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& 2 A aula como texto: historiografia e ensino de historia HELENICE ROCHA REBECA GONTHO Fazer histévia €contar uma histéia. (Foret, pad Mattos, 2006) A trama que liga o presente ao passado é constituida por miitiplas formas de lidar com a temporalidade, sintetizadas pela nogio de cultura histérica. Para compreender a cultura hist6rica é fundamental investigar s usos do passado — tema do projeto de pesquisa ao qual este livro esta vinculado —, centre os quais esti a hist6r somo disciplina escolar. Lembrando algumas sugestes de Beatriz Sarlo, consideramos impor- tante a diferenciagio entre uma histéria académica, forma especifica de produgio de conhecimento sobre o passado por meio de uma narrativa metodologicamente controlada, e uma historia de grande circulagio, que metodologicamente cc — “escuta 08 sentidos comuns do presente, atende is erengas de seu piblico e orienta-se em fungio delas”, Essa historia de circulagio massiva, sensivel is. demandas do la-se a0 imaginiio social, “cujas pressdes cla recebe e aceita mais como vantagem do que como limite”. Por conta disso, faz prevalecer um principio organizador que busca explicagées simples, reduzindo o campo de hipéteses ou de possibilidades, de modo a compor grandes esquemas explicativos, algo fundamental para a construgio de um sentido para o passado que possa ser amplamente compartilhado. Segundo Sarlo, uma certa historia de difusio escolar (as hist6rias nacionais) também seguiu esse modelo, abalado diante de dois fendmenos observados em al- ‘guns paises: a quebra da legitimidade das instituigdes escolares e a incor- poracio de novos sujeitos € novas perspectivas (sintetizadas pela ideia de “guinada subjetiva”) na historia! Partindo desas colocagSes, procuramos dstinguir a historia com objeti- vos pedagdgicos, maria de ensino nas escola objeto de politica pablicas de educacio, desse amplo e Gitil modelo explicativo proposto por Sarl, ¢ isso por duas razies. Em wr considerarmos que a historia de viés académico, ainda que regulada por regras e priticas especificas, também en- contra-se vinculada a um lugar social de produgo, que autoriza e interdita, ‘como constatou Michel de Certeau (1982). Além disso, é preciso observar 0 ‘vinculo entre a pesquisa historica (na sua tripla dimensio: tedrica, metodo ligica e narrativa)e a vida pritica, como destacou Jrn Rasen (2001). Em fegundo lugaj\ porque a histéria escolar — esteja ela regida pelos pressupostos de uma histéria nacional ou nio — necessariamente dialoga, ainda que nem sempre de forma explicta, tanto com a histria massiva e 0 imaginirio social que a alimenta quanto com historografia de corte ac démico, diferenciando-se de ambas- Esse diferenciagao pode ser compre- _endida se levarmos em conta nio apenas os métodos do ensino de historia, apie, Orr i pongo profesor de hata ma cl eb liza ouwro¥ recursos e saberes pars além daqueles utilizados na construgio da historia académica e, também, daqueles utilizados na elaboragio de um sentido para 0 passado pela midia ‘A historia académica orienta-se pelas regras de um método de anilise critica das fontes pelo exercicio da narrativa escrita, por meio do qual 0 conhecimento assume uma forma complexa, que opera recortes, mas pro- poe grande néimero de articulagdes entre eles, de modo a mobilizar os re- © Sarlo, 2007, cursos criticos do leitor’é, 20 mesmo tempo, estimular sua sensibilidade ¢, por que nio dizer, suas emogdes. A historia dé circulagio massiva opera recortes/redugdes que visam, sobretudo, & simplificagio do quadro de anilises, de modo a produzir uma sintese interpretativa capaz de mobilizar nio tanto os recursos criticos do leitor/espectador — visto que ela procura impor a unidade sobre as des- continuidades, a igualdade sobre as diferengas —, mas suas emogées. Jia his das aos diferentes graus de formagio dos alunos; pelas priticas aprendidas ia escolar orienta-se por regras pedag6xgicas proprias, adequa~ € pela erudi¢io obtida mediante a formacio intelectual/profissional do professor como historiador; pelos saberes adquiridos na vida ¢ pela experi- éncia em sala de aula. fe 0s xo Groh sio distintos porque, enquanto a histéria de cir. ‘mais preocupada em construir uma sintese reduzindo | ae fe ser amplamente compartilhado, a historia académica, hoje, esti ntti iaiaealeetenigtieitiens cogtiaca oes depots bilidades. Considerando que a hist6ria da pesquisa hist6rica é marcada_ construgio de objetos cada ver mais sofisticados, pode-se dizér que seu objetivo é produzir conhecimento buscando dar conta da complexidade _————_—_—_—_—_—_—_—_—_—_—_—_—_—_—_—_—_—_—_——— do objeto de estudo, lidando com certa margem de incerteza ¢ refletindo continuamente sobre os procedimentos utilizados e as interpretagdes cons- truidas. Além disso, seu objetivo inclui a producio de uma narrativa capaz de articular todo esse processo. Por fim, ela nio busca o consenso, mas a compreensio das diferengas e similitudes, das mudancas e das permanén- clas, de modo a alimentar tanto-6 séntimento de pertencer quanto a sensi Aqui remetemos aos etudos sobre anarrativa histica ea questio da poética da his- tra, Para uma introdugio 20 assunto, ver Prost (2008a, 2008b), Para complexificar a reflexio, ver Pomian (1999): Ginzburg (2002); Lima (2006); Ricoeur (1994): White (1994, Sobre a demanda contemporinea pela emogio € suas implicagSes no oficio do historiador — que podemos remeter a0 oficio do professor de historia —, ver Prochas~ son (2008). = bilidade critica necessiria 4 orientagio num mundo complexo em continua transformaco. Considerando ese dime apesto¢ alguns potos relatives 20 méodo, & possivelafirmar que a historia escolar aproxtma-se mais da hisria aea- démica do que da histéria de circulagio massiva. Contudo, seus objetivos histéria escolar nao visa, obviamente, formar historiadores ou produzir conhecimento erudito, académico, muito menos construir uma narrativa escrita capaz de articular os diferentes elementos que compem uma his- t6ria. © conhecimento a que cla visa tem tivo de —fittenee tenner eae a eran: Para tanto é preciso construir leituras sobre o mundo ¢ sobre si capazes de favorecer da ito de identidade (por conseguinte, de pertencimento) €, a0 mesmo tempo, 2 capacidade critica para reconh¢cer ¢ lidar com as dlferengas estué-las no tempo (0 sea, stds historicament). Nesse sentido, pode-se dizer que 0 objetivo da histéria escolar é ensinar/apren- deevpcunrhinerlemnens, arene o horizonte de expectativas. ~~ Algm disso, & preciso dizer que essas distingGes entre uma histéria de vies académico, uma histéria de circulagio massiva e uma hist6ria escolar no implicam uma hierarquizagio entre esses discursos em termos de qualidade ou veracidade do que é produzido, mas indicam a existéncia de regimes diferentes de producio do pasado, cabendo ao historiador a historicizagio dessas virias produgdes, bem como das distintas demandas sociais com as quais interagem.? © foco privilegiado pelos especialistas aqui reunidos é, justamente, essa historia de viés pedagégico, destinada ae, como nio podemos deixar de cobservar, construida na escola. A escolha do titulo deste livro reflete a preo- ccupagio em pensar a escrita escolar da histéria, com sua dupla dimensio: a historiogrifica e a memorialfstica. Como observou Gérard_Noiriel Como observou_Gérard_D * Ver Guimaries (2007). (1998:214), a diferenga Gomumente estabelecida entre a historia (definida ‘como 0 conjunto de conhecimentos claborados pelo historiador de acordo ‘com 08 pressupostos deontolégicos e éticos do oficio e apresentados numa forma narrativa particular, ambos regulados pom determinado lugar social de produgio) ea meméria (compreendida como o saber sobre o pas- sado que todo individuo possui, enquanto membro de um grupo social) coloca o problema do estatuto do ensino de histria. Entre memoria e his- téria, qual seria 0 seu hugar?__ "Para Dominique Bourne, por exemplo, o ensino de historia possibilita © desenvolvimento de um exerci ert, inseparivel das modalidades de sua “ransmissio. Esse exercicio contribui para demonstrar que a histéria nio ‘sti dada a prior, pois € um constructo_culeural dotado de historicidade. ‘Algo indispensivel para que os individuos compreendam 0 mundo em que vivem. Mas, além disso, oensing de historia, , como foi dito antes, também rromore seine de perenne comunidad “Ivremee solid, € ‘Bio temerosamente preservada (..) aberta a outras solidariedades que nio a da nagio”. Esse sentimento de pertencer & constitutivo das identidades sociais ¢ tem como uma de suas bases a construgio da meméria. Essa dupla dimensio cientifica e memorialistica do ensino de histéria expliea por que, ‘na maioria dos paises, os historiadores sio pesquisadores e professores por formagio. Certamente, como observou Bourne, a articulagio entre essas dduas dimensGes varia em fungio do nivel do ensino (primirio, secundario ‘ou superior). Do mesmo modo, a politica do Estado relativa ao ensino de historia no é a mesma para todos os niveis £ interessante observar que a escrita da histéria comumente identifi- cada como a pritica mais visivel que, ao lado da pesquisa, diferencia 0 trabalho do historiador do trabalho do professor de historia. Nas socied: des ocidentais, 0 valor crescente atribuido a escrita na modernidade des- mereceu as priticas vinculadas 4 meméria e a oralidade, tidas como eféme~ + Bourne, 1998. Ver também Rémond (1988) para um panorama das demandas a que 0s historiadares estiosubmetidos (esas implicagSes para a pesquisa o ensino da his tia) em diversos pases. ” a ras € enganosas, porque submetidas aos designios da subjetividade.’ De ‘modo semelhante, a historia da historiografia foi, por séculos, norteada pela afirmagio de que “a histéria comega coma escrit aque atribuiu um valor negativo as sociedades Agrafas, vistas tomo pré-histéricas. Além dis- +0, oprocewo de utonomizacio da hisria como conhecimento, em meio 420 qual uma concepglo moderna de historia péde consieulrie,fandou-te Jum campo de experiéncias distinto daquéle que fandamentava a antiga Sxpecitneias atemporais, fonte de exemplos obtidos por meio de procedi- mentos como a visio direta (autopsia) por parte do historiador ou de tes ‘emunhos oras, recusando as fontes escrtas, De mod oposto, a moderna concepéo de historia rocwou 3 a oralidade e a visio, atribuindo um valor maior a0 escrito. A A cientificizag3o da historia no século XIX_ confirmou essa Tecusa, elegendo o documento escrito como a inatéria-prima do his- SS toriador e a fonte por exceléncia para a constru¢io de fatos “duros como pedra”, fundamentos da pesquisa e de uma pedagogia da histéria entio ‘definida, No século XX, a nogio de fonte histérica foi ampliada, abrindo nnovas perspectivas de pesquisa, até o ponto em qué @ oral conquistou, no sem resisténcias, seu lugar entre as fontes do historiador.® ‘Ao longo desse processo, a questio da escrita da histéria foi colocada ¢ respondida de diferentes formas, ainda que frequentemente tratada como algo menor, se comparada as questdes relativas 4 pesquisa. No inicio dos citocentos, a escola histérica alema dava atengio a0 problema da escrita Basta lembrarmos Humboldt e as duas tarefas do historiador: uma metédica ‘e empfrica, outra criativa ¢ artistica. Ou, ainda, Ranke e a énfase atribuida tanto a dimensio da pesquisa empirica quanto & dimensio imaginativa da escrita da historia? A escola metédica francesa elegeu trés tarefas do oficio: ahheuristica, a anilisee a sintese; mas privilegiou as duas primeiras, relegan- F Sobre a meméria © a questio da escrta, ver, a ttulo introdutério, Pomian (199%). © Ver, por exemplo, Noiriel (1997, 1998); Pomian (19992) > Ver Humbolde (1985). Sobre a escrita da historia em Ranke, ver por exemplo, Caldas (2007). do © problema da sintese a uma questio de estilo." A escola dos Annales valorizou a busca da sintese, mas, 0 longo do século XX, ¢ possivel encon- trar historiadores que relegaram a etapa da escrita a um segundo plano, por veres stuando tal etapa como algo externo a0 trabalho do historiador. Para Hen née Marrou, por exemplo, “nao ha divida de que o pro- blema da expressio & em si, exterior 4 histéria, e que nela se introduz por forca de consideragdes de outra ordem”. © autor considerava que, se a ver- dade histérica nunca € definitiva, exprimi-la equivalia a cristalizi-la” Mais recentemente, as discusses suscitadas por Michel Foucault no fim da década de 1960 e pela “virada linguistica”" na década de 1970 coloca- ram 0 texto historiogrifico na ordem do dia da reflexio. Paul Veyne (1998), por exemplo, procurou configurara historia enguanto pritica emi~ nentemente discursiva. Michel de Certeau (1982) situou o texto em meio _ “Toperacio historiogrifica, destacando sua relagio com uni lugar social de producio e com as priticas da pesquisa. No inicio da década de 1980, Jorn Riisen (2001) também destacou o papel da escrita (ou da apresentagio) na _Pesquisa hist6rica, como etapa crucial para o estabelecimento da ligagio centre conhecimento histérico e vida pritica. Em meio a essa discussio, a associagio entre a pritica da éscrita ¢ oficio de historiador prevaleceu, como nio poderia deixar de ser. E pos- sivel dizer que a identidade do historiador esti diretamente vinculada 20 a texto que ele dé a ler — texto por meio do qual ele pode expor os proce- imentos utilizados na construgio de seu objeto de pesquisa; desenvolver seu trabalho de andlise e interpretacio; aprimorar sua capacidade de arti- © Noiril, 199, ” Marrou (2) chama a atencio para 0 caso dos historiadores que passam a vida acumu- Jando conhecimentos,alcancando competéncia inigualada, mas, “esquecidos de que sio homens ¢ nfo imortais, nada escrevem, ‘pogos de ciéncia insondiveis mas que jamais Gems (UFF e Cpdoc-FGV), Carmen Teresa Gabriel Anhorn (UFRJ), Eunicia Fer sends: (PUC-Rio), Helenice Rocha (Uerj), Luis Reznik (PUC-Rio e Uer)), Mircia de ‘Almeida Gongalves (PUC-Rio e Uerj), Maria Lima (UPMS), Marieta de Moraes Fert |= (UFRJ c Cpdoc-FGV), Martha Abreu (UFF), Mauro Cezar Coetho (UFPA), Rebeca ‘Geese (UFF), Selma Rinaldi de Mattos (PUC-Rio). © Block, 2001:47,

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