e trabalhando com ele desde muitos anos para a ISTA (Interna- tional School of Theatre Anthropology), posso afirmar com certo grau de seguranca que ele pensa nos dois tipos de experiéncia ao mesmo tempo. No entanto, agora, eu gostaria de abordar esta questao de uma maneira um pouco mais sistematica, partindo do ponto de vista que fixamos coma ajuda de Barba (e de Stanislavski): nao se pode ser um bom ator historiador ou um te6rico do teatro, sem ter, ou haver tido, também uma experiéncia técnica (artesanal) dessa arte. A questao a ser colocada ¢ entao a seguinte: que tipo de experiéncia técnica? Dito de outro modo € possivel compre- ender uma técnica teatral, e em particular a técnica do ator, sem exercer ou sem havé-la exercido diretamente, isto 6, sem haver tido também, de alguma maneira, uma experiencia ativa? A comparacao com outros campos artisticos poderia nos aju- dar, possivelmente: « Alguém pode compreender um afresco de Miguelangelo ow um quadro de Picasso sem ser pintor ou, ao menos, sem ha- ver feito uma experiéncia ativa das técnicas? Ter experiéncia da arte e do mais, eu me pergunto: é possivel compreen. i arte, falar e escrever sobre ela, estudar 0 ponto de vista, histérico e tedrico, sem ser também um produtor ou ao menos, um praticante aficionado dessa arte? Colocada assim a questao, segundo eu creio, nao pode ter, em primeira instancia, mais que uma resposta afirmativa, cuja tazdo tedrica repousa sobre a distingao entre o conhecimento- compreensao, por um lado, e 0 uso, por outro lado; dito de outro modo, entre sabere saber fazer, e entre competéncia passiva (co- nhecimento sem uso) e competéncia ativa (conhecimento com uso). Ou desde um ponto de vista tedrico, enquanto que o saber- fazer implica 0 conhecer, 0 conhecer nao implica no saber-fazer, Por outra parte, a experiéncia cotidiana nos mostra normalmen- te a dissociacao entre conhecimento e uso, entre saber e saber- fazer, sobretudo no caso de cddigos e convengées especializa- das, muito técnicas, muito dificeis, como sao geralmente aquelas que pertencem A arte do ator (para todas estas distingdes, ver De Marinis (1982, 160-196). Uma primeira conclusao ja se apresenta. Nao existe um unico tipo de experiéncia e de compreensao do teatro, existem varios, €a0 menos, trés tipos: 1. a experiéncia-compreensao do artista de teatro, e, em parti- cular, do ator, fundadasobre uma competéncia ativa, mais ou menos explicita; a experiéncia-compreenséo do espectador comum, fundada bre uma competéncia passiva e quase implicita, intuitiva (dito de outra maneira nao tedrica, em termos tedricos); muito importante, Pode-se fazer teatro nao ee di espetdculos, senao também vendo-os, estudando-os, escreven- _ do sobre 0 tema, analisando seus contextos, investigando seus processos etc. O que se disse também a propésito de uma certa subestimacao do espectador (comum) na antropologia teatral de : Barba € no trabalho de alguns historiadores que se remetem a ele (por exemplo, cf. Barba-Savarese (Eds.) 1991). O espectador nao é um ator fracassado, mas sim um dos protagonistas da relagao teatral (da mesma maneira em que nao se pode evidentemente considerar ao leitor como um escritor fracassado). Mas se ver teatro € um dos muitos modos de fazé-lo, entao “ter experiéncia de arte” nao significaré unicamente praticd-la direta- mente, de maneira ativa, senao também, justamente contempla- la, estudé-la etc. Posso entao voltar a experiéncia-compreensao do teatrdlogo e a seu propium, que consiste fundamentalmente no fato de dever dar conta dos outros dois tipos de experiéncia- compreensao: aquela do artista de teatro, e em particular do ator, e aquela do espectador comum. Como? Essencialmente fazendo sua historia, isto é, inserindo-os em um contexto mais amplo, seja horizontal (sincr6nico), seja vertical (diacronico). Voltando a questao da qual partimos (0 que significa para 0 historiador-tedrico do teatro, para 0 teatrdlogo, “ter experiéncia_ da arte’, se pode responder em seguida de uma maneira analitica. Para ele, “ter experiéncia da arte” significa ao tempo: 1, ter experiéncia do processo teal a) conhecer e seguir o trabalho alt tomy Para concluir com esse tema, estou de acordo com Barbae ‘com 0s teatrdlogos que se valem da antropologia teatral sobre 0 fato de sublinhar a importancia, para o historiador €0 tedrico do teatro, de uma experiéncia (inclusive pratica) dos processos teq- trais, e em particular do trabalho do ator, mas recuso uma certa subestimagao de sua parte, da experiéncia do produto espetacy- lar e da recepcao do espectador (comum). Generalizando, nao estou de acordo (e ja disse varias ocasiGes: ver por exemplo, De Marinis, 1988, p. 120-121; 1992, p. 189) com respeitoa separacao demasiado rigida, dicotémica, que Barba e outros Parecem pos- tular entre processos e produto e suas Idgicas respectivas. 5. Em minha opiniao, as possibilidades atuais de propor uma aproximacao cientifica ao teatro, que possa escapar das armadi- lhas e dos atoleiros das aproxima¢Ges propostas anteriormente, estao ligadas em grande medida a uma revisao radical das rela- GOes entre ateoriaea Pratica e, antes ainda, das nogdes mesmas de teoria e de pratica no caso do teatro. E aqui onde reside, se- gundo meu ponto de vista, a contribuicao mais fecunda da ISTA, alcancada em sua Oitava sessao (v, Varios, 1994). Em um artigo publicado faz | i s quatro anos na revista Teatto e poe com 0 muito sugestivo titulo de Carta sobre uma ciéncia 2s featTos, Ferdinando Taviani (um dos colaboradores mais pré- Ximos de Barba ea ISTA) afirmava: a uma ciéncia dos teatros, para transformar de ideia ©m trabalho, deve poder agrupar a andlise tedrica Tou, *C*Perléncia daqueles que fazem teatro. (i) Toda ambiguidade de uma ciencia possivel dos t© do fato de recusar a combinagao da Combinar a pesquisa sobre as técnicas com a pesquisa histo A rica: esse programa poderia ser adotado como uma das divisas ex dos desafios) para a nova teatrologia, mas € absolutamente evi- dente que sera possivel unicamente sob a condigao de proceder a uma revisao radical nao somente das relagoes teoria/pratica, mas também, e imediatamente, dos préprios conceitos de teo- ria e de pratica no terreno do teatro. Dito de outro modo, esta revisio nao podera se limitar a empurtar os teoricos para as ex- periéncias praticas diretas e, vice-versa, a incitar 0s praticos (0s artistas) a adquirir uma maior consciéncia tedrica e cultural. Pelo contrdrio, esta dupla revisdo deverd implicar tambem, & especialmente, no esclarecimento da dimensao pratica do fazer que € proprio da teoria teatral enquanto tal, e reciprocamente da dimensao que é propria, a0 menos implicitamente, do trabalho pratico ao menos de uma maneira implicita. Referéncias bibliogréficas BARBA, Eugenio. La canoa de carta Trattato di antropologia teatrale. Bologna, I! Mulino, 1993. NIS, Marco. “Due lettere sul pre-espressivo BARBA, Eugenio ¢ DE MARE e : daifatcye, Il mimo e | rappotl fra pratica © teotia’, In: Tealrae SIRIGE 16, 1994. BARBA, Eugenio e SAVARESE, Dictionary: of Theatre Anthropology. Nicola, The secretart ofthe performance. A London, Routledge, 1991. 2 Ferdinando, Letterza suuma scienza del teatri. In: Teatro e Sto. “ria, 9. 1990. VARIOS. The Tradition of ISTA. FILO. Londrina, 1994.

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