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Antonio Sérgio Alfredo Guimarães

A Formação e a Crise da Hegemonia


Burguesa na Bahia (1930-1964)

Dissertação apresentada ao Mestrado em Ciências Humanas da UFBA em


janeiro de 1982 (revisão de estilo feita em 2003)
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AGRADECIMENTOS

A investigação e a exposição de um tema são sempre devedores de um número de


contribuições maiores que aquelas que o seu autor pode expressar, por isso citarei apenas aqueles
que mais diretamente estiveram envolvidos na produção desse texto.
Devo agradecer, primeiramente, aos colegas do curso de mestrado em Ciências Sociais da
UFBa entre 1978 e 1980, responsáveis diretos pelo clima de discussão intelectual refletidos no
presente texto. A mesma ambiência de valorização do conhecimento como instrumento de luta po-
lítica e a mesma atitude corajosa e positiva diante do futuro, que marcaram as conquistas democráti-
cas do fim dos anos setenta, encontrei também espelhada nos alunos de Ciências Sociais da UFBa,
com quem tive a oportunidade de trabalhar depois de 1980.
Agradeço especialmente a Nadya Araujo Guimarães a minuciosa discussão desse trabalho.
Em grande medida, foram em seminários, conversas e discussões como ela que sistematizei tanto o
quadro teórico-metodológico quanto parte substancial dos resultados a que me conduziram a inves-
tigação empírica.
Pude contar também com Iracema Guimarães, Palmiro Torres, Tânia Franco, Sérgio
Fialho, Ángela Borges, Maria Brandão, João Reis, Tânia Penido e Ángela Franco, entre outros, na
discussão de partes desse texto ou de outros textos a ele relacionados. Devo a Jacira Cedraz de
Oliveira Santos a quase totalidade do levantamento feito na Biblioteca Pública da Bahia sobre o
jornal "A Tarde" e a totalidade do levantamento de dados feito na biblioteca da Associação
Comercial da Bahia. Agradeço também a Ana Lúcia B. Carvalho, Maria Dolores B. Motta e Gisleno
M. dos Santos, que me ajudaram no levantamento dos dados secundários. Esses agradecimentos são
extensivos a Gustavo Falcón e Luis Chateaubriand, que gentilmente me cederam análises e
documentos históricos ainda inéditos à época da primeira redação desse livro.
Finalmente, agradeço a Fernando Santana, Rômulo de Almeida, Iracy Picanço e Aristeu
Nogueira, que pacientemente me contaram parte de sua rica experiência na política e na história do
planejamento econômico na Bahia.
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A versão original desse trabalho foi apresentada como tese ao Mestrado de Ciências
Sociais da Universidade Federal da Bahia em janeiro de 1982. A versão atual, reescrita em 1989,
modifica a exposição, clarificando alguns argumentos, e elimina algumas incoerências mas, pri-
ncipalmente, altera a ordem da narrativa. Para essas modificaçõees foram valiosíssimas as críticas e
sugestões de Francisco de Oliveira, Ubiratan Araujo e Nadya Araujo Guimarães, que participaram
da banca examinadora.
Finalmente, não é preciso dizer que nenhuma das pessoas citadas é responsável por
qualquer dos muitos defeitos desse texto. Entretanto, eu seria injusto se não acrescentasse que muitas
das suas virtudes são direta ou indiretamente devidas a elas.
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PARTE I

OS ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA
FORMAÇÃO CAPITALISTA
NA BAHIA
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Introdução
Seria normal iniciar uma exposição demarcando a localização do objeto de estudo e
dando a perspectiva de conjunto a um quadro que, forçosamente, destaca e detalha aspectos
temporais particulares. É como se o investigador procurasse explicitar o contexto em que seu
trabalho tem sentido. Não foi, porém, apenas ou principalmente essa a razão que determinou
essa incursão histórica. É que a historiografia baiana esteve profundamente marcada pela
visão dos intelectuais que, após a Segunda Guerra Mundial, forjaram e assumiraam o sistema
de idéias e os projetos econômico e político que possibilitariam o desenvolvimento industrial
da Bahia.
Assim, ao estudar o processo de formação da burguesia baiana, esbarrávamos
sempre com um conjunto de justificativas consensuais a respeito dos mais variados aspectos
históricos do desenvolvimento econômico e social do Estado, que colocava um sério
obstáculo à reapreciação dos fatos.
Porque a burguesia apresentava-se frente à história como a herdeira do passado
heróico e glorioso da Bahia, tornou-se impossível compreender aquele presente que estava
sendo construído nos anos 40 e 50 do século XX sem, ao mesmo tempo, desvendar a
compreensão do passado. Passado e presente estavam tão intrinsecamente entrelaçados no
discurso que desfazer os arremates de um implicava em reordenar todo o tecido.
A história oficial "leva[va]-nos à visão de que a Bahia decaí[ra] de um paraíso
original de riqueza, de importância política, de proeminência cultural etc." para um vale de
estagnação e pobreza, como observaram Araújo e Sá Barreto (1978). Essa concepção era
responsável por uma periodização da história da Bahia em três grandes fases: uma de
prosperidade, recobrindo os períodos colonial e imperial e dividida segundo os anos de maior
ou menor prosperidade do comércio internacional do açúcar, do fumo, do algodão e de outros
produtos menores; outra de transição, marcada pela abolição da escravatura, pela decadência
da cultura da cana de açúcar e pelo surgimento da cacauicultura; e finalmente, a última, de
decadência, marcada pela perda da autonomia federativa da Bahia e pela sangria sistemática e
coordenada de suas riquezas pelo governo da União, que essa geração toma em mãos, como
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destino seu, redimir e corrigir num concentrado esforço de bravura política, inteligência
técnica e lide produtiva.
Por mais que variassem as nuanças ideológicas ou a complexidade teórica, repetia-se
sempre o esquema interpretativo em que a submissão e a pobreza do presente eram
contrastados à dominação e opulência do passado, e a grande pergunta que se fazia à história
era porque, ou como, ou quando, a Bahia deixou de ser o mais rico e mais importante dos
Estados brasileiros e passara a ser um membro subalterno de uma federação que se julgava,
de fato, inexistente. Por trás dessa pergunta, que podia aliás caber em outro contexto,
escondia-se um princípio metodológico que concebia a história como um conjunto de
totalidades contrapostas, de modo que a história da Bahia, a história do Brasil e a história
mundial eram concebidas como desenvolvendo-se paralelamente, ainda que de modo
complementar. Essa perspectiva que, procurando explicar o presente da Bahia pelo passado
da Bahia, acabava por perder a possibilidade de uma análise dialética, ou, no melhor dos
casos, via-se forçada a integrar a posteriori análises de diferentes totalidades.
Para nós, entretanto, a recusa da problemática e das análises da história oficial não
devia conduzir, apenas, à crítica teórica e à incorporação de novas fontes documentais. Mais
que isto, fundamentalmente, deveria interpretar essa historiografia como peça fundamental de
um projeto hegemônico. Os intelectuais burgueses baianos projetaram na história não
somente sua visão ideológica, que se expressava no uso de teorias científicas hoje
ultrapassadas, mas, principalmente, a experiência histórica de classe que refletiu as
vicissitudes da vida empresarial e comercial, sua e de seus antepassados, em explicações
genéricas.
Mas, havia outro perigo. A chance de produzir uma história materialista estava em
não contrapor a essa concepção uma outra igualmente deficiente, que, ao derivar do todo a
explicação das partes, acaba por guardar apenas as explicações gerais e relegar ao singular o
papel de mera exemplificação do geral. Dois movimentos precisam, pois ser perservados: de
um lado, é preciso, já que se trata de uma evolução, que o presente ilumine o passado e não o
contrário (Marx, 1974). Isto é, para explicar a formação do presente, sem perder a
compreensão de sua novidade, é necessário que se parta da articulação atual, pois a história é
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uma totalidade articulada, cujas partes encontram-se ordenadas por uma produção particular,
que deve ser realçada. Mas, por outro lado, trata-se de uma história singular, cujo
desenvolvimento não estava dado por nenhuma estruturação rígida, que prescindisse de
sujeitos ou apenas os selecionasse para papéis pré-definidos.
Por isso é preciso não ser rígido na definição das regras, pois elas não poderão ter
validade em todos os meandros. Alguns traços escondem nitidamente no passado o seu
segredo, enquanto outros não o têm senão no presente, mas, apesar disso, sobre todos é
preciso lançar a luz da novidade que os embebe.
Em se tratando da Bahia, dir-se-ia que por algum tempo a historiografia deixou
de compreender a razão de seu presente por procurá-lo demasiadamente no passado. Mas,
por outro lado, isso teve a virtude de evidenciar uma prática de classe imprescindível para a
compreensão de sua história. Uma vez que se conte com os marcos conceituais que permitam
entender a articulação da Bahia ao desenvolvimento da formação social brasileira e a sua
novidade histórica atual, e uma vez que se conte com uma periodização que decorra do
entendimento dessa novidade, essa história oficial, suas análises e sua base factual são
fundamentais para que se entendam alguns traços atuais dessa região naquilo que ela tem de
mais específico. Isso é tão mais fundamental quando se quer compreender a formação de suas
classes dominantes - a sua burguesia mercantil-financeira, a sua oligarquia fundiária, a sua
burguesia agrícola.
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Capítulo 1 - Entorno Teórico

No início dos anos 70, uma importante tese viria mudar os rumos dos estudos regionais no
Brasil. Os dois principais argumentos dessa tese eram, em primeiro lugar, que as mudanças na divisão
interregional do trabalho, principalmente o crescimento industrial do Nordeste a partir da segunda
metade da década dos 60, deviam ser compreendidas a partir da lógica do crescimento industrial do
Sudeste, o pólo dinâmico da economia brasileira; em segundo lugar, que a política de desenvolvimento
regional posta em prática pela Sudene a partir de 1959 representava a necessidade de homogeneização
do espaço econômico brasileiro, correspondente ao estágio monopolista atingido pela economia do
Sudeste (Oliveira, 1972; Oliveira & Reichstul, 1973).
Por homogeneização espacial Oliveir a e Reichstul compreendiam a criação de condições
privilegiadas para a reprodução e a acumulação de capitais em todas as regiões brasileiras, processo
que fôra iniciado pela política de industrialização da Sudene, através da criação de mecanismos fiscais

do tipo 34/181.
Ora, a criação de mecanismos do tipo 34/18, criando uma vinculação institucional entre os
agentes que fazem a oferta e a demanda de créditos, possibilitaria "a transferência de classes
dominantes de uma para outra região", podendo "ser entendida como resposta a uma necessidade
estrutural da expansão capitalista no Brasil" (Oliveira & Reichstul, 1973:151).
Nota: A mudança do passo (10) e fonte (2) deve ser convertido manualmente. Essas
idéias abriram toda uma gama de novas questões e de novas perspectivas para compreender o qu e se
passou na economia do Nordeste desde a revolução de 30, principalmente nos anos 50, e que fôra, até
então, tratado como um alargamento das disparidades regionais. Esse mesmo tratamento respaldara
ideologicamente a arregimentação das classes burguesas nordestinas no movimento regionalista mais
pujante de que se tem notícia no país.
A tese do aprofundamento das desigualdades regionais estava eq uivocada, segundo a nova
interpretação, porque "tomava como alargamento das disparidades o que era uma redefinição das
relações regionais..." (Oliveira e Reichstul, 1973:134). Desestruturavam-se assim os fundamentos de
uma outra concepção, então corrente, de que a criação da Sudene e a própria política de industrialização
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nordestina teriam sido uma vitória das forças nacionalistas, respaldadas pelas camadas populares,
contra a resistência de uma oligarquia reacionária e semi-feudal.
Na verdade, tanto a tese de aumento das disparidades regionais quanto a sua variante
nacionalista, adotada por significativas parcelas da esquerda anti-imperialista, falhavam justamente por
não compreenderem as contradições que passaram a pressionar a estrutura da economia brasileira. De
fato, ainda segundo a nova corrente interpretativa, as relações de produção do capital monopolista
começaram a se internalizar já nos anos 50, substituindo as antigas relações imperialistas (Palloix,
1979).
As contradições que tomaram de assalto a economia brasileira seriam explicadas pelas
tendências opostas à equalização e à diferenciação das condições de produção e de troca, necessárias
para a valorização do capital no bojo do processo de acumulação monopolista.
Por um lado, seria necessário que se desfizesse a antiga coerência interna das economias regionais,
historicamente voltadas para o comércio exterior e fundamentadas na subsunção formal da produção ao
capital comercial. Em seu lugar deveria erigir-se uma coerência interregional que atendesse aos
imperativos do crescimento do capital industrial (latu sensu), centrado no sudeste do país. Essa
tendência implicaria numa industrialização sem vínculos regionais coerentes e na equalização das
condições objetivas de reprodução ampliada do capital ou, para ficarmos com a conceituação de
Oliveira e Reichstul, na homogeneização do espaço econômico nacional.
Por outro lado, essa nov a coerência interregional significava também uma renovada tendência
à diferenciação das condições de compra e de reprodução da força de trabalho, isto é, uma
diferenciação nas condições subjetivas de reprodução ampliada do capital, que teria forçosameente de
se cristalizar na manutenção do que fôra até então tratado como desníveis regionais.
A tese das desigualdades regionais e sua variante nacionalista, apesar de contestadas já nos
anos 60 por alguns setores do pensamento marxista, foram-se mostrando-se empiricamente
insuficientes e insatisfatórias no decorrer dos anos 70, à medida que a expansão industrial e o
crescimento econômico nordestino, sob o sistema ditatorial, apoiado no conjunto das classes
dominantes, inclusive as camadas oligárquicas remanescentes, encarregavam-se de desmistif icá-las. A
história incumbia-se assim de demonstrar o equívoco e a fragilidade do regionalismo e do
desenvolvimentismo nacionalista enquanto ideologias políticas ou teorias científicas.
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Nos anos 70, a conjuntura política que se expressava no crescimento da oposição política à
ditadura estava a exigir novos passos também na gestação da teoria e da ideologia do enfrentamento
político das classes sociais brasileiras. Como não podia deixar de ser, essa exigência passava
obrigatoriamente por uma releitura da questão regional, ou seja, pela compreensão dos espaços mais
concretos do cap ital enquanto relação social. Resgatar a questão regional pela compreeensão da
dinâmica das lutas das classes e reler o período histórico que antecedeu à derrota de 1964 passa então a
ser tarefa da maior importância.
Se, num primeiro momento, a tarefa primordial fôra demonstrar o erro da análise econômica
que fundamentara a estratégia das lutas populares nos anos 60, tratava-se agora de privilegiar a
explicação e a compreensão das conjunturas políticas concretas que deram um sentido e uma lógica
próprios à atitude das burguesias regionais no pré-64. Cabia desvendar, portanto, a relação entre a
ideologia regionalista e o movimento econômico real.
De fato, ainda que se interprete o desenvolvimento nordestino no pós-guerra como a
efetivação da tendência à homogeneização do espaço econômico naci onal, é incontestável que,
primeiro, foram as forças políticas e sociais nordestinas que lutaram por aquele resultado e, segundo,
que esse desfecho confluiu com os interesses mais caros às burguesias nordestinas.
Se isso é verdade, surgem então perguntas do seguinte teor: se a industrialização do Nordeste
deve ser explicada a partir da dinâmica da industrialização do Sudeste, como entender que ten ham sido
as elites políticas, econômicas e intelectuais nordestinas que comandaram e conduziram todas as lutas e
reivindicações nesse sentido? Como e porquê confluiram os interesses das burguesias do Nordeste
com os interesses da burguesia do Sudeste? Como e porquê pôde a burguesia nordestina liderar e
unificar os interesses das demais classes regionais?
Enveredava-se assim, pela primeira vez no tr ato dos problemas regionais, rumo a uma teoria
histórica que desse conta da relação entre as diversas esferas da formação social e de suas relações com
a base econômica. Essa linha de investigação foi inaugurada por Oliveira (1977) com um excelente
ensaio sobre a formação das classes sociais no Nordeste.
A abertura desse espaço teórico, o espaço da história política e ideológica das lutas de classe
no âmbito de uma região, impõe-nos a resolução de questões genéricas fundamentais à concepção da
política como objeto científico.
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Se não tivermos uma concepção da história recuperada nos planos da teoria da política e da
ideologia corremos o risco de balançarmos entre dois equívocos teóricos que, com respeito à tese da
homogeneização, conduziria a contrapor, em termos de antinomia, a homogeneização do espaço
econômico à concreta participação das burguesias nordestinas no processo de industrialização regional.
Poder-se-ia ass im desacreditar a tese de Oliveira. O processo político real e as mudanças ocorridas na
divisão interregional do trabalho e na estrutura da propriedade do capital no Nordeste seria uma
resultante não desejada e não visada das condições em que se desenvolveram as lutas de classe na
região. A forma concreta das lutas regionais não passaria de mera aparência do movimento econômico,
este sim considerado essencial, e o regionalismo dos anos 50 e 60 apareceria como simples
mistificação ideológica a encobrir o avanço do grande capital sulista e imperialista no Nordeste.
Nessa perspectiva, fatos decisivos como a criação da Companhia Hidroelétrica de São
Francisco (CHESF) e da refinaria de Mataripe, a construção da BR-116 - a Rio-Bahia - e outras
iniciativas que possibilitaram o crescimento capitalista nordestino no pós-guerra poderiam ser lidos
como parte de uma bem planejada estratégia de expansão do capital imperialista. Desse modo,
estariamos subtraindo o espaço teórico para a análise das lutas políticas que envolveram e
possibilitaram esses fatos.
Ao contrário, é justamente no terreno da história e da política que se situa o objeto deste livro.
A região - espaço geográfico de exploração e da luta política como reprodução das relações sociais -
serve de cenário para desvendarmos a gestação e a transformação dos discursos ideológicos das
classes sociais que pretenderam a hegemonia econômica e política. Esses discursos são analisados pari
passu à análise do desenrolar da luta das classes e do desenvolvimento da economia capitalista
nacional.
Mas para que o desenvolvimento do capitalismo no Brasil pudesse ser compreendido através
da leitura das diferentes formações políticas e sociais geradas em suas regiões, era necessário, em
primeiro lugar, apreender a lógica geral do seu desenvolvimento, posto que sem ela continuar-se-ia a
fazer da análise regional uma reprodução em miniatura da análise econômica global. Isto é, ficar-se-ia
preso à construção ideológica gerada pela prática política das burguesias regionais que primam por
incorporar os apelos regionalistas em seus discursos.
Trazer, portanto, a compreensão da lógica unitária daquele desenvolvimento e das suas
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contradições regionais foi o alicerce de uma análise científica das lutas de classe no Nordeste do pós-
guerra e, de um modo geral, para o nascimento de uma teoria histórica das formas políticas e das
formas ideológicas da sociedade brasileira moderna. Nisso reside, sem dúvida, o grande mérito da
produção sociológica brasileira dos anos 70.
Ainda restava, contudo, colocar a problemática que nos interessava, e através da qual
pretendíamos especificar e concretizar a compreensão do processo de mudança histórica na Bahia, em
seu próprio terreno teórico. Tratava-se de reconhecer a identidade da esfera política que consiste em
gerar, pela via do embate e da resolução negociada das contradições e da formação de um concenso
ideológico, as formas concretas que viabilizam os interesses econômicos das classes.
Esse livro pretendeu dar um passo nessa direção, enfrentando a tarefa de explicar as formas
concretas - geradas pela luta das classes, tanto nacional, quanto regionalmente - através das quais a
burguesia baiana participou da formação de um novo patamar de acumulação capitalista no Brasil,
moldando novas formas sociais políticas e ideológicas.
A chave para pensar a prática política das bur guesias nordestinas, num quadro de
reordenamento e re-hierarquização dos interesses específicos das burguesias regionais brasileiras,
reside no conceito de hegemonia. Gramsci desenvolvera esse conceito como um esforço de reflexão
teórica sobre a vitória do proletariado na Rússia. Segundo ele, ao contrário do que rezava a cartilha da
IIb Internacional, Lenin conseguira "mostrar a articulação dialética mediante a qual, numa determinada
situação histórica, o proletariado pode ser hegemônico mesmo numa revolução democrática
burguesa..." (apud GRUPPI, 1978).
A recusa em derivar mecanicamente da estrutura econômica da sociedade o conhecimento das
formas sociais e as tendências de seu desenvolvimento levara Lenin a privilegiar as análises concretas
de situações concretas. A mesma recusa levará Gr amsci a teorizar a prática política das classes como o
exercício da "capacidade de direção, de conquistar alianças, capacidade de fornecer uma base social ao
Estado..." (Gruppi, 1978:5). A hegemonia, para Gramsci, não se restringe ao político e ao econômico,
mas abrange com particular vigor as formas ideológicas - a religião, a moral, as artes, a ciência e a
filosofia.
A teoria da hegemonia foi cen tral para o desenvolvimento, no século XX, de uma ciência
política marxista (Poulantzas, 1972; Milliband, 1969; Offe, 1985; Przeworski, 1985). A teoria refletia,
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assim, o desenvolvimento da luta das classes nas formações sociais capitalistas avançadas, sendo, a um
só tempo, o resultado e a premissa do avanço do marxismo enquanto ciência e ideologia do
proletariado. Ela foi imprescindível para uma avaliação científica dos pontos de ruptura histórica já que
é nesse terreno onde se resolvem os conflitos estruturais.

Se o que disse Engels em relação ao Estado2 é aplicável, com maior razão, à prática política
em geral, então, uma vez verificadas as condições estruturais básicas que fazem "do regime político ...
o elemento secundário e [da] sociedade civil, o reino das relações econômicas, o elemento
decisivo" (apud Gruppi, 1978:97), é justamente sobre o primeiro, o regime político, que deve
concentrar-se, não apenas o esforço ativo das classes, como o esforço interpretativo do movimento
histórico.
Deste modo, o conceito de hegemonia, em Gramsci, além de referir-se à formação de alianças
e à capacidade de direção, dará especial ênfase aos instrumentos que permitem a realização tanto da
dominação quanto do consenso, que são os elementos constituintes do poder de Estado. Neste campo,
a principal colocação gramsciana é de que uma hegemonia só pode s er construída por intelectuais, cujo
conceito é alargado para incluir não apenas os trabalhadores especializados na criação e difusão das
formas artísticas, científicas e filosóficas, mas todos aqueles que perfazem ininterruptamente o trabalho
de mediação entre a estrutura e a super-estrutura, seja expressando formas ideológicas, seja
transformando-as em ações concretas. Enquanto aqueles podem ser referidos sob a denominação de
grandes intelectuais, os últimos são denominados intelectuais orgânicos para enfatizar sua condição de
verdadeiros instrumentos de hegemonia de uma classe.
Aos intelectuais orgânicos cabe a definição do projeto onde a classe toma consciência de seus
interesses históricos e da relação desses com os interesses das demais classes da sociedade. Cabe-lhes,
ademais, organizar a classe, tanto no plano da ação econômica, através da organização de sindicatos e
associações, quanto no plano da ação política, através da formação de partidos. Cabe-lhes, sobretudo,
ocupar os postos da sociedade civil e do Estado, de onde se irradiam e se conformam as interpretações
consensuais sobre o mundo físico e social.
Nesse livro, o conceito de hegemonia é utilizado para referir-se ao processo de estruturação
de um pensamento consensual, que busca transpor os limites dos interesses de classe para atingir, no
plano da ação política, uma hierarquização do conjunto dos interesses sociais. O processo tem como
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pressuposto a possibilidade objetiva dos interesses econômicos de uma classe ou facção serem capazes
de articular os interesses de outras classes ou facções, o que restringe a possibilidade de construção e
exercício da hegemonia às classes fundamentais do modo de produção.
Efetivamente, o processo inicia-se com a explicitação de um projeto de classe que unifique os
interesses estruturalmente solidários, através de uma proposta política referida ao conjunto da
sociedade civil e externa às estreitas relações de classe, isto é, gerada pelos intelectuais no contexto da
articulação dos diversos segmentos sociais.
Assim, o conceito de hegmonia pode ser usado para conformar tanto a análise da ação
política de uma classe em relação às outras, em torno de uma matriz de interesses econômicos
definidos na esfera da produção, como pode fundamentar a análise das relações entre as diversas
facções de uma mesma classe, em torno de um projeto que expresse unitariamente as tendências
contraditórias da classe.
No nosso caso, pode-se dizer que, no pós-guerra, a classe que desponta na Bahia com
capacidade de propor um projeto político hegemônico sobre o espaço regional é a burguesia, através de
sua facção financeira e comercial. Do ponto de vista econômico, essa facção controlava as parcelas do
capital (capital dinheiro e capital mercadoria) que eram o núcleo da estruturação do ciclo do capital em
seu processo de valorização e de reprodução internos; do ponto de vista político-ideológico, era a
facção que monopolizava os contatos com as culturas estrangeiras e, através delas, com o arsenal
técnico, filosófico, pedagógico, artístico, jurídico e religioso produzido nas formações sociais
capitalistas mais adiantadas. Além disso, era incontestável a tradição de sua influência sobre a vida
política e cultural brasileira, ajudando a forjar os fundamentos da cultura nacional em aspectos
decisivos para a dominação burguesa - a identidade nacional, a identidade étnica, a identidade
linguística, a identidade moral e religiosa.
É portanto por sobre essas condições historicamente objetivas que se coloca a possibilidade
de hegemonia nesse espaço regional. Para acompanhá-la a compreendê-la em seus desdobramentos
históricos, a investigação terá que pautar-se (embora sem ceder à tentação de limitar-se a elas) tanto
sobre uma lógica de desenvolvimento econômico, dada pelo curso tendencial das leis de
desenvolvimento do modo de produção capitalista, quanto sobre uma lógica de desenvolvimento
político que enfeixe a coerência e a previsibilidade da ação social das classes nas formações sociais
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capitalistas.
No entanto, a lógica concreta, isto é, a que dá coerência à história real dessa sociedade, não
pode jamais ser reduzida a uma ou a outra das lógicas que fundamentam a investigação, ou mesmo a
uma espécie de dialética apriorística entre elas. Trata-se, antes de mais nada, de estudar a confluência de
fatores que teceram as condições específicas de constituição das classes, camadas e gru pos sociais
nesse espaço econômico e político concreto, assim como de esclarecer as especificidades de cada
situação conjuntural em que se exerce a ação política dos grupos. Assim, para usar uma linguagem
althusseriana, poder-se-ia dizer que à medida em que o movimento conjuntural é sublinhado,
compreender as sobredeterminações passa a ser mais decisivo que compreender as determinações.
No nosso caso, dois movimentos são importantes para costurar a compreensão do
desenvolvimento histórico no que ele pode ser explicado pela confluência dialética do desenvolvimento
econômico e do desenvolvimento político-ideológico.
Em primeiro lugar, importa estudar a formação e a interação das classes sociais na Bahia e
daquelas facções que terão, ou poderiam ter a função hegemônica, tanto na estruturação in terna de cada
classe, quanto na estruturação da sociedade regional. Nesse aspecto é importantíssimo estudar as
facções mercantil-financeira, agrícola-fundiária e industrial da burguesia, assim como o proletariado
industrial, o campesinato e a oligarquia. Em segundo lugar é necessário acompanhar a gestação da
sociedade burguesa nacional através das relações que se estabelecem nos espaços regional e nacional
entre as facções decisivas para o seu desenvolvimento: a burguesia e o proletariado industrial.
Concretamente, isso significa estudar a inserção da burguesia mercantil-financeira baiana no bloco de
poder nacional e a relação do proletariado industrial baiano com o proletariado nacional, na formação
de uma proposta hegemônica alternativa.
O referencial teórico que empregamos para buscar ex plicitar tal lógica pode ser sumarizado
pela formulação de quatro principais campos explicativos que funcionaram na formação de hipóteses e
que procuraram sintetizar as contradições entre os interesses das classes sociais ou das suas facções.
Em primeiro lugar, o projeto de hegemonia da burguesia baiana jamais poderia ser
compreendido fora do contexto da reestruturação do bloco de poder nacional qu e ocorre a partir de
1930. De modo que tratou-se, primeiramente, de compreender a estruturação do discurso burguês na
Bahia na perspectiva geral da inserção de sua facção mercantil-financeira no bloco nacional, ou seja, o
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seu projeto de hegemonia teria necessariamente que garantir, ao mesmo tempo, inserções regional e
nacional proeminentes. Esse campo explicativo se expande na direção da compreensão de como a
burguesia mercantil financeira se posiciona diante das demais classes e camadas regionais,
construindo, por assim dizer, uma aliança tácita entre elas.
Em segundo lugar, como desdobramento do primeiro campo, tinha-se que introduzir e
absorver teoricamente a independência que marca a ação de algumas camadas sociais, à medida que as
contradições se tornam indefinidas num determinado plano. No caso baiano, era importante
compreender como algumas camadas médias acabam por propor, às vezes com maior pertinência
histórica, a proposta hegemônica da burguesia mercantil-financeira e, ao mesmo tempo, as mesmas
camadas conseguem representar as aspirações do emergente proletariado urbano, fazendo-o confluir
para o plano político.
Em terceiro lugar, cumpre realçar as divergências conjunturais e estruturais entre a oligarquia
fundiária e a burguesia baianas, divergências que poderiam ou não se aprofundar à medida que as
contradições entre o campesinato e a oligarquia se ampliassem. Havia, primeiramente, a necessidade da
burguesia deslocar da cena política o discurso e a representação oligárquicos e, secundariamente, a
necessidade de garantir o surgimento, em seu lugar, de uma burguesia fundiária e agrícola que, na
prática, entrava também em conflito com os interesses do campesinato e do proletariado rural.
Por fim, o último campo explicativo deve ser demarcado pela constituição do proletariado
enquanto classe, seja no espaço nacional, seja no regional. À medida que a consciência de classe vai-se
cristalizando, vão-se, ao mesmo tempo, aprofundando algumas alianças em detrimento de outras,
notadamente a sua aliança com o campesinato. É nesse campo que se coloca a contradição principal de
qualquer formação capitalista em geral, a luta entre a burguesia e o proletariado.
No entanto seria utópico pens ar que poderíamos trabalhar operacionalmente com igual rigor
os quatro campos explicativos. A riqueza e a quantidade de material empírico disponível para a
operacionalização de alguns campos eram contrabalançadas por significativas lacunas localizadas em
pontos específicos. Fomos assim obrigados a optar por trabalhar preferencialmente com o discurso
burguês e com as contradições intra-burguesas, cingindo-nos às fontes dos dois primeiros campos
explicativos e introduzindo, dos outros campos, apenas o material que era imprescindível para colocar
os problemas surgidos no imbricamento que torna possível a sua análise.
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Empiricamente, os dois primeiros campos explicativos puderam ser tratados com uma base
documental muito rica e diversificada. Utilizou-se, primeiramente, e com exaustão, os relatórios do
Banco da Bahia entre 1946 e 1972; um material analítico e documental de riqueza até então
inexplorada, que reflete, com clareza e precisão invulgares, as diversas conjunturas econômicas
nacionais e regionais, tal como percebidas pela burguesia financeira baiana e de onde emergem, com
surpreendente vitalidade, os anseios, as frustações, as aspirações, enfim todo o universo político-
ideológico em que se movia aquela facção burguesa. A importância dessa fonte doi tão grande que
mais de uma vez, no texto, rendemos homenagem a seu autor, Clemente Mariani, cujo pensamento e
vida personificaram, exponencialmente, o conjunto de práticas e de idéias da burguesia baiana no
período. Ao lado dos relatórios, foram ainda utilizados alguns artigos e estudos históricos do próprio
Mariani, e de outros autores burgueses, de modo a compor detalhadamente o pensamento e o projeto
político da facção mercantil e financeira entre 1930 e 1964.
Como existe uma distância grande entre o discurso proferido pelos intelectuais e o discurso
prevalescente na prática de um grupo social, procurou-se analisar as transformações do discurso
através do estudo de duas outras fontes.
Em primeiro lugar, como naquele período a unidade da classe, em termos de representação
econômica, era costurada preferencialmente pela Associação Comercial da Bahia, acompanhamos a
evolução do seu discurso através da análise de seus boletins mensais.
Em segundo lugar, para retraçar a eficiência política do discurso burguês, ou seja, as
modificações que sofria quando dirigido para o conjunto da sociedade civil, com o objetivo político de
representá-la como um todo, empreendemos a análise de duas outras fontes: os discursos dos
governadores do Estado, através de suas mensagens à Assembléia Legislativa, e os jornais diários.
Enquanto a primeira refletia a eficiênciia do projeto burguês para o efetivo exercício da
liderança e do controle do estado, a segunda permitia acompanhar o trabalho cotidiano de construção
da ascendência ideológica da classe. Aqui, outra vez, a riqueza e a quantidade de informações nos
obrigou a limitar, às vezes a contragosto, o levantamento às estritas necessidades do nosso objeto.
Tivemos que escolher entre os diversos jornais e depois definir os intervalos de tempo que seriam
pesquisados. Não poderíamos arriscar ao acaso uma sistematização que não estivesse amarrada às
nossas hipóteses. Optamos, então, por centrar o levantamento do material jornalístico sobre o jornal "A
18

Tarde", órgão tradicional de veiculação do pensamento conservador na Bahia e jornal de maior


circulação do Estado. Apenas em casos especiais foram levantados dados em outros jornais, como o
"Diário da Bahia" e o jornal de esquerda "O Momento", que circulou entre 1950 e 1958.
A questão dos períodos de referência para os levantamentos foi solucionada fazendo-se,
primeiramente, uma listagem dos anos o nde ocorreram fatos objetivamente decisivos para a construção
de uma hegemonia burguesa, como a construção da refinaria da Mataripe, a criação da Petrobrás, da
Chesf, da CPE, do Banco do Nordeste do Brasil, etc., e outros anos onde se esperava ver evidenciados
os conflitos de interesse e de idéias, como os de campanha eleitoral e de mudança de governo. Além
desses, fez-se um trabalho de busca casu al e não sistemática para delimitar o material disponível que
acabou sempre recolhendo dados preciosos.
Saliente-se que essas fontes, tanto os jornais quanto os relatórios, boletins e mensagens
citados, foram também a principal base sobre a qual nos apoiamos para reconstrução da história
econômica, política e social da Bahia durante o período 1930-1964.
O segundo campo explicativo foi desenvolvido sobre a análise dos estudos e planos de
governo elaborados pela CPE, entre 1956 e 1961, sob a coordenação de Rômulo de Almeida e pelo
Instituto de Cacau da Bahia, em 1947, sob a responsabilidadee de Inácio Tosta Filho. Além desses, os
escritos de Rômulo de Almeida foram de extremo valor, não apenas para investigação da história do
planejamento na Bahia mas, também, para o conhecimento da sua histó ria econômica. Desejo aqui
expressar o nosso apreço e admiração pelo intelectual e pela pessoa de Rômulo de Almeida. Ele
próprio poderia discordar da interpretação que demos de sua participação histórica, das suas idéias e da
classe que elas representaram. Certamente Almeida, como todos os protagonistas da história, estarão
sujeitos a interpretações desagradáveis, verídicas ou equivocadas. Temos, no entanto, a certeza de não
ter abrigado o espírito da injustiça: ao tratá-lo como tratamos não esquecemos a sinceridade e a
coragem dos sentimentos que sempre o aproximaram dos trabalhadores e do povo da Bahia.
Os outros dois campos explicativos esbarraram na ausência de fontes documentais para
serem melhor operacionalizados. A atuação e o pensamento da oligarquia e do campesinato no período
foram, de algum modo, traçados a partir das informações esparsas encontradas a esse respeito nas
fontes até aqui citadas. No entanto, para esse como para o último campo, foram fundamentais e
decisivas as entrevistas feitas com Rômulo de Almeida, Fernando Santana, Iracy Picanço e Aristeu
19

Nogueira. Temos perfeita consciência que o tratamento desigual dado à operacionalização dos campos
deixaram algumas questões implícitas e outras sem serem colocadas claramente no texto. Esse foi,
todavia, o preço que pagamos para manter a integridade de nossa proposta de investigação diante das
limitações de tempo e de recursos.
Quanto à estrutura do texto podemos apresentá-la assim: no primeiro capítulo tratamos do
quadro histórico dentro do qual emerge a nossa problemática. Retraçamos aí os antecedeentes da
formação da burguesia mercantil e financeira baiana e tratamos com especial ênfase a ruptura do bloco
histórico, representada pela Revolução de 1930. No segundo capítulo tentamos mostrar a reação dessa
facção burguesa a seu alijamento do poder nacional, acompanhando o nascimento e a so lidificação de
um discurso liberal-burguês e a reorganização de sua representação de classe. Em seguida, estudamos
o surgimento de um discurso alternativo ao projeto burguês inicial que será absorvido, gradativamente,
pelos políticos e governadores. Esse discurso reformista esteve ligado ao aparecimento do
planejamento econômico como técnica de administração pública e como ideologia política. Foi ele que
intermediou e unificou os interesses regionais e nacionais da burguesia. No terceiro capítulo,
mostramos como, diante das circunstâncias históricas concretas, acaba por prevalecer uma ideologia
burguesa dominante, a que chamamos de regionalismo, um discurso que incorporava tanto as bases
liberais da grande burguesia quanto o reformismo desenvolvimentista das camadas médias. No
capítulo quarto e quinto analisamos a representação política burguesa e sua atuação à frente do governo
do Estado da Bahia e traçamos o quadro político dentro do qual soçobram as tentativas da burguesia
baiana de forjar seu domínio ideológico e político sobre uma sociedade democraticamente organizada.
20
21

PARTE II

O DESENVOLVIMENTO DO DISCURSO
BURGUÊS: do Liberalismo ao Regionalismo
22

Introdução

A hegemonia é sempre a expressão, nas arenas políticas e ideológicas, de uma certa


organicidade que têm as classes no plano da produção. Mas é também um pacto que possibilita,
ao mesmo tempo, a manutenção ou alteração daquela organicidade já que a continuidade da
hegemonia depende, substancialmente, da garantia de um terreno onde os compromissos e os
interesses possam se reproduzir e se reorganizar.
Se isso é verdade, pode-se dizer que faltava aos objetivos "revolucionários", tal como
se expressaram na Bahia, nos anos 30, a possibilidade de forjar uma hegemonia. Pois se a
Revolução de 30 pode ser interpretada a posteriori como uma revolução burguesa, i.e., de
construção de um estado burguês, faltou, justamente, a classe que conduzisse aquela revolução.
A burguesia cacaueira era po uco desenvolvida para movimentar-se fora dos horizontes agrários,
enquanto a oligarquia do Recôncavo e dos sertões era uma classe economicamente prostrada,
sem perspectivas históricas. Daí a contradição, apontada por muitos historiadores, da revolução
“burguesa” ter sido conduzida por “tenentes” e, para firmar-se, ter recorrido a um pacto de forças
oligárquicas, cujo conceito é, aliás, ampliado para caber a burguesia agrária.
Era natural, entretanto, que a própria lógica da crise capitalista que deprimiu os
interesses do capital mercantil nos anos 30, fizesse-o, ao mesmo tempo, nos anos posteriores,
concentrar-se. Isso possibilitou que a burguesia mercantil-financeira ressurgisse, na esfera
econômica, como a classe que poderia comandar o processo de desenvolvimento capitalista na
Bahia. Es sa classe era representada por alguns poucos e grandes grupos exportadores,
bancários, e industriais, como o Banco Econômico da Bahia, o Banco da Bahia, o grupo Barreto
de Araújo, os Wildenberg, etc.
Por outro lado, com o fim da Segunda Guerra Mundial tem início um período político
substancialmente novo na vida nacional. A guerra na Europa permitiu aos militares brasileiros o
contato com as catastr óficas consequências morais e sociais do nazi-facismo, o que desarmou no
espírito militar a proposta de uma solução ditatorial para os problemas do nosso incipiente
capitalismo e retirou, portanto, o principal sustentáculo da ditadura de Vargas. No plano
23

econômico começam a se cristalizar as principais tendências do desenvolvimento capitalista


brasileiro. Os anos do Estado Novo, em que o poder estatal governou para a burguesia, mas sem
ela, aguçaram profundamente os efeitos concentracionistas e as resultantes desigualdades
regionais que o desenvolvimento capitalista já começara a marcar.
Passadas, portanto, a crise econômica, a guerra e a ditadura, a burguesia mercantil e
financeira baiana descobre-se, de novo, a principal classe burguesa de uma economia
exportadora que passa a ser gravada pela formação do parque industrial brasileiro. Para inserir-
se no processo de desenvolvimento nacional, resguardando, ao mesmo tempo, seus interesses
específicos, era preciso forjar um sistema de idéias onde aquele processo, principalmente a
industrialização, convergisse com os seus interesses no comércio exportador, de tal modo que
essa ideologia, orientando sua própria política, levasse-a de novo a incrustar-se no bloco de
poder nacional. Naquelas ciscunstâncias, para satisfazer essas condições, o discurso teria que
adquirir necessariamente um tom regionalista.
Assim, o restabelecimento de uma república democrática parlamentar, consubstanciada na Carta
de 1947, encontra as classes burguesas baianas numa postura política nova. A opção
democrática permite à burguesia um aprofundamento da consciência dos problemas econômico-
financeiros do Estado, sobre os quais ela concentra a sua atuação pública.
Desenvolve-se, na verdade, uma poderosa ação das classes burguesas, através
principalmente da Associação Comercial da Bahia e dos bancos Econômico e da Bahia, no
sentido de influenciar e pressionar tanto o executivo quanto o legislativo na busca de soluções
convenientes para os problemas "baianos". Para isso despende-se um esforço de
aprofundamento do conhecimento da situação econômica financeira do Estado, feito por essas
instituições, às quais se juntam, nos anos 50, a Universidade Federal da Bahia e a Comissão de
Planejamento Econômico (C PE) do Governo Estadual.
É objetivo desse capítulo expor e analisar três sistemas de idéias ou projetos de classe,
através dos quais os interesses das classes sociais ligadas ao desenvolvimento capitalista na
Bahia são soldados e harmonizados: o liberalismo, o reformismo desenvolvimentista e o
regionalismo.
Coube a Clemente Mariani a primazia de construir e expressar o sistema de idéias e o
24

projeto socioeconômico que marcarão o despertar do amplo movimento regionalista, o qual


norteará nas décadas seguintes as pretensões das demais classes e camadas sociais. Pelas suas
facetas de estadista, intelectual e empresário, Mariani, presidente do Banco da Bahia desde 1943,
foi talvez a personalidade burguesa mais importante desse período, na Bahia.
Até 1972, quando será vendido ao BRADESCO, o Banco da Bahia S.A., através de
seus relatórios anuais de atividade, transforma-se no espaço privilegiado de acompanhamento da
conjuntura econômica, política e financeira do Estado e na principal tribuna ideológica da
burguesia baiana. Até 1955 o Banco será o principal centro irradiador do pensamento econômico
na Bahia e, depois de 1955, dividirá com a Comissão de Planejamento Econômico e a
Univ ersidade da Bahia esse papel, que gradativamente irá perdendo, embora continue a editar a
principal resenha econômica.
O projeto liberal-burguês é construído e expresso no seio do grande capital mercantil e
financeiro baiano e pode ser considerado como o herdeiro do tradicional liberalismo da
oligarquia. A atitude política dos intelectuais tradicionais, conhecedores da lei e do vernáculo,
que não tiveram outra reação frente à nova ordem, nos anos 30, senão bradar contra o
desrespeito à Constituição e ao direito, estava ultrapassada. Para a burguesia, mais que a
liberdade, o fundamental é o dinheiro, por isso sua nova geração, sem despir-se do espírito
liberal e democrático, aprofunda o conhecimento do dinheiro, recupera a língua da economia e
das finanças.
Essa nova geração sai a campo, no pós-guerra, com um discurso econômico que
procura retomar as possibilidades históricas, e propõe um plano de recuperação não apenas da
sua facção de classe, mas de toda a região.
O segundo projeto, reformista e desenvolvimentista, é expresso por um grupo de
intelectuais de origem pequeno-burguesa que, ao contrário dos liberais, não se filiam
pessoalmente ao grande capital mercantil-financeiro nem esposam seu sistema de valores. Ao
contrário, filiam-se diretamente ao novo pacto de forças que se expressa no estado brasileiro no
pós-trinta e, no plano das idéias, refletem o pensamento econômico do capitalismo monopolista,
advogando o planejamento racional da economia.
Esses dois sistemas de idéias - o liberalismo e o desenvolvimentismo - têm
25

temporalidades históricas distintas, apesar de se sobreporem por alguns anos. O primeiro pode
ser corretamente situado entre 1946 e 1954, isto é, no período que vai da redemocratização do
país ao suicídio de Vargas que, em termos regionais, corresponde, grosso modo, aos períodos
governamentais de Otávio Mangabeira e Régis Pacheco. O segundo surge na cena política em
1955, com a criação da Comissão de Planejamento Econômico do governo do Estado e parece
vigorar até 1960, quando a rejeição do Plano de Desenvolvimento Econômico - Plandeb - pela
Assembléia Legislativa, desfaz a possibilidade do planejamento como instrumento de governo, o
que, também grosso modo, corresponde, em termos nacionais, aos períodos JK e Jânio
Quadros.
O pensamento do grande capital baiano, entretanto, nunca coincidiu completamente
com o pensamento reformista. O Banco da Bahia, por exemplo, continuou a expressar as
diferenças de opinião que correspondiam aos seus interesses mais específicos. Do mesmo
modo, quando, na conjuntura dos anos 60, ficou clara a incapacidade do projeto reformista
soldar os interesses burgueses e oligárquicos, esse projeto tenderá a expressar cada vez mais
uma constelação de forças for temente marcada pela presença popular e sindical.
É como resultado dessas contradições sociais, e das fissuras que a luta das classes
impinge aos dois projetos anteriores, que aparece, mais nitidamente a partir dos 60, o discurso
regionalista. Um discurso econômico pragmático, enunciando apenas princípios gerais de
unidade ideológica, deixando as grandes diretrizes econômicas para, de novo, serem traçadas nos
salões das casas burguesas, ao invés de serem objeto da luta política e do debate público, como
tentou fazer o planejamento. Esse período, que chamo de regionalista, será expresso
principalmente pelas páginas de um jornal diário de grande circulação, A Tarde.
26

18

CAPÍTULO 2: O PASSADO FASTUOSO E A REVOLUÇÃO DE 30

A cidade da Bahia foi, durante o período colonial, a sub-metrópole, a feitoria-fortaleza,


sede da administração portuguesa na América. A sua praça comercial estava ligada à produção e
ao comércio internacional do açúcar. Este produto, que junto com o ouro das Minas Gerais, fôra a
fonte de toda a riqueza de Portugal no Brasil, começou a declinar em fins do século XVII e
princípios do seguinte, frente à concorrência do açúcar antilhano e do açúcar de beterraba
europeu. Face à conjuntura internacional desfavorável, aguçaram-se os problemas de
produtividade da lavoura e de seu custo. Era tão rígida a estrutura de custo da produção escravista
e a composição técnica da indústria açucareira que a distância dos mercados consumidores e a
fertilidade natural da terra tinham um peso muito grande no preço final do produto e, portanto, na
lucratividade da lavoura e da sua comercialização1.
Nos anos 40 do século XIX, o açúcar deixava de ser o principal produto brasileiro de
exportação, substituído pelo café que não "encontra condições geológicas ou climáticas para a ex-
pansão em larga escala" no território baiano, desenvolvendo-se rapidamente, no entanto, no
sudeste do país e abrindo o caminho futuro do desenvolvimento das forças produtivas da nação
(Mariani, 1977:68).
Mas o declínio da importância das atividades produtivas na Bahia não se faz sentir
apenas por aí. Também sua participação na produção açucareira do Império decai durante o
período, passando de 43,6% em 1850/51 para 18,1% em 1877/78, embora continue como o
principal produto da Bahia, responsável por 69,8% das exportações em 1850/51, até 1872/73,
quando sua participação é de 27,2%, cedendo o primeiro lugar para o fumo, que participa então
com 31,% (Bahia/CPE, 1978).

1. Clemente Mariani (1977:62) usa-as para explicar o declínio da atividade açucareira na Bahia, o que,
evidentemente, diz apenas uma parte da verdade, pois, como se verá adiante, estiveram presentes aqui outras
circunstâncias mais especificamente decisivas.
"... além da queda progressiva dos preços, a zona apropriada à produção do açúcar já fora por assim dizer
ultrapassada nos seus limits naturais, decaindo rapidamente os engenhos fundados fora do massapê do recôncavo,
uma vez esgotado o humus vegetal das terras virgens".
27

19

O dinamismo da economia agro-exportadora baiana mantém-se até 1868/69, apesar do


declínio da atividade açucareira, graças ao aumento das exportações de diamantes, entre 1851 e
1865, e do algodão, entre 1863 e 1871. Daquele ano em diante, as exportações decrescem
rapidamente para atingir uma média de valor da ordem de 696.353 libras esterlinas em 1886/87
quando, em 1868/69, era de 1.391.362 libras (BAHIA-CPE, 1978:54,60).
Se o declínio da economia açucareira baiana não é sentido em toda a sua plenitude é
porque, embora mais rigoroso na Bahia, ele ocorre em todo o país. Na Bahia, a queda da
exportação do açúcar foi de algum modo compensada pelo aumento das exportações de fumo,
café, cacau, diamante e, conjunturalmente, do algodão. Num breve espaço de tempo, portanto, no
bojo da crise geral da economia do Império, a Bahia pôde manter sua posição relativa no con-
junto das exportações brasileiras. Não se tratava, propriamente, de uma diversificação da
produção, no sentido positivo que lhe atribuem os críticos da monocultura, mas sim de uma
quebra da atividade produtiva, que o comércio exportador procurava compensar através da
comercialização de produtos naturais ou de outros produtos cultivados, que nunca atingiram a
importância do açúcar.
A longo prazo, entretanto, é lícito dizer "que, pela sua significação econômica e social, a
incapacidade de crescimento da atividade açucareira é o fato responsável pela estagnação da eco-
nomia agro-exportadora baiana" (ARAUJO e SA BARRETO, 1978:50). Isso porque a rigidez do
modo de produção escravista, a natureza da inserção internacional do Brasil e os limites de ordem
propriamente naturais impediam, concretamente, o desenvolvimento daquela economia. Os
intelectuais burgueses reconhecem implicitamente a determinação privilegiada da inserção
imperialista do país quando dizem que
"a modificação de estrutura do comércio exterior, com o açúcar perdendo
gradativamente a importância de que se revestira no período colonial, foi assim a
primeira causa da relativa decadência econômica da Bahia ..." (MARIANI, 1977:62).

A partir de 1870, quando o mercado internacional do café começa a se expandir a


grandes passos e não se encontram na província os requisitos para sua expansão, fica nítida a
incapacidade da agro-exportação manter a Bahia na antiga posição de destaque. Porque, então,
esses intelectuais insistem em encarar a abolição da escravatura, que representava um fator de
28

20

rigidez, como uma causa de acentuamento da decadência e não de demarragem das forças
produtivas?2
A resposta parece estar na estrutura do sistema mercantilista. Para chegarmos a ele
convém, inicialmente, retraçar a quebra do monopólio colonial português. Quando, em 1808, as
côrtes de Lisboa aportam na Bahia, abrevia-se o fim do império colonial português na América.
Àquela altura, em plena revolução industrial, o império português torna-se algo de anacrônico
diante do poderio bélico e do desenvolvimento econômico e financeiro da Inglaterra e da França,
que forjam no free trade e no laissez faire seus modos de expansão.
A abertura dos portos brasileiros "às nações amigas" é, assim, menos um ato de
sabedoria política que de submissão às novas circunstâncias internacionais que se traduziam na
ocupação militar da metrópole. De qualquer modo, o exclusivo colonial, alicerce do colonialismo
mercantilista português estava rompido. Não se pode deixar de reconhecer as vantagens que tal
fato trouxe à Bahia. Pois se
"em todas as capitais de província, foram gerais por esse tempo, no Brasil, o aumento
da edificação e o desenvolvimento das artes, mais [o foi] porventura na Bahia do que
em qualquer outra, pelo notável crescimento de sua riqueza, denunciado pela anual
subida do movimento comercial" (Oliveira, apud Mariani,1977:60).

No entanto, é somente depois da guerra da Independência - que, na Bahia, assumiu


forma especialmente violenta, prolongando-se em rebeliões, levantes e motins de 1824 a 1838 -
que o exclusivo foi inteiramente desfeito e uma nova ordem econômica, social e política se
estabelece. O caráter mercantilista da Bahia aparece com nitidez no episódio da Independência.
No dizer de Araújo e Sá Barreto:
"A praça de Salvador não tem suas atividades limitadas ao escoamento da produção
baiana e abastecimento da sociedade local de bens importados, inclusive os escravos.
O seu raio de ação é bastante amplo, estendido através de rotas de cabotagem e das
rotas atlânticas portuguesas. Talvez isso justificasse uma postura de superioridade
excessiva por parte dos comerciantes portugueses em relação aos brasileiros
produtores, alentada pela perspectiva de a cidade poder sobreviver à independência do
Brasil como enclave português. A política e a estratégia militar portuguesa durante a

2. É ainda MARIANI (1977:62) quem diz: "O processo de decadência se aceleraria dentro em pouco com a
transformação do regime de trabalho, de escravo em livre, ou pseudo-livre, sem nenhum programa da parte do
Governo para facilitar a transição, nem a correção espontânea, embora penosa, que as condições climáticas não
propiciavam, ao contrário do que sucedia no Sul, do afluxo migratório".
29

21

guerra da independência justificam tais considerações" (ARAUJO e SA


BARRETO,1978:43).

Os mesmos autores apontam ainda para as principais consequências dessas lutas:


a) Os portugueses são deslocados do grande comércio de exportação-importação em detrimento
de ingleses, principalmente, e de representantes de outras casas comerciais européias. O
deslocamento não significa, contudo, o total desaparecimento dos portugueses do comércio, pois
entre os 30 e os 40 eles ainda dominam o ramo de secos e molhados; tampouco significa uma
simples mudança de nacionalidades.3
b) A quebra do exclusivo colonial possibilita a emergência de uma classe comerciante brasileira,
ligada ao crédito, ao financiamento e à intermediação de mercadorias, que ocupa, junto aos
comerciantes estrangeiros referidos no item anterior, o espaço antes ocupado pelos portugueses.4
c) O deslocamento dos portugueses importa em significativa mudança na estrutura interna das
classes dominantes. No entanto, a verdade é que o modo de produção escravista continua domi-
nante e, com ele, a estrutura mercantilista de comercialização.
É justamente a conservação dessa estrutura econômica - uma burguesia mercantil-
financeira local, que funciona, ao lado de casas importadoras, de bancos e de companhias de
navegação estrangeiros, como elo de ligação entre a economia brasileira e a economia mundial -
que explica, em grande parte, o comportamento da burguesia baiana, e de seus intelectuais, diante
da crise da economia açucareira.
A província adapta-se às circunstâncias internacionais adversas à colocação externa de
seus produtos não pela reestruturação da lavoura canavieira - seja pela adoção de novas técnicas
de plantio ou de refino, seja pela introdução de novas relações de trabalho - de modo a enfrentar a
concorrência das novas áreas produtoras, mas, denotando o peso da burguesia mercantil na estru-
tura de poder, pela incorporação de novos produtos à pauta de exportação e, principalmente, pela

3."Ingleses inicialmente, alemães e suiços, posteriormente, dedicam-se à exportação mas mantêm para os nacionais
uma faixa de atuação, ou seja, possibilitaram a que agentes locais se dedicassem ao financiamento da cultura e
fossem efetivamente os intermediários entre os produtores e os exportadores".(ARAÚJO e SÁ BARRETO, 1978:76)

4."Na década de 30 as casas de negócio não detinham grandes capitais e a formação de grandes cabedais estava
ligada ao tráfico de escravos, ao suprimeiro (gêneros e crédito) aos senhores de engenho e ao comércio de cabo-
tagem" (ARAùJO E Så BARRETO, opus cit., p. 76.)
30

22

formação de companhias de navegação de cabotagem, pelo florescimento do comércio de


escravos e pelo desenvolvimento de indústrias de transformação, notadamente de um parque
têxtil.
A proeminência da praça comercial sobre o parque produtivo, a hegemonia da burguesia
mercantil sobre a aristocracia agrária, é percebida por Araújo e Sá Barreto como uma
sobrevivência da sub-metrópole do Atlântico Sul, herdeira de uma zona privilegiada de influência
comercial e destacada como principal causa do retardamento das forças produtivas na província.
Dizem:
"A decadência da cultura há que ser vista dentro do quadro geral em que se encontra:
restrições de mercado externo, técnicas superadas, não adoção de novas formas de
trabalho de modo a minimizar os impactos da limitação crescente da mão-de-obra
escrava, e principalmente a dependência ao capital comercial - enfim esse conjunto de
circunstâncias não permite à lavoura açucareira se organizar em novas bases"
(ARAUJO e SA BARRETO,1978:69).

No entanto, do modo como o fazem, derivando diretamente da esfera econômica, sem a


intermediação da política, diretamente do capital comercial e não da burguesia mercantil, a deter-
minação do modelo de acumulação que deprimia as aplicações produtivas, os autores acabam por
aprisionar-se no círculo do conceito de capitalismo comercial, no qual o caráter intrínseco e
logicamente usurário do capital comercial representa um freio ao desenvolvimento das forças
produtivas. Ora, tanto isso não é verdade que o capital comercial esteve presente em todas as
áreas de grande desenvolvimento, às vezes com maior intensidade, como no Rio de Janeiro, sem
que tenha ocasionado o estancamento que se passou na Bahia.
Já Mariani, trabalhando com a ideologia liberal burguesa, lista entre as causas do atraso
baiano, além dos problemas de concorrência internacional, os fatores naturais, climáticos e geoló-
gicos que impediam o crescimento da produção açucareira, algodoeira e cafeeira na Bahia, ao
contrário do que ocorria em outras províncias do Império.
Tem-se que ter a devida clareza ao separar o peso específico desses fatores numa
explicação teoricamente consistente. Em primeiro lugar, não há dúvidas de que, numa economia
dependente como a brasileira, advém do mercado internacional a própria possibilidade do
desenvolvimento das forças produtivas que viabiliza o surgimento de uma economia capitalista
na periferia. Em segundo lugar, parece lógico que fatores naturais, como o solo, o clima e a
31

23

distância, tenham um grande peso na viabilidade comercial das culturas de exportação que
propiciam aquele desenvolvimento, principalmente quando cultivadas sob o modo de produção
escravista.
Não se pode esquecer, contudo, que houve áreas, como Pernambuco, onde os mesmos
fatores estiveram presentes e, no entanto, deu-se uma outra conformação histórica. Nesse caso, no
que pesem fatores naturais e fatores estruturais, foi decisiva a correlação de forças dos principais
grupos dominantes - a burguesia mercantil e a aristocracia agrária - na determinação dos
caminhos que tomou a acumulação de riquezas. Na Bahia, talvez por estar assentada no antigo
circuito mercantilista português, a burguesia mercantil sobrepuja de muito as classes agrárias, e
por isso imprime uma feição mais propriamente comercial à economia.
De meados do século XIX em diante é espetacular o crescimento das importações
baianas, que não apenas compensam a queda das exportações como aumentam o valor do
comércio exterior. Em 1851/ 52, para um valor médio de exportação de 1.150.345 libras ester-
linas tinha-se 1.616.384 em importações, ou seja uma relação de 1,4 enquanto em 1886/87, para
exportações no valor de 696.353 libras as importações alcançaram 2.515.758 libras, o que sig-
nifica uma relação de 3,6 (BAHIA-CPE, 1978:54-60).
Parece legítimo especular, com base nesses números, que a praça comercial de Salvador,
se não se expandiu, o que parece provável, pelo menos conservou sua importância colonial sobre
grande parte do território brasileiro. Importância não apenas comercial mas também política, que
só será diminuída depois da abolição da escravatura como se deduz dessa observação de Mariani
(1977:62):
"O que restava da poupança acumulada [depois de 1888] foi sendo utilizado no
custeio dos encargos da ascendência política dos estadistas baianos, o que naquele
tempo apenas acarretava ônus, sem vantagens de ordem pessoal ou regional".

Porque a mudança nas relações de trabalho teve influência tão negativa sobre uma
economia então baseada, principalmente, no comércio? As explicações dos intelectuais
burgueses, atendo-se à desorganização do sistema produtivo da zona açucareira baiana5, não

5.Dirá Mariani (1977: 63):"Abstraiam-se os aspectos morais e humanos do problema e imagine-se uma economia
baseada sobretudo na produção de 500 engenhos de açúcar, e a destes no trabalho escravo, solapada nas suas raízes
32

24

convencem muito pois sabe-se que as exportações de açúcar já não sustentavam a importância da
praça comercial.
A explicação mais provável parece estar na coincidência entre a abolição da escravatura,
a reacomodação do bloco mercantil no poder e a reestruturação do sistema de comercialização já
agora sob a égide de uma burguesia mercantil com fortes ramificações agrárias, na área cafeeira
do Rio e São Paulo e na área açucareira de Pernambuco, que desloca, pela via da concorrência, a
burguesia mercantil baiana de sua posição de destaque, limitando-a, progressivamente, ao
Recôncavo da Bahia.
Esse fenômeno de concorrência entre as praças comerciais é, aliás, anterior a 1888 como
pode ser evidenciada pelo declínio da atividade produtiva que mais intrinsecamente esteve ligada
à última fase da proeminência comercial da Bahia - a indústria têxtil.
De fato, em 1886, do total de 10 fábricas de tecidos existentes no Império, 6 estão
loalizadas na Bahia; em 1875, do total de 29, nada menos que 10 fábricas, enquanto em 1885,
perde a Bahia a posição de maior centro têxtil do país, embora ainda detenha 10 das 46 fábricas
então existentes (POMPONET et al., 1978:203).
Pomponet et al. consideram três fatores responsáveis pelo desenvolvimento da indústria
têxtil na Bahia:
a) A existência de um mercado, representado pelos engenhos de açúcar, principalmente;
b) as osilações do câmbio, que prejudicavam sobremaneira os negócios de importação, e
faziam da produção interna de alguns manufaturados um ótimo negócio e, finalmente,
c) a proteção governamental, que sobretaxava os produtos exportados com sacaria
estrangeira e os tecidos grossos importados.
Por outro lado, os mesmos autores ressaltam a ligação das fábricas de tecidos com o
capital comercial, inclusive no que diz respeito às suas origens. Depois de citar Versiani e
Versiani (197) sobre a lógica do deslocamento de capitais do comércio importador para a
produção interna, de modo a driblar as oscilações de câmbio, principalmente a baixa cambial,
esses autores falam que

pela dispersão e indisciplina dos trabalhadores e a perda de capital que eles representavam, no momento em que o
produto já se encontrava em crise".
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25

"para comprovar a correção dessa explicação para o caso da Bahia, bastará a


verificação da origem dos fabricantes de tecidos. De fato, foram os comerciantes impor-
tadores que, em determinado momento, instalaram fábricas de tecidos, principalmente a
partir da década de 70" (POMPONET et al., 1978:204).

Os dados que esses autores apresentam aportam alguns elementos a mais para a
compreensão do século XIX na Bahia. Por um lado, fica evidente que a indústria têxtil baiana,
como produtora de tecidos grossos para ensacamento de mercadorias para exportação e
vestimenta de escravos, vincula-se, estreitamente, à economia agro-exportadora. Por outro lado,
pelo caráter interprovincial de seu mercado de insumos e produtos, evidencia-se sua dependência
do grande comércio da Bahia e do grande raio de influência de sua praça. Caráter que transparece
quando os autores estudam o mercado da indústria têxtil: não apenas a principal matéria-prima, o
algodão, usada nas fábricas baianas, vem de outras províncias, preferencialmente Sergipe,
Pernambuco e Alagoas, e até mesmo do exterior, no caso de fios de cores para uns poucos tecidos
finos, assim como o mercado consumidor localizava-se, num volume variável entre um terço a
dois terços, também em outras províncias, principalmente no que diz respeito aos tecidos e aos
fios.6
O declínio da indústria têxtil na Bahia deveu-se a dois fatores: ao perfil da sua linha de
produção, tão dependente do dinamismo do comércio exportador, e à relativamente baixa com-
posição do capital requerida nesta indústria, que a faz proliferar nos diversos pontos de
concentração dos mercados consumidores: Pernambuco, Minas, Rio, São Paulo e Rio Grande do
Sul. Ao fortalecimento dessas economias regionais e de suas praças comerciais, vinha-se juntar o

6.Compare-se a respeito essas tres citações de POMPONET et al.: "A comparação da produção baiana de algodão
com as exportações, de 1850 a 1857, mostra que as exportações são maiores que a produção, induzindo à conclusão
de que a Bahia, além de importar o algodão de outras províncias para o atendimento da demanda interna, importava
também para atendimento da demanda externa. Tais importações realizavam-se com Alagoas, Sergipe, Pernambuco
e também Minas Gerais"(p. 190.)

"Desde a década de 1860/70, encontram-se referências, nas Falas, sobre exportações de tecidos da Bahia para outras
províncias do Brasil. Citava-se, nessa década, a fábrica Todos os Santos que, trabalhando com capacidade ociosa,
exportava para outras províncias 2/3 de sua produção"(p. 212.)

"Pelas inúmeras referências às exportações de cada fábrica para outras províncias não será exagerado, antes ao
contrário, estimar-se que, em 1875, um terço da produção baiana de tecidos destinava-se a outras províncias..." (p.
214.)
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declínio das atividades produtivas na Bahia, que forçava a indústria têxtil local a uma
concorrência desvantajosa, devido ao custo de transporte, nos outros mercados regionais.
Embora não se disponham de dados a respeito, é provável que depois da Abolição
tenha-se arrefecido ainda mais o ritmo das atividades produtivas baianas e que elas não tenham
sido compensadas por um maior dinamismo das importações, pois a Bahia chegará a terceira
década do século XX com uma praça comercial exclusivamente exportadora.
A Abolição da Escravatura, tanto pelos efeitos positivos que teve sobre o fortalecimento
das burguesias mercantis e agrárias de outras regiões do país, como as de Pernambuco e as do
Rio e de São Paulo, como pela descapitalização que representou para a praça comercial da Bahia,
significou realmente o início de uma nova inserção baiana na formação social brasileira. O fim do
modo de produção escravista marca uma nova articulação da economia nacional com o sistema
internacional e fornece as condições essenciais para o desenvolvimento no país de um capita-
lismo propriamente industrial.
Tentativas foram feitas para corrigir os fatores de atraso da indústria açucareira, mas não
foram suficientes para reverter o processo de decadência em que estava submersa, pois a sua
mola propulsora, o mercado externo, estava irremediavelmente perdido. O crescimento do
poderio comercial de outras praças, centradas já no novo sistema de comércio internacional,
como centros redistribuidores de manufaturados e de produção e distribuição de insumos
industriais e produtos alimentares, como o café, o açúcar e o algodão, desloca a praça de Salvador
da posição provilegiada que a reforma bancária de 1860 já começara a minar (Granziera, 1976).
A economia do Estado vê-se, portanto, cada vez mais, circunscrita à exportação de
pequenas quantidades dos produtos altamente valorizados como café, açúcar e algodão, ou à
exportação de produtos de pouco valor, como o fumo, a piaçava, os coquilhos etc. e somente na
primeira década do século XX, com a valorização do cacau, reencontra um filão de riqueza
compensador. Mas, ainda assim, não voltará a ser jamais uma praça comercial com a pujança
antiga pois lhe faltava o mercado consumidor necessário a um grande centro importador.
Já é outra, portanto, a Bahia que assiste, contrita, ao nascimento da República, e a
entrada de um novo século - não é mais a Bahia cosmopolita, mas a Bahia provinciana. Uma
Bahia que luta por manter-se como um Estado federado autônomo, com suas leis, seus impostos,
sua elite, sua agricultura. E ainda aqui ninguém melhor do que Mariani exprime esse projeto:
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"Não era impossível, entretanto, reconstituir-se um Norte próspero sobre a base da agricultura e
pecuária paralelamente com um maior desenvolvimento industrial do Sul..."
(MARIANI,1977:63).
A atitude tacanha e provinciana da burguesia mercantil baiana, apegando-se cegamente
às sobras que o tempo ainda não destruíra, é compensada apenas, no plano ideológico, pela
universalidade cosmopolita da cultura de seus representantes políticos e pelo orgulho
aristocrático com que é ornado o seu passado, mas, desgraçadamente, lhe sacrifica a percepção
correta da história e a inteligência dos grandes movimentos de seu tempo.
Mariani, o mais orgânico dos intelectuais burgueses baianos, além de não ter
compreendido a ruptura que representou a Abolição para a economia do país, posto que insiste
em situar-se às suas costas, tomará a revolução de 1930, que justamente consolida aquela ruptura,
com a causa da decadência baiana, isto é, coloca-se, e à sua classe, em sentido contrário ao
progresso.
"Mesmo assim até a revolução de 30, a economia baiana, modesta mas equilibrada,
se perdia para o maior desenvolvimento, sobretudo industrial, dos Estados do Sul,
ainda conseguia, graças sobretudo à nova lavoura do cacau, acumular margens de
poupança que lhe permitiam... realizar às suas próprias custas, investimentos
relativamente importantes..." (MARIANI,1977:64).

Esse erro de avaliação e de interpretação histórica foi, infelizmente, partilhado pelo


conjunto da historiografia que, acentuando a proeminência comercial da Bahia, compreende
todos os acontecimentos que lhe diminuem a importância como degraus de uma decadência
secular. É pouco confortadora a diferença de uns acharem essa decadência honrosa e outros
acharem-na usurária pois, no final das contas, continuam todos presos a um pressuposto do ponto
de vista burguês.
Ao contrário, é preciso que se enxergue sob a velhice do mundo político e ideológico
baiano, na República, a juventude da forma de produção capitalista, pois, quando se introduzem
no Brasil relações de produção novas, que passam a determinar o ritmo e o sentido do
desenvolvimento econômico e social, a presença na Bahia de formas arcaicas e de formas
precocemente atrofiadas ganham um significado diferente do que teriam, não fosse efetivamente
as novas relações as determinantes do seu futuro. Ainda que os agentes e os sujeitos continuem os
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mesmos, e mesmas as suas idéias, o seu destino se altera quando passa a depender de uma
produção delimitada pelo desenvolvimento de novas formas, em outro espaço. Porque a
historiografia burguesa não entende uma ruptura tão decisiva?
Há duas linhas a explorar na reconstituição histórica desse período na Bahia: a de
continuidade, ressaltada em toda a literatura, e a de descontinuidade. Nenhuma das duas deve ser
esquecida, pois se a primeira empresta as cores, a segundo deve marcar a perspectiva onde os
motivos do quadro se ordenam. Para a burguesia mercantil baiana não há descontinuidade. A
riqueza, desde que rompido o exclusivo colonial, e restabelecido um mercantilismo onde os
nacionais tinham assegurado um almejado espaço de negócios, sempre tivera no intercâmbio
comercial sua principal fonte, traço que acentuara-se com a já citada regressão secular do açúcar,
a única produção com importância internacional capaz de gerar uma acumulação de riquezas
razoável.
Essa linha de continuidade é sobretudo visível se nos limitarmos aos primeiros vinte
anos que se seguiram à Abolição. A figura do comerciante como a principal camada na estrutura
de classes da província, no século XIX, tão bem apreendida por Matoso (1978), pôde continuar
válida no período republicano, apesar de ter um sentido diverso, como se verá em continuação.
Na economia do Estado não se desenvolveram relações de trabalho que potenciassem a
acumulação de riquezas e a formação de capital e, portanto, as figuras do empresário rural e do
proprietário fundiário não adquirem a mesma importância do comerciante. No entanto, é nesse
período republicano que emergirá tanto uma burguesia agrária, ainda que restrita à zona do cacau,
quanto ganhará peso político a oligarquia fundiária dos sertões.
Para acompanhar a transformação porque passa, na República Velha, tanto a burguesia
mercantil quanto a economia agroexportadora baiana, nada melhor que seguir a evolução das
duas principais culturas do período, o fumo e o cacau.

A economia fumageira
Já foi dito que o fumo passa a ocupar, a partir de 1872, o primeiro lugar na pauta de
exportação baiana, lugar em que permanece até 1903, quando é substituído pelo cacau
(FREITAS, 1979). A crise da lavoura fumageira baiana, provocada pela perda dos mercados de
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Portugal e åfrica, resultantes das guerras de independência e da supressão do tráfico de escravos,


foi superada rapidamente.7
Essa lavoura, baseada tradicionalmente no trabalho livre, era realizada em extensões
restritas, por meeiros e pequenos proprietários voltados para a subsistência, que dedicavam-se a
ela como um meio de obter os outros produtos de que necessitavam. Borba (1975:18)8 salienta o
caráter não lucrativo e de complementação da subsistência que tinha o plantio do fumo para os a-
gricultores. Esse fato explica a baixa remuneração dessa força de trabalho, o que, de algum
modo, parece funcional para os capitais aplicados na exportação e na manufatura do fumo. No
entanto, essa baixa remuneração está na raiz da pouca competitividade internacional da lavoura
baiana, seja pela ausência de inovação tecnológica, que só uma acumulação na esfera da
produção poderia induzir, seja pela baixa qualidade do produto, fruto da miséria a que se viam
reduzidos os agricultores.
Aliás, parece que já o recrutamento dos agricultores se fazia dentro de uma expectativa
de rendimentos muito baixa. Ao menos, é isso que parece sugerir Borba (1975:15):
"Muitas dessas pequenas lavouras eram arrendadas pelos lavradores que pagavam aos
proprietários das terras pela utilização de alguns hectares. Constituem os meeiros, nos
quais muitos escravos libertados transformaram-se e que, juntamente com os pequenos
proprietários, formavam o conjunto dos típicos lavradores de fumo".

É compreensível, portanto, que os comerciantes exportadores controlassem a lavoura


fumageira e que parasse em suas mãos toda a parte da mais valia que permanecia no país. Nesse
sentido, as manufaturas de fumo constituiam-se apenas num prolongamento de seus negócios.9

7.Como diz Borba (1975:5): "Como toda cultura controlada e influenciada pelo mercado externo, as suas crises e
ascensões eram motivadas em grande parte por esse mercado. A guerra civil americana afastando a concorrência dos
Estados Unidos do mercado, as lutas travadas em Cuba no final do século XIX e o crescente aumento do consumo
mundial foram fatores que possibilitaram a revitalização da cultura".

8. "Dividindo seu tempo entre o plantio do fumo para exportação e a cultura de subsistência, as alterações e
oscilações de preços do produto no mercado internacional são especulações distantes e fora do alcance do seu
entendimento. Compreende, entretanto, tratar-se de um produto de venda fácil, porque procurado..."

9."Frutos da iniciativa privada e individual, (as fábricas) tinham nos seus proprietários grandes expoentes da expor-
tação de fumo, não assumindo os fabricantes uma identidade própria de empresários industriais e sim de
exportadores que exerciam também o papel de fabricantes" (Borba, 1975:49).
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Essa forma de articulação entre produção e comercialização descaracteriza a unidade de


produção rural, legalmente independente e autônoma, como unidade capitalista de produção. A
unidade é reduzida a uma convergência de terra e trabalho, sendo reduzidos ao mínimo a
presença de instrumentos de trabalho e insumos - sementes e outros cuidados da lavoura -
enquanto o trabalho não assume a forma completa de força de trabalho, posto que retira da terra a
maior parte dos meios de sua reprodução. É pois sistematicamente retirada da unidade rural toda
a transformação que requeira uma presença mais completa de relações capitalistas - maquinaria,
força de trabalho, estocagem - e agregada à unidade de comercialização, quando não totalmente
transferida para o exterior. Essa forma indireta e incompleta de subsunção do trabalho ao capital
é típica da economia baiana desse período, que desenvolve apenas marginalmente, em
manufaturas, formas de produção capitalistas.
Assim qualificado, podemos dar razão aos que creditam o parco desenvolvimento das
forças produtivas baianas, na República Velha, à fraca procura dos seus produtos no mercado
mundial. Com efeito, entre 60 e 70 por cento da pauta de exportação baiana é composta por
produtos de mercado extremamente restrito, como o sal, a piaçava, os couros, etc., ou se tratam
de similares inferiores aos produzidos em outras áreas. Não é preciso dizer que não se quer com
isso tributar essa inferioridade, fundamentalmente, às causas naturais, sejam elas geológicas ou,
como foram durante muito tempo concebidas, humanas. Tributa-se em primeiro lugar à divisão
das áreas agrícolas do mundo em zonas de influência de nações imperialistas.
O caso do fumo, entretanto, difere num ponto dos outros produtos de exportação de
então - nele a burguesia comercial baiana desempenha um papel secundário. Seu lugar é ocupado
por negociantes alemães intimamente concatenados com o capitalismo concorrencial que
dominava a industrialização e comercialização do fumo em Bremen e Hamburgo. A
proeminência alemã no comércio do fumo brasileiro é explicado por Borba (1975:75-78)10 no
contexto da competição internacional pelo controle dos mercados produtores. A posição

10. Diz Borba: "A Alemanha passou a negociar diretamente com fumo, no Brasil, depois de 1882. Sua penetração foi
em parte possível, porque a Inglaterra, que controlava o comércio brasileiro da época, dispunha de outros mercados
fornecedores de fumo e os Estados Unidos eram grandes produtores desse artigo"...
"Quando no início do século XX, os Estados Unidos começaram a utilizar manufaturas, Bremen, que tinha adquirido
a maior quantidade de sua importação naquele país, procurou substituir as espécies americanas por outros tipos de
fumo. O fumo brasileiro foi beneficiado com essa medida, ocupando o lugar de destaque antes dividido com os
Estados Unidos".
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secundária da Alemanha nesse mercado fez com que, enquanto Inglaterra e Estados Unidos
dividissem entre si o controle das áreas produtoras mais próximas, a Alemanha fosse obrigada a
se voltar para a produção brasileira.
Os alemães organizaram na Bahia empresas individuais e familiares conectadas com as
casas comerciais de Bremen e Hamburgo. Seus negócios centravam-se na exportação de fumo
em folhas para aquelas praças e na fabricação de cigarros e charutos que eram exportados ou
consumidos internamente. Entre 1898 e 1907, por exemplo, 55% da exportação baiana foi
destinada ao porto de Bremen, enquanto 36% do fumo importado por aquela praça, no ano de
1906, era brasileiro (BORBA, 1975:83-84). No dizer de Borba, 1975:40): "as manufaturas de
fumo na Bahia eram, em sua grande maioria, pequenas, de caráter caseiro, artesanal...muitas
vezes a confecção do produto era realizada em pequenas casas, com instalações primitivas, sem
que se possa atribuir-lhes o nome de fábricas". Mesmo nas maiores, a falta de qualificação
requerida pela trabalho fazia com que se recrutasse preferencialmente mulheres e crianças.
Quanto às conexões alemães, sabemos que "os importadores de Bremen,
desempenhando ao mesmo tempo a função de armadores, adquiriam por consignação ou conta
própria, conforme o melhor aproveitamento dos seus navios, as mais variadas mercadorias"
(BORBA, 1975:40) e que "uma característica do comércio e manufatura do fumo em Bremen é
que sempre ficaram entregues a pessoas isoladas, não tendo sido explorados pelo governo na
forma de monopólios estatais" (BORBA, 1975:76).
O caráter manufatureiro das fábricas alemães de cigarros e charutos na Bahia, assim
como o caráter concorrencial de seus negócios e da comercialização e industrialização alemã do
fumo, em geral, deixam suas marcas no episódio de penetração do truste anglo-americano do
fumo no Brasil, na segunda década desse século. O truste que se forma nos Estados Unidos com o
nome de American Tabaco Co. e que aos poucos domina o negócio do fumo nos E.U.A., em
Cuba e na Argentina, se espalha mundialmente quando se funde com o truste britânico Imperial
Tabaco Co., formando a British American Tabaco Co. que, em 1912, adquire as fábricas de José
Francisco Correa e a Souza Cruz Cia. no Rio de Janeiro e, em 1914, fundam a Cia de Cigarros
Souza Cruz S.A. no Rio, e em 1924, abre sua filial na Bahia (BORBA, 1975:73).
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32

Em pouco tempo o truste domina a fabricação de cigarros no Brasil e leva à falência as


firmas concorrentes, baianas e alemãs.11 Mas os alemães ainda dominariam a exportação de fumo
e a fabricação de charutos, cuja demanda mundial retraia-se, por muito tempo ainda. A cultura
fumageira baiana, entretanto, acaba decaindo com a perda de importância de sua conexão alemã
e, já em 1930, o Rio Grande do Sul assume a liderança brasileira na produção e exportação do
fumo.
Será no cacau, aapenas, que a economia baiana encontrará forças para soerguer-se de
seu declínio secular. Será também a partir do cacau que se desenvolverá a economia capitalista na
Bahia e se rearticulará a principal fração de sua classe dominante. Esse produto aparece na pauta
de exportação baiana desde meados do século XIX, mas é no século atual que se desenvolvem as
condições materiais para a sua cultura em bases capitalistas. Já em 1904, o cacau assume a
liderança das exportações baianas para não mais deixá-la.
Alguns elementos são importantes na determinação desse desenvolvimento e da forma
capitalista que o orientou. Em primeiro lugar, por se tratar de uma cultura que exige condições
climáticas e geológicas bastante específicas, sua exploração em escala comercial restringiu-se a
uma pequena faixa do território nacional, bastando lembrar, a esse respeito, que o sul da Bahia
respondia até meados dos 80 por mais de 90% da produção brasileira.
Em segundo lugar, a faixa propícia para a cultura do cacau compunha-se ou de matas
virgens, habitadas rarefeitamente por tribos indígenas, ou por terras que conheceram
anteriormente tentativas fracassadas de colonização, o que, tomando a sua ocupação um caráter
de pioneirismo e aventura, resultou na formação de uma nova classe proprietária distinta daquelas
das demais regiões produtoras.
Em terceiro lugar, uma crescente demanda internacional instigou incrementos constantes
da produção, seja através da ampliação das fronteiras da cultura até os seus limites naturais, seja
através de aumentos de produtividade, logrados pelo combate às pragas, pelo aperfeiçoamento da
tecnologia de beneficiamento, pela melhoria das condições de transporte etc., o que, de um modo

11. "A pressão concorrencial, levando à extinção as empresas fumageiras na Bahia, pelo que indicam os documentos
encontrados na Câmara de Comércio de Bremen e no arquivo do Estado daquela cidade, foi feita com a introdução
do trust anglo-americano do fumo, que encampando inicialmente fábricas no Rio de Janeiro, estendeu seu domínio
aos outros Estados do Brasil, provocando a sucessiva eliminação das concorrentes". (Ibidem, p. 8.)
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33

ou de outro, forçou uma capitalização da lavoura. É notável, a esse respeito, a queixa constante
dos historiadores quanto à falta de plantios de subsistência na própria região, ocupada in-
teiramente pela monocultura, o que, elevando os preços desses gêneros, tornava a vida bastante
difícil para os empregados e trabalhadores.
Em quarto lugar, estreitamente ligado ao que se disse anteriormente, há que se
considerar as relações de trabalho dominantes na região. Não tendo conhecido a escravidão, nem
sendo possível recriar formas arcaicas de relações de produção, o trabalho livre encontrou
cruamente, na região, as condições para o seu desenvolvimento - o trabalhador separado dos
meios de produção e dos meios de reprodução de sua força de trabalho. O barracão foi a forma
encontrada de dobrar o desespero e a desilusão de milhares de ex-camponeses submetidos à
exploração mais brutal e contê-los nos limites da fazenda. Do mesmo modo que o fomento de
uma imigração incessante de camponeses nordestinos, principalmente sergipanos e sertanejos
baianos, foi a maneira de prover a região de um fluxo constante de força de trabalho que suprisse
às variações da sua demanda, principalmente quando, já totalmente ocupada a região, a
sazonalidade da cultura esbarrava numa oferta insuficiente de braços.
Por último, a presença de uma acumulação prévia em outras partes do Estado
concentrada em mãos da burguesia comercial e a presença relativamente farta de capital
estrangeiro no Brasil, por esta época, forneceram a base creditícia indispensável para o
desenvolvimento da lavoura em bavses capitalistas. O elenco de atividades das filiais das casas
comerciais na região é uma prova disso. Eram elas, ao mesmo tempo, casas comerciais, agentes
financeiros, representantes de bancos estrangeiros e nacionais, escritórios de companhias de
navegação e representantes diplomáticos (FREITAS, 1979).
Nos primeiros anos do século XX, entretanto, esse processo de desenvolvimento está
ainda nos seus primórdios. A estrutura fundiária é bastante desconcentrada e predominam
massivamente as pequenas propriedades. É esse fato o maior responsável pelo destaque que os
comerciantes tem então na vida econômica e social da região e pelo papel subalterno dos roceiros
no quadro político baiano, em que pese a já constituída liderança do cacau na economia agro-
exportadora estadual. Controlando a intermediação comercial e financeira, os comerciantes
detinham assim a parte do leão na partilha da mais valia e relegavam o pequeno produtor a um
papel social também secundário. Foi lento o processo de formação da hegemonia dos
42

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cacauicultores, o qual se desdobra pelos 30 primeiros anos do nosso século: "Entre 1900 e 1930,
em que pese sua hegemonia econômica, a burguesia cacaueira não consegue expandir o seu poder
além das fronteiras da região produtoras" (FREITAS, 1979:32).
O primeiro passo foi, sem dúvida, a formação de uma burguesia cacaueira respaldada na
grande propriedade fundiária. Os caxixes, por um lado, e o crédito hipotecário, pelo outro, for-
jaram essa realidade viva. De um lado, o proprietário que expande suas terras pela violência e
pelo terror, do outro, o comerciante que inicia o jogo econômico cedendo parte de seu capital ao
roceiro, contra a garantia de suas terras, para, no fim, mais venturoso e mais robusto, transformar-
se ele próprio num produtor.
Essas duas formas de concentrar a propriedade fundiária estão na origem do que Freitas
chamou de "unidade consolidada entre produtor e comerciante", mas não deve significar, como
pode sugerir a frase anterior, que eram formas próprias a um e a outro agente exclusivamente.
São antes formas históricas que prevaleceram de modo sucessivo no tempo, embora estivessem
presentes desde o início, pois não só apareceram cedo as grandes propriedades como seus
coronéis foram tão bons comerciantes quanto estes. Freitas (1979:30) diz que
"regionalmente...os comerciantes, inicialmente, e, logo após, os grandes produtores
apareceram como fornecedores de crédito para custeio das saíras. Enquanto, os
primeiros colocavam em giro não só capital de propriedade das firmas comerciais, mas
também das casas bancárias que representavam, os grandes produtores se utilizavam
do excedente retido originalmente com as primeiras roças e fazendas".

para mais adiante assegurar


"que seria um equívoco identificar como exclusividade da fração comercial o
fornecimento de capital para financiamento da produção. Esses capitais eram também
originários dos grandes produtores, mas que nem por isso devem ser entendidos como
de origem diversa do posto em giro pelos comerciantes. Tanto um como o outro
ingressavam na produção na forma de capital financeiro, o qual poderia reproduzir-se
através da cobrança de juros, como também abrir caminho para o recebimento do bem
penhorado na forma de hipoteca" (FREITAS, 1979:).

A convergência de interesses e a complementariedade de funções entre as diversas


frações de capital acaba, portanto, por fazer transitar entre a produção, o comércio e o finan-
ciamento os diversos agentes que os personificam. É essa liberdade de movimento das diversas
parcelas do capital, lastreada por uma lógica única de reprodução, que fundamenta a burguesia
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35

enquanto classe. A cacauicultura é assim a primeira atividade produtiva a apresentar essa


característica tipicamente capitalista, pois antes o envolvimento do comerciante na produção,
como ocorre com o açúcar, carecia de uma base sólida de expansão que estivesse garantida pela
reprodução ampliada do capital nas diversas esferas econômicas.
O segundo passo foi a formação de quadros políticos e a ampliação, portanto, dos
horizontes sociais dessa burguesia. Para isso contribuiram tanto os advogados, no exercício da
representatividade jurídica e política, quanto a saída dos coronéis e da elite cacaueira da sua
região.12
Obviamente, a diferença estabelecida entre as ordens econômica e política pode se
expressar numa ordenação de passos em direção à formação da hegemonia burguesa. É
necessário lembrar, porém, que o suceder histórico não tem características lineares e que,
portanto, para muitos intervalos de tempo, tomados isoladamente, esses passos são con-
comitantes.
No caso da burguesia cacaueira, a sua presença no centro das decisões políticas e finan-
ceiras, a conquista da universalidade ideológica que a educação proporciona e a luta política
requer, apresentaram-se como consequências objetivas de uma ruptura com o período pré-
abolicionista e se manifestam com nitidez a partir dos anos 20 desse século, quando os interesses
da região começam a se tornar também interesses do Estado (FREITAS, 1979:86).
O que espanta é que essa hegemonia tenha demorado tanto em ser forjada. Sendo os
comerciantes uma das frações historicamente mais antigas da classe dominante, como entender a
dubiedade dessa classe na defesa dos interesses do cacau e a persistência da defesa preponderante

12."Enquanto os coronéis continuaram assumindo as lutas no interior da região cacaueira os seus aliados davam an-
damento às disputas travadas nas cidades regionais e em Salvador. Ficaria a cargo de advogados, por exemplo, o
encaminhamento das lutas político-partidárias, da qual souberam tirar o proveito para projetarem-se estadualmente
como líderes da sociedade cacaueira" (Freitas, 1979:100).

"A colocação correta seria afirmar-se que a classe dominante regional, passados os primeiros trinta anos de expansão
da cacauicultura, abandonou a região. Inicialmente através dos descendentes mais jovens e, posteriormente, se
constituindo como atitude própria à burguesia cacaueira. Afinal de contas, se a fração ligada ao comércio quase
sempre esteve distante do espaço cacaueiro e admitindo-se, como é o caso, a estreita relação entre essa fração e a
minoria dos grandes produtores, nada mais natural que esta identificação se reproduza em atitudes" (Freitas,
1979:86).
44

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de interesses menores ligados ao açúcar, ao fumo, etc? Exemplos de procedimentos dessa


natureza são vários. Para ficar em apenas um: quando, em 1908, os produtores de cacau tentaram
"obter do governo federal apoio na valorização do cacau...apesar do apoio do
governador Araújo Pinho, a pretensão cacaueira não foi ouvida e, além da falta de
prestígio político da Bahia, observou-se desinteresse para com a concretização da
medida por parte dos principais grupos econômicos do Estado" (FREITAS, 1979:86).

Pode-se concluir dessa contradição que nem os interesses dos comerciantes eram os
únicos representados no poder nem faziam-se valer independentemente dos interesses de outras
frações de classe. No plano estritamente político, a fração burguesa comercial ocupava um papel
destacado no bloco de poder sem entretanto estar a exercê-lo diretamente. Tem alguma razão
Freitas quando, ao analisar a posição dos senhores de engenho e dos comerciantes no bloco de
poder, diz que
"no relacionamento entre as duas frações de classe dominante restou à fração
derrotada economicamente a ocupação do espaço político, dentro da máquina
burocrática-administrativa do Estado, garantindo uma posição provilegiada, a qual,
pode-se dizer hoje, secular, histórica" (FREITAS, 1979:17).

De fato, no decorrer de todo esse período aparecem divergências entre os interesses da


classe dirigente baiana e os interesses da cacauicultura, apesar da presença, quer em uma, quer
em outra, dos grandes capitalistas financeiros e intermediários comerciais.
Seria errôneo diminuir o peso desses argumentos sob a arguição de uma possível
neutralidade dos interesses da intermediação comercial frente aos interesses da produção em
geral. Isso por dois motivos: em primeiro lugar, porque essa neutralidade tem limites bastante
estreitos, uma vez que qualquer variação da produção a médio prazo afeta diretamente os ganhos
da intermediação e, em segundo lugar, porque realmente a fração burguesa comercial já estava,
àquela altura, bastante misturada com a burguesia textil-açucareira, dado aos constantes
empréstimos com pagamento garantido por hipoteca, assim como já começara, pelos mesmos
métodos, seu envolvimento na produção cacaueira. Na verdade, o que parecia faltar então aos
interesses da cacauicultura era uma classe com a universalidade que lhe permitisse representar a
complementariedade das diversas fases econômicas do Estado. Para esta burguesia não se coloca
"a tarefa de expurgar o grupo tradicionalmente hegemônico no Estado, uma tarefa
quase impossível, mas estabelecer bases para um domínio em comum, única maneira
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37

de atender aos interesses das diversas frações da classe dominante estadual, através de
um governo que tanto submetesse as aspirações divergentes das frações principais
como as demais classes que formavam a sociedade estadual" (FREITAS, 1979:83).

A Revolução de 30 abreviará, entretanto, o caminho de ascensão da burguesia cacaueira


e marcará, de resto, a nova feição do domínio e da estrutura das classes burguesas baianas.

A Revolução de 30 e a Bahia
A Revolução de 30 desfaz, no Brasil, um pacto que, sob a égide da burguesia mercantil
e financeira nacional, integrava a oligarquia fundiária, a burguesia agrária e a burguesia industrial
emergente com os interesses imperialistas, que operavam sobretudo no comércio e nas finanças,
mas também, secundariamente, em ramos produtivos de maior densidade de capital, como as
estradas de ferro, o transporte de cabotagem, as companhias de telefone, de eletricidade etc.
A burguesia mercantil financeira não era, entretanto, um bloco monolítico. Ela se
compunha de facções regionais que, no seio de diferentes economias, exportadoras ou de
mercado interno, articulavam-se com outras facções oligárquicas ou burguesas.
A cooperação e a convivência entre elas eram garantidas pela partilha do poder federal:
a facção cafeeira do Rio e São Paulo e a facção pecuarista de Minas Gerais alternavam-se,
geralmente, na Presidência da República, enquanto às restantes cabia ocupar postos nos aparelhos
de estado e ter assegurada uma autonomia estadual relativamente ampla de modo a fazer, em
cada região, as acomodações necessárias.
Esse pacto hegemônico vinha perdendo consistência ideológica e política desde o início
dos anos 20, com o descontentamento crescente dos setores médios urbanos, com a ação rei-
vindicativa do movimento operário anarquista e com revoltas militares periódicas. Mas só em
1929 o pacto é definitivamente desestabilizado em função da grande crise capitalista, que
desorganizou a economia exportadora brasileira e acirrou os antagonismos regionais entre as
facções mercantis, dificultando a cooperação entre elas.
A campanha eleitoral para a sucessão presidencial, em 1929, rompe com o exclusivismo
político dos grupos burgueses. A Aliança Liberal, sustentada pelas oligarquias do Rio Grande e
de Minas Gerais, permite que o descontentamento popular e militar fosse carreado para arena
política. A agitação eleitoral transforma-se, então, numa crise sem precedentes que, somada às
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dúvidas que sempre pairavam sobre a lisura dos pleitos, ao clima emocional causado pelo
assassinato do concorrente derrotado à vice-presidência e aos efeitos da grande depressão,
desemboca, como se sabe, na deposição armada do presidente Washington Luis e na formação de
um governo revolucionário, congregando tenentes, as oligarquias e burguesias gaúchas e
mineiras.
Na Bahia, a revolução significará uma mudança completa no sistema de dominação,
tanto da expressão das classes nos aparelhos do estado, quanto de sua representação política - os
partidos, os organismos de classes, as lideranças políticas e ideológicas. O pacto que se encerra
em 30 alinhava os interesses de três classes: a burguesia mercantil, a burguesia cacaueira e a
oligarquia fundiária.
A burguesia mercantil, agente das grandes casas importadoras estrangeiras e dos
banqueiros europeus e norte-americanos, era o elo de ligação entre o sistema capitalista inter-
nacional e a produção de alimentos e matérias primas agrícolas, principalmente o cacau e o fumo,
mas também, secundariamente, o açúcar, os metais e pedras preciosas, o algodão, os couros e as
peles e produtos extrativos diversos. A burguesia cacaueira situava-se, nos 30, em relação extre-
mamente desvantajosa frente ao capital mercantil devido à estreiteza do sistema de crédito e fi-
nanciamento da produção e ao baixo nível tecnológico da lavoura, que ameaçavam, inclusive, a
perspectiva de desenvolvimento da economia cacaueira como um todo, ante a concorrência da
produção dos países africanos da Commonwealth que já então começa a despontar.
A oligarquia fundiária dos sertões comandava um enorme bolsão de reserva de mão-de-
obra e terra, sobrevivendo numa economia de subsistência e de produtos de exportação de pouco
valor, baseada em relações de produção arcaicas. Essas classes se exprimiam no Governo do
Estado, sob a hegemonia da aristocracia do açúcar e do bacharelato da zona cacaueira onde, às
vezes, insinuava-se algum coronel do sertão.
A incapacidade da economia burguesa em disseminar as suas relações de produção fora
da zona do cacau e da esfera do comércio, assim como o não surgimento de outra cultura agrícola
de exportação internacional, acabou por restringir a efetividade do governo estadual a uma
estreita faixa do território baiano que avançava de Salvador para o sul, pelo litoral. Nos sertões, o
poder era, de algum modo, exercido pelos grandes oligarcas que, estando a favor ou contra o
governo estadual, contavam com meios suficientes para governar de modo independente os seus
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domínios, às vezes isolando-se na auto-suficiência de sua economia, outras vezes negociando


diretamente com o governo da República, pela voz de seus representantes políticos, as suas
pretensões. Alguns desses oligarcas, como Horácio de Matos, chegaram a ter, inclusive, sob as
suas ordens um exército de jagunços bem armados e com organização e disciplina superiores aos
da força estadual.
Nos anos 30, esse pacto de classes já dava mostras de cesuras graves. Pelo lado da
oligarquia, o banditismo que infestava os sertões revelava a um só tempo a fragilidade da
dominação baseada na divisão territorial e a precariedade dos meios de subsistência da economia
dos latifúndios. Pelo lado da burguesia, as tensões se acumulavam nas crescentes contradições
entre os interesses da facção agrária e da facção mercantil.
A revolução de 30 tornará essas cesuras insuperáveis e teria forçosamente que significar
o colapso daquele pacto. No plano econômico, o estado revolucionário procurará consolidar o
desenvolvimento do modo de produção capitalista, substituindo-se à burguesia mercantil nas
relações com o exterior, através da regulamentação das trocas internacionais e do privilegiamento
do lucro industrial e agrícola sobre o lucro comercial e financeiro, por um lado e, por outro, no
incentivo à produção e na proteção de mercado interno. No plano político, considerará
imprescindível o desarmamento dos coronéis e a extirpação do banditismo, de modo a garantir a
unidade do estado nacional.
Essas são, entretanto, tendências que se consolidarão no curso dos acontecimentos.
Naquele momento, em 1930, as classes dominantes baianas assistem apreensivas ao levante
militar e à instalação do novo governo, que significava, para elas, o afastamento do poder de seu
representante, o governador Vital Soares, candidato situacionista eleito para a vice-presidência
pela chapa de Júlio Prestes. Mas significava, mais que isto, para a grande quantidade de forças
que se aglutinavam em torno do antigo governador, a perda do governo estadual. O sistema de
dominação procura, entretanto, recompor-se pelas mãos dos políticos de oposição a Vital Soares,
o mais eminente dos quais é J.J. Seabra, que se articulam com Vargas e com os tenentes de modo
a colocar na Interventoria Federal da Bahia Leopoldo Amaral.
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Os três meses de Amaral na Interventoria foram suficientes para mostrar a


incompatibilidade entre os objetivos revolucionários e os políticos tradicionais.13 Em 1931,
Seabra faz uma tentativa frustrada para ver-se nomeado interventor, o que acaba por conduzi-lo e
à totalidade da representação política da burguesia mercantil para a oposição ao novo regime. Em
seu lugar é nomeado Artur Neiva, um baiano radicado em São Paulo e alheio à política regional,
que embora seguindo uma orientação adequada à Revolução, revelada sobretudo pela
reorganização dos municípios e pela quebra do poder oligárquico que isso representava, não
consegue construir um novo pacto político em torno dos ideais revolucionários. o que, com a
revolta constitucionalista de 32, revelava-se ainda mais essencial para o novo governo14.
Em 1932, assume a Interventoria o tenente Juraci Magalhães com uma missão clara:
aniquilar os resquícios do antigo pacto e construir um outro, mais condizente com a correlação de
forças nacionais. Ele tem, então, dois objetivos: o primeiro é desestruturar o sistema de
representação política existente, o que faz de modo violento, através de agressões físicas,
empastelamento de jornais, perseguições políticas, que acabam por esfacelar a resistência
autonomista e afastar da vida pública as figuras mais proeminentes da velha república15. O
segundo, convergindo com o primeiro, é vincular diretamente à Interventoria do Estado as classes
sociais, sem a intermediação dos políticos tradicionais.
Por isso, no plano econômico, seu governo orienta-se no sentido de fortalecer as bases
técnicas e financeiras da agricultura, criando, com essa finalidade, o Instituto da Pecuária, o
Instituto do Fumo, o Instituto de Fomento Econômico da Bahia e pondo em funcionamento o
Instituto do Cacau, e, no plano político, consolida a representação dos interesses burgueses e
oligárquicos com a organização do Partido Social Democrático.

13. Diz PANG (1979:220): "Para um estado politicamente dividido como a Bahia, Amaral não se mostrou num um
saneador competente, nem um administrador adequado. Sua decisão de soltar os coronéis do interior enfureceu os
zelosos revolucionários".

14. Para maiores detalhes ver Pang (1979:221-223).

15. Isso custará a Juraci Magalhães a oposição ferrenha do jornal A Tarde, cujo proprietário, Ernesto Simões Filho,
deixa a Bahia para escapar ao clima violento da província. Só em 1959 esse jornal volta a mencionar com respeito o
nome de Juraci Magalhães.
49

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Juraci procura também, do mesmo modo, acercar-se dos principais grupos mercantis,
como a Casa Magalhães, e dos novos intelectuais, como do então advogado Clemente Mariani16.
No entanto, a crise econômica que estremecia a praça comercial e a nova política econômica do
governo federal deprimiam rapidamente a burguesia mercantil e só lhe deixavam o caminho da
oposição. Sua reação à revolução de 30 é o melhor índice de sua fraqueza econômica e de seu
despreparo político17. De 1930 a 1945 ela estará empenhada na luta contra a forma política e
jurídica que toma o estado brasileiro no empreendimento das profundas mudanças da estrutura da
economia nacional mas será incapaz de perceber a lógica própria a essas mudanças de modo a
situar-se no seu curso. Ao contrário, acabará por tomar, na prática, as diferenças alarmantes de
desenvolvimento entre os Estados, que começam a emergir no pós-30, sempre em prejuízo da
Bahia, como uma decorrência de seu afastamento do poder político nacional. Essa interpretação
acaba sendo assimilada por alguns intelectuais18.
Culpar a constituição de uma vontade discricionária decorrente da tomada violenta do
poder representa eludir as condições concretas em que ela se formou. A Revolução significou,
historicamente, uma resposta às condições desfavoráveis à continuidade do processo de
acumulação capitalista no Brasil. A impressão de que se beneficiavam os interesses que
gravitaram em torno do poder revolucionário é certamente correta, mas se circunscreve aos limi-
tes imediatos da ação. Se eles forem transpostos, descobrir-se-á uma lógica econômica para os

16. Ver CARONE (1975:236): "Depois Juraci aproxima-se dos elementos civis: Clemente Mariani, advogado; Me-
deiros Neto, representante do comércio baiano... Liga-se, depois, com a Casa Magalhães, casa exportadora de açúcar
e que financiava os produtos de açúcar". Ver também SAMPAIO (1960:16): "(Juraci) Conquistou, com facilidade,
um amplo círculo de amigos e correligionários, entre "coronéis" do interior e "doutores" da capital. O
"autonomismo" não monopolizou, pois, a intelligentzia da Província. Boa parcela ficou do lado do novo governante,
como se pode verificar desta lista incompleta: Medeiros Neto, Alfredo Amorim, Edgard Sanches, Prisco Paraíso,
Marques dos Reis, Magalhães Neto, Gileno Amado, Clemente Mariani, Aliomar Baleeiro, Albérico Fraga, os três úl-
timos bem jovens então".

17.A idéia de que os intelectuais baianos foram preparados para apreciar apenas as letras e as coisas do espírito, mas
não entendem das coisas do comércio é uma idéia bastante espalhada nos anos 30, 40 e 50 do nosso século.

18. Ver MARIANI (1977:64): "A revolução de 30 trouxe, entretanto, no seu bojo, duas consequências da maior
gravidade para os interesses econômicos da Bahia. A primeira foi o soçobro do prestígio político do Estado, sem
nenhuma afinidade com o movimento vitorioso tanto pelas caractarísticas do espírito conservador e jurídico de suas
elites, como em consequência da união de todos os seus partidos em apoio à chamada presidencial liquidada pela Re-
volução. A segunda foi a instalação como fonte legislativa, inclusive em matéria tributária e nas correlatas, como o
comércio exterior, da vontade discricionária do Chefe do Governo, sujeito apenas às influências dos que lhe giravam
em torno, por idreito de conquista conjunta do poder, ou levados pela mão de algum deles, de qualquer modo
excluída qualquer participação da Bahia na elaboração daquela vontade legislativa discricionária".
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privilégios. Uma lógica perversa para a Bahia: o poder anterior privilegiava interesses regionais,
como o café e a pecuária mineira, mas não excluia a burguesia mercantil baiana dos benefícios da
política econômica, pelo contrário, havia mesmo uma perfeita identidade entre os interesses
regionais fundamentais.
Entretanto, a política econômica a partir de 30 privilegiava certos ramos de atividades e
certas áreas de investimento que estavam fora do universo econômico da burguesia baiana. A
conjuntura dos anos 30 enfraquece a burguesia mercantil-financeira baiana em detrimento não
apenas das facções burguesas sulistas mas, também, da burguesia agrária baiana, particularmente
a cacaueira, que até então, precisara se fazer representar no poder pelos políticos ligados aos
interesses mercantis. O golpe de misericórdia é dado, entretanto, em 1943, quando a portaria nº
63 da SUMOC (Superintendência da Moeda e do Crédito) coloca toda a comercialização de
cacau sob a competência do Instituto de Cacau da Bahia, e interrompe assim o comércio
exportador baiano. A burguesia mercantil e financeira conhece então um processo de intensa
concentração de capitais e de reorientação de suas aplicações para atividades produtivas19. É
desse processo que emergirão as grandes forças da burguesia baiana no pós-guerra: os bancos
comerciais - o Banco Econômico e o Banco da Bahia - e os exportadores que se tornam
industriais do cacau, grandes plantadores e pecuaristas.
Enquanto a burguesia mercantil baiana se aninhava no bloco de poder nacional, os
conflitos de interesses na economia cacaueira não se expressavam em posições políticas claras. A
revolução de 30 contribuiu, através da crescente intervenção do estado na regulamentação e no
incentivo às atividades produtivas e do afastamento da classe dirigente, para trazer ao proscênio
da vida política a representação dos interesses do cacau.
Do mesmo modo, a eliminação dos grandes senhores oligarcas faz emergir, nos sertões,
em plano de igualdade, um número maior de pequenos latifundiários numa economia cada vez
mais tributária da economia capitalista. O novo sistema de poder terá, doravante, para conformar

19. O estudo do período 30-45 na Bahia tem sido realizado apenas do ponto de vista do mapeamento dos fatos
políticos não existindo, por enquanto, nenhum trabalho que analise o processo econômico que subjaz à dinâmica da
representação política. A hipótese de um processo de concentração dos capitais mercantis surge assim de modo
bastante genérico apoiando-se principalmente em documentos como o depoimento de Clemente Mariani, citado na
nota 2 do segundo capítulo desse trabalho, necessitando pois de um estudo e de uma investigação histórica mais
precisa para poder ser utilizada em toda a sua extensão.
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a hegemonia de qualquer facção, que levar em consideração essa diversificação dos interesses
oligárquicos e a ausência de uma rígida hierarquia entre eles, em suma, sua horizontalidade.
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50

CAPÍTULO 3 - Do Projeto Liberal-Burguês ao Planejamento Econômico

Ainda que não apareça de modo totalmente articulado, o projeto liberal já se insinua no
relatório do Banco da Bahia de 1946. Estão aí presentes os principais elementos, a partir dos quais se
aglutinarão as críticas e as propostas políticas da burguesia baiana: a) a política cambial do governo
federal; b) o comércio triangular; c) o desequilíbrio federativo e a distribuição dos recursos federais;
d) a política de suporte à agricultura; e) a política de industrialização; f) a política de retenção,
treinamento e barateamento da força de trabalho.
O eixo do projeto é, indubitavelmente, a política cambial, sobre a qual a posição do Banco
da Bahia deverá variar da pura reivindicação do câmbio livre - que significava a reintegração da
burguesia mercantil, em detrimento do Estado, no papel de interligação com os interesses
imperialistas - até a defesa de um confisco que em grande parte se reverta para uma política de
incentivo da produção e de controle da comercialização dos produtos agrícolas. Essa variação
representa, obviamente, um posicionamento no tempo que, por sua vez, obedece a uma modificação
da correlação das forças políticas em jogo. O importante, no entanto, é realçar dois fatos: o modo
como se constrói todo um diagnóstico da economia baiana em torno do objetivo de modificar a po-
lítica cambial e o modo como são costurados pelo discurso liberal os interesses do conjunto das
classes sociais.
Para a burguesia mercantil-financeira, o fundamental a modificar na política cambial era a
diferença existente entre o dólar de exportação, regulamentado institucionalmente, e o dólar de
importação, sujeito às flutuações do valor interno da moeda. Essa diferença criava uma situação de
constante contração na sua taxa de lucro ou, no melhor dos casos, fosse o dólar de exportação
corrigido no mesmo ritmo da inflação, de imposição de uma taxa de lucro menor que a auferida por
outros setores de atividade. Essa discriminação desdobrava-se no controle das importações pelo go-
verno federal, através de concessão de licenças prévias e dos leilões de divisas, que redundava no
fortalecimento dos importadores do Rio e de São Paulo, controladores de um mercado privilegiado
de matérias primas e de bens de consumo. Tal situação era agravada pelo processo fraudulento e
corrupto de obtenção de licenças. No dizer de Mariani (BANCO DA BAHIA:1950):
"Desde o momento, porém, que o cruzeiro adquiria um valor oficial para as
transações do comércio exterior acentuadamente divergente do seu valor interno, e
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51

que a essas circunstâncias se vieram juntar os privilégios assegurados por uma


política centralizadora, aos importadores com tradição, ou mesmo sem tradição,
do Rio de Janeiro, de São Paulo, então a Bahia, como Estado predominantemente
exportador, passou a ser severamente prejudicada, porquanto os dólares que
entrega ao governo federal ao preço de Cr$ 18,38 compra-os, sob a forma de
mercadorias nacionais, ou de mercadorias estrangeiras importadas por outras
praças, a mais de trinta cruzeiros".

O projeto, como sugerem as últimas linhas da citação acima, não se esgota na reivindicação
da correção do confisco cambial , mas, ao contrário, encontra desdobramentos importantes em
reivindicações sobre o funcionamento do comércio interno, para onde se voltara a expansão do
capitalismo nacional.
Se em 1945, por exemplo, a industrialização é colocada quase que em termos de oposição
aos interesses da burguesia baiana, em 1951 isso já não acontece, pois a categoria de comércio trian-
gular abre, em termos analíticos e políticos, a possibilidade de pleitear-se a industrialização local. O
importante, portanto, não é garantir apenas uma taxa de câmbio justa mas, complementarmente, um
maior desenvolvimento das atividades internas da Bahia. Em 1945, diz Mariani (1945:6):
"Não ignoremos que as nossas populações rurais e as nossas massas
consumidoras, desprovidas de tudo, submetidas, durante a guerra, às maiores
privações e sacrifícios, ... tem os olhos fitos na esperança... de abastecerem-se
agora, a preços razoáveis, nos mercados estrangeiros... e que não seria justo fazê-
las esperar o equipamento da indústria nacional capaz de prover as suas
necessidades, nem muito menos condená-las a custear o estabelecimento dessa
indústria, através de pagamento de preços exagerados pelos seus produtos".

Para repetir quatorze anos depois (BANCO DA BAHIA:1959):

"Venho, desde... 1945..., procurando incutir na consciência de nossos concidadãos


a idéia básica de que a política de controle de câmbio, associada ao do controle
dos preços, nos condena a custear o estabelecimento da indústria nacional através
do pagamento de preços exagerados pelos seus produtos".

No entanto, entre a identidade desses dois argumentos há que se inserir, para entender-se a
maleabilidade política do diagnóstico, essas frases (BANCO DA BAHIA, 1951:23):
"Se quiser guardar a sua posição econômica e melhorá-la, a Bahia terá de reivindicar
um tratamento equitativo na distribuição dos recursos da União e dos favores cuja
distribuição compete a órgãos do Governo Federal, sobretudo no que se refere ao
aproveitamento de suas divisas, à participação no imposto sobre combustíveis e à
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52

regularização dos seus meios de transporte. Mas o que lhe importa, sobretudo, é
preparar-se para a expansão industrial, que enfim se torna possível".

Tem-se, assim, delineado, em termos técnicos, o principal entrave ao desenvolvimento


econômico e social da Bahia - o comércio triangular - provocado pela baixa remuneração do dólar
de exportação e a limitação das licenças de importação. A ausência de um parque industrial
expressivo e a impossibilidade da Bahia comprar diretamente ao exterior os bens que necessita,
transformam o comércio interestadual em mecanismo de transferência de renda do estado para o
centro-sul, dos setores exportadores para os importadores, da agricultura para a indústria.
Se juntar-se ao confisco, ao comércio triangular e ao controle das importações, o
desequilíbrio provocado pela diferença entre a arrecadação federal e os seus gastos e investimentos
no Estado, ter-se-á decifrado, então, as razões para a decadência econômica da Bahia:
"premida de um lado pela agravação espantosa dos impostos federais, de outro pela
forte drenagem realizada pelos Institutos de Aposentadoria, comprimidos os seus
lucros pelos ceiling prices dos produtos de exportação, enquanto todo o resultado do
seu esforço se escoava para a compra de produtos de má qualidade e em pequenas
quantidades aos Estados industriais, a economia dos Estados agrícolas, como é o
caso da Bahia, apenas recebendo a pequena compensação dos empréstimos da
carteira agrícola do Banco do Brasil e dos salários pagos nas obras do governo
federal ou do governo americano, atingiu o mais baixo nível de exaustão" (BANCO
DA BAHIA, 1946, transcrito de A Tarde de 21.02.1946, p. 9).

A idéia de que se a Bahia fosse um estado independente estaria em melhores condições


econômicas e sociais conseguiu entranhar-se no movimento regionalista com grande persistência
mas nunca teve, no pensamento do capital mercantil, o valor central que, à primeira vista, poderia se
lhe atribuir. Daí não ser contraditório que a outra medida, por ordem de importância, que o projeto
reclama seja, justamente, o restabelecimento do equilíbrio federativo, que é o conceito que
compreende as inversões maciças de recursos federais na Bahia como um mecanismo de com-
pensação pela drenagem de cambiais.
A oposição entre uma e outra medida é meramente aparente. Não se defendem duas medidas
com sentidos opostos: a maior autonomia estadual e a maior presença da União. Essa última é en-
carada ou como uma medida reparadora do passado e, portanto, transitória em seu volume, ou como
justa contrapartida, quando alcança níveis condizentes com a arrecadação federal no Estado. Mas
não se nutrem grandes ilusões sobre ela:
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53

"Os números indicam onde se situa o ponto vital das reivindicações baianas (a
política cambial), difíceis de serem atendidas com meros investimentos compen-
satórios, cujo vulto, para serem justos, nao deixaria de fomentar resistências, por
incompreensão ou má fé" (BANCO DA BAHIA, 1959).

Os relatórios do Banco da Bahia insistem sobremaneira nesses dois pontos: a degradação do


valor das cambiais de exportação e a insuficiência dos gastos federais no Estado, ou seja, sobre os
dois principais campos de atividade do capital mercantil baiano - o comércio exportador e o
financiamento das atividades de mercado interno. Por isso a análise econômica de Mariani gira em
torno de três variáveis básicas que permitem medir, pela soma algébrica, a drenagem de recursos: o
valor das exportações, o saldo do comércio interestadual e o saldo entre os gastos e as receitas do
governo federal na Bahia. Desnecessário dizer que a tendência é um déficit crescente, um
depauperamento progressivo da "Bahia", pois, mesmo no governo Dutra, quando a política de equi-
líbrio federativo foi posta em prática, entre outras razões pela presença de Mariani na pasta da
Educação e Saúde,
"a erosão sofrida pela economia baiana ascendeu a 1.697.588 mil cruzeiros enquanto
os excepcionais investimentos compensatórios realizados no mesmo período não
ultrapassaram 1.200 milhões de cruzeiros, a metade dos quais por intermédio do
Ministério da Educação e Saúde" (BANCO DA BAHIA, 1959).

Dentro do mesmo espírito são avaliadas todas as medidas do governo federal, entre elas o
crescimento da burocracia civil e militar e sua concentração no Rio de Janeiro; os aumentos salariais
concedidos a esse funcionalismo; as despesas públicas decorrentes da concentração urbana; o
controle dos preços dos gêneros alimentícios e, até mesmo, a regulamentação da situação ocupacio-
nal do trabalhador urbano1.

1
Compare-se, por exemplo, esses três trechos de relatório (BANCO DA BAHIA,
1951:6):
" Premida pelo mal estar das classes proletárias e da imensa burocracia
concentrada no Distrito Federal, enveredou o Governo... pelo caminho das
medidas de emergência, consistentes na votação de leis draconianas de proteção
à economia popular e no abastecimento direto da população carioca por órgãos
governamentais, vendendo com prejuízo, ou sem lucros, apesar de isentos de
impostos e custeados pelos poderes públicos, numa concorrência que,
evidentemente, o comércio normal não poderia suportar".

(BANCO DA BAHIA, 1951:7):


"... faltou nos responsáveis pela ordem econômica e social a honestidade de
distribuir equitativamente por toda a massa trabalhadora, as vantagens
susceptíveis de lhe serem transferidas da renda geral da nação. Atribuí-las
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54

Mas, obviamente, atenção especial é dada à inflação de preços, vista como importante
mecanismo, junto com a política cambial, de concentração regional da riqueza:
"... a parte ainda necessária à realização do programa de metas vem sendo obtida
através de processos inflacionários que, em última análise, representam uma
transferência de recursos de setores preexistentes da economia nacional para outros
setores atualmente criados ou em acelerado desenvolvimento"(BANCO DA
BAHIA, 1958:10).

A intervenção do estado na economia, no entanto, só é criticada quando vai de encontro aos


seus interesses particulares. Nesse caso, nem mesmo a ação da CACEX, (Carteira de Comércio
Exterior do Banco do Brasil) em 1959, pautada pela defesa dos preços externos do cacau e na ga-
rantia de um preço interno que assegurava a lucratividade do produtor escapa ao crivo do capital
mercantil baiano, pois,
"a fixação de um preço mínimo em dólar e de uma taxa em cruzeiros do dólar,
valendo ambos para o comércio exportador mas não valendo nenhum deles para a
CACEX, anula qualquer possibilidade das operações normais de comércio e
transforma a CACEX em exportador único, uma espécie de monopólio concedido ao
Instituto de Cacau durante a ditadura..." (BANCO DA BAHIA, 1959:21).

Quando, ao contrário, essa intervenção é necessária para o crescimento burguês ou está além
da capacidade técnica do capital privado, os novos liberais sabem receitá-la. Assim, entre as medidas
que têm como objetivo reverter a tendência deficitária do comércio interestadual da Bahia, o que
podia ser conseguido tanto pelo desenvolvimento da produção industrial como pelo desenvol-
vimento das culturas agrícolas, Mariani acha que
"As considerações até aqui desenvolvidas estão a indicar que a consolidação da fase
de prosperidade aberta para a Bahia depende de um conjunto de medidas que vão
desde a manutenção pelo Governo Federal de sua política de restabelecimento
federativo, com a continuação do amparo aos estados subdesenvolvidos e a

apenas aos trabalhadores da indústria, e com isto aumentar o preço de sua


produção, constituia um gravame sem compensação para os trabalhadores agríco-
las, consumidores desses produtos".

(BANCO DA BAHIA, 1951:9):


"Direta ou indiretamente, por meio dos salários que paga, dos serviços que
custeia, das facilidades que assegura, a União vem compensando todas essas
condições anti-econômicas. Compensando-as, naturalmente, às custas dos Estados
e compensando-as tão bem que, no mínimo, 413 mil brasileiros se transferiram
para o Distrito Federal no último decênio, à procura de melhores condições de
vida".
57

55

continuidade de obras e campanhas nacionais de interesse direto dessas regiões, até a


organização, pelo Governo do Estado, de um plano de estruturação econômica,
mediante o qual se estabeleça um clima de maior segurança para os produtos que
constituem sua riqueza atual e, no mesmo tempo, se estimulem ou se criem outras
fontes de riquezas, ou mesmo se restabeleçam lavouras ainda há pouco tempo
prósperas e hoje em injustificada decadência" (BANCO DA BAHIA, 1950:19).

Para o desenvolvimento industrial três pontos são considerados importantes: a política de


petróleo, o aproveitamento do gás de Aratu e o aproveitamento da energia hidroelétrica de Paulo
Afonso. Quanto ao petróleo, prevalecia nessa facção de classe, ou melhor, nela tivera nascimento, a
esperança, nutrida pelo conjunto da burguesia, de associação ao capital estrangeiro para a sua
exploração. No dizer de Mariani:
"Infelizmente a paixão nacionalista ultrapassou as metas visadas pelo Presidente
Vargas e resultou no monopólio estatal, apenas se salvando para a Bahia o pequeno
royalty de 5% sobre o valor do óleo... muito embora os interesses particulares dos
proprietários das refinarias de Capuava, Manguinhos, Rio Grande e Manaus fossem
amparados e pudessem florescer à vontade à sombra do monopólio" (MARIANI,
1977:96).

No entanto, quando a lei 2.004 estabelece, em 1953, o monopólio estatal na exploração do


petróleo, a burguesia mercantil passa a concentrar sua ação política na tentativa de ampliar os efeitos
multiplicadores da indústria de petróleo em território baiano. Para isso reivindica, entre outras
medidas, o aumento do valor do royalty pago ao Governo do Estado, o aumento das inversões e dos
gastos da Petrobrás na região, a redução regional dos preços da gasolina e outros derivados, a
instalação de indústrias petroquímicas, etc. Algumas dessas reivindicações foram primeiramente
formuladas por essa facção de classe e, outras, encampadas por ela no decorrer dos anos em que se
desenvolve a campanha em defesa dos "interesses baianos", o que demonstra a possibilidade de
convergência entre os interesses das diversas camadas e classes em torno de um projeto comum.
Também de primeira hora são outras duas reivindicações: o aproveitamento imediato do gás
de Aratu, como fonte energética, quer para uso industrial, inclusive como metéria prima para a
petroquímica, quer para a iluminação pública; e a construção da Hidroelétrica de Paulo Afonso.
Esses são os pontos que, aliados às duas condições mais gerais e fundamentais, possibilitariam a
démarrage do processo industrial. Por isso, em 1953, o relatório do Banco da Bahia, acalenta a
esperança de que
58

56

"a obtenção pela Bahia, como então ocorrerá, de um grande saldo na sua balança de
contas, coicindindo com a chegada da energia de Paulo Afonso, poderá ensejar, a
exemplo do que sucedeu em São Paulo, há muitos anos, com os saldos de café, o
início de um poderoso surto industrial que incumbe aos governantes e aos órgãos
financeiros prever e preparar-se para orientar" (BANCO DA BAHIA, 1953).

A perspectiva de uma feliz confluência desses fatores aparece, pelo menos, desde 1948
embora esteja melhor expresso em conjunturas posteriores. Diz, em 1951, o relatório do mesmo
Banco:
"a Bahia tem no momento, ou terá dentro em pouco, todos os elementos para um
amplo desenvolvimento industrial; energia elétrica em Paulo Afonso e térmica em
Aratu; matérias primas minerais e agrícolas e possibilidades de expansão das que se
tornarem necessárias; imensa mão de obra, não especializada é verdade, mas capaz
de trabalhar sob a direção de técnicos e adquirir o grau de eficiência média do
operariado brasileiro; mercado consumidor capaz de absorver a produção de um
grande número de indústrias" (BANCO DA BAHIA, 1951:23).

Isso posto, cabe ainda enumerar algumas medidas complementares que são partes
integrantes do projeto. Num primeiro bloco, poder-se-ia listar uma política de valorização dos
recursos humanos através, principalmente, de investimentos em educação e em saúde públicas; uma
política de ampliação das redes de transporte ferroviário, rodoviário e marítimo; uma política de
assistência às atividades produtivas, etc., todas, em parte, dependentes de recursos federais, sendo,
por isso, especificações da política de equilíbrio federativo. Num segundo bloco, uma política de
planificação racional da economia que orientasse o desenvolvimento das atividades agrícolas, novas
e antigas, e incentivasse a industrialização, para o que se realçava, desde 1950, a necessidade de
construção de uma cidade industrial entre Aratu e Camaçari. Finalmente, acentue-se que se creditava
a viabilização desse plano de recuperação a uma firme e decisiva ação do executivo baiano, assim
como de sua bancada na Câmara e no Senado:
"... tenho insistido na demonstração da danosa influência dessa orientação sobre o
retardamento material e cultural da Bahia e na necessidade de um entendimento das
forças políticas do Estado em torno da reivindicação de pontos básicos do seu
interesse econômico, sancionada por um procedimento consequente dessas forças,
conforme tais reivindicações sejam ou não atendidas" (BANCO DA BAHIA, 1959).
59

57

A insofismável escolha da via política, parlamentar e federativa, para sua implementação


não é uma acomodação às circunstâncias do momento, mas parte fundamental de um projeto liberal
e democrático. Essa é verdadeiramente a linha de continuidade entre os novos economistas e a
tradição jurídica baiana, aquela brilhante coorte de estadistas, do Império e da República, cujo curso,
segundo o mesmo diagnóstico, a Revolução interrompera e cujo alijamento é apontado como uma
das principais causas da decadência da Bahia.

A organização em torno do Projeto

A ação do Banco da Bahia, ainda que importante, tinha que limitar-se ao plano da concepção
e da divulgação de idéias, jamais podendo transpor esses limites. No entanto, a Associação
Comercial da Bahia também passara, entre a revolução de 30 e o fim da Segunda Guerra, pela
mesma renovação experimentada pelo tradicional comércio baiano, com a ascensão da mentalidade
trazida pelos novos inteletuais2. A renovação foi de modo a recolocar a burguesia mercantil-
financeira de posse de um órgão representativo e técnico com bastante agilidade para fazer face às
novas circunstâncias que se instalarão com a redemocratização do país.
A ACB torna-se, então, a principal instituição civil na defesa dos interesses burgueses. Sua
atuação conhece três esferas: a reivindicativa e de pressão, que atua em forma de lobby junto à
Assembléia Legislativa, ao Governo do Estado, e às bancadas baianas na Câmara Federal e no
Senado; a esfera ideológica, que envolve a formação de quadros, a geração de conhecimentos
técnicos que orientam a ação e a divulgação do pensamento da classe junto às demais instituições da

2
Veja-se, por exemplo a opinião de Mariani (1977:119):
"Ressalvados alguns poucos casos decorrentes da continuidade de interesses de
família, em determinadas empresas, pela primeira vez o comércio baiano havia
adotado, como elemento seu, entregando-lhe a direção de empresas importantes,
um homem de formação universitária completa, bacharel, advogado, professor e
ainda mais político. Rompido o tabu, outros exemplos semelhantes se seguiram e
já se contam, entre os elementos de destaque do comércio e da indústria,
figuras de esmerada formação universitária, o que vem sendo ultimamente
facilitado pelo desenvolvimento dos cursos de ciências econômicas".
60

58

sociedade; e, por fim, a esfera de assessoramento, que gera propostas e contrapropostas, avalia e
reformula projetos de interesse da classe.
No plano ideológico, deve-se ressaltar o papel da ACB na criação da Comissão de
Planejamento Econômico, que foi inclusive presidida por figuras do seu meio, como Miguel
Calmon3. Também sua influência na formação de novos intelectuais, embora não tenha sido direta,
não é desprezível. Na divulgação do pensamento da classe, pelas próprias características de órgão de
pressão e combate, sua contribuição é mais lenta que, por exemplo, a do Banco da Bahia. Enquanto
esse podia dedicar-se a interpretação das conjunturas e conformar um projeto de longo prazo, aquela
teria que atuar sob a pressão dos diversos interesses com direito à representação naquela casa. Toma
tempo, portanto, não apenas a formação de um discurso homogêneo entre as diversas facções do
capital mas, principalmente, a aceitação de uma linha de ação unificada.
Foi, entretanto, o capital mercantil e financeiro que instruiu, desde a primeira hora, a lógica
da ação da ACB. A lógica era simples: preservar todo o espaço econômico para a iniciativa privada.
Como isso só interessava naquele momento, ao capital mercantil, qualquer ação que se pautasse por
essa lógica acabaria por conformar os interesses das outras facções à sua proposta de hegemonia.
Isso é verdade apesar do fato do tópico de maior importância para a burguesia mercantil, a política
cambial, não merecer nenhum destaque entre as demandas da ACB. A política cambial recebe um
tratamento menos enfâtico que, por exemplo, ítens genéricos, como o sistema de transporte ou a
produção de energia; recebendo a mesma ênfase de outros tópicos específicos, como a assistência
técnica e creditícia, o combate às secas, a legislação tributária, etc. É que o conjunto das forças que
se agregam em torno da ACB só adquirem uma maior organicidade durante os anos 50.

3
Miguel Calmon, Presidente do Banco Econômico da Bahia, presidiu a ACB, entre
1949 e 1953, diz Guimarães (1966:60): "Transformou-se (a CPE) num ponto de
reunião e conferências que influenciou vários empreendedores privados e
animou as novas empresas nascentes. Não se pode, aqui, esquecer o apoio que
lhe deram a Universidade - cujos institutos o decreto criador da CPE nomeava
expressamente, como fornecedores de estudos e pesquisas básicas - e os bancos
do Estado, principalmente Miguel Calmon e seu grupo, que continuaram
participando ativa e proficuamente da nova instituição".
61

59

Assim, por exemplo, em 1946, dirigindo-se ao Presidente da República recém-eleito, as

classes “conservadoras” baianas desdobram a seguinte lista de reivindicações, que elude justamente

a questão cambial:

"- expansão de sua rede ferroviária e rodoviária, de modo a melhor e mais


eficientemente atender às múltiplas necessidadees de seus centros produtores;
- maior desenvolvimento dos transportes marítimos que permitam o escoamento
normal de sua produção, concorrendo assim para que se torne mais assíduo o seu
intercâmbio comercial, quer com os demais Estados da Federação, quer com os
mercados internacionais;
- maior facilidade de crédito para estímulo das fontes produtoras a fim de que novas
riquezas sejam criadas, e fortalecidas as já existentes, o que certamente dará um
surto novo de progresso à agricultura, ao comércio e à indústria da Bahia;
- fomento às atividades agrícolas, ampliando entre nós os serviços do Ministério da
Agricultura;
- ampliação dos trabalhos de obras contra as secas da Bahia, de vez que é o nosso
Estado um dos que maior área possue assolada pelo fenômeno das estiagens
prolongadas;
- proteção e assistência assídua aos produtos da nossa economia, especialmente o
cacau, procurando atender, no que for justo, os interesses da agricultura e do
comércio;
- ensino industrial e ensino agrícola, permitindo assim a sua rápida evolução e
formação de técnicos em maior número" (A TARDE, 4-2-1946:3).

A ACB, todavia, tem um papel importante na luta pela modificação da política cambial.
Aliás, a história de como a defesa desse tópico tão específico acaba por envolver os outros segmen-
tos de classe representados na ACB evidencia como o projeto liberal burguês acaba por sedimentar a
organização da classe burguesa. Ainda em 1946, quando a ACB em telegrama ao Presidente da
República pede "o reexame da situação do comércio de cacau" que cerceia "a liberdade das
atividades mercantis" (ACB, 1947:1), as cooperativas de produtores da região cacaueira manifes-
tam-se radicalmente contrárias ao mercado livre do cacau, sinônimo, para elas, de especulação e es-
camoteação do cooperativismo4.

4
A TARDE (16-01-1946:7) reproduz um artigo aparecido no Diário da Tarde de
Ilhéus que tem o seguinte trecho:
"Não é possível semelhante convívio. Debaixo do mesmo telheiro não vivem o
lobo e a ovelha. Comércio livre e cooperativas têm funções, por assim dizer,
antagônicas. Um, o primeiro, existe para ganhar o pão com o suor alheio. O
62

60

Mas, já em 1954, é Clemente Mariani quem, assumindo a presidência do Banco do Brasil,


não apenas experimenta, com sucesso, sua política de "câmbio realista" como promove a defesa dos
interesses dos produtores, levando, inclusive, para a Carteira de Comércio Exterior, CACEX, o mais
expressivo representante dos interesses da cacauicultura, Ignácio Tosta Filho, que aí permanece até
1961. Finalmente, em 1956, no bojo de uma das crises mais sérias de comercialização do cacau, que
deprime violentamente os rendimentos dos pequenos produtores, são os grandes exportadores que
conduzem a luta para a recuperação da lavoura de cacau, veiculando-a ideologicamente à supressão
do confisco cambial. A pressão exercida tanto pela ACB quanto pelos representantes do grande
capital baiano levam o Ministro da Fazenda a emprestar decisivo apoio ao plano de recuperação
proposto por Tosta Filho, que intervém no mercado de cacau
"com inteira ressalva dos interesses de produtores, comerciantes e exportadores de
cacau e receitas públicas estaduais e municipais, (e mantém) íntegra a estrutura
comercial através da qual é feita normalmente a comercialização do produto..."
(ACB,1946,3:1).

O apoio da ACB é tão completo que, antes de anunciada a adoção do plano, ela já está
articulada com os produtores da região cacaueira para a deflagração de um lock-out, que
reivindicava, basicamente, a adoção de preços mínimos aos produtores5. Esses fatos parecem
demonstrar que a ACB, em mãos do capital mercantil e financeiro baiano, consegue de fato conduzir
e harmonizar os interesses em jogo na cacauicultura, já nesse período.

outro, para exterminar o intermediário e assim, oferecer aos seus cooperados


melhores lucros, mais compensadores resultados pelo fruto de seu trabalho".
5
Ver ASSOCIAÇÃO COMERCIAL DA BAHIA, 1957:12):
"Deu a seguir a palavra ao Sr. Adelcio Benício dos Santos, que informou sobre
as medidas adotadas em Ilhéus, onde se constituiu uma Comissão Central
Executiva do Plano de Ação da Lavoura Cacaueira, para articular, dirigir e
controlar o movimento de paralisação de todas as atividades da região
cacaueira, ante a negativa do governo de conceder o preço mínimo para o nosso
principal produto". "O Sr. Arthur Fraga (Presidente da ACB) pôs, em seguida,
em votação o texto da proclamação que fora lido, sendo a mesma aprovada.
Passou a discutir sobre a paralisação das atividades comerciais e industriais
na Capital, em solidariedade ao movimento...".
63

61

Dois outros pontos merecem destaque na atuação da ACB: os transportes e o petróleo. O


primeiro era a condição básica para qualquer processo de crescimento econômico, além de ser o
problema mais urgente e de maior unanimidade de opinião:
"Sem ferrovias aparelhadas, sem transportes marítimos e com rodovias não
conservadas, chegamos à triste situação de produzir e não podermos trazer aos
mercados distribuidores e consumidores o resultado de nosso trabalho. É esse o
problema máximo da Bahia..." (ACB, 1946,3:1).

O segundo é aquele onde já há um consenso formado que precisa ser alterado. Mesmo antes
de serem descobertas, em 1939, jazidas petrolíferas passíveis de exploração comercial, a opinião
pública nacional via-se dividida em torno da existência ou não do petróleo no Brasil6. A crença na
existência do petróleo estava geralmente associada a um amplo projeto de transformações econô-
micas e sociais, do qual as classes dominantes desconfiavam. Essa crença se associara, no decorrer
da campanha, entre outras coisas pelo desinteresse real da burguesia, a uma proposta nacionalista
estatizante7.
O apelo nacionalista era, em verdade, o único com força bastante para dar à campanha uma
extensão realmente geral e nacional. A acusação de que os trustes internacionais não queriam ver o
progresso e a independência econômica do Brasil tinha uma vigência que extrapolava os casos
concretos, inclusive o episódio do petróleo.
Não há dúvida de que estavam em jogo valores referentes a estágios diferentes da formação
social capitalista brasileira. Apesar das fronteiras de classe não coincidirem integralmente com as
fronteiras das crenças em disputa, não há como negar que as camadas dominantes e hegemônicas da
burguesia baiana estavam de um lado só5. Descoberto o petróleo, no entanto, cabia agora regular sua

6
Como bem coloca o editorial de A Tarde de 27-01-1939.
"a questão ultimamente extramara-se como os artigos de crença e os grupos se
dividiam - uns acreditavam por palpite, outros discordavam por inspiração".
7
Como expressa esse trecho de um manifesto estudantil de apoio à Campanha
Nacional do Petróleo, de 1937:
"Sem explorar as riquezas de seu subsolo, o Brasil não terá nunca uma indústria
pesada, não conseguirá nunca construir um fabrico em série, construir
automóveis, ter companhias nacionais e transoceânicas de transporte, ter um
Exército e uma Armada aparelhadas, ter uma frota aérea" (A TARDE, 09-03-1937:2).
64

62

prospecção, industrialização e comercialização, já que a economia nacional não atingira ainda o


nível de acumulação e de desenvolvimento tecnológico que permitisse uma solução natural. Com o
fim da guerra impunha-se, portanto, de imediato, resolver a questão do petróleo.
A ACB empenha-se a fundo na questão e o faz lastreada pelo ideário liberal-burguês cujos
vértices assentavam-se na crença de que sobre o petróleo edificar-se-ia uma sociedade nova, na
afirmação de que o petróleo era uma riqueza da Bahia, isto é, uma riqueza privada como todas as
outras, e na reivindicação de que sua exploração obedecesse unicamente às leis econômicas, ou seja,
às leis do capital. O Presidente da Associação Comercial, por exemplo, dirige-se, em 1946, nos
seguintes termos ao interventor Marback:
"A Bahia que fez a independência política do Brasil pode, nesse momento, fazer a
sua independência econômica, com seus recursos. Por toda a parte de nosso litoral
aflora 'ouro negro'"(ACB, 1946,3:1)

As perspectivas de uma indústria petroquímica, de uma fonte de energia barata, e mesmo os


lucros da exploração petrolífera já não são crenças visionárias, mas possibilidades reais às quais a
burguesia baiana se contrapõe de modo também realista. No círculo da Associação Comercial
cresce, portanto, a disposição de lutar pela imediata exploração do petróleo baiano. E o modo de
explorá-lo rapidamente é, logicamente, a "cooperação" internacional já que faltam aos nacionais o
volume de recursos e o acervo tecnológico requeridos.
Os argumentos contrários à presença do capital estrangeiro na indústria petrolífera são
rotulados de "nacionalismo estrábico" (ACB, 1953,7:1), afinal
"não estamos traçando só os rumos do petróleo, estamos assumindo a
responsabilidade doutrinária, uma orientação disciplinar no âmbito geral da
economia brasileira. Usando um dos produtos mais valiosos na pauta de nossa
riqueza, vamos definir a nossa posição política-econômica elegendo dentre as duas
fórmulas históricas a que há de marcar a manifestação deliberada da tendência
nacional - o liberalismo ou o intervencionismo estatal" (ACB,1952,11:).
65

63

Essa posição não lhe é restrita, mas comum a todas as associações comerciais do Brasil, sob
a liderança da paulista e da carioca8. O particular à ACB é, como já foi dito, que tendo o petróleo
jorrado na Bahia, é sobre ele que se erige a parte substancial do projeto de recuperação econômica
da Bahia, ao lado do aproveitamento do potencial energético do São Francisco e da autonomia dos
Estados.
Assim, mesmo depois da lei 2.004, de 31 de outubro de 1953, que cria o monopólio estatal
do petróleo, a ACB continuará a pressionar o governo e a modelar a opinião pública no sentido de se
promover, com rapidez, um surto de desenvolvimento industrial no Estado, lastreado na exploração
do petróleo.
Alguns pontos preocupam-na sobremaneira: os preços dos derivados, mais elevados na
Bahia devido aos fretes e às tarifas portuárias; a pequena capacidade de refino de Mataripe, que
inviabiliza o surgimento aqui, de uma indústria petroquímica, que já começa a instalar-se em São
Paulo e Rio de Janeiro; o não aproveitamento industrial do gás natural; a isenção de imposto de que
goza a Petrobrás e a sua pequena contribuição para a economia baiana, seja em forma de pagamento
de royalties, seja em forma de participação acionária, seja em forma de investimentos de infra-es-
trutura; os direitos dos superficiários do Recôncavo nem sempre respeitados e a conseqüente
desorganização do abastecimento alimentar da capital; e, finalmente, a opacidade da direção da
Petrobrás às pressões dos grupos econômicos baianos.
Como se verá adiante, a maior parte das reivindicações da ACB será atendida
posteriormente, entre 1959 e 1964. Por ora, convém ressaltar que o maior triunfo da burguesia
baiana é imbutir no pensamento das demais classes do Estado a idéia de que a política nacional de
petróleo deve ser avaliada também por seus efeitos regionais.
Além desses temas - a política cambial, os meios de transportes e o petróleo - que
centralizaram os debates nos anos 40 e 50, houve outros, como a energia elétrica, que ganharam

8
Assim, quando da sua descoberta em Lobato, o editorial de A Tarde descreve
os dois lados em confronto usando a palavra capitalista para significar o
empresário visionário que se volta para o futuro e de homem de negócio para
significar o capitalista real, o comerciante e o agricultor principalmente,
mas também o empresário industrial bem estabelecido.
"Capitalistas idôneos juravam: existe. Tinham a convicção, algo visionária, de
Galileu, dizendo que a terra se move. E homens de negócio, igualmente sérios,
replicavam com uma fatal energia que lembra a junta de Salamanca a repelir os
sonhos de Colombo: não, não há petróleo" (A TARDE, 27-01-1939:3).
66

64

enorme importância como veículo da ideologia liberal-burguesa, sendo também apresentados como
soluções para o subdesenvolvimento da Bahia e para a pobreza de sua gente. Ainda outros houve,
mais específicos, sem a função catalizadora daqueles, como a regulamentação do imposto de venda
e consignações; do imposto de exportação; a discussão esmiuçada das portarias da SUMOC e seus
efeitos sobre o pequeno comércio, o grande comércio e as finanças; o disciplinamento da oferta de
insumos industriais; a política creditícia do governo; as medidas de planificação econômica do
estado; a sistemática do imposto territorial; a localização industrial, etc. Esses últimos fizeram o dia
a dia do trabalho da ACB junto aos poderes públicos e aos senadores e deputados baianos, através de
memoriais, memorandos, telegramas, cartas, visitas, sessões de discussão, seminários e conferências.

Cabe também realçar as duas outras instituições que estiveram estritamente ligadas a esse
padrão de comportamento, embora sem a força e a influência política da ACB - a Federação do
Comércio da Bahia e a Federação das Indústrias do Estado da Bahia - ambas dirigidas pelo mesmo
grupo de intelectuais orgânicos, Pedro Mariani, Orlando Moscozo Barreto de Araújo, Alberto
Martins Catarino, etc. que emergiram no pós-30.
Finalizando, pode-se dizer que o projeto liberal burguês, por trazer uma marca de origem
muito destacada (a política cambial) foi a expressão imediata e um guia para a ação da burguesia
mercantil baiana desde a segunda metade dos anos 40. Só mais lentamente, contudo, conseguiu
instalar-se hegemonicamente no seio dos organismos da burguesia, isto é, conseguiu refletir não
apenas o pensamento de suas diretorias, mas do conjunto da classe.
A maleabilidade do pensamento liberal eestava no fato de não ter um projeto tão
empedernido e retógrado quanto, à primeira vista, sua reivindicação principal indicava. A outra porta
de entrada do projeto, a expansão das atividades industriais e agrícolas no Estado, atingia com
facilidade os interesses do restante dos segmentos burgueses baianos e abria o necessário espaço
para o consenso. O capital mercantil terá então, como tarefa, para resguardar sua posição
hegemônica, que fazer com que sua política cambial adeque-se àquele espaço e, para isso, tem que
absorver reivindicações agrárias, como os preços mínimos ao produtor, e a regularização do
67

65

mercado de comercialização pelos órgãos públicos, por exemplo, e abrir mão de pretensões
inconvenientes como, por exemplo, a total liberdade do comércio de moedas e de mercadorias.
No entanto, apesar de no seio dos órgãos de representação burguesa essas adaptações terem
sido feitas sem abdicar-se do espírito acentuadamente liberal do discurso, na sociedade civil, em
contato com as outras classes e os outros segmentos sociais, esse mesmo discurso mostrar-se-á
inadequado às diversas conjunturas da correlação das forças políticas até 1964.
Por sua vez, o processo relativamente lento de organização da classe é sintoma das raízes
pouco profundas da burguesia baiana ainda, em grande parte, em formação. Nesse aspecto, a fração
mercantil terá que esperar que os organismos de classe ganhem efetivamente um cunho burguês para
conseguir delinear uma ação de classe organicamente unificada. Quanto à inadequação do discurso,
ele é índice não apenas da gestação da burguesia enquanto classe, mas, principalmente, da
emergência da representação dos interesses de outros segmentos, entre os quais os da pequena
burguesia e os dos setores populares.

A ideologia do planejamento

O planejamento na Bahia foi fruto, como vimos, do esforço das classes burguesas para
aprofundar o conhecimento da realidade econômica baiana. Surge, todavia, como instituição
pública, em 1955, no governo Antonio Balbino, que cria a Comissão de Planejamento
Econômico, pela mão de Rômulo de Almeida, então secretário da Fazenda do Estado, mas já
àquela altura um economista de renome nacional tendo chefiado a Assessoria Econômica da
Presidência da República, durante a gestão Getúlio Vargas e, mais recentemente, o grupo de
trabalho que criara o Banco do Nordeste do Brasil.
A idéia de criar uma comissão, ligada ao governo do Estado, que congregasse as
instituições da sociedade civil interessadas na pesquisa e na implementação de políticas
econômicas para o desenvolvimento da Bahia data de, pelo menos, 1946, quando Rômulo de
Almeida, então técnico do Departamento Nacional de Indústria e Comércio, contactava com
68

66

sucesso a Associação Comercial da Bahia nesse sentido9. Sua visão dos problemas e sua posição
diante do desenvolvimento da economia brasileira, entretanto, diferem daquelas esposadas pela
grande burguesia baiana, como expostas por Clemente Mariani, o que já ficara claro na sua atua-
ção como deputado federal pelo PTB.
Os entraves ao desenvolvimento capitalista na Bahia e os efeitos subseqüentes sobre o
sistema político de dominação levaram, todavia, em 1955, a burguesia mercantil baiana a falar
pela voz do projeto reformista. Esse projeto fora elaborado pelos setores industrialistas e
nacionalistas baianos e consolidava uma aliança que tivera início em 1954, no plano partidário,
com a união da UDN e do PTB em torno do governador Antônio Balbino. Se o pensamento de
Mariani expressou uma tentativa da burguesia baiana de voltar a comandar um estágio de
acumulação capitalista que lhe tinha escapado historicamente, o pensamento de Rômulo
representava o esforço de integrar a Bahia naquele estágio sem ferir os princípios do pacto social
que o viabilizava.
O objetivo de Rômulo de Almeida era desenvolver a economia baiana, o que, para ele,
significava "alcançar a elevação da renda real per capita e sua manutenção de forma mais estável,
compatível com a natureza dos recursos e os interesses da economia nacional" (CPE, 1958:11).
Esse objetivo abstrato, no sentido de que abstrai os interesses reais dos sujeitos reais, quando
confrontado com as condições para a sua realização, conduz rapidamente à conclusão de que,
para a Bahia, a instabilidade econômica é o principal obstáculo a consecução daquela meta: "o
problema econômico da Bahia é, em primeiro lugar, o da instabilidade". Seguem-se então a
identificação das causas da instabilidade: a) "a flutuação das safras agrícolas, agravadas pelas
secas"; b) "flutuação de mercados e preços no exterior"; e c) "inadequação regional da política
monetária federal". Essas causas são agrupadas em três fatores gerais de retardamento:

9
Diz A TARDE (3.1.46:2):
"Pelo Sr. Miguel Calmon Sobrinho foi longamente exposto o ponto de vista de
que a Associação Comercial da Bahia deveria se dirigir ao Governo do Estado,
reforçando as sugestões que lhe apresentou o Sr. Rômulo de Almeida, alto
funcionário do Departamento Nacional de Indústria e Comércio, no sentido de
serem destinados as verbas previstas para o extinto Departamento Estadual de
Informações à criação de uma comissão, integrada por elementos técnicos, com
poderes para estudar e levantar um planejamento econômico do Estado, em vista
da evidência de não ser mais possível, nesta altura da civilização, economia
nem planejamento da produção".
69

67

"Entre os principais fatores de retardamento da economia baiana podem ser apontados, pela
maior interferência na conjuntura, a exportação para fora do país, os termos de intercâmbio e
desgaste e, possivelmente, a baixa produtividade marginal do capital da Bahia" (CPE, 1958:15).
A agricultura de exportação é pois colocada como um fator de instabilidade e de
retardamento da economia baiana, para a qual só a diversificação da produção e a ampliação dos
mercados internos representam uma via segura de desenvolvimento:
"A Bahia, nas condições atuais, não tem interesse próprio em expandir suas exportações
para o exterior, a não ser em caso especial de produção, obtida com excepcional
produtividade, mediante uso de recursos que não possam ser utilizados, em condições
aproximadas, para produzir safras destinadas ao mercado interno" (CPE, 1958:15).

No entanto, na ótica do projeto, o privilegiamento do mercado interno e a diversificação


da economia, longe de gravar os interesses ligados ao mercado externo, facilitam-nos10. Como se
sabe, esses interesses respaldam-se nos grupos política e economicamente mais fortes, mais
organizados e mais prestigiosos do Estado. Por isso o projeto buscará no desenvolvimento
nacional a justificativa para a continuidade da expansão da agricultura de exportação, soldando
assim também os interesses burgueses regionais e nacionais.
A diversificação da produção deve se dar através do desenvolvimento de novas atividades
agrícolas e de "um surto de indústrias ajustadas às condições do mercado local e nacional" (CPE,
1958:13). No primeiro caso, o plano dedica especial atenção às oportunidades de inversão
representadas então, em 1957, pela expansão da pecuária no sudoeste e no sul do Estado,
considerando-a um caminho natural de aplicação dos excedentes da economia cacaueira. O
incentivo à pecuária visaria contrariar a tendência de migração dos excedentes do cacau em busca
de uma remuneração adequada, pois constitui-se "verdadeira desgraça a constância com que a
economia cacaueira, por falta de convenientes aplicações para seus recursos livres, os transfere
para fora da região, notadamente para o sul do país" (CPE, 1958:17).
Quanto à industrialização, pensa-se sobretudo em incentivar uma indústria voltada para o
mercado regional e nacional que aproveite os recursos naturais da região e a abundância de mão

10
"A diversificação da produção no Estado é considerada essencial para
melhor equilibrar a economia geral, sem prejuízo e até como uma condição de
maior produtividade e expansão das exportações para o exterior" (CPE,
1958:13).
70

68

de obra desqualificada e, ao mesmo tempo, incentive a imigração dos fatores escassos - capital,
técnica e experiência empresarial.
O segundo fator de retardamento, o desgaste dos termos de intercâmbio, é considerado
como um resultado das "exportações para o exterior [que] dependem mais de condições
peculiares, em regra oligopsônicas, dos mercados exteriores, que de nossos esforços" (CPE,
1958:17). A sua influência negativa para a economia decorre da importância que assumiram esses
mercados em detrimento do mercado interno, "devido provavelmente a dois fatores: o fracasso
das indústrias locais, motivado pela instabilidade interna, e o desenvolvimento de indústrias
competitivas nos mercados do sul e de Pernambuco" (CPE, 1958:18).
O comércio triangular, que tantos danos causa à economia baiana, é, por assim dizer,
desvinculado da questão cambial, considerada apenas um agravante de seus efeitos:
"Mesmo nos períodos em que a taxa de câmbio era justa ou de paridade para compra de
letras de exportação, essas compras eram feitas a preços afetados por tarifas aduaneiras,
pela escassez de câmbio e o sobrecusto dos transportes internos. O papel da Bahia, e há
muitos decênios, tem sido o de financiar o desenvolvimento do sul. O multiplicador de
suas exportações opera em benefício do resto do Brasil" (CPE, 1958:18).

A política cambial e monetária do governo federal realmente amplia as conseqüências


negativas do comércio triangular, mas "nada disso terá importância quando a Bahia absorver,
direta ou indiretamente, o câmbio que produz, ou mesmo se, utilizando sua capacidade de
importar com os equipamentos do Brasil, estiver apta a desenvolver atividades de mercado
interno, sob a proteção das tarifas aduaneiras e, principalmente, da escassez cambial, reduzindo
assim o impacto da inflação nacional sobre sua economia" (CPE,1958:21).

"A transferência de recursos das regiões mais atrasadas para as mais desenvolvidas"
embora não seja causada pela política cambial, como vocifera a burguesia mercantil baiana,
provoca um acúmulo dessa transferência que "é um efeito não desejado daquela política".
Já as soluções dadas ao desgaste dos termos de intercâmbio dirigem-se para um
"programa de organização comercial das exportações, principalmente do cacau, tendo em vista,
não só credenciar melhor nossos produtos pela qualidade, como reduzir os fatores de
instabilidade no mercado mundial" a ser executado com a interferência do governo federal. Não
cabe, portanto, "reivindicar a Bahia, em lei, uma quota correspondente às divisas que produz"
71

69

pois "tal contingente regional ou estadual colodiria frontalmente com a unidade cambial,
aduaneira e econômica do país", até porque "a discriminação ambial a favor dos bens de
produção é justificável, sob o ponto de vista nacional" (CPE, 1958:27). A Bahia tem direito,
portanto, a uma política compensatória de crédito e de inversões do governo federal, assim como
a um tratamento prioritário para as importações essenciais ao seu desenvolvimento industrial.
O último fator de retardamento, a baixa produtividade marginal do capital na Bahia, além
de ter sua solução encaminhada em decorrência das providências anteriores, comporta uma ação
do Governo do Estado no planejamento econômico que, entre outras medidas, (a) dote o Estado
de uma legislação fiscal que incentive as inversões produtivas; (b) discipline os investimentos
federais e estaduais, compatibilizando-os, concentrando-os em áreas e setores prioritários ao
invés de deixá-los pulverizar-se ao sabor dos interesses distritais; (c) desenvolva um programa de
formação e qualificação de mão-de-obra condizente com as necessidades econômicas; (d) elabore
a execute um programa de abastecimento que preserve os baixos salários nominais da região ao
tempo em que promove uma elevação dos salários reais; e, principalmente, (e) dote o Estado de
uma infra-estrutura básica e de outras economias externas. Finalmente, ressalte-se que, nesse
plano liderado por Rômulo de Almeida, os problemas sociais e o bem-estar da população são
encarados como uma consequência das medidas anteriores, promotoras do desenvolvimento, não
sendo objeto de programas especiais11.
Como pode ser observado, Rômulo de Almeida toma as grandes linhas da política
econômica nacional como um dado de realidade sem buscar jamais alterá-las mas, pelo contrário,
procurando somar esforços no sentido de acentuar-lhes os efeitos. Note-se também que Almeida
procura apresentar os três setores produtivos - a agricultura de exportação, a agricultura de
mercado interno e a indústria -, de modo integrado e equilibrado, fazendo com que a última
atividade apareça como uma complementação necessária dos interesses das duas primeiras, uma
espécie de estabilizador das variações cíclicas do comércio e da produção de bens agrícolas.

11
"O progresso social resulta, essencialmente, do aumento dos investimentos
para criar empregos produtivos, produzir mais e elevar os salários reais, ou
seja, o poder de compra das populações. O socialismo, no estágio do nosso
desenvolvimento, é promocional, pois o distributivismo assistencial tem
eficiência reduzida, face ao pouco que distribuir e que, assim, se torna pri-
vilégios de alguns" (CPE, 1959:44).
72

70

Justamente por não construir seu discurso a partir de nenhum setor particular, mas a partir
do conjunto de setores da economia, Almeida privilegiava de modo implícito aquele setor que,
segundo o diagnóstico, assegurava um ritmo de crescimento mais regular. Do mesmo modo, o
projeto opera sobre uma lógica de inserção da economia baiana na economia nacional que guarda
os pressupostos da primeira. São esses dois traços que nos autorizam a pensá-lo, quaisquer que
fossem os propósitos de Almeida em sua exposição, como um projeto que representa os in-
teresses industriais privilegiados pelo processo de acumulação capitalista.
A que classe ou facção de classe baiana serviria esse projeto? À burguesia mercantil, de
quem não respeitava a vontade de comando? Às classes populares, de quem retirava a identidade
política, reprimindo suas reivindicações concretas, em nome de um socialismo promocional?
Julgado por esses parâmetros, o projeto não era um projeto de uma classe regional, pelo menos de
uma classe real que existisse naquela conjuntura e que pudesse assumi-lo, tanto na luta política
quanto na prática econômica. Era antes um projeto por cima das classes, o projeto de um estado
que fosse o sujeito político e o sujeito econômico por excelência. Seria, no máximo, o projeto de
constituição de uma burguesia industrial e de uma burguesia agrária, classes ainda sem suficiente
expressão, naquela conjuntura, na esfera política. Como só uma inteligentzia pode imaginar-se
suficientemente desvinculada das disputas de classe para apresentar metas sociais que pairem por
cima dos interesses reais que animam a cooperação e o antagonismo social, esse era, nesse
sentido, o projeto de uma inteligentzia.
No entanto o projeto reformista foi também, em outro sentido, um projeto do grande
capital baiano, à medida que essa era a única classe burguesa local, ou melhor o único grupo
burguês baiano que já tinha àquela altura uma estatura nacional, isso é, que se reproduzia
nacionalmente, e estava interessado na industrialização da Bahia. Não foi por acaso que foram os
seus intelectuais e as suas instituições que, em grande parte, viabilizaram a Comissão de
Planejamento Econômico e deram sustentação às idéias de Almeida. O que anuvia essa
vinculação, tornando-a opaca, parece ser a relação contraditória entre os níveis regional e
nacional da luta política: o grande capital mercentil-financeiro baiano para se reproduzir
nacionalmente precisava de uma política econômica liberal, mas para garantir seus interesses
regionais não hesitava, enquanto permitiram as condições políticas, em adotar um pensamento
"desenvolvimentista".
73

71

Na verdade, o projeto reformista, no plano nacional, estava intimamente relacionado com


a ideologia nacionalista desenvolvimentista. No contexto de um processo de intensa industrializa-
ção e urbanização, esse projeto assume, de modo contundente e decidido, a defesa dos interesses
da indústria contra qualquer arranhão que eventuais compromissos com os setores agro-expor-
tadores possam causar. Essa postura desenvolvimentista intransigente sustenta-se nos setores
urbanos e no operariado, organizados politicamente através do PTB e do PCB, mas não colide
com os interesses econômicos da burguesia do centro-sul, que tem na indústria, àquela altura, seu
principal setor de atividade.
Além desses setores, o projeto reformista pretende representar os interesses dos
camponeses, dos trabalhadores rurais e do empresariado rural, principalmente o pequeno e o
médio. A costura entre os interesses desses últimos grupos e os interesses industriais dá-se a-
través da proposta de uma ampla reforma agrária e da modernização e capitalização da agricul-
tura.
Na medida, portanto, em que a burguesia é a maior beneficiada pelo desenvolvimento,
esse projeto ganha força política sem ameaçar-lhe de imediato os interesses materiais. Na medida,
porém, em que tenta isolar os diferentes setores da burguesia, tradicionalmente solidários pela
concentração e centralização de capitais, resultado natural do desenvolvimento capitalista, o
projeto representa um real impecilho para os interesses capitalistas privados.
Na Bahia, entretanto, o projeto reformista, embora podando a liderança que a burguesia
mercantil se arvora a ter no processo de transformação da sociedade baiana, não lhe fere os
interesses econômicos. O comércio exterior é resguardado, embora já não sob a justificativa de
ser a principal fonte de divisas da Bahia, mas agora como importante fonte de divisas para o
esforço de desenvolvimento nacional.
Quanto à premência do desenvolvimento industrial da Bahia e da diversificação de sua
economia agrícola, esse era um pensamento partilhado pela burguesia mercantil financeira que,
ao contrário das suas congeneres sulistas, estava prisioneira das flutuações do mercado exterior,
no momento mesmo em que a organização dos produtores de cacau diminuia-lhe a margem de
manobra para repassar perdas e garantir o equilíbrio da sua taxa de lucro. O projeto não colide,
pois, frontalmente, com aquele da burguesia mercantil, mas antes, concentra-se em advogar
medidas de desenvolvimento do mercado interno - principalmente da indústria e da agricultura de
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72

abastecimento - tratando de modo subsidiário o comércio exterior. Ainda assim, a proposta de


modificação da política cambial, de modo a diminuir o diferencial do confisco, é uma reivin-
dicação também dos reformistas baianos.
Outra força social que ganha destaque nessa conjuntura da segunda metade dos anos 50 e
que desempenhará grande influência na formação da hegemonia da burguesia mercantil, são os
setores agrários, onde gesta-se um novo segmento da burguesia. O projeto reformista de Rômulo
de Almeida dedica grande importância ao desenvolvimento de uma agricultura capitalista. No
entanto não expressa a abrangência dos interesses desses setores pois, tratando-os implicitamente
como um ramo de atividade complementar e subsidiário a um sólido processo de
desenvolvimento, acaba por privilegiar tão somente as zonas sul e sudoeste, onde expandia-se a
burguesia cacaueira, já constituída em atividades de pecuária, de extração vegetal, de cultivo de
dendê e da seringueira. Ainda que tecendo o manto ideológico, sob o qual pode abrigar-se o
conjunto desses interesses, não serão as forças reformistas, de base mais nitidamente urbana, mas
um jornal de grande circulação, que construirá a soldagem dos interesses agrários aos interesses
financeiros e industriais de modo mais próximo a uma efetiva hegemonia burguesa.
O discurso burguês, em seu caminho para a hegemonia, teria que passar, forçosamente,
pela veiculação dos meios de comunicação de massa, principalmente daquele mais
profundamente arraigado à tradição da luta política, a grande imprensa escrita.
Como se viu, o discurso liberal-burguês organizou, nos anos 50, a ação de classe da
burguesia baiana, através de suas principais instituições. Isso, contudo não foi capaz de unificar a
atuação da representação política burguesa ou de manter o reformismo como filosofia de governo
a tutelar a ação do Estado. Se a ideologia reformista, de cunho industrialista, resguardava os
interesses das classes que se beneficiavam com o desenvolvimento capitalista, suprindo nos anos
50 a falta de uma ação unificada, apenas a grande imprensa poderá formar o necessário consenso
popular que possibilitará a formação de uma ação unificadora do desempenho da representação
política. No capítulo seguinte acompanharemos a formação desse consenso pelas páginas do
jornal de maior circulação regional: A TARDE.
75

74

CAPÍTULO 4: O regionalismo econômico d’A Tarde

Circulando desde 1912, o jornal "A Tarde" é um típico jornal “da ordem”. Antes
da guerra, expressara o bloco hegemônico desfeito em 1930, fundado sobre o entrela-
çamento dos interesses da burguesia mercantil e da oligarquia fundiária. No pós-guerra,
sua linha editorial continuará a desenvolver-se nos limites da mesma matriz
conservadora, demarcados, a rigor, por duas noções gerais: a defesa da ordem e a do sis-
tema federativo. Democracia, para "A Tarde", significa uma ordem capitalista onde se
respeitem o direito à propriedade privada e as liberdades individuais do “cidadão” (ou
seja, dos que têm direitos). Assim, por exemplo, até abril de 1964, ATarde defenderá a
ordem constitucional e jurídica sem deixar que o seu anti-comunismo ostensivo entre em
contradição com a defesa da normalidade da vida democrática.
Por outro lado, os valores federalistas são o que "A Tarde" define como interesses
dos Estados, interesses das regiões e o interesse geral da nação. Entre eles deve haver
uma perfeita correspondência. A nação é uma união de Estados, devendo ser respeitados
os interesses e a conformação espiritual e material de cada um deles. A regra de ouro é
que não pode haver nação forte com regiões e Estados fracos. Assim, os interesses da
Bahia, que "A Tarde" patrocina e os do Nordeste, que encampa, são encarados como
legítimos problemas nacionais. O conceito de legitimidade, por seu turno, fundamenta-se
na não contrariedade entre esses três níveis. Contrariar as pretensões da Bahia ou do
Nordeste, deixando-os em desvantagem frente aos Estados do sul é favorecer a desordem.
Para evitá-la é necessário que a Bahia esteja bem representada nas esferas decisórias do
União para que se evite o risco de tratamentos descriminatórios.
Posto que os "interesses baianos" não têm um conteúdo preciso, essa ideologia é
suficientemente geral para acomodar um grande número de interesses variantes. Por tra-
tar-se, todavia, do discurso de uma hegemonia desfeita, essa estrutura ideológica achava-
se impregnada de um conteúdo pequeno-burguês bastante preciso. A hegemonia, por
definição, só se efetiva quando o mais específico e particular do discurso contamina o
mais genérico e o mais abstrato. No caso de "A Tarde", a particularidade pequeno-bur-
76

75

guesa do discurso é explicitamente construída no passado: "o nosso declínio econômico,


e quiçá do Norte do país, vem de longe, filia-se a razões de ordem política dos primórdios
da vida republicana" (A TARDE, 28.2.53:3).
Mas para ser efetiva, a hegemonia tem que situar-se num terreno concreto. Por
isso é preciso saber definir os interesses em jogo, situá-los frente ao passado e projetá-los
para o futuro. O diagnóstico do subdesenvolvimento baiano que "A TARDE" apresenta é
composto, ao lado do mencionado declínio da importância política da Bahia na vida
nacional, por um fator de ordem moral - a mentalidade mais verbosa e menos técnica, que
"exige de nós [para superá-la] uma completa transformação do nosso comportamento es-
piritual" (A TARDE, 28.2.53:3) - e por um fator de ordem natural - as variações cli-
máticas, que castigam com secas prolongadas e inundações periódicas dois terços do
território baiano.
Quanto ao projeto, preserva-se a idéia de que o Brasil é um país essencialmente
agrícola mas acrescenta-se que a melhor política econômica não pode restringir-se apenas
à incentivar a produção agrícola, pecuária e mineral, mas deve sobretudo viabilizar o
beneficiamento e a transformação industrial desses produtos. Argumenta-se que se deve
buscar um meio termo entre as posições extremas de defender, uma, o desenvolvimento
baseado apenas na agricultura, que provocaria uma limitação do mercado interno, e,
outra, de defendê-lo exclusivamente centrado sobre a indústria, o que resultaria numa
escassez de produtos agrícolas.
Obviamente, esse pensamento deselegante não argumentava sobre posições
defendidas por nenhuma corrente do pensamento econômico existente naquele momento.
Colocar a questão nesses termos tronchos apenas maqueava o palavreado desgastado da
oligarquia fundiária, atacando a política econômica que protegia a formação do parque
industrial de bens de consumo duráveis. Atente-se, também, para o fato de que a ar-
gumentação é suficientemente vaga e irreal para abrigar uma crítica às correntes que
pugnavam pela criação de indústrias de base, crítica, aliás, que "A Tarde" dá mostras, em
outras oportunidades, de não endossar.
"Na velha frase de Agassiz de que somos um país essencialmente agrícola há uma
lição... de que nos impõe o beneficiamento e a transformação dos produtos do nosso solo,
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76

agrícolas e mineralógico. Aí está, claramente indicado, o inevitável destino industrial


reservado a Bahia, de certo contrário ao em que se fundamentam muito das indústrias
sulinas, hoje florescentes às custas da tutela protecionista tarifária, mas cuja matéria
prima importamos a peso de ouro" (A TARDE, 23.9.53:3).
A insistência sobre o fraseado démodé parece indicar a tentativa de construir uma
ponte entre um passado de glórias e um futuro a edificar. Ponte que passa pela
conciliação dos interesses das classes agrárias (a velha oligarquia fundiária, a incipiente
burguesia e a pequena burguesia rurais) com o desenvolvimento industrial, àquela altura
irreversível, cuja prioridade é apresentada como necessária ao reequilíbrio da sociedade
baiana: "Aqui de modo geral, não regredimos nem estacionamos na agricultura, muito
embora seja pequeno o nosso progresso nessa atividade. Todavia, verifica-se o contrário
no campo industrial" (A TARDE 7.2.53:3).
A política de industrialização era concebida como o modo de beneficiar e
estabelecer sobre bases seguras a burguesia agrária. Isso não significa, entretanto, que a
burguesia agrária já se houvesse constituído enquanto classe nos anos 50 e que A Tarde
se fizese seu porta-voz.
Se por classe entendemos uma organização coletiva e uma vontade política, a
realidade baiana era, então, bem diversa. As únicas classes existentes naquela conjuntura
eram a burguesia mercantil financeira, a qual, já vimos, tinha um dicurso que procurava
reservar para si a condução do processo de transformação social; e a oligarquia fundiária,
uma classe que pertencia ao passado, sem vitalidade ou possibilidades históricas, mas que
mantinha uma representação política forte e que procurava transpor os limites do tempo
sem perder nenhum privilégio e, portanto, conservava, sem modificações de monta, o
discurso ideológico do antigo bloco no poder. Às outras classes, faltavam ainda or-
ganização e base material de sustentação para tentarem impor à sociedade um projeto
próprio. Por isso a saída reformista, por exemplo, visava transformar o Estado em sujeito
político, fazendo-o passar pela burguesia industrial que germinava entre as camadas
médias. Por isso, também, o projeto de expandir a burguesia agrária e de veiculá-la ao
crescimento industrial era, a um só tempo, uma abstração das condições reais dos agentes
sociais e sua constituição enquanto sujeitos políticos. Isso significa, para ser mais claro,
78

77

que é no bojo mesmo do processo político-ideológico que se descreve aqui que a


burguesia agrária, a burguesia industrial e o proletariado passam a existir como classe ou
facção de classe, isto é, como forças políticas.
O caráter pequeno-burguês de "A Tarde" e sua constituição como representante
dos interesses da burguesia agrário-industrial evidencia-se no início dos anos 60 quando,
com o acirramento das lutas de classe, ela abandona os interesses da oligarquia fundiária
e passa a defender a reforma agrária. Isso significava, na realidade, romper com o
coronelato que se aferrava às relações de produção ultrapassadas e às práticas
improdutivas de renda da terra. Mas siginificava também garantir a prosperidade
daqueles setores do coronelato que começavam a empresariar a terra1. Não se deve
esquecer que a principal matriz da burguesia era forçosamente a velha oligarquia.
É evidente que o projeto de desenvolvimento agroindustrial não tinha grandes
chances de impor-se nacional ou mesmo regionalmente. Isso porque ele significaria uma
ruptura histórica que a burguesia agrária não tinha condições de sustentar ou, o que vem
dar no mesmo, arregimentar forças suficientes que a apoiassem. Ele era, por assim dizer,
uma projeção ideal de interesses de sujeitos inexpressivos. Diante da necessidade
histórica de acompanhar o desenvolvimento sulista, para esses atores a maneira exequível
de fazê-lo é apresentar o seu modelo de industrialização como uma solução que, por sua
simplicidade, deveria preceder uma industrialização tecnologicamente mais avançada.
"Estado predominantemente agrícola, tudo nos aconselha a multiplicação quando
nada de indústrias derivadas dessa produção, enquanto não cuidamos da implantação de
outros fabricos, como os de consumo e de aproveitamento e transformação de minérios"
(A TARDE, 11.1.1965:3).

1
. Assim diz A Tarde (10.7.61:5):
"Há, apenas, um equívoco na tese sustentada pelo govenador da Bahia. Falar em assistência técnica
financeira e outras, quando se pensa em modificar o estatuto da terra, é quase dar o dito por não dito. Se em
outros Estados ou regiões isso pode ser certo, na Bahia não o é. Por duas razões: em primeiro lugar não
haveria meios para dar essa assistência a mais de 70 por cento da população e nem por isso a anunciada
reforma deixa de ser necessária. Em segundo lugar, a ambição da produtividade deve ficar em seguida,
diante da precisão de garantir o trabalho e a produção... A tese (da reforma agrária) tinha sido durante
muito tempo, terreno particular dos comunistas e agitadores. Foi a igreja quem primeiro decidiu arrebatar a
bandeira, incluindo-a na sua agenda de ação pública..."
79

78

Na prática, como a industrialização mais avançada fazia-se com maior rapidez,


propulsionada pela imigração de capitais, "A Tarde" abandona aos poucos essa fórmula
conciliatória. Continua, contudo, a realçar concomitantemente dois polos de interesses: a
criação de facilidades para atrair inversões industriais do sul e do exterior e a criação de
condições para a inversão e acumulação de capitais baianos. Essa postura, evidentemente,
espelha a defesa dos interesses de toda a burguesia.
Mas não se infira daí que "A Tarde" representasse desde sempre os interesses de
toda a burguesia. Para isso seria necessário, antes de tudo, que houvesse na estrutura de
classes baiana, uma facção que unificasse os interesses das demais, o que, nos anos 50,
era apenas uma pretensão da burguesia mercantil. "A Tarde" é, nos anos 40 e 50, o
veículo onde se expressam os diversos interesses burgueses. Do capital financeiro baiano,
que encontra espaço para sua tese do confisco cambial, ao capital industrial paulista,
todos eles podem, em situações isoladas, merecer uma legitimação pública. "A Tarde"
sabe distinguir, no entanto, do conjunto de interesses burgueses, aqueles que especifi-
camente promove2.
Ela distingue claramente os interesses da burguesia mercantil-financeira dos
interesses do restante da burguesia, os quais ela identifica como "próprios":
"O atual sistema bancário brasileiro parece ter sido talhado para prejudicar
evolução da economia baiana. O tipo de operações que atrai o interesse dos
banqueiros não é exatamente o que interessa ao desenvolvimento do Estado, no
momento atual. Assim as nossas casas de crédito continuavam atribuindo a maior
parte de seus recursos ao comércio de exportação e de mercadorias, a atividades
especulativas, à agricultura comercial, mas sem poder inverter, de modo
ponderável, quer para o incremento da indústria, quer para a expansão da pequena
lavoura. Além do mais, o banco se tornou uma espécie de enxutório de capitais
baianos. Era a via de escoamento das economias particulares e mesmo dos re-
cursos outorgados pelo governo destinados ao desenvolvimento do Estado. Por
exemplo uma grande parcela do numerário atribuido a estabelecimentos bancários
baianos, durante o ano passado, para financiar a safra de cacau, voltou ao sul do
país, onde teve outras aplicações" (A TARDE, 21.7.61:5).

2. Veja-se, no exemplo seguinte, como ela opera a separação entre aqueles interesses da burguesia do sul e
os da do norte:
"Nossa conjuntura é ainda mais difícil porque somos um Estado voltado para fora... uma região que produz
para o exterior, e, como estamos numa federação, e num país pobre, sedento de divisas, essas divisas que
contribuem para a riqueza do país são levadas e não nos aproveitam..." (A TARDE 9.9.63:5).
80

79

Esta claro, portanto, os interesses que "A TARDE" especificamente promove: são
aqueles das "classes médias", dos médios empresários e fazendeiros, daqueles
interessados em investir na Bahia, porque só aqui podem investir. É o regionalismo, a
referência territorial, quem ditará as alianças3.
Ou seja, é como se a justificativa ideológica que A Tarde elaborou não tivesse
forças suficientes para organizar, nas condições reais, o conjunto dos interesses
burgueses. Daí aqueles para os quais a sua linguagem não é talhada serem apresentados
na sua linguagem própria. Esse tática pode evoluir até o ponto de se prescindir da
linguagem originária, muito descritiva, e substitui-la por apelos regionalistas mais vagos -
"capitais baianos", "empreendimentos baianos", etc., - que têm a vantagem de servir a um
maior número de interesses específicos, inclusive os seus, sem levá-la obrigatoriamente a
alianças indesejáveis ainda que tácitas. Isso é particularmente verdadeiro com referência
ao bloco de classes que respaldava a proposta desenvolvimentista, que, tirante sue
discurso político, acomodava perfeitamente os interesses da burguesia agrária.
Um outro dado importante para compreender a posição de "A Tarde", a esse
respeito, é seu comportamento em relação à intervenção do estado na economia.
Diferente dos setores do grande capital baiano, ela é capaz de perceber, antecipadamente,
a conformação necessária que a nova sociedade capitalista toma no pós-guerra e na qual é
o poder político das classes, expresso no Estado, e não mais o mercado, quem regula os
preços e o uso dos fatores. Essa percepção lhe permite, por exemplo, o exagero de
defender a absorção, pelos órgãos públicos, dos excedentes da classe média que não
encontram colocação no mercado de trabalho, sob a justificativa de que o papel social e
econômico do Estado deve sua racionalidade ao estágio do desenvolvimento e não a cri-
térios abstratos de eficiência4. Mas lhe permite, também, defender o direito "dos

3. "Falta, entretanto, principalmente, a constituição de uma campanha investidora que recolha capitais
baianos para aplicar em iniciativas baianas. Falta uma organização de mercado, faltam empreendimentos
que apliquem a formação de capitais que aqui temos, e é vultosa, e que sai, dia a dia, para o sul..." (A
TARDE, 9.9.63:5).

4. A TARDE (18.1.55:3): "Predominando o setor primário numa economia tipicamente semi-colonial a


pressão dos elementos excedentes sobre as oportunidades de emprego no setor terciário é fato inevitável. A
agricultura não pode empregar pessoas além de um certo número... A nossa indústria é ainda
especificamente urbana, surgida para atender necessidades de consumo doméstico e imediato. Seus quadros
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80

exportadores de dar livre curso aos seus negócios" contra uma política cambial "que, sem
estar informada por uma orientação segura e adequada, estabeleceu um clima de confusão
e insegurança, responsável, em parte, pelas crises que estamos vivendo" (A TARDE,
19.5.53:3).
Torna-se claro, portanto, que ela pode defender interesses específicos sem tornar-
se presa do esquema ideológico que normalmente os veicula. Assim, a campanha contra o
dirigismo econômico do Estado, liderada pela burguesia mercantil e financeira brasileira
no início dos anos 50 é reduzida às suas reais dimensões - a justa reclamação dos direitos
dos exportadores ao exercício de seus negócios - sem significar qualquer crítica a
intervenção do Estado na economia em geral nem, muito menos, a sua intervenção na
produção, através de autarquias ou empresas públicas. Aqui, os critérios que balizam a
avaliação da ação estatal são outros e, entre eles, não está nenhum interesse direto de
propriedade mas apenas indiretos, na medida que a ação daquelas empresas influem nos
custos da produção privada. Há, assim, empresas que são redundantemente criticadas,
como as que exploram o transporte, e outras sob a mira de uma defesa e fiscalização
constantes, como a CHESF, a Petrobrás, Volta Redonda, etc.
As indústrias pesadas ou de insumos básicos ou aquelas de importância
estratégica no desenvolvimento sempre deveriam estar, segundo o ponto de vista de "A
Tarde", nas mãos do Estado. Já em 1939, por exemplo, ela defende a nacionalização das
jazidas petrolíferas, e continuará, depois de formada a Petrobrás, na defesa do monopólio
estatal, inclusive propondo sua extensão à refinação e à distribuição. Essa mesma atitude
é mantida a respeito da ELETROBRÁS e da exploração da areia monazítica no sul da
Bahia, para ficar nesses dois exemplos5.

são limitados... E o comércio tem disponibilidades de emprego inelásticos... Não se pode pedir a um desses
empresários que arruine a sua firma, para restabelecer a saúde demográfica. A pressão sobre os setores ter-
ciários, especialmente a administração pública é, assim, muito grande nos regimes democráticos, especial-
mente quando predomina, como entre nós, a política da clientela. Mas essa pressão - embora reconheçamos
que exagerada pelo empenho político - é legítima quando reflete um estágio econômico, exatamente o que
estamos vivendo. Se o Estado não os socorre... seja em empregos de carteira... seja pela utilização de obras
públicas, esses homens... pesarão sobre a coletividade e, principalmente, sobre sua parte menos favorecida
da fortuna...".
5. A TARDE (18.9.63) diz: "Embora essa riqueza, tão importante que não é pouca a vigilância que sobre
ela se exerça, daqui saia em exportação, nosso Estado não vê um centavo em decorrência de sua
exploração. É a denúncia que agora se faz. Não se trata somente de reeconhecimento, por parte da União,
82

81

Com respeito aos órgãos de planejamento federais e estaduais, o comportamento é


também elucidativo. Por um lado, órgãos federais como o BNB e a SUDENE são
considerados importantes para a Bahia e o Nordeste por representarem uma
descentralização do poder nacional e o restabelecimento de equilíbrio federativo. São,
portanto, absorvidos segundo a velha matriz burguesa que constitui o núcleo dos
diferentes discursos de suas facções - a oligarquia fundiária, a burguesia mercantil
financeira e a burguesia rural. Por outro lado, para "A Tarde" essa descentralização só
pode ser efetiva para os interesses da região (leia-se da burguesia) se não representar o
controle desses órgãos pela oligarquia fundiária, o que só pode ser evitado preservando-
se o seu caráter técnico, e mantendo-os fora do alcance dos "interesses políticos".
Aqui emerge a contradição fundamental que então se estabelece entre os políticos
e as classes que eles devem representar. Deve-se salientar que a oligarquia, nos estados
em que a maioria do eleitorado estava sob o seu controle, nos chamados currais eleitorais,
podia manobrar também um grande número de representantes que dependiam dela para
eleger-se. Os organismos públicos em mãos desses políticos tornavam-se, na maioria das
vezes, ineficientes para as outras facções burguesas e ineficientes para a sociedade
burguesa como um todo, verdadeiros cabides de emprego, puro mecanismo de
manutenção do poder político e canal de transferência de recursos federais para a
oligarquia.
No caso da SUDENE, "A Tarde", que saudara com desconfiança a instalação do
Conselho Deliberativo da Operação Nordeste (OPENO), em Recife, achando que se
tratava de mais uma manobra demagógica do presidente Kubitschek, pois "não era com
discursos e reuniões de técnicos" que se iria resolver os problemas do Nordeste (A
TARDE, 24.4.59:3), depois de sua criação fechará fileiras em defesa de seus objetivos,
inclusive mobilizando a opinião pública contra o bloqueio que o 1º Plano Diretor sofria
no Congresso Nacional por parte dos políticos ligados à oligarquia sertaneja, os industri-
ais da seca.

do direito que o Estado goza de "royalty" devido pela exploração das ocorrências de jazidas minerais. Um
absurdo ainda maior se efetiva: uma empresa particular, de capitais estrangeiros, realiza tranquilamente a
exploração e exportação do precioso minério sem pagar sequer imposto de exportação ou de indústrias e
profissões".
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Não se imagine, todavia, que não haja diferenças entre essa posição e aquela
exibida pelos "desenvolvimentistas" da SUDENE, quando defendem uma união dos
grupos e das forças políticas regionais na luta pelo desenvolvimento. Esses não
distinguem entre os interesses dos Estados nordestinos. Já "A Tarde", demonstrando o
bloco em que se insere, aproveitará os momentos de desacordo a respeito de programas
ou políticas, para usar os argumentos da burguesia mercantil na especificação dos
interesses da Bahia6.
No caso do Banco do Nordeste do Brasil, desde a primeira hora, "A Tarde"
entende a importância estratégica do banco para o desenvolvimento regional7. Nestes,
como em outros casos de órgãos públicos controlados pela tecnocracia
desenvolvimentista, a crítica se exerce no sentido de coibir o excesso de importância dos
critérios técnicos em detrimento de "critérios humanos e sociais". Assim os créditos dos
bancos públicos acabam por beneficiar apenas os grandes empresários: a assistência
técnica dos institutos agrícolas, pelo excesso de burocracia, marginaliza os pequenos e
médios agriocultores; os poços artesianos são abertos pela SUDENE em regiões menos
necessitadas mas geologicamente melhor conhecidas, etc8. Esse afastamento entre os

6. A TARDE (21.7.61:5) diz: "A própria correção, sonhada com a SUDENE, não é isenta do mesmo
defeito (o confisco). A cláusula segundo a qual cada Estado teria de contribuir para o conjunto das
necessidades do Nordeste com 50 por cento da receita cambial de suas exportações é danosa à Bahia, por
ser este Estado que exporta para o estrangeiro tanto quanto os demais nordestinos reunidos. Sem a extinção
do sistema de ágios significaria uma curiosa mudança: daríamos metade do nosso suor para o país
considerado em conjunto, a outra metade para o Nordeste. Desta é que nos caberia uma parcela, mas não
popriamente segundo as nossas necessidades: é a SUDENE o juiz inapelável da aplicação desses recursos"
A primeira parte do argumento repete integralmente as idéias de Clemente Mariani expressas no
Relatório do Banco da Bahia de 1958 como se verá adiante.
7."O BNE poderá assinalar, em amplo setor regional da economia brasileira, uma fase de prosperidade. Sua
criação - que se inspirou no desejo e na necessidade de amparar regiões tradicionalmente esquecidas pelo
poder público e cujos amplos recursos nem sempre puderam ser aproveitados em virtude das adversas
condições de desenvolvimento que neles vigoram - significa do ponto de vista da política administrativa,
uma vitória daquela orientação descentralizadora, que vem do século passado, porém que foi vencida pelos
azares da nossa vida política... Além da tarefa específica de levar avante um programa de desenvolvimento
dos amplos recursos do Nordeste brasileiro, terá ele a missão de provar, de ainda uma vez provar, que um
país como o Brasil só poderá efetivamente progredir quando às suas diversas regiões geográficas e
econômicas for concedido um mínimo de direito e de recursos para a solução de seus próprios
problemas".(A TARDE, 2.9.53:3).
8.São exemplos dessas críticas:
"A culpa possivelmente não cabia a ANCAR. Salvo se a rigidez de sua organização se devesse a
impossibilidade de adaptação às realidades regionais inflexíveis. Diante de fatores institucionais, que são a
realidade tangível, os regulamentos criados "in vitro" dificilmente podem levar a resultados apreciáveis.
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critérios técnicos e os interesses pequeno-burgueses não são, entretanto, de modo a causar


grandes descontentamentos. São, antes, descompassos ocasionais.
A outra linha de crítica diz respeito ao privilegiamento de algum outro Estado em
detrimento da Bahia. Acontece com a energia elétrica fornecida pela CHESF, com as
verbas da SUDENE, com as linhas de crédito do BNB, etc. e são, também, choques de
interesse passageiros.
No plano estadual, "A Tarde" apóia o planejamento econômico desde a frustada
criação da Comissão de Desenvolvimento Econômico em 1953, defendendo, inclusive, os
planos do Governo Balbino, seu inimigo político. Ataca com firmeza, em várias
oportunidades, a falta de cobertura política e de sustentação financeira que reduzem à
impotência órgãos como a Comissão de Planejamento Econômico (CPE); o Fundo de
Desenvolvimento Agrícola (FUNDAGRO); os Matadouros Frigoríficos S/A (MAFRISA)
e outros9. Foi firme quando pediu a aprovação, sem cortes, do Plano de Desenvolvimento

Daí a contradição em certos casos observados, de serem ajudados os que podiam obter cooperação por
outra forma, enquanto os mais precisados não encontram o amparo indispensável à melhoria das técnicas
adotadas".(A TARDE, 22.4.60:5).
"Essas instituições governamentais (Banco do Brasil, Caixa Econômica) devem ter cuidado para não
repetirem, sobretudo no Nordeste, a função de meras casas de crédito, emprestando dinheiro sem pensar no
problema social. Atender às pequenas empresas industriais, comerciais ou agrícolas deve ser o seu objetivo
principal. Fortalecer somente aos grandes significa fazê-los muito grandes; e o que é pior, impedir que os
pequenos também cresçam". (A TARDE, 2.6.61:5)

"... Em que pesem todas essas razões, a SUDENE não se resolveu a voltar suas vistas para a zona mais
necessitada. Procurou empregar suas verbas da maneira que melhor interessasse ao seu orçamento,
prevalecendo-se de facilidades existentes. É esse, aliás, um dos erros fundamentais em que a SUDENE -
mas não somente ela - incorre frequentemente: o de encarar sua função apenas pelo lado das condições
mais convidativas, raramente tomando em consideração o lado humano dos seus empreendimentos. Seria
como que uma distorção da mentalidade tecnológica, doença identificada por sábios, que teria atingido a
SUDENE e que agora se revelou contra o interior mais agonizado da Bahia". (A TARDE, 25.10.63:5)

9."Se bem que planos nesse sentido já existam (o sistema FUNDAGRO é bem o exemplo disto) a falta de
recursos, de início, logo condenou essa tentativa ao fracasso. E nesse setor vivemos, por exemplo, uma
MAFRISA incapaz de controlar o abastecimento de carne da cidade por falta de recursos, e que até pouco
tempo atuava apenas como uma empresa privada, concorrendo com as outras , em todas as maquinações
aumentistas e manobras sonegadoras. Como é igualmente a falta de recursos e de apoio decidido que tem
levado a Comissão de Planejamento Econômico a altos e baixos, caindo, no fim do último governo, numa
espécie de pré-agonia que agora sai". (A TARDE 4.12.63:5).
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da Bahia (PLANDEB), para o período 1960-1963, e insistiu na exigência quando esse


plano viu-se bloqueado na Assembléia Legislativa do Estado10.
Mas, principalmente, sua postura diante do planejamento econômico torna-se
perfeitamente simbiótica, quando o governador Lomanto Junior, em 1963, faz aprovar
pela Assembléia Legislativa um plano de apoio à agricultura e à indústria no valor de 40
milhões de cruzeiros. A confluência desse plano, com o recém-criado mecanismo de
incentivos à inversão de capitais no Nordeste, o 34/18, e a entrada em vigor da nova sis-
temática do imposto de vendas e consignações, a ser cobrado nos Estados consumidores e
não nos produtores, leva A Tarde a um estado de otimismo só comparável com o de
Mariani em 1953, quando os negócios do cacau foram excepcionalmente lucrativos e a
energia hidroelétrica chegava a Salvador.
Um outro ponto que esclarece a ideologia que "A Tarde" veiculou, assim como os
interesses que representou no período, é sua postura frente à política cambial e à pro-
dução e ao comércio dos produtos agrícolas. A defesa dos interesses da lavoura sempre
orientou a linha de ação da "A Tarde". Em qualquer circunstância, seja nos momentos de
alta ou baixa na cotação dos produtos de mercado internacional, evidencia-se uma
preocupação muito grande com a produtividade, a qualidade da produção, a assistência
técnica, o apoio creditício e a garantia de uma rentabilidade razoável para o lavrador.
De um modo geral, os produtos de exportação ou de mercado interno que
merecem uma consideração especial do jornal são o açúcar, o fumo, a mamona, o sisal, a
produção de alimentos agrícolas, assim como a pesca e a pecuária. Mas é, principal-
mente, o cacau que ocupa o centro das atenções, não apenas por ser, disparado, o mais
importante, mas por ser também o único a cristalizar um conjunto de forças e interesses
burgueses. No caso do açúcar e do fumo, culturas em declínio, os esforços de "A Tarde"
concentram-se em propor ou apoiar medidas de recuperação da produção, através da

10."Há seis anos fala-se em planejamento, preparando-se programas e consome-se dinheiro na organização
de sistemas capazes de assegurar o desenvolvimento do nosso Estado. No que diz respeito a execução de
tais planos, porém, até hoje, pouco de concreto se viu. Um outro projeto que nem pelo menos se sabe se é
obra isolada ou parcela de um conjunto de providências ainda não bem definidas. Ao que se presume agora,
vai dar o governo caráter oficial e conteúdo legal ao planejamento econômico. Que as aspirações políticas e
as reivindicações partidárias se reservem para o momento oportuno. Mesmo porque a Bahia está se
cansando de planos que jamais chegam ao fim".
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assistência técnica e financeira aos lavradores. Mas como o Instituto de Açúcar e do


Álcool e o Instituto Baiano de Fumo, que subordinam os interesses específicos da lavoura
aos da indústria e do comércio, são preservados de qualquer crítica mais fundamental e
considerados os veículos legítimos dessas transformações, fica evidente que se aceita a
correlação de forças que eles expressam.
O caso da mamona encaixa-se também na linha de defesa da agro-indústria, já que
toda a comercialização se restringia ao óleo, cuja industrialização estava nas mãos de
empresas estrangeiras e de dois grandes grupos baianos. Com o sisal, ao contrário, que,
como diz Mariani11, tinha o comércio organizado "das mãos para a boca", isto é, onde o
capital mercantil e financeiro baiano, até 1959, não inseria-se de modo importante, o
centro das atenções dirige-se unicamente para o "produtor", no caso o latifundiário e o
médio proprietário rural, para só mais tarde concentrar-se sobre o industrial do sisal.
Todas as brigas em torno da distribuição pela SUDENE das verbas de combate às
secas assim como o ataque sistemático à atuação do DNOCS - Departamento Nacional de
Obras Contra as Secas - e a campanha de interiorização da energia, através de estações
abaixadoras na CHESF, origina-se nos interesses sisaleiros.
Finalmente, a produção de alimentos e a organização do abastecimento, por se
tratarem de ramos centrais para o conjunto da economia, recebem de "A Tarde" um
tratamento especial. No caso da pecuária, por exemplo, "A Tarde" procura apresentar os
interesses dos consumidores como coincidentes com os da burguesia como um todo. Os
vilões, no caso de preços exorbitantes ou falta do produto, são os intermediários. O
mesmo comportamento é adotado para a produção de cereais, principalmente milho e
feijão, que ganham importância, na Bahia, na segunda metade da década de 50. Quanto à
pesca e à produção de alimentos, onde não há interesses burgueses diretamente envol-
vidos, a direção tomada é exigir do setor público uma atuação que assegure a organização
desses setores em ases capitalistas. Complementarmente, lançam-se periodicamente

11. "A economia do sisal, em franco desenvolvimento, só agora começa a organizar-se, realizando-se as
exportações quase da mão para a boca, ou do campo para o navio. As suas entradas são, em consequência,
descontínuas e, de qualquer maneira, ainda não assumem uma grande importância na constituição de
poupanças" (Banco da Bahia, 1958:19).
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campanhas de esclarecimento às "classes produtoras" sobre as virtualidades e


potencialidades desses ramos.
No caso do cacau, a composição de interesses é mais complexa. Há,
primeiramente, um setor da burguesia mercantil ligado ao capital bancário, com
interesses comerciais diversificados e inversões em outras atividades produtivas, que tem
seu âmbito de ação transpondo o espaço estadual. O grupo do Banco da Bahia é sua
expressão típica. O outro setor mercantil está mais ligado à produção agrícola e à
indústria de derivados do cacau assim como a outras atividades produtivas, em especial à
pecuária e à indústria de óleo de mamona. O grupo Barreto de Araújo expressa-o bem.
Pode-se distinguir ainda uma burguesia agrária que expande seus negócios pela pecuária
do sul e sudoeste e pela especulação fundiária urbana e rural. Burguesia que não tendo
acesso ao comércio exportador, organiza suas vendas através de acordos com grupos
exportadores ou com outros produtores, através das cooperativas de comercialização.
Os interesses desses grupos seriam solidários na medida em que a grande
burguesia mercantil-financeira conseguisse refletir politicamente, no centro de decisões
nacional, a sua ascendência econômica sobre as outras. Desde 1930, entretanto, há um
persistente choque de interesses entre o comércio exportador e os setores da burguesia
nacional no poder, que se reflete numa política cambial extremamente danosa ao
primeiro, ao tempo em que algumas medidas de produção à agricultura procuram
preservar os interesses dos outros setores da burguesia cacaueira.
Justamente por não conseguir preservá-los, dada, entre outros fotores, a falta de
um órgão disciplinador do comércio com a força e a competência requeridas para influir
no mercado internacional, a burguesia mercantil continua a comandar as reivindicações
de toda a economia cacaueira, conciliando-as entre si. Os agricultores exigem um preço
mínimo ou fixo que os preserve das oscilações que só beneficiam os exportadores e,
desse modo, aumente sua margem de lucro em detrimento daqueles. As indústrias de
derivados, para garantir sua margem de lucro, frente a uma estrutura de custos mais
onerosa, necessita condições especiais de câmbio frente ao comércio de cacau em
amêndoas. Isto posto, a política cambial do governo teria de garantir também, junto com
o preeço mínimo e o câmbio especial para os derivados, um espaço seguro onde pudesse
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se situar a lucratividade do comércio exportador. Espaço que só poderia ser conquistado


sobre o confisco, com a redução da diferença entre o dólar de exportação e importação.
Se, nas fases de expansão do mercado, a conciliação entre esses interesses não é difícil de
ser atingido, mesmo com o confisco, fora dela torna-se mais problemático. Infelizmente,
para ela, a burguesia mercantil não comanda os aparelhos financeiros do estado senão por
curtos períodos - sete meses em 1954 e nove meses em 1961.
No entanto, a permanência, na CACEX, de um representante dos interesses da
economia cacaueira, pelo período de sete anos, permitiu a elaboração de um plano de
comercialização do cacau, envolvendo o Banco do Brasil e aquele órgão, que conseguiu,
com sucesso, influir no preço externo do produto e garantir um preço interno satisfatório.
Todavia, quando, com o correr do tempo, revela-se impossível para a CACEX manter
estável o preço do cacau no mercado externo, a manutenção artificial do preço interno, às
custas do fundo dos ágios provenientes do confisco, tem por consequência gravar as
margens de lucro do comércio exportador e fazer-lhe concorrência. Essa situação se
prolonga de 1959 a 1961 quando Mariani, assumindo o Ministério da Fazenda,
restabelece uma política cambial "realista".
Acrescente-se que essa contradição começa a cristalizar-se no pensamento de
Tosta Filho de modo extremamente perigoso para a burguesia mercantil e chega a
expressar-se no projeto de um órgão de controle da comercialização do cacau e de
derivados, onde o autor se revela pessoalmente favorável ao monopólio da comer-
cialização12.
Pois bem, pode-se dizer, a princípio, que "A Tarde" representa, primordialmente,
os interesses agrícolas e industriais. Ela enfatiza, sobretudo, a importância de se garantir
um preço mínimo razoável ao agricultor e a lucratividade da indústria de derivados,
considerada essencial para a estabilidade da economia cacaueira13. Procura, enfim, dar

12. Em exposição ao Governador Juraci Magalhães, Tosta Filho diz: "(sou) por um decidido estímulo à
atividade privada, quando esta se desenvolve dentro dos princípios da boa ética e do pleno senso de
responsabilidade para com os interesses gerais do país"... "em verdade, para ser franco e se fosse orientar-se
apenas por onvicções de ordem pessoal, opinaria tout court por um organismo vendedor único e
permanente, à guiza dos Boards africanos" (citado in Banco da Bahia, 1958:xiii).

13. Declarações do Sr. Tosta Filho à TARDE (5.1.53:2):


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cobertura à política da CACEX, desenhada por Tosta Filho, que por ser a melhor
possível, nas circunstâncias, tem o apoio de toda a burguesia14. No entanto, con-
comitantemente, "A Tarde" oferece suas páginas para ecoar as reivindicações
complementares do comércio exportador dirigidas ao governo.
A diferença entre esses interesses se manifesta quando da nomeação de Mariani
para a pasta da Fazenda e a exoneração de Tosta Filho da CACEX15. A mudança da
política cambial e da sistemática de comercialização do cacau provoca nervosismo e
resistências entre as facções de classe que podem ser prejudicadas e "A Tarde" faz-se
porta-voz dessa "ansiedade"16. Contudo a feliz solução dada por Mariani ao problema,
renegociando convenientemente o preço externo do cacau, permite a manutenção de um
preço interno garantido, dentro das expectativas dos produtores. Isso desvanece ra-

"A manutenção de nossas indústrias de cacau embora por meio de medidas estranhas a uma perfeita
normalidade comercial, impunha-se, como continua a se impor, em função de seu papel estratégico no
cômputo de nossa economia cacaueira".

"[A] manutenção [das indústrias de cacau], a partir de 49, só se tornou possível pela inclusão de seus
produtos na lista dos produtos vendidos através de operações vinculadas. Se é incontestável que essas
operações se reevestiram, muitas vezes, de aspecto condenáveis, de um modo geral elas trouxeram grandes
benefícios para a manutenção da indústria dos produtos do cacau, e a sua suspensão teve a significação de
um golpe de morte no parque industrial, golpe que se iniciou com a destruição da próspera indústria
nacional de teobromina" (A TARDE 13.2.53:3).

14. "Ante o dilema de assumir a sua responsabilidade ou abandonar as suas funções, submeteu-se o Dr.
Tosta Filho à primeira alternativa, com a perfeita compreensão e solidariedade de todos os que avaliavam a
importância de sua permanência no cargo, para a excução do esquema que lhe fora imposto" (Banco da
Bahia, 1958:x)

15. "A saída do Sr. Tosta Filho da Carteira de Comércio Exterior vem preocupando os cacauicultores
baianos. É que a política de comercialização do cacau, política que vem tendo os melhores efeitos, foi uma
criação e execução sua, pessoal. A fixação de preços mínimos do teobromina trouxe para a lavoura
cacaueira novos horizontes de estabilidade que inclusive era o suficiente para lhe assegurar dias de
prosperidade... As diretrizes da CACEX são vitais para a lavoura baiana. Infelizmente até hoje o cacau
espera um órgão que se encarregue do seu mercado...". (A TARDE 16.3.61).

16. "O Sr. Clemente Mariani deixou entendido que não pretende seguir a política comercializadora até
aqui vigente que, segundo ele, criou distorções econômicas à produção cacaueira. Parece pelo que foi dito
que o titular da Fazenda defende uma política diametralmente oposta à que sustenta a lavoura cacaueira
nesses últimos anos quando a CACEX tomou a seu cargo comercializar o teobrama... A política que agora
vai se abandonar tem dado bons frutos. Inegavelmente o cacau conheceu bons anos, durante a tutela da
CACEX, impondo-se perante o comércio internacional. A União empenhava parte dos seus ágios para
manter o jogo...". (A TARDE 16.3.61:5).
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pidamente as divergências no seio da classe. Mariani estende, inclusive, os benefícios do


câmbio livre às outras culturas do Estado, todas "gravosas", o que sela definitivamente a
união do bloco, apesar de dificultar a industrialização em curso17.
Esclarecidos a ideologia e os interesses que "A Tarde" veiculava, resta esclarecer
que políticas ou conjunto de medidas correspondia a eles. É claro que a natureza jornalís-
tica dos escritos não permite a explicitação de uma estratégia de ação. Essa estratégia
deve ser buscada, ao contrário, nas análises econômicas esboçadas nos editoriais,
pródigos em sugerir medidas, e na ênfase e frequência com que essas medidas aparecem.
Há, em primeiro lugar, um conjunto de medidas de ordem econômica e financeira
que não estão explícitas no discurso de "A Tarde", mas encontram-se embutidos na sua
apreciação dos órgãos públicos de planejamento econômico e da política monetária do
Governo Federal. E há, em segundo lugar, o destaque de reivindicações isoladas, como a
construção de uma cidade industrial, a modificação da legislação tributária, a
modificação da política cambial, etc., que procuram dar maior repercussão e legitimação
a problemas e reivindicações momentâneas das diversas camadas burguesas. Convém, no
entanto, realçar três temas, pela frequência e pela veemência com que são tratados e por
terem sido erigidos em obstáculos fundamentais ao desenvolvimento da Bahia: os
transportes e as comunicações é o primeiro deles e o que aparece mais regularmente; a
energia elétrica, o segundo, divide com os outros dois o espaço dos editoriais, entre 1946
e 1956; por fim, o terceiro, a questão do petróleo é o que merece maior ênfase do jornal,
que maior mobilização provoca na sociedade baiana e que mais profundamente se liga
aos destinos da burguesia.

17. "De uma maneira geral, teve a Bahia a satisfação de reclamos seus que vinham desprezados nos
últimos quinquênios. Para se ter em mira quanto a Bahia ganhará tendo seus produtos postos no câmbio
livre, basta nos lembrarmos do confisco cambial, agora findo, que tem sido o grande culpado por nosso
empobrecimento".
"Entretanto, por seu mecanismo simples de proteção às exportações e dificultoso para as importações, a
instrução 204 criou um problema para nossa industrialização ... Esse efeito será afastado se foram
cumpridas as instruções presidenciais, subvencionando os empreendimentos para desenvolvimento dessa
esquecida região. Então o Sr. Jânio Quadros poderá ser olhado, sem favor, como o presidente que restaurou
a justiça no tratamento para com o Nordeste" (A TARDE, 10.4.61:5).
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O problema das vias de transporte é o primeiro e o mais crucial que a burguesia


baiana tem que enfrentar quando, no pós-guerra, filia-se aos novos parâmetros do
desenvolvimento capitalista. Desenvolver-se enquanto classe significava expandir a pro-
dução capitalista (ou aquela passível de ser comercializada em termos capitalistas) para
além do Recôncavo e da Zona Cacaueira, as duas regiões que ainda continuavam sob seu
domínio ao fim do longo período de declínio da praça comercial da Bahia. Essa razão
está estampada num editorial de 195318 quando se responsabiliza a deficiência dos
transportes pelo fato de Feira de Santana e o nordeste do Estado estarem na área de
influência do comércio de Recife, enquanto a zona do sul do Estado faz parte dos limites
comerciais das praças de Minas Gerais e de São Paulo. Do mesmo modo, torna-se
impossível desenvolver uma agricultura competitiva, seja de exportação, seja de mercado
interno, sem extender a malha rodoviária e ferroviária ao interior do Estado. Argumenta-
se que, pelo mesmo motivo, as finanças públicas são prejudicadas com o desvio
sistemático de mercadorias de exportação para portos de outros Estados, deixando,
portanto, de pagar impostos19.
O problema dos transportes foi capaz de congregar a totalidade das classes sociais
da Bahia e ser, pois, um elemento estratégico no discurso político. Isso se deveu à
permanência e mesmo ao agravamento do problema ao longo dos anos. A extensão ter-
ritorial da Bahia aliava-se à inexistência de atividades agrícolas mais importantes do
ponto de vista nacional para retardar uma maior inversão ali das verbas federais. Desse
modo, não seria exagero dizer que, por toda a primeira metade desse século, continuou
"sábio" o conselho que um comerciante do interior deu a Mangabeira: "Governar é abrir
estradas" (A TARDE 2.1.47:4).
A necessidade de melhorar as vias de transporte, economicamente tão elementar,
era geral a todo o país. Sua solução passou, inclusive, pela criação de órgãos técnicos

18. "A sua economia está insulada e restrita a sua capital e ao seu recôncavo. De um lado, no nordeste, está
compreendida a área de influência comercial de Pernambuco. Pois o tráfego de mercadorias entre esse
Estado e a cidade de Feira de Santana se faz com maior facilidade do que entre esta e a nossa capital, o pior
trecho rodoviário, cuja pavimentação asfáltica se arrasta... Do outro lado, no sul e sudoeste, temos as zonas
de influência comercial de Minas e São Paulo" (A TARDE 28.2.53:3).
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especializados em cada estado da federação, os Departamentos de Estrada de Rodagem


(DER). Mas "A Tarde" não se limita apenas a analisar os aspectos gerais do problema:
em detalhado diagnóstico indica as zonas que devem ter prioridade num plano estadual
de transporte. Ao fazê-lo, retraça os caminhos que os interesses burgueses percorrem: (i)
a ligação de Salvador a Feira, por asfalto; (ii) a ligação de Salvador às cidades do
sudoeste e do sul cacaueiro, indo até as fronteiras com Minas e com o Espírito Santo; (iii)
a ligação da zona cacaueira com as cidades do sudoeste (A TARDE, 25.9.54:3).
A escassez de energia elétrica é outro ponto de estrangulamento na economia
baiana, impedindo o seu desenvolvimento, sendo inclusive considerada responsável pela
decadência do antigo parque industrial baiano. A decisão, em 1946, de se construir uma
usina hidroelétrica em Paulo Afonso foi, portanto, saudada como um fato extremamente
decisivo para os destinos da Bahia. Opinião, aliás, compartilhada por todos os setores
burgueses.
Em 1953, o Governo da Bahia, seguindo o exemplo de outros Estados nordes-
tinos, nomeia uma Comissão de Desenvolvimento que deve ter como tarefa precípua
estudar e propor um plano que maximize o aproveitamento da energia de Paulo Afonso.
Mas, como a comissão não chega a reunir-se uma segunda vez, nada é feito nesse sentido.
Assim, quando, em 1955, é inaugurada a usina de Paulo Afonso, a capacidade efetiva e a
capacidade planejada de consumo energético da Bahia era muito inferior à de
Pernambuco, por exemplo. Além disso, estava totalmente concentrada na capital do
Estado, ao contrário do que ocorria em Alagoas, Sergipe e no próprio Pernambuco.
Isso provoca, então, a primeira campanha reivindicatória de "A Tarde", que,
julgando inaceitável a posição de inferioridade em que fora relegada a Bahia, exige
providências do Governo do Estado, das bancadas políticas, em conjunto com os órgãos
das "classes produtoras", no sentido de interferirem junto ao Governo Federal para
modificar o planejamento da CHESF. Vem então à luz o fato de que a cota destinada à
Bahia estava aquém do seu consumo efetivo enquanto a de Pernambuco, usada como

19. "Faltam-nos comunicação que contribua para a arrecadação dos impostos de venda e consignações e o
de exportação pois já parte de nossa reduzida produção se escoa para o exterior por portos de outros
Estados" (A TARDE 28.2.53:3).
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exemplo na argumentação, encontrava-se nos limites do seu. Isso faz com que "A Tarde"
concentre a campanha na reivindicação de construção de duas estações abaixadoras, uma
em Senhor do Bonfim, na região sisaleira, e outra em Alagoinhas, na zona de exploração
petrolífera, proposta apresentada pela Associação Baiana dos Municípios. A proposta
encontra boa receptividade no governo federal e a CHESF aceita construir uma
abaixadora na região petrolífera baiana, precisamente em Catu, no menor prazo possível.
"A Tarde" atribui esse re-planejamento a uma vitória da união das forças baianas mas, na
realidade, a CHESF fez apenas o que era técnicamente possível sem afetar o programa do
orgão.
Pouco tempo depois, chega a notícia de que os empresários pernambucanos,
articulados em torno do governo estadual, no Conselho de Desenvolvimento de
Pernambuco, conseguiram da CHESF a diminuição do preço da tarifa de energia elétrica
no estado. "A Tarde" volta a articular nova campanha contra o "atentado que preparam
contra o futuro da Bahia" (A TARDE, 27.1.53:3) caso vigore aqui uma tarifa maior que a
conseguida por Pernambuco. Como no caso anterior, a campanha visa, sobretudo,
mobilizar e sensibilizar a opinião pública baiana. O episódio se desdobra em críticas à
inoperância da ação do setor público estadual, na insuficiência da representação política
dos interesses baianos e na falta de coragem e de visão dos empresários estaduais20. Ele
revela também a fragilidade desses interesses, quando comparados nacionalmente, e a
necessidade que tem a burguesia baiana de, à falta de uma representação política
adequada e eficiente, apelar para a mobilização política das massas.
É sobretudo em torno da questão do petróleo que se evidencia a força
mobilizadora de "A Tarde" e que o movimento regionalista baiano encontra sua melhor
expressão. Como é sabido, a burguesia baiana contava, no pós-guerra, com apenas duas
fontes de produção de riqueza capazes de promover sua expansão: o cacau e o petróleo.
Isso é percebido com muita clareza ainda em 1946. No entanto, o pensamento liberal com
que a burguesia baiana tenta forjar sua hegemonia, insistindo num regime privado de

20. "Bem analisados os fatos, observa-se que a par de determinadas circunstâncias e lado a lado com o
desinteresse do setor público, falta também, mais do que capitais, a coragem de se levar à frente certos
empreendimentos. O dinheiro que existe, pouco embora, prefere-se empregar em imóveis, nos bancos ou
em apólices" (A TARDE, 7.8.53:3).
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93

exploração do petróleo, acaba por incompatibilizar os seus interesses com os interesses


nacionais da burguesia, que começam a assumir uma forma nacionalista.
A saída é construída a partir das campanhas de mobilização da sociedade civil,
promovidas, geralmente, pela imprensa pequeno-burguesa. São esses canais que
começam a difundir a idéia de que existem interesses regionais baianos que são comuns a
todos os grupos políticos e a todas as classes do Estado. Tarefa que é complementada
pela adesão dos intelectuais burgueses à tese do monopólio estatal do petróleo, o que
permite a formação de um amplo campo de consenso. Agora já não é o petróleo que deve
ser baiano, é a Petrobrás. Passa-se, então, a exigir da Petrobrás maiores inversões no
campo da produção e do refino assim como uma política mais agressiva na formação de
um parque petroquímico e a liberação do gás de Aratu para utilização industrial.
A doutrina regionalista, tão simples, não precisa ser catalogada. Ela invade os
discursos ideológicos existentes para apagar as diferenças e iluminar as semelhanças, sem
necessidade de confrontá-los. Enquanto, por exemplo, a CPE argumenta que "assim
parece indispensável fixar, desde logo, como princípio, que a política nacionalista de
petróleo e o programa da Petrobrás devem considerar a produção de óleo como um fator
de fomento deliberado do desenvolvimento regional da área produtora"; Nelson Sampaio,
político udenista, considera que "o petróleo do seu [da Bahia] subsolo pode apontar o
caminho da reparação [do confisco e do comércio triangular], se houver a necessária
sabedoria política para convertê-lo em mola primeira da nossa industrialização" (A
TARDE, 20.1.59, Suplemento Especial:2-3).
Neste, como em outros episódios, foi "A Tarde" a grande responsável tanto pela
propagação do sentimento regionalista como pela articulação de um pacto de forças
sociais que pressionou os centros de decisão nacionais, através do parlamento, dos órgãos
de classe e do governo estadual, no sentido de defesa dos interesses "regionais". Isso foi
feito, primeiro, através de editoriais esparsos; seguiram-se depois a organização de semi-
nários e conferências com a participação das correntes políticas locais; desenvolveram-se,
em terceiro lugar, campanhas jornalísticas concentradas em torno de reivindicações
tópicas; para, finalmente, chegar-se ao ponto de paralisar as atividades produtivas do es-
tado para demonstrar não a diferença de intereses mas a sua comunhão.
95

94

A Conferência do Petróleo, patrocinada por "A Tarde" e realizada na sede da


Associação Comercial da Bahia, em 1959, é um bom exemplo de sua atuação
regionalista. Reuniram-se nessa conferência o governador do Estado, deputados e
senadores baianos, deputados e senadores de outros Estados, intelectuais, técnicos e
empresários, com a finalidade de discutir e propor uma política de petróleo compatível
com os interesses regionais. O resultado dessa conferência foi a elaboração de uma lista
de reivindicações que ficou conhecida como Carta do Petróleo, que pode ser resumida em
quatro itens: (i) as reivindicações que visam fortalecer financeiramente o Governo do
Estado de modo a aumentar sua capacidade gerencial e promotora do desenvolvimento
econômico, basicamente o aumento a participação acionária do Estado e dos municípios
petrolíferos na Petrobrás, e o aumento dos royalties pagos pela empresa; (ii) as
reivindicações dos superficiários, proprietários fundiários do Recôncavo, quanto ao valor
e a forma das indenizações e a definição das obrigações sociais da empresa; (iii) a
reivindicação da participação da Bahia na administração da Petrobrás e na definição da
política nacional de petróleo; e (iv) por último, as reivindicações que visavam tornar a
Petrobrás uma empresa motriz do desenvolvimento, entre elas, a ampliação da refinaria
de Mataripe, a instalação do parque petroquímico, a liberação do gás natural para uso
industrial, a diminuição dos preços dos derivados de petróleo no território baiano, a
construção de estradas e formação de mão de obra (A TARDE, 24.1.59: Carta do
Petróleo).
As medidas contidas nessa carta foram consideradas como uma espécie de
programa de ação unificado em defesa dos interesses baianos. Sendo que "A Tarde"
compromete-se "dentro da elevação de vistas com que, mais uma vez, agiu, [que]
prestigiará os atos e as palavras de quem quer que se ponha a serviço desse esquema, não
importa o matiz político daqueles que o fizerem, sempre na preocupação de ver
devidamente amparados os direitos da Bahia" (A TARDE, 24.1.59).
A arregimentação das forças populares em torno dessas reivindicações pode ser
avaliada pela manifestação de um setor operário tão importante quanto o representado
pelo Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Extração do Petróleo (STIEP), que
aprovou uma moção que diz:
96

95

"Damos principalmente o nosso apoio ao objetivo central da Conferência,


que é a defesa dos interesses da Bahia como grande produtor do petróleo
brasileiro já que a redenção da Bahia e a melhoria de vida dos seus traba-
lhadores e de seu povo depende, nesse momento, em grande parte, do
atendimento dessas reivindicações" (A TARDE, 14.1.59).

A mobilização popular atinge o seu ponto máximo com a campanha pela


transferência da sede da Petrobrás para a Bahia, em 1961. A campanha, articulada pela
"A Tarde", visava a manutenção do decreto presidencial que autorizava a mudança de
sede da Petrobrás do Rio para a Bahia. O ápice dessa campanha foi uma paralisação de
30 minutos das atividades mais importantes do Estado, comandada pelas suas lideranças
sindicais e políticas mais expressivas.
Resumindo, pode-se dizer que "A Tarde", ainda que veiculando os interesses de
todas as camadas burguesas, e talvez por isso mesmo, foi porta-voz especial do
pensamento de uma burguesia de base agrária, que para expandir-se necessitava tanto de
um surto de industrialização quanto de uma política agrícola adequada. Essa era a facção
burguesa mais fraca no bloco das classes dominantes baianas. A força social assim como
a identidade social dessa facção de classe são forjadas a partir das páginas d'A Tarde,
numa conjuntura de avanço das lutas de classe na esfera nacional e estadual, que in-
viabilizava o projeto liberal-burguês e o projeto reformista do planejamento econômico.
Ideologicamente, "A Tarde" modificou, paulatinamente, seu discurso original para
ir conformando um padrão de opinião pública em torno de apelos regionalistas,
politicamente conservadores, que recolocavam os interesses da burguesia mercantil e
financeira baiana no centro de um projeto de desenvolvimento consensual entre a
burguesia. Politicamente, "A Tarde" procurou neutralizar os pensamentos
desenvolvimentista e nacionalista, transmudando seus apelos num movimento
regionalista capaz de substituir com êxito aquelas ideologias de mobilização popular.
97

PARTE III

A REPRESENTAÇÃO POLíTICA
E O ESTADO
98

Introdução

Como se viu, as intervenções federais nos Estados, nos anos 30, tiveram dois
objetivos: desmontar o que se costuma chamar o "estado oligárquico" e construir um novo
estado. Realizar o primeiro objetivo significou alijar da vida política os representantes da
oligarquia rural e da burguesia mercantil-financeira e deslocar ideologicamente o discurso
liberal agrarista que expressava a antiga ordem. A crise brasileira, porque faltavam as condições
sociais para o rompimento da ordem capitalista, teria que se resolver no terreno do próprio
capitalismo. Construir um novo estado significava fundá-lo sobre forças sociais ainda não
maduras àquela época.
Por um lado, as facções burguesas que poderiam emprestar substância a um estado
que comandasse um novo estágio de acumulação capitalista, estavam politicamente ligadas ao
grande capital mercantil, quer nacional quer internacional, não existindo como força social
independente. Por outro, prevaleceu no campo ideológico, não sem contratempos, a constelação
ideológica liberal-democrática subjacente à oposição civil à República oligárquica.
Como o poder do novo estado deria ser expresso nas urnas, as inventorias federais
tiveram como primeira tarefa reorganizar politicamente, via de regra, os mesmos grupos sociais
- a oligarquia e as burguesias agrária e industrial - cortando apenas, provisoriamente, o elo
hegemônico da burguesia mercantil-financeira, ao qual se substituia agora o estado. Do mesmo
modo, o estado procurará se substituir às organizações trabalhistas que existiam nas cidades,
deixando entretanto intocada a forma de dominação política que ligava, nos campos, oligarquia
e compesinato, burguesia e trabalhadores.
Na Bahia, as interventorias conseguiram afastar os políticos tradicionais,
representantes do antigo bloco histórico, da cena política. Ademais procederam a reformas
administrativas que criaram uma nova base de poder municipal, criando aparelhos estatais
ligados diretamente aos interesses da burguesia agrária, disciplinando e, em alguns casos,
afastando, a intermediação da burguesia mercantil-financeira. Finalmente, desarmaram os
sertões.
99

A interventoria de Juraci Magalhães significou principalmente a arregimentação


política da oligarquia e da burguesia agrária em torno do estado, através da criação do Partido
Social Democrático da Bahia - PSD. A Revolução de 30 organizava assim, na Bahia, como nas
demais províncias, a base de sustentação política do novo estado através da política de clientela.
Enquanto os políticos tradicionais se mantinham em oposição à Revolução de 30, refletindo a
posição reacionária da burguesia mercantil-financeira, forma-se em torno de Juraci um grupo de
jovens intelectuais, oriundos do mesmo ambiente social e ideológico dos "estadistas baianos da
República", que representarão agora os interesses burgueses mercantis na nova conjuntura
nacional. Pode-se falar, a partir daí, que a representação política da burguesia mercantil-
financeira baiana passou a ser disputada entre "autonomistas" (mais ligados aos interesses
mercantis decadentes) e os "novos intelectuais" (mais ligados aos capitais mercantis e
financeiros, que se fortaleceram com a crise dos anos 30) que gravitavam em torno do novo
poder constituído. A cisão autonomistas-juracisistas desaparecerá apenas em 1937, desfeita
pelo golpe de estado, que os unifica na oposição a Vargas.
Mas a razão para a oposição de Juraci ao golpe de 37 não se restringiu a motivos
pessoais, como parece ter ocorrido com os autonomistas. A razão reside antes de tudo na nova
soldagem entre os interesses das classes dominantes baianas, que Juraci, àquela altura,
representava melhor que ninguém. O golpe de 37 e a construção do Estado Novo parecem
indicar a precariedade a nível nacional da democracia como forma política de viabilizar a
mudança do eixo econômico da agro-exportação para a internalização da acumulação de
capitais. As interventorias foram aos poucos deixando de ser instrumentos de transformação
revolucionária (no sentido da transformação indicada) para transformar-se em representação
dos velhos interesses regionais, que impediam a formação de uma economia nacional,
ensejando, portanto, novas medidas de força e a instalação do Estado Novo.
Já do ponto de vista ideológico, há de se realçar a conjuntura internacional que
favorecia soluções políticas totalitárias (as doutrinas fascistas em ascensão na Europa) e, do
ponto de vista político, a ameaça que representava para a ordem capitalista o surgimento de uma
corrente comunista entre a jovem oficialidade do Exército e a ascensão do movimento
comunista no país, favorecendo o pensamento totalitário na base de sustentação militar do
100

poder. Faltam-me, entretanto, elementos factuais para melhor explorar analiticamente o período
do Estado Novo na Bahia.
A redemoratização de 1945 significa que a dominação burguesa deverá se dar de novo
sobre a organização das mesmas forças sociais. O Estado Novo encarnou um pensamento
político marcado principalmente pelo papel de ponta que o estado deveria desempenhar na
economia e na sociedade, não como árbitro mas como sujeito econômico, participando da
produção nos setores estratégicos, e como sujeito político, institucionalizando e mediando as
relações capital-trabalho.
O apoio político para tal projeto foi construído através de dois partidos. O PSD
organizava regionalmente os setores agrários, burgueses e oligárquicos, neutralizando, portanto,
a base da hegemonia passada da burguesia mercantil-financeira, e dando a esses setores acesso
aos aparelhos de estado, revitalizando, mais uma vez, a política de clientela. A viabilidade do
PSD como partido estava na fato de que o crescimento industrial patrocinado pelo estado não
gravava os setores de produção agrícola mas, apenas, os setores de intermediação com o capital
imperialista.
O Partido Trabalhista Brasileiro, PTB, a outra base de sustentação do projeto, foi
construído de modo sobreposto aos aparelhos estatais que intermediavam a relação capital-
trabalho, isto é, os sindicatos operários. O PTB deveria carrear e de fato carreou para o estado
burguês o apoio da classe trabalhadora urbana, principalmente da indústria e dos serviços
estatais. O PTB era viável à medida em que os interesses dos trabalhadores convergiam com os
interesses do estado (industrialização e ampliação dos serviços públicos) na expansão de uma
base econômica, que significava a criação de novos empregos.
Em oposição a esse projeto, excetuando-se aqueles que se opunham mais à forma
totalitária e anti-democrática que ele tomou no Estado Novo, cujo melhor exemplo é a Esquerda
Democrática, depois Partido Socialista Brasileiro, estava a União Democrática Nacional -
UDN, que congregava a velha e a nova intelectualidade burguesas, herdeiras do liberalismo
econômico e político, que representavam, grosso modo, as burguesias mercantis e financeiras
regionais e o grande capital imperialista. Além dessas forças sociais estavam representadas na
UDN outros setores da burguesia agrária e da oligarquia rural, alguns deles, aliás, organizados
101

desde 1933 pelas interventorias federais nos Estados, como é o caso dos juracisistas na Bahia.
A outra grande força política que se projeta a partir de 1945 são os trabalhadores
fabris e profissionais organizados ou gravitando ideologicamente em torno do Partido
Comunista Brasileiro. O PCB, apesar da constante repressão do estado e da concorrência do
PTB, aumenta gradativa e constantemente, durante o período 45-64, sua presença no
movimento sindical brasileiro, embora sua maior importância resida, talvez, na luta ideológica,
onde o pensamento marxista se amplifica através da atuação das organizações estudantis e se
espalha aos setores profissionais e de classe média urbana.
Os demais partidos políticos brasileiros de expressão nacional representavam forças
sociais regionais. São o Partido Social Progressista - PSP que, em São Paulo, costurava
burguesia e setores operários através da liderança de Adhemar de Barros; o Partido
Republicano - PR, que organizando setores burgueses e oligárquicos em Minas e em outros
estados, inclusive a Bahia; e o Partido Libertador, PL, centrado no Rio Grande do Sul mas
também com ramificações fortes na Bahia. Esses partidos, entretanto, por se basearem em
forças sociais melhor representadas nacionalmente pelo PSD, pela UDN e pelo PTB são
importantes apenas para o desenrolar do jogo político, na formação das coligações e alianças
partidárias.
Na Bahia, pelo que se pode depreender do estudo de Sampaio (1960c:17), o PSD foi
formado pela interventoria do Estado Novo nos mesmos moldes descritos por Carvalho (1946)
para Minas Gerais, e sai das eleições de 1947 como a segunda maior força política do Estado,
atrás apenas da UDN, com 38% dos votos para a Câmara Federal e 33% para a Assembléia
Legislativa (SAMPAIO, 1964:42-43). A partir de 1950, entretanto, com a cisão da UDN, o
PSD se transforma no maior partido da Bahia, posição que só será de novo ameaçada em 1962.
Seu quadro é composto predominantemente por "coronéis" ou políticos carreiristas do tipo
clientelista, ligados aos interesses agrários e oligárquicos e à burguesia comercial e industrial. A
presença em seus quadros de intelectuais tradicionais como Pedro Calmon é apenas secundária

1.

Em 1954, a candidatura do partido à governador é dada a Pedro Calmon, o que


poderia significar o predomínio do pensamento "autonomista" sobre o partido, mas a reação de
102

Antonio Balbino, aliando-se à UDN juracissista (a "ala nobre" desse partido apoia Calmon)
restaura o predomínio do estilo carreirista-clientelista. Em 1958, ao contrário, é o pensamento
progressista e populista, representado por Vieira de Mello, que tenta controlar o partido. Como
se sabe, Balbino testa a sua própria força aliando-se ao PR e aos setores fiéis à direção do PTB,
lançando Pedreira de Freitas candidato do PSD, e abrindo assim caminho à vitória de Juraci
pela UDN.
A UDN baiana se forma como uma coligação das duas forças políticas rivais na
política pré-37 - os autonomistas, tradicionais representantes da burguesia mercantil-financeira,
e os juracisistas, compostos pelos "coronéis" organizados por Juraci em 1933 e pelos novos
intelectuais burgueses, alguns tradicionais, outros orgânicos, como Clemente Mariani, que
chefiava a "ala nobre" do partido. A indicação de Juraci para candidato a governador pela
UDN, em 1950, estabiliza a sua liderança sobre o partido mas provoca a defecção dos
autonomistas, que se organizam no PL baiano e passam a apoiar o candidato do PSD, Lauro de
Freitas e depois Régis Pacheco. Na arena política, o PL só voltará a se encontrar com a UDN
nas mesmas hostes a partir de 1958, quando a liderança de Juraci se amplia pelo afastamento de
Mangabeira da política local, o que enfraquece sobremodo a penetração do PL (SAMPAIO,
1960a:20).
Em resumo, na Bahia, tanto o PL quanto a UDN derivaram sua força política da
representação dos interesses da burguesia mercantil-financeira e de setores da oligarquia e
burguesia agrária. O PL era, portanto, a agremiação através da qual os intelectuais tradicionais
disputavam a representação dos "interesses baianos", contra os intelectuais udenistas,
geralmente aliando-se ao PSD.
O terceiro partido em força eleitoral, o PR, nasceu também de uma defecção da UDN,
após a derrota de Juraci em 1950. A defecção parece ter sido apenas um meio encontrado por
Manuel Novais e seus seguidores para evitar o seu alijamento dos aparelhos de estado que
adviria de uma oposição tanto ao governo estadual quanto ao federal. Partido clientelístico de
base rural, a caracterização do seu líder por Sampaio (1960a:60) parece definitiva:
"Num segundo plano, [de liderança] bastante recuado, estaria o chefe do PR, cuja
concepção política, de fundo eminentemente clientelístico ("política é favor"), e
ausência de 'carisma' bem como de conteúdo ideológico fazem dele um líder rural
103

com fracas possibilidades de atuação no cenário citadino. O feitio de sua liderança


produz-lhe uma grande fobia da oposição, pois sabe que não poderá resistir muito
tempo fora da sombra protetora dos governos federal e estadual ou, pelo menos, de
um deles".

Ao contrário do PL, o PR não tem ambição de comandar politicamente uma coligação


ou representar um projeto social burguês, por isso está quase sempre ao lado da UDN, na luta
pelo governo do estado, à exceção de 1958, quando, tendo participado com a UDN da
sustentação do governo Balbino, prefere sustentar o candidato deste ao pleito para governador.
A quarta força eleitoral do Estado é o PTB, o único dos grandes partidos baianos de

base mais urbana que rural2. Nacionalmente aliado ao PSD, a principal característica do PTB,
enquanto organização política dos trabalhadores, sempre foi aliar-se aos setores burgueses
rurais para chegar ao poder e aos setores burgueses progressistas e industrialistas para
viabilizar seu projeto econômico de cooperação de classes. A peculiaridade da política baiana
ditará as principais alianças do partido: em 1950, alia-se ao PSD e participa do governo Régis
Pacheco; na crise do PSD baiano, em 1954, é o primeiro partido a romper com o governador e,
junto com a UDN e os dissidentes pessedistas, organizar-se em torno da candidatura Balbino.
A participação petebista nesse governo é marcante, sobretudo pela presença de seu principal

intelectual, Rômulo de Almeida3.


O caráter clientelista do partido, entretanto, acaba prevalecendo sobre a coerência
ideológica. Na crise do PSD de 58 a direção do PTB fica com o governador e apoia a
candidatura de Pedreira de Freitas, enquanto os setores mais coerentes apoiam o pessedista
dissidente Vieira de Melo. A colaboração do PTB com o governo Juraci nasce do apoio da
UDN à candidatura de Rômulo de Almeida à vice-governadoria, nas eleições suplementares de
1959 e origina a aliança UDN-PTB de 1962 em torno da candidatura de Lomanto Junior. A
principal razão para os vai-e-vens e as incoerências do PTB baiano parecem residir no fato de
que os interesses industriais no Estado nunca estiveram separados dos interesses da grande
burguesia mercantil-financeira, ideologicamente conservadora e adversária dos ideais petebistas.
Nesse quadro, o PTB tende historicamente a se aliar aos setores conservadores que representam
os interesses burgueses baianos a se aliar aos setores progressistas divorciados da grande
104

burguesia como Vieira de Melo ou Waldir Pires. A política de clientela, característica da cena
política, não poderia conduzir, na Bahia, a outro resultado.
105

105

CAPÍTULO 5: O Enigma Baiano e a sua Solução

Antes de mais nada, é preciso deixar claro que a burguesia mercantil-financeira baiana
tinha um projeto de âmbito nacional e que seu regionalismo não foi senão a forma histórica,
concreta, de insinuar-se no bloco de poder. Seria, entretanto, um erro minimizar o alcance do
projeto regionalista. Enquanto existiu a possibilidade de reverter a política econômica iniciada com
a Revolução de 30, a burguesia baiana trabalhou nesse sentido, cerrando fileiras com os interesses
dos grupos estrangeiros e dos demais grupos comerciais e financeiros do país. O regionalismo
expressou, desde sua primeira versão, liberal-burguesa, essa vontade de poder.
Mas para fazer das suas idéias filosofia de governo e transformar os aparelhos de estado
em instrumentos da vontade da classe era preciso conquistar, pelo consenso, o Governo da Bahia e
se fazer representar no governo do país. Firmar, porém, o projeto liberal-burguês através da
representação política, como unificação dos interesses de classe, era uma tarefa, no mínimo, difícil.
Isso, no que pese a correção técnica do diagnóstico econômico, a coerência da argumentação, e o
fato do plano de recuperação econômica contemplar os pontos essenciais para o crescimento da
burguesia em geral. A dificuldade não provinha, apenas, do fato do desenvolvimento capitalista
estar a trilhar caminhos diferentes dos seus interesses; provinha também da grande variedade de
interesses econômicos que prevaleciam, na Bahia, sem que houvesse, entre eles, uma organicidade
regional.
Os representantes políticos da facção mercantil da burguesia baiana encontraram no pós-
guerra o meio social num processo de rápidas alterações, principalmente no sentido de uma maior
diversificação dos interesses dos grupos. Exemplos da diversidade de interesses e de ideologias são
os pequenos produtores de cacau, que preferiam a sombra estatal do ceiling price à liberdade do
comércio; é um jornal conservador, como "A Tarde", que pregava uma pitada de intervencionismo
ao liberalismo burguês1; enfim, era o fato de no próprio círculo restrito da Associação Comercial da
Bahia insinuar-se a tendência trabalhista, o que, do ponto de vista liberal, constitua-se numa aber-

1
. "Os norte-americanos amam e cultivam a liberdade de comprar e vender, como
um dogma de seu direito invunerável. Pregamos a convivência dessa liberdade
com um aditivo essencial: é o equipamento dos organismos estatais ou para-
estatais no sentido de assistência prática, educativa e bancária à produção,
106

106

ração, pois pretendia substituir o intervencionismo estatal ao "livre embate" entre capital e traba-
lho2.
No entanto, apesar das dificuldades históricas que rondavam o futuro político do projeto
liberal, o seu début não deixou de ser auspicioso, o que se pode creditar a duas razões. No plano
nacional, o governo do general Dutra, empenhado na reconstrução da democracia brasileira, fazia
representar no poder as diversas correntes do pensamento burguês da nação, entre as quais estava a
burguesia mercantil baiana, na pessoa de Clemente Mariani3. No plano estadual, a decadência a
que tinha chegado a economia do Estado, aliada à prepotência política que reinara no Estado Novo,
fez com que a candidatura vitoriosa de Otávio Mangabeira ao Governo da Bahia fosse apoiada pela
unanimidade das forças políticas locais, que se unificam em torno de um programa básico de re-
construção econômica e democrática4.

para que esta respire finalmente o ar desoprimido dos povos realmente


civilizados" (A TARDE, 11.01.46:3).
2
. Veja-se, por exemplo esse trecho do discurso de Ranulfo Assis Batista,
Secretário do Conselho de Comércio da ACB: "... entretanto nota-se que são tão
graves e variados, os problemas que a evolução vem criando em torno do
desenvolvimento da economia, no tocante a produção e distribuição dos bens de
consumo, que já não se explica possam as classes conservadoras manter-se
alheias às competições políticas. Não para transformar associações técnicas
profissionais em campo de lutas partidárias, mas para criar o órgão político
partidário das classes produtoras, tendo como objetivo a sua direta influên-
cia, pela representação selecionada, na conveniência estrutural da economia
privada nas relações com a economia pública. Para que o assunto seja tratado
com a elevação que comporta, basta que não se dê ao trabalhismo, na acepção
política-econômica, o sentido "braçal". Porque não é só com trabalhador braçal
que se constitui o trabalhismo, é da união do capital ao braço com o Estado,
que se forma a tríade de interesses supremos" (Boletim ACB,1950,8:1).
3
. Mariani tem então a oportunidade de instrumentalizar parte de suas teses:
"... ao ocupar a pasta de Educação e Saúde no Governo do Presidente Eurico
Dutra, procurei, no limitado setor sob minha responsabilidade, compensar, de
algum modo, a sangria massiça sofrida pela Bahia e o estiolamento dos outros
Estados do Nordeste, invertendo os termos da política até então seguida da
concentração das atividades do Ministério nas áreas mais desenvolvidas do
país, orientando-a, ao contrário, no sentido do atendimento das maiores
necessidades". (Banco da Bahia, 1959)
4
. Apenas os getulistas não apoiam a candidatura Mangabeira. Em torno dela
unem-se a UDN, partido de Mangabeira, o PSD, a Esquerda Democrática, o P.R.P.,
a ala dissidente do PTB e o PCB. Esse último condiciona seu apoio ao
cumprimento de três diretrizes:
"1. Defesa da constituição e da legalidade de todos os partidos
políticos, inclusive o PCB; 2. Luta pela união e solidariedade de todas as
forças políticas nacionais em defesa da democracia e contra quaisquer
107

107

O governo Mangabeira (1947-1951), sobre todos os aspectos o governo da grande


burguesia, soube aliar ao espírito liberal uma firme liderança econômica e moral. Mangabeira
encarnou o espírito de reconstrução. Espírito que, tinha sentidos diversos quando referidos ao nível
nacional ou regional. Se no primeiro significava construir uma sociedade democrática sobre a base
de um capitalismo moderno, no segundo significava restaurar o papel e a importância de uma classe
que se atrasara em relação a esse capitalismo5. O seu governo respaldou-se na política federal de
investimentos compensatórios, que lançou as bases para a acumulação capitalista na Bahia através
da construção da refinaria de Mataripe, das ligações ferroviária e rodoviária com o sul do país e de
inversões vultuosas em educação e saúde públicas.
Mas, sobretudo, Mangabeira soube encontrar símbolos duradouros para esse espírito
restaurador. Construiu a avenida que vai dar a Itapoã pela orla marítima, o Hotel da Bahia, o Forum
Rui Barbosa, o Estádio da Fonte Nova, tomou as primeiras providências para a construção do
Teatro Castro Alves, etc. É lapidar esse julgamento d'A Tarde sobre o governo de Mangabeira:
"Qualquer plano mais grandioso, qualquer iniciativa acima da rotina das obras
mesquinhas de caráter inadiável, era considerado demais para a nossa terra. O governo
do Sr. Otávio Mangabeira, se outros méritos não tivesse, grangearia o de ter destruido
essa timidez que empasta e aniquila os horizontes de uma coletividade" (A TARDE,
30.1.1951:2).

No entanto, apesar de governo da facção mercantil, a concepção da realidade baiana que


Mangabeira veicula não tinha o tom racional e técnico do discurso dos intelectuais da classe. Ao

tentativas de golpes armados; 3. Luta persistente efetiva, prática, contra a


carestia, a miséria e pela solução das necessidades mais prementes do povo e
dos trabalhadores".
A resposta de Mangabeira ao apoio do PCB é esclarecedora de seu liberalismo:
"Sou pela manutenção da ordem legal - e o que chamo ordem legal é a
ordem legal democrática - contra quaisquer tentativas, armadas ou desarmadas,
que visem destrui-la ou a enfraquecê-la. Sou pelo livre funcionamento de todos
os partidos, inclusive, já se vê, o comunista, uma vez que desenvolvam as suas
atividades com a lei e dentro da lei. O primeiro dever dos governantes é ir ao
encontro, eficientemente, das necessidades do povo..."
A Tarde, 8.1.47, p. 1.
5
. Dirá Otávio Mangabeira em discurso proferido em 1947:
"Reclamo (o concurso de todos os baianos) para o reerguimento da Bahia. E
acrescentaria, não só por ela, mas também para que ela reconstruída,
restaurada, na posse integral das suas energias materiais e morais, possa
melhor cumprir o seu destino, a função que lha cabe no Brasil e na democracia
brasileira".
108

108

contrário, era um discurso emotivo, embora elegante, de quem se assusta com uma situação
indesejada. O "enigma baiano" foi na verdade a ponte entre os intelectuais do passado e os do
presente, ou, o que vem dar no mesmo, a versão política, e por isso mais eficiente, de uma ideologia
arcaica e, portanto, sem grande possibilidade política. Mangabeira assim definiu-o:
"Intrigava-me, desde muito, o que chamei o enigma baiano: porque razão a Bahia,
cujas qualidades e riquezas eram, em geral, tão celebradas, se mantinha, todavia, em
condições de progresso indiscutivelmente inferior ao que resultaria, em boa lógica, de
semelhante conceito, assim tivesse ele a procedência que se lhe atribuia?" (A TARDE,
30.1.1951).

A surpresa diante do quadro de miséria e de penúria em que se encontrava o povo, o


estarrecimento diante da contradição entre as riquezas naturais da terra e a pobreza material dos ho-
mens, servia de instrumento de arregimentação e de mobilização espiritual mais poderoso que a fria
análise econômica. O discurso de Mangabeira não representava nem o pensamento de um
simplório, nem a manipulação de um povo simplório. Era apenas o recurso retórico de quem
conhecia o poder das palavras e sabia que a política se faz com o consenso. Seu diagnóstico é claro,
preciso, minucioso, mas superficial e abstrato, como convém a um discurso ideológico, pois é nesse
nível que se acham os elementos de consenso. O sentimento de todos os baianos, na minuciosa
diversidade de seus problemas particulares, via-se unificado na abstraticíssima contradição entre o
mundo físico e o social. Ao "enigma" cabia preencher um espaço ideológico deixado vago:
"Reinava, de modo geral, uma atmosfera de desânimo e - o que era talvez pior - de
conformação com o abandono, para não dizer com a decadência, uma grande, profunda
descrença na ação do poder público..." (A TARDE, 30.1.1951)

Esse vazio era o sinal de que faltava à sociedade uma liderança política, econômica e
moral. Era mister começar do princípio, começar por situar a riqueza e a pobreza, a região e a
nação, o indivíduo e o coletivo, a partir da experiência real de suas existências materiais. Por isso
Mangabeira decorre com minúncias sobre o estado lastimável da saúde, do saneamento e da higiene
públicos; sobre a insuficiência dos meios de transportes e das vias públicas; sobre a precariedade da
habitação popular, da educação e da qualificação técnica dos trabalhadores; sobre as injustiças de
que era vítima o Estado da Bahia; sobre a distância econômica e social que se ampliava entre o
norte e o sul do país. Todo o seu discurso é um enumerar de apelos à unificação das classes e dos
grupos sociais em torno de um projeto comum, não explicitado, de soerguimento regional que
109

109

depende basicamente de dedicação à causa pública e de trabalho. O enigma é indecifrável porque


depende fundamentalmente dos homens resolvê-lo através de sua ação coletiva. Ação que é
cuidadosamente circunscrita à formação de uma elite intelectual e de um corpo de representantes
capazes de encontrar, no plano político e no plano econômico, as soluções para os problemas do
seu tempo.
"A Bahia, que indiscutivelmente se distingue por notáveis qualidades de inteligência,
como também de generosidade, revelou sempre assinalado pendor para o culto dos
grandes ideais de liberdade, justiça, solidariedade humana. Mas o estudo, terra a terra,
sob o ponto de vista prático, dos problemas fundamentais do aumento da produção, ou
seja dos meios concretos de ir ao encontro do povo, que precisa alimentar-se, vestir-se,
de ter onde morar, de saber ler, escrever e aprender a ganhar a vida, nunca terá sido
propriamente da predileção dos baianos, mais propensos ao gosto da eloquência, da be-
leza, do brilho das palavras e das idéias, olhos voltados antes para o alto das aspirações
ou das doutrinas que para o chão das realidades vulgares com que vivemos a braços" (A
TARDE, 30.1.1951).

Era, enfim, o reconhecimento do fosso que se abrira entre o povo e os políticos, entre a
dominação econômica e a dominação política dessa facção burguesa, entre seu interesse regional
particular e a tendência da acumulação capitalista nacional. Mas era, ao mesmo tempo, uma ponte
sobre o fosso. A afirmação da disposição da burguesia baiana em encontrar aquela tendência nacio-
nal sem descartar-se de seus interesses atuais e imediatos, ou seja, de conseguir ampliar os seus
interesses, de modernizar-se e guiar a Bahia rumo aos modernos tempos industriais.
Mangabeira consegue transformar, portanto, a forte reivindicação autonomista, federalista
e liberal dos anos 30, que contrapunha ao desenvolvimento industrial a legitimidade econômica e
moral da vocação agrícola da Bahia, em um discurso que, no mesmo estilo e retórica, baseando-se
nos conquistados direitos de uma constituição federalista, defendia as garantias para que também a
burguesia baiana conseguisse atingir o estágio industrial. Essa diferença, que pode parecer tênue, é
a pedra de toque da vida política baiana no pós-guerra. Significa a grande novidade da
intelectualidade burguesa baiana. E essa novidade se encontrava no projeto da facção mercantil
que, ao tempo em que resguardava seus interesses atuais e imediatos, procurava guarnecer as trilhas
de seu futuro, ressaltando o seu lugar na acumulação capitalista nacional e fortalecendo a
solidariedade de seus interesses com os interesses burgueses no país.
110

110

A viabilidade do projeto só torna-se, realmente, problemática quando a correlação de


forças no poder, com o fim do Governo Dutra, tende a neutralizar os interesses da burguesia
financeira sulista e dos grupos estrangeiros, em favor da indústria nacional. Aí, embora a burguesia
mercantil baiana continue a dividir os cargos da República, já não influi mais na definição das polí-
ticas. De 1950, quando Mariani deixa o Ministério da Educação e Saúde, a 1954, com o suicídio de
Getúlio Vargas, sucedem-se nessa pasta Pedro Clamon, Ernesto Simões Filho, Antonio Balbino e
Edgar Santos, sem que os gastos federais consigam sequer, em alguns anos, igualar a arrecadação
federal no Estado.
No plano estadual, reflete-se na vida política a perda de importância nacional da principal
facção burguesa com o retorno à indisciplina dos diversos interesses econômicos que procuram sa-
tisfazer-se junto ao governo do Estado.
O governo de Regis Pacheco (1951-1955), que sucede a Mangabeira, é marcado,
principalmente, pela desarticulação da liderança do governo do Estado na condução dos interesses
regionais. Se, por um lado, a burguesia mercantil-financeira podia ainda contar com um grupo
importante de representantes no Senado e na Câmara, já não contava, por outro, com a união dos
representantes estaduais em torno de objetivos comuns que podesse viabilizar sua hegemonia.
A falta de liderança derivava, fundamentalmente, da impossibilidade do Governo do
Estado conduzir, de modo conveniente, a representação do conjunto dos interesses burgueses e
oligárquicos. Os políticos acabam com o tempo perdendo a noção de hierarquia dos interesses e,
não reconhecendo em nenhum grupo especial a representação dos interesses coletivos. Empenham-
se assim na obtenção de favores não legitimados, deixando-se envolver em querelas partidárias que,
encontrando a reprovação das instituições sociais e do próprio estado, acabam por evidenciar aos
olhos da sociedade o vácuo do sistema de dominação6. Esse processo de corrosão de representação

6
Não é outro o sentido da seguinte observação de Juraci Magalhães:
"Dizia o saudoso Otávio Mangabeira que o baiano paga duzentos cruzeiros
para evitar que outro baiano tenha o lucro de cem: é o temor de que a ascensão
do vizinho acachape o próximo. E sua observação é até certo ponto, perfeita.
Esquecemo-nos que a fortuna individual, bem construída e bem movimentada,
torna-se, em parte, fortuna dos demais, na riqueza coletiva que integra. Pouco
importa quem seja o instrumento da terra: o que interessa é que quem for tenha
a capacidade de se fazer aquele instrumento honesto ou se tornar aquele punho
forte de que carecemos" (Juraci Magalhães, Mensagem a Assembléia Legislativa em
7 de abril de 1963, Salvador, Imprensa Oficial).
111

111

política começa com Regis Pacheco e continua até 1964, possibilitando o golpe de estado militar.
Sendo um processo nacional, ele tem, todavia, suas particularidades locais.
Na Bahia, como vimos, o peso da oligarquia e dos interesses agrários, por ser maior que
no conjunto do país, tornou o conteúdo dos partidos nacionais um pouco diferente. Todos eles, para
sobreviver eleitoralmente, tiveram de cooptar as forças rurais, de modo que a UDN e o PTB
baianos, por exemplo, foram partidos que, ao contrário de seus diretórios nacionais, expressaram
compromissos importantes com a oligarquia agrária. Isso fez com que esses partidos contrariassem,
às vezes, os interesses de suas forças sociais de sustentação, respectivamente o capital mercantil e a
pequena burguesia reformista, constituindo-se, portanto, em mais um fator de desarticulação da
representação política.
A política baiana refletia, assim, por um lado, a ausência de uma classe ou facção de
classe que soldasse os interesses dominantes em torno de um fulcro de crescimento econômico e,
por outro, a dependência financeira do Estado em relação ao governo da União. Esses são os
motivos que levaram os políticos, representantes das classes dominantes baianas, a fragmentarem-
se pelos partidos, de modo a revesarem-se entre o poder federal e o poder estadual, ambos in-
capazes de dar conta, com seus próprios recursos, das necessidades dos interesses que
representavam. Esses interesses acabavam por se transformar em solicitações municipais ou distri-
tais, reforçando o sistema de poder local, mas com pouca ou nenhuma organicidade com os
interesses globais da burguesia. O "esvaziamento" do poder político do governador Regis Pacheco
junto ao Governo Federal, por outro lado, decorria de sua frágil liderança estadual. O presidente da
República, ao contrário, procurava agir diretamente nos Estados, atendendo a pequenos interesses
de grupos particulares, organizando a representação dos interesses da burguesia regional como um
todo7.

7
Foi Juraci Magalhães quem disse, revoltado:
"Mas a verdade é que os Estados valem, ou são atendidos, em função das ligações
de seus governos com o Governante Central. Não há igualdade de tratamento, nem
de direitos. Não há Federação. Mesmo os Fundos Nacionais - com exceção do
Rodoviário e do de Pavimentação - não se aplicam ou se distribuem com justiça.
São instrumentos de favor político, não constituindo direito a serem
reclamados. É que mais pesa o valor pessoal do político na liberação de verbas,
na realização de obras, na execução dos serviços que o interesse público; ao
chefe da nação, de um modo geral, mais convém conhecer, sentir a docilidade do
chefe de Estado membro à sua liderança, que a obra feita pelo mesmo a serviço
112

112

O Governo Regis Pacheco teve que enfrentar, além da política econômica nacional
adversa e da ação solapadora do presidente da República, uma grave seca que perdurou durante três
anos, de 1951 a 1953, debilitando ainda mais as finanças estaduais e agravando o quadro político e
ideológico do Estado. A administração Regis Pacheco termina sendo um grande fracasso político-
administrativo8.
Ao tempo em que a seca agravava o quadro social do Estado, as reivindicações da
oligarquia fundiária cresciam de intensidade sem encontrar nem no Governo do Estado, depaupera-
do, nem no Governo da União a receptividade necessária. Na consciência regional, todavia, o
problema agrário passou a merecer soluções mais definitivas que as habituais ajudas aos flagelados.
O próprio governador começou a chamar a atenção para o absurdo de uma economia viver a mercê
das forças da natureza:
"A seca, tal como vem ocorrendo, já entrando no seu terceiro ano, vem destruindo a
base econômica da vida do nordestino brasileiro, dando margem a migrações... Outras
unidades da Federação, especialmente São Paulo, libertaram-se de tais riscos. A
industrialização promovida após a crise do café de 1929, estimulada pela dificuldade de
importação de bens de consumo, ante a carência de divisas do país, ensejou a
emancipação da incoveniência de um comércio externo demasiadamente preponderante,
que aos poucos, foi sendo relegado ao segundo plano..."9.

de sua comunidade".(Mensagem à Assembléia em 7 de abril de 1963. Imprensa


Oficial).
A TARDE comentou de modo revelador, a esse respeito, uma resposta do candidato
ao Governo do Estado, Antonio Balbino:
"Este comentou a um repórter que a resposta deveria caber ao próprio PR, ou,
mais propriamente, ao Sr. Getúlio Vargas. O repórter interpretou essa ironia do
Sr. Balbino como exprimindo a significação de que o Sr. Novais reflete apenas a
imagem do prestígio do presidente, que o tem cumulado de inesgotáveis favores,
entregando-lhe as diretorias dos serviços contra as secas, estradas de rodagem,
correios e telégrafos e de obras no rio São Francisco" (A TARDE, 14.7.54:1).
8
"O governo Regis Pacheco terminou em franca decomposição, como não há memória
de nenhum outro dos que já passaram por este elevado posto. Sob qualquer
aspecto que se o examine, a desordem e a inépcia foram as dominantes de sua
administração. Parece não haver sido outra a preocupação do infeliz governo
senão o de amealhar vantagens e interesses individuais..." (A TARDE, 6.1.55:3).
9
Regis Pacheco, Mensagem a Assembléia Legislativa em 7 de abril de 1953,
publicado n'A TARDE de 8.4.53, pp. 2, 3 e 9. Observe-se o texto seguinte, da
mesma mensagem:
"A trama do comércio exterior se dificulta progressivamente impondo uma
subordinação crescente e perigosa às mercadorias sob o seu controle, com o
advento das chamadas crises de divisas, dos atrasados comerciais, da
113

113

Os anos seguintes demonstrarão que a burguesia mercantil terá que alterar a ênfase de seu
discurso, no sentido indicado por Regis Pacheco, de modo a fazer frente às sucessivas arrancadas
da oligarquia fundiária junto ao poder federal, que comprometem a sua liderança política,
ideológica e econômica na região. Foi, em parte, a confluência dos problemas que as secas traziam
para a economia e as finanças do Estado, com a proeminência que elas ensejaram aos grupos
oligárquicos, que permitiu a emergência de um discurso reformista, o qual se firmou como uma
continuidade do discurso liberal-burguês10.
É sintomático que a burguesia mercantil nunca tenha visto com reservas ou com receios o
planejamento econômico. Para ela a ênfase no mercado interno não significava seu alijamento
econômico mas, muito ao contrário, significava a possibilidade de diversificação dos seus
interesses e o reforço do seu nível de acumulação, inteiramente dependentes, até então, do
comércio exterior. Assim os órgãos de classe da burguesia, como a ACB, e ideólogos do porte de
Mariani, através dos relatórios do Banco da Bahia, reforçaram a pressão sobre o governo do Estado
no sentido de adotar o planejamento econômico como método de governo, o que só será possível
no quadriênio seguinte.
O governo Regis Pacheco, em acelerada desagregação, com a defecção, inclusive, do PTB
da coligação situacionista, não teve forças políticas ou recursos suficientes para levar a bom termo
o seu programa. Este programa tinha como pontos chaves a criação de infra-estrutura econômica,

oficialização e do controle do câmbio, tudo girando em torno do equilíbrio da


balança de importação e exportação. Se o país, então, atravessa fase difícil,
como agora, em conjuntura que demanda o esforço e a aglutinação de toda a
sociedade, em face da elevação permanente do custo de vida, como consequência,
além do procedimento criminoso dos especuladores, do aumento generalizado do
custo de produção dos bens de consumo, as mercadorias exportáveis passam como
gravosas, a não encontrar mercado, em face do preço de venda, ou a não
remunerar internamente o esforço de produzi-las".
10
Esse caráter quem lhe dá é o próprio Clemente Mariani:
"A semente, entretanto estava lançada. Assumindo a secretaria da Fazenda da
Bahia, o Dr. Rômulo de Almeida tratou-a com carinho. Com auxílio substancial da
Universidade e do Governo do Estado com esporádicas contribuições dos órgãos
federais, com a simpatia e cooperação de todos nós, a análise da situação
econômica da Bahia pela Comissão de Planejamento Econômico, sob sua presidên-
cia, confirmando nas suas linhas gerais as observações de minha autoria, mas
descendo, ou melhor, alteando-se aos desejados objetivos de precisão, sis-
tematização e esquematização, constitui hoje um roteiro de valor inestimável
para quem tendo a posição e os recursos, deseje promover o desenvolvimento
econômico do Estado".(MARIANI, 1977:120-121)
114

114

em que o governo enfatizava a importância de se levar ao sul e ao sudoeste do Estado a energia


elétrica que em breve estaria chegando a Salvador, através da construção de duas hidroelétricas,
Funil e Salto; o incentivo direto à industrialização, de modo a atrair capitais industriais e finan-
ceiros paulistas e estrangeiros; a transformação do Instituto de Fomento em banco, de modo a
financiar a expansão agrícola, comercial e industrial; e, finalmente, solucionar o problema de abas-
tecimento dos centros urbanos, principalmente da capital, incentivando a colonização agrícola
através da imigração estrangeira11.
Na prática, o governo mostra-se incapaz de representar os interesses burgueses até mesmo
em questões chaves, como a energética, e, quando a energia de Paulo Afonso chega à Bahia, em
1955, Salvador está totalmente despreparada para o surto industrial que o projeto burguês
acalentava. Na verdade, a incompetência é generalizada e atinge todos os pontos da administra-
ção12.

11
"Dentre as iniciativas que tem tomado o Dr. Regis Pacheco para a
administração do Estado, destacam-se a fundação do Banco do Estado, para o que
está cogitando do competente lastro, tendo entregue a técnicos na matéria o
estudo desse projeto. De igual modo, tem merecido a sua atenção os meios de
obter novos capitais para a Bahia; a imigração estrangeira... e o problema da
indústria, para o que visitou, demoradamente, São Paulo, onde... teve
oportunidade de estabelecer contatos com elementos da alta indústria e finanças
daquele Estado, sendo fundadas as esperanças de que, também, nesse setor, se
fará algo de apreciável para a Bahia". (A TARDE, 10.1.51:2).
"Considero, por exemplo, que a coletividade que não dispõe hoje em dia de força
elétrica bastante para o desenvolvimento de suas atividades produtivas não pode
progredir. Reputo a energia elétrica uma das bases do progresso no momento que
vivemos. O meu governo tudo fará para que o potencial elétrico da Bahia se
multiplique o mais possível, proporcionando a instalação aqui de novas
indústrias e uma série de fatores outros que contribuirão, acredito, de maneira
decisiva, para o nosso progresso. Paulo Afonso nos dará dentro em breve força
bastante para impulsionar o desenvolvimento do Nordeste. Mister se faz porém
que exploremos a cachoeira do Funil e a do Salto, afim de facultarmos ao sul e
sudoeste, as mais ricas regiões do Estado, o mesmo fator de desenvolvimento e
progresso".(Entrevista de Regis Pacheco, A TARDE, 18.1.51, p.2.)
12
"44 convites foram endereçados e um avião (SIC) de 44 lugares foi posto à
disposição dos convidados. O mesmo fez aquela companhia em Pernambuco. No
avião da Bahia sobraram 14 cadeiras e muitas estavam ocupadas por re-
presentantes das autoridades convidadas. No de Pernambuco não sobrou um só
lugar e todos achavam-se preenchidos diretamente pelas autoridades. Há porém
um outro (motivo) muito mais importante (para a simpatia de que gozam os
pernambucanos junto à CHESF). Recife está habilitada a consumir toda a energia
que lhe é destinada por Paulo Afonso nessa primeira etapa das obras de a-
proveitamento do potencial da grande cachoeira. Salvador não. Faltou à Bahia o
115

115

O sistema de representação chega a tal ponto de anomia que, nas eleições majoritárias de
1954, é difícil a aglutinação de forças em torno de candidatos, sendo frequentes as dissidências
internas nos partidos. Antonio Balbino rompe com o PSD e candidata-se a governador apoiado pela
UDN e pelo PTB, o que provoca, no primeiro, a dissidência de "ala nobre" comandada por Cle-
mente Mariani, que apoia a candidatura de Pedro Calmon, pelo PSD, e, no PTB, a dissidência dos
comandados de Landulfo Alves. A maior prova, porém, de que as agremiações políticas sofrem de
crise de representatividade é que a candidatura de Pedro Calmon, apoiada pelo maior número de
partidos - o PSD, o maior do Estado, o PL, o PDC, o PR, o PRP, e mais as dissidências udenista e
trabalhista - é, surpreendentemente, derrotada. Ficava claro, naquelas circunstâncias, que a
burguesia precisava, para implementar seu projeto de classe, não tanto de partidos, mas de líderes
que reorganizassem as forças políticas a partir das bases municipais. A eleição de Antonio Balbino
serviu para que Juraci Magalhães, o principal articulador de sua campanha, testasse, mais uma vez,
a eficácia dessa velha estratégia que já lhe rendera bons frutos em 1933.

Balbino e o Planejamento Econômico

Antonio Balbino (1955-1959) tentou, sem sucesso, governar para toda a burguesia.
Adotou integralmente as idéias de Rômulo de Almeida, o principal criador do projeto reformista,
com o apoio integral da facção mercantil-financeira e do conjunto das "classes produtoras"13. Esse
projeto viu-se ainda mais fortalecido pela derrota política que representou o monopólio estatal do

trabalho que fizeram os pernambucanos para o recebimento da energia de Paulo


Afonso, não obstante haver o governo baiano criado uma comissão para tratar do
assunto, a qual, entretanto, não chegou, sequer, a reunir-se" (A TARDE,
19.1.53:3).
13
"É evidente que com tão reduzidos recursos e não havendo obtido até o
exercício passado um apoio substancial dos órgãos financiadores do Governo
Federal, não poderia chegar a fazer sentir-se a influência da administração
estadual na solução dos grandes problemas econômicos do Estado, apesar do
minucioso estudo que vem fazeno dos mesmos, através a CPE". "... é de louvar-
se a iniciativa de realizar-se pela primeira vez uma séria investigação das
fontes de riqueza econômica do Estado, dos complexos problemas de
abastecimento, comunicações e transportes, equacionando-se para as mais
adequadas soluções, quer pelo setor público, quer pelo setor privado" (Banco
da Bahia, 1956:2).
116

116

petróleo para as aspirações da burguesia, fazendo-a ainda mais dependente da ação do governo
estadual e do governo federal para que o parque petrolífero baiano tivesse as consequências deseja-
das por seus interesses de classe. Se aliarmos-se a esse fato a correlação adversa de forças que mais
uma vez, depois de um curto período de sete meses em 1954, a afastara do poder nacional, ter-se-á
uma idéia da premência com que ela necessitava da organização do poder estadual em torno de seus
interesses básicos.
O plano de Rômulo de Almeida significou o primeiro passo para a modernização e
adaptação dos aparelhos do Estado àquelas exigências. Foi criado o Fundo de Desenvolvimento
Agro-Industrial -FUNDAGRO, com a finalidade de "permitir e ampliar a colaboração do Estado
com pessoas físicas e jurídicas de direito privado e de direito público, para a realização de projetos
que interessem à economia agrícola e ao equilíbrio do abastecimento das diversas áreas do Estado"
(CPE, 1958:80).
A partir do FUNDAGRO são criadas a Companhia de Armazéns Gerais e Silos da Bahia,
CASEB; a Companhia Matadouros Frigoríficos S.A., MAFRISA; a Companhia de Adubos e
Materiais Agrícolas da Bahia, CAMAB; além de projetados o Entreposto de Leite, a Companhia
Industrial de Pesca, a Empresa de Conservação de Solos, Água e Mecanização Agrícola, a Empresa
de Assistênia Mecânica e Beneficiamento do Sisal e a Companhia de Energia Elétrica da Bahia,
COELBA.
No plano energético, o governo Balbino implanta um plano de eletrificação, que engloba a
ação do governo anterior e expande-a, no sentido de dotar o sul e o sudoeste do Estado de energia
elétrica. O plano de transporte dá prioridade ao reaparelhamento da Navegação Baiana e da Estrada
de Ferro Nazaré e à construção e reaparelhamento dos portos do litoral sul - São Roque, Maraú, I-
lhéus, Coroa Vermelha e Caravelas -, tentando recuperar o transporte de cabotagem e o transporte
ferroviário nas zonas mais ricas do Estado. O plano rodoviário, seguindo a mesma orientação, "con-
centra-se nas zonas Sul e Recôncavo, pelas maiores possibilidades imediatas de produção, ligando
os centros produtores de leite, cereais, cacau e outras riquezas fora das zonas referidas" (CPE,
1958:117).
No plano industrial, o governo preparou o bairro de Itapagipe, na sua parte alagadiça,
próxima a desembocadura do Joanes, para servir de localização industrial preferencial e implantou
um sistema de incentivos à instalação de indústrias, ao tempo em que pressionava o governo federal
117

117

para a instalação de indústrias petroquímicas no Recôncavo. No nível federal, Balbino procurou de-
senvolver uma representação coerente e unificada dos interesses das classes burguesas, enviando,
inclusive, a 15 de agosto de 1957, uma carta ao Presidente da República que sintetiza o seu plano
de governo, mostrando sua compatibilidade e complementariedade com o programa de metas; e
não perdeu ocasião, em todas as oportunidades, de fazer-se o porta-voz das "classes produtoras"14.
As intenções de Balbino, entretanto, não vingaram. E três razões, intrinsecamente
conectadas, parecem explicar aquele fracasso. Em primeiro lugar, o novo governo sofria de um mal
de origem. Nascido da desorganização das maiores forças partidárias do Estado será sempre
encarado como fruto do logro e da fraude o que o obrigava, de fato, a usar essas armas para
neutralizar uma oposição ferrenha e inconciliável. Essa oposição significará, antes de tudo, uma
campanha contínua de desestabilização das forças governamentais. "A Tarde", por exemplo, o
jornal de maior circulação no Estado, fez uma campanha sistemática de desmoralização do gover-
nador, a quem acusou de corrupção e de favorecimento ilícito de empresas, algumas, na verdade,
extremamente importantes dentro da estratégia burguesa de industrialização do Estado15. Do
mesmo teor foram as investidas contra Juraci Magalhães, que, ocupando postos vitais para os
interesses da burguesia baiana, inclusive a presidência da Petrobrás, em 1953, e mostrando ser o
político baiano de maior penetração nos círculos federais e no cenário político nacional, foi,
invariavelmente, durante todo esse período, apresentado ao público como um arrivista sem caráter e
sem escrúpulos morais, um político sem ideais outros que a satisfação de seus interesses pessoais16.
Antonio Balbino, diante do isolamento a que foi relegado por facções importantes das
forças sociais, impotente diante de um poder federal que se fortalece com as dissenções no seio das
classes dominantes baianas, viu-se obrigado, para governar, a deixar-se envolver, cada vez mais, no
círculo estreito dos interesses o cercavam, gerando um círculo vicioso difícil de ser rompido.

14
O que ocorre tanto no que se refere a política cambial, quanto à Instrução
135, da SUMOC, que mandava recolher, à ordem da SUMOC, no Banco do Brasil, 40%
dos depósitos bancários, no caso dos Estados do Sul e da Bahia.
15
18. Foi o caso da isenção fiscal ao Moinho Salvador, de propriedade do
governador, que merece a reiterada condenação d'A TARDE, sob a alegação de
favorecimento ilícito.
16
Foi o caso da isenção fiscal ao Moinho Salvador, de propriedade do
governador, que merece a reiterada condenação d'A TARDE, sob a alegação de
favorecimento ilícito.
118

118

As práticas de governo estavam, na Bahia, tão desmoralizadas que o governador, na


Assembléia Legislativa, prestando contas de sua administração, pode dizer sem pejo, vangloriando-
se, que
"não interfiro, nem admito interferências nos processos normais da vida administrativa,
no setor de fornecimentos, das empreitadas ou das obras. Ninguém mais paga comissões
ou percentagens para receber importâncias do Tesouro do Estado"17.

A verdade, entretanto, é que a moralidade encontrava seus limites, como o próprio


governador reconhecia, na inorganicidade dos interesses dominantes e na consequente
desorganização da vida política:
"Continuo a afirmar, senhores deputados, que, tanto quanto é possível a um homem
público à frente do governo de um Estado como o nosso, condicionado pelos reclamos
de tantas solicitações e reivindicações prementes e pelos imperativos de uma
composição político-partidária fracionada e instável, ser fiel às linhas estruturais de um
plano sistemático de administração que procura evitar o varejo e a meio-sola, eu o tenho
sido" (ibidem, p.6).

A segunda razão do fracasso da administração Balbino, aquela que me parece mais


importante pois fundamenta a primeira, foi justamente o fato de não haver ainda, àquela altura, uma
maior articulação entre os interesses das classes dominantes baianas, principalmente pelo
predomínio que ainda tinha a oligarquia sobre as atividades agrícolas do Estado. Apenas com a
emancipação dos setores burgueses do campo, nas áreas nordeste e noroeste do Estado, com a
produção e a industrialização do sisal e da mamona, com a produção de cereais, em Irecê, e de
outras culturas menores, em outras áreas, o que se dará efetivamente nos anos sessenta, ganharão os
interesses burgueses uma organicidade tal que a ação planificadora do Estado poderá beneficiar
equitativamente uma maior parcela do seu território e dos seus grupos sociais, deixando de
representar privilégios.
Por ora, a prioridade concedida às regiões sul e sudoeste representava deixar de fora a
quase totalidade do território, ainda não integrado ao círculo do capital industrial (produtivo e
mercantil). Na verdade, o projeto de Rômulo de Almeida feria mortalmente os interesses da
oligarquia agrária, uma classe que tinha um peso desmesurado no plano político apesar da

17
Mensagem do Governador Antonio Balbino à Assembléia Legislativa em 7 de
abril de 1957, pp. 5 e 6.
119

119

estreiteza de sua perspectiva. Sua posição estratégica no sistema político de dominação,


controlando o voto da maioria do eleitorado, transformava-a em peça fundamental do estado
burguês. Ela podia contar ou manipular com um número tão grande de representantes que era
impossível para a burguesia governar sem ela.
A terceira e última razão era a prescindibilidade da burguesia mercantil-financeira baiana
no esquema de poder que o presidente Kubitschek tentava viabilizar com as facilidades que con-
cedera à inversão maciça de capitais estrangeiros no país. De fato, a entrada desses capitais
significava uma solução para os conflitos de interesse entre os capitais financeiros e industriais
estrangeiros e os grupos industriais nacionais que já começavam a integrar-se mais intimamente
com a burguesia financeira e comercial brasileira. Esse pacto de forças prescindia, pelo menos tem-
porariamente, de uma aliança com a burguesia mercantil baiana, o que explica aliás o fato de pela
primeira vez, na terceira república, essa facção não estava representada em nenhum Ministério ou
empresa pública de importânca. Para compensar esse alijamento, compartilhado por outros estados
nordestinos, o presidente dará, como se sabe, uma solução global aos problemas do Nordeste,
congruentes com os interesses burgueses nacionais, criando a Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE.
120

105

CAPÍTULO 6: A crise de representação política

As condições econômicas e políticas, no Brasil, se alteraram substancialmente no governo


do presidente Juscelino Kubtschek. Houve, em primeiro lugar, um rearranjo entre os interesses dos
grupos privados, nacionais e estrangeiros, que operavam no país. Os capitais internacionais investem
cada vez mais em setores industriais de ponta e tem início um processo de concentração de capitais
que solidariza os interesses mercantis e industriais, por um lado, e os interesses regionais, por outro,
com a formação de grandes grupos econômicos de âmbito nacional. No que se refere à Bahia, essa
tendência se expressa tanto pelo crescimento que, desde 1956, impulsiona alguns grupos locais para
fora do Estado, como é o caso do grupo do Banco da Bahia, que torna-se por esta época um banco
nacional; como pela importância do número e do valor das inversões de capitais sulistas e estran-
geiros na indústria e no comércio baianos.
Vale lembrar que, desde 1950, o volume dos recursos do Banco da Bahia já levava a sua
diretoria a afirmar que
"para o corrente exercício já se encontra traçado um plano de nova expansão, que
agora já não sofre nenhuma limitação de ordem territorial, certo como é que
passou a ter o Banco âmbito nacional, em face do vulto do seu capital" (BANCO
DA BAHIA, 1950:30).
NÚMERO DE AGÊNCIAS DO BANCO DA BAHIA SEGUNDO
REGIÕES SELECIONADAS (1950 - 1965)
ANO Salvador/ Sudoeste Sertão Outros Total
Recôncavo baiano baiano Estados
1950 4 4 2 1 11
1951 4 9 5 1 19
1953 4 14 5 1 24
1955 4 16 5 1 26
1956 7 24 11 14 56
1957 11 25 11 14 61
1958 13 25 11 17 66
1959 13 25 11 22 71
1960 15 26 11 22 74
1961 17 27 13 26 83
1962 18 27 13 31 89
1963 19 30 14 36 99
1964 20 30 16 70 136
1965 22 31 17 80 150

FONTE: Banco da Bahia - Relatórios de Atividade.


121

106

Foi, entretanto, a partir de 1956 que o Banco passou a crescer mais externa que
internamente, como se pode ver na tabela acima.

Quanto às inversões de capitais estrangeiros e sulistas na Bahia, essa era uma velha
aspiração da burguesia mercantil e financeira baiana que começa a frutificar em 1952 com a insta-
lação de uma fábrica de cimento portland pelo consórcio internacional Leone Star Co. e a instalação
de um moinho de trigo com a participação de capitais suiços, mineiros e baianos, empreendimentos
que contam com o apoio dos dois bancos locais seja "através de nossas carteiras de câmbio e de
crédito geral", seja através "da colocação na nossa praça de 20% das ações postas à venda" (BANCO
DA BAHIA, 1952:26).

Mas foi no final da década que a inversão capitalista na Bahia tornou-se mais agudamente
necessária à burguesia mercantil-financeira baiana, já que o processo de crescimento iniciado no
princípio da década desdobrava-se sem atingir o seu veio mais rico - a petroquímica.
Por outro lado, as secas que flagelavam o Nordeste, nessa década, levaram a velha
oligarquia e as burguesias nordestinas em geral, a assediar o Governo Federal, pressionando-o por
uma melhor distribuição dos recursos nacionais. A forte reação que provocou o quadro de fome e de
miséria do povo nordestino na sociedade brasileira em geral e, em particular, nos seus setores mais
organizados, acabaram por demonstrar à burguesia sulista e ao Governo da União a urgência de uma
solução para o Nordeste, coerente com os rumos do desenvolvimento capitalista nacional. Solução
que não podia ser outra senão aquela avançada pela burguesia mercantil baiana em 1946, e que
Rômulo Almeida tinha, em 1955, adaptado à conjuntura econômica de então, "desliberalizando-a".
Essa solução era agora, revista e ampliada por Celso Furtado, num momento crítico da vida
nacional, quando a associação da burguesia à grupos estrangeiros caminhava em sentido contrário à
correlação das forças políticas.
Apesar desses fatos, a decisão do Governo Federal de lançar em 1958 a Operação Nordeste
(Openo), o embrião da futura SUDENE, não foi bem recebida pela burguesia baiana. Isso deveu-se
principalmente à desconfiança de que a operação fosse apenas um instrumento de propaganda
política e um organismo técnico facilmente cooptável pelos tradicionais interesses oligárquicos da
região.
122

107

Não era apenas o jornal "A Tarde" que desconfiava das reuniões técnicas e dos discursos
presidenciais, também a Associação Comercial da Bahia via com preocupação a criação de uma
Superintendência diretamente subordinada à Presidência da República, com uma dotação alentada
de três bilhões de cruzeiros e muitos cargos bem remunerados e tentadores para a barganha política,
justamente quando o país começa a preocupar-se com o problema da sucessão presidencial (ACB,
janeiro,1959:1). A desconfiança provinha também do fato de que, diante da forte tendência con-
centracionista dos investimentos federais, dificilmente a Openo teria condições de reverter tal
quadro1.
Em pouco tempo, entretanto, essa desconfiança é superada e a burguesia mercantil baiana
acaba por apoiar a iniciativa de modo a protegê-la das investidas das oligarquias fundiárias, sem
nenhuma afinidade com a proposta da Operação Nordeste2.
As razões para a postura inicial tinham, porém, raízes mais profundas. A verdade parece
ser que, naquele final da década, os interesses da burguesia baiana já se achavam bastante bem deli-
neados em torno de dois pontos específicos - o comércio exportador e a indústria petroquímica - sem
maior afinidade, a princípio, com os interesses das demais facções burguesas nordestinas. De fato, a
Bahia sempre fora uma região particular que, apesar da prolongada decadência que conhecera entre
1850 e 1930, guardara na agricultura e no comércio exterior a fonte de uma tradicional classe
dominante.

1."A concentração dos recursos do fundo rodoviário nas ligações Rio-São Paulo-
Belo Horizonte entre si e com Brasília; dos recursos destinados à rede
ferroviária na mesma região; dos fundos de energia e do Vale do São Francisco
nas barragens de Três Marias e Furnas; dos recursos orçamentários do Banco do
Brasil, da Caixa Econômica e dos Institutos na construção de Brasília, por
empresas do Centro-Sul, para onde se canalizam os lucros respectivos; tudo
isso se juntando à sustentação dos preços internos do café pela compra de 10
milhões de sacas e as transferências e subsídios cambiais constituiram um
reforço àquelas razões naturais de preferência para ainda mais agravar o
desequilíbrio, ao qual o programa da Openo não proporcionará, se realizando,
senão um ligeiro paliativo" (Banco da Bahia, 1959:14).

2. O deputado baiano Oliveira Brito, do PSD é um dos parlamentares que


comandam o retardamento da aprovação do 1º Plano Diretor da SUDENE, no
Congresso. São palavras suas:
"o que na realidade ocorre é que estando o referido plano incompleto, além de
estabelecer chocante discriminação entre as diversas regiões do Nordeste, con-
templando uns poucos Estados e, praticamente excluindo a quase totalidade dos
demais compreendidos na área da SUDENE, é natural que o Congresso Nacional
procure corrigir tais deficiências" (A Tarde, 04.01.1961:3).
123

108

A região nordestina, metropolizada por Recife, tinha um parque industrial mais


consolidado e voltado, sobretudo, para o mercado da própria região, principalmente baseado nos
ramos de bens de consumo final. Esse tipo de industrialização, também acalentado pelas esperanças
da burguesia baiana, nos anos 40, de diminuir sua dependência do "comércio triangular", estava
agora, no final dos 50, sem muitas chances de prosseguir com a profundidade e o dinamismo
requeridos para impulsionar o desenvolvimento local. E uma das razões para isso era, justamente, a
concorrência que lhe faziam as praças de Recife, no Norte, e do Rio e São Paulo, no Sul, localizadas
em mercados consumidores maiores.
A burguesia mercantil -financeira, ao lado dos seus planos de reduzir a dependência baiana
dos bens industriais produzidos em outras regiões, adquire, cada vez mais, a consciência da prio-
ridade de uma industrialização, tecnologicamente mais avançada, baseada nas riquezas minerais do
Estado, que possibilite o desenvolvimento de uma indústria de bens intermediários e de capital,
principalmente a siderurgia do ferro, do cobre e do alumínio e a petroquímica - através da qual possa
inserir-se mais adequadamente na economia brasileira e contar com os elementos necessários para a
expansão dos seus interesses industriais. Além desse fator de ordem econômica geral, havia ainda o
fato de que o Nordeste, enquanto região, expressava-se, de modo ainda mais contundente, através de
uma representação política que movia-se, quase que totalmente, na órbita dos interesses de uma
poderosa oligarquia fundiária.
A direção tomada pelos interesses da burguesia baiana, conforme delineados acima, pode
ser percebida tanto através de seus órgãos de expressão ideológica, como os relatórios do Banco da
Bahia e, posteriormente, o jornal "A Tarde", como pela ação organizada da classe, sob a liderança da
Associação Comercial da Bahia3.
A ação da burguesia baiana, naquela conjuntura, ante a decisão do Governo da União em
lançar a Operação Nordeste como a solução dos problemas nordestinos, parece ditada por três
fatores. O primeiro é a consciência de não ter forças suficientes para negociar o problema baiano em
separado com o Governo Federal, que aceita discutir uma solução nordestina; o segundo é que a

3. A partir dos meados dos 50, como vimos, a ACB movimenta toda a sua força de
pressão e influência em torno da melhoria do sistema de transporte rodoviário
e da correção da política cambial mas, sobretudo, redobra a pressão junto ao
Governo Federal no sentido de adequar a política do petróleo aos interesses da
burguesia baiana.
124

109

orientação geral das soluções preconizadas para o Nordeste vinha ao encontro de seus interesses,
tanto locais quanto nacionais; o terceiro é que ela não poderia prescindir de sua especificidade
baiana4, fundada no comércio exportador e no petróleo, e que necessitava, portanto, de uma política
cambial mais justa e do desenvolvimento de uma indústria petroquímica na Bahia, itens que não
estavam suficientemente realçados no projeto de Celso Furtado.
Quanto à política cambial, como se sabe, Celso Furtado incorpora a tese de que o confisco
cambial é um meio de transferir recursos nordestinos para o financiamento da industrialização do
sudeste e é com base nesse argumento, inclusive, que parte dos recursos da futura Sudene serão
provenientes dos fundos dos ágios5.

ESTRUTURA DOS SALDOS DAS BALANÇAS COMERCIAIS


BAHIA - ESTADOS DO NORDESTE

ANOS SALDO TOTAL SALDO DA BAHIA SALDO DO NORDESTE


1948 104.356 66.449 37.807
1949 32.735 54.923 -21.188
1950 87.193 92.198 -5.005
1951 31.230 61.125 -29.895
1952 -58.771 22.831 -81.662
1953 74.307 82.865 -8.558
1954 148.431 145.316 3.156
1955 152.310 107.744 44.566
1956 66.258 79.681 13.423
1957 ...... 69.113 ......
1958 ...... 131.617 ......

4. A especificidade econômica da Bahia frente ao Nordeste é captada pela


burguesia mercantil-financeira baiana nos seguintes termos:
"É assunto, aliás, conhecido, que a praça de Recife, funcionando como porto
importador para todo o Nordeste, se apresenta, ao contrário do que sucede com
a Bahia, como predominantemente importadora, absorvendo todas as divisas
produzidas pela região e mantendo-se geralmente deficitária, salvo em anos de
excepcional exportação de açúcar ou algodão, como os de 1948, 1954 e 1955".
(Banco da Bahia, 1958:18).
5. "atribuir o custeio da operação à totalidade ou parte dos ágios produzidos
pelo saldo do balanço do comércio exterior do Nordeste (inclusive a Bahia),
como chegou a ser sugerido, será apenas manter para esta a situação que a vem
exaurindo, de financiadora do desenvolvimento de outras regiões" (Banco da
Bahia, 1958:21).
125

110

FONTE: Banco da Bahia, Relatório de Atividade, 1958. p. 18.

A posição de Clemente Mariani, como de resto de toda a burguesia baiana, será a de tentar
impor uma solução própria para o problema cambial:
"a ser tratado com justiça, portanto, o problema do Nordeste, sobretudo se nele se
incluir também a Bahia, deve ser encarado distintamente, por partes: primeiro,
uma remuneração justa das exportações para o exterior, reaproximando os valores
externo e interno da moeda, como se propõe realizar o programa de estabilização,
de modo que a economia de cada Estado toque o que ele produz e para ele sobre,
sem erosão, o saldo apurado no seu balanço de comércio..." (BANCO DA
BAHIA, 1958:20).

Defendendo essa posição não está apenas o Banco da Bahia. A CPE, em 1959, avança uma
fórmula conciliatória, na sugestão de um ante-projeto de decreto que institui o Fundo de
Recuperação do Nordeste, onde, no seu artigo segundo, se diz que "a metade desse fundo
será, preferencialmente, aplicado no Estado produtor de saldo em programas que visem, direta ou
indiretamente, desenvolver as exportações ou a produção de substitutos à importação" (DIARIO DE
NOTÍCIAS, 08.03.1959:3).
De igual teor é a tentativa da bancada parlamentar, que, através de um projeto-lei da autoria
do deputado Lafayete Coutinho, pleiteia 50% dos ágios para distribuição entre as unidades da
federação que os produziram6.
O outro ponto para o qual se voltaram as energias da burguesia baiana foi a questão do
petróleo. Em 1958 tornara-se evidente para todos, a posição estratégica que essa indústria tem para
os interesses capitalistas na Bahia. No dizer de Mariani:

6. Projeto nº 4727 de 20 de novembro de 1958.


"O Congresso Nacional decreta: Artigo 1: Enquanto perdurar o sistema de taxas
múltiplas de câmbio metade da diferença entre os ágios recebidos dos
importadores será distribuída pelos Estados da União, que a empregarão na
modernização dos métodos de produção agrícola. Artigo 2. O montante apurado na
forma do artigo anterior será distribuído semestralmente e proporcionalmente à
diferença para cada Estado, entre a receita efetiva, em moeda nacional, das
cambiais da aplicação da taxa de câmbio com a maior bonificação paga no mesmo
período" (Diário de Notícias, 08.03.1959:2).
126

111

"a Petrobrás cada dia mais se caracteriza como o maior empreendimento


industrial do Estado e aquele que poderá ter ação mais decisiva no seu
desenvolvimento. Muito embora os resultados de suas atividades não se incor-
porem diretamente à economia baiana (apenas 5% do royalty sobre o valor do
óleo extraído) os benefícios indiretos de sua atuação, quer pela participação do Es-
tado na cota do imposto único relativo à produção, quer pelos investimentos e
despesas de operação, constituem um estímulo às atividades econômicas
regionais, que maiores se tornarão com a ampliação atual e as que se seguirem da
refinaria de Mataripe, possibilitando uma indústria petroquímica de vulto"
(BANCO DA BAHIA, 1958:29-35).

Naquela conjuntura difícil, portanto, era de se prever que a burguesia redobraria a sua
investida neste flanco que, não sendo considerado prioritário pela Sudene, embora fosse consensual
a importância para o Nordeste do parque petroquímico da Bahia, ficaria entregue à combatividade
dos baianos.
O programa de ação a ser adotado, no caso do petróleo, é aquele sugerido pela Carta do
Petróleo na defesa da qual se comprometeram a totalidade das forças políticas baianas. A exemplo
da SUDENE, a "frente" do petróleo seria guarnecida através de alianças parlamentares interpar-
tidárias de modo a viabilizar os encaminhamentos das soluções sugeridas. No que diz respeito à
Sudene, entretanto, os representantes do capital mercantil baiano são obrigados, para não atrapalhar
o encaminhamento normal da Operação Nordeste, a recuar de suas pretensões iniciais e formar com
os representantes de outros Estados a união parlamentar do Norte e Nordeste. No caso do petróleo,
essa aliança transforma-se em expressão de um consenso mais profundo: o de um compromisso de
classes.
É necessário ressaltar que essas alianças respaldavam-se na mobilização real das classes
sociais, inclusive do proletariado, pois a arregimentação dos sindicatos dos operários e das outras
categorias de trabalhadores em torno das grandes questões nacionais já os havia transformado em
atores políticos. Na Bahia, pelas razões que se veio a expor, o proletariado surge, naquela
conjuntura, enquanto classe, atrelado à defesa da Petrobrás e da expansão de suas atividades
industriais.
Foi nesse clima de mobilização regional que assumiu o Governo do Estado da Bahia, Jur-
aci Magalhães (1959-1963), a essa altura um político de grande experiência e muita projeção, tendo
127

112

exercido recentemente a presidência da UDN e despontando como o provável candidato do seu


partido às eleições presidenciais de 1960. Juraci conhece bastante bem os meandros da política
baiana para saber como governar.
A sua ambição, ao retornar para um segundo mandato, era a unificação da representação
de todos os interesses dominantes, "a pacificação da política baiana"7. Ele não quer apenas governar,
quer sobretudo edificar a hegemonia burguesa na Bahia:
"venho pregando a unidade do pensamento baiano em proveito da imperiosa
necessidade de recuperar o prestígio da Bahia no cenário político do país.
Devemos impor uma auto-crítica, que conclua pelo reconhecimento, de público,
que as nossas azedas divergências políticas tem contribuido para o
enfraquecimento da Bahia"(DIA'RIO DE NOTíCIAS, 05.04.1959:1).

Seu programa de governo será o Plano de Desenvolvimento da Bahia, Plandeb, uma versão
atualizada do Programa de Recuperação Econômica, também elaborado pela CPE, que é enviado à
Assembléia Legislativa para ser transformado em lei e comprometer, assim, o conjunto das classes
representadas naquela casa com a sua administração. Em termos ideológicos, o Plandeb representa
uma simplificação do pensamento inicial de Rômulo de Almeida e uma maior convergência com a
posição de Clemente Mariani e do capital mercantil e financeiro baiano. A região sul do Estado
continua a grande prioridade espacial do plano,8 mas as exportações, a política cambial e a infra-
estrutura básica passam a ter uma importância e um valor explicativos maiores:
"quem quer que examine as possibilidades naturais da Bahia não tem dúvidas na
sua variedade e riqueza. Só uma causa explica o retardamento da economia baiana
- a míngua de facilidades básicas de capital social para a exploração dos seus
recursos: portos desaparelhados, ferrovia Leste Brasileiro uma das menos
cuidadas pela União, programa rodoviário federal na Bahia postergado, falta de
recursos do Estado e dos municípios para resolver problemas de eletrificação,
água, etc. Não houve falta de esforços da parte do Estado; pelo contrário, o Estado
investiu em estradas de ferro, em companhias de navegação e antecipou a

7. Juraci define a "pacificação" pregada por ele como "o respeito entre homens
públicos para que o regime democrático não apareça aos olhos do povo na
caricatura grotesca que se pretende, às vezes, pintar"(A Tarde, 07.04.1961:9).
8."Nessas condições, enquanto houver margem para ampliar as exportações,
dificilmente qualquer outra aplicação de capital na economia brasileira poderá
apresentar o mesmo rendimento. Acredita o Governo da Bahia que o programa de
organização econômica da região cacaueira, tendo como ponto principal a rede
de transportes, será possivelmente o mais produtivo dos investimentos nacio-
nais no momento presente, pelo que pode responder em termos de aumento das
exportações" (Plano de Desenvolvimento da Bahia, 1960-1963. v.1. s.d. p.7).
128

113

construção pioneira de troncos rodoviários federais. Sua capacidade de investir foi


caindo, entretanto, com a perda nos termos de intercâmbio do comércio baiano,
que não deixava aos particulares nem aos poderes públicos estadual e municipais
os mínimos recursos para fazer face às necessidades do território e da população
em crescimento" (CPE, s.d:9-10).

Esse trecho mostra como, àquela altura, já é possível falar de uma ideologia regionalista,
que se sobrepõe aos projetos liberal-burguês e reformista, tal a confluência entre os interesses das
principais camadas burguesas e o discurso de seus intelectuais mais eminentes.
Juraci, trazendo para o governo esta ideologia, visava construir a unidade política que
faltava à unidade de ação que os orgãos representativos da burguesia já tinham conseguido. A esse
respeito, dirá um boletim da ACB:
"O primeiro passo foi dado. Coube a iniciativa às classes produtoras que
souberam dar o exemplo da unidade, colocando acima dos próprios interesses os da
terra comum. A bancada federal secunda-las-á, pondo o problema em termos que
muito concorrerão para resolvê-lo se a unidade atual for mantida. É de esperar que
outras forças representativas do Estado venham-se juntar a este movimento, a fim de
que se torne possível acioná-lo em outra direção, caso o esforço ora desenvolvido se
torne improfícuo devido à incompreensão dos governantes federais" (ACB, maio
1959:4).

Como se vê, a burguesia já conseguira uma razoável organização da sua representação


federal faltando apenas consolidá-la, ampliá-la para o plano dos problemas domésticos, o que era
mais difícil. A dificuldade maior ainda residia, convém repetir, na pequena abrangência territorial
dos interesses burgueses em relação ao conjunto dos interesses dominantes, em que pese a rápida
expansão da burguesia no pós-guerra. As questões locais e distritais continuavam tendo um peso
muito grande no sistema de dominação e essas disputas, que assumiam freqüentemente um cunho
personalista, representavam um real obstáculo para a hegemonia burguesa, tornando inevitável ações
desvinculadas de compromissos locais.
Normalmente, essas disputas locais envolviam a representação política baiana na Câmara e
no Senado na obtenção de favores federais que compensassem os favores do Governo Estadual a
uma outra corrente, prática que terminava por minar a autoridade e a legitimidade do Governo do
Estado. É preciso não esquecer que, na Bahia, os maiores partidos sempre estiveram no poder. A
UDN desde 1954 elegia, junto com o PTB, o governador, enquanto o PSD, à exceção dos poucos
129

114

meses de Jânio Quadros na presidência, fazia, com o mesmo PTB, todos os Presidentes da República
desde 1952. Isso significava que, bem ou mal, em todos os municípios baianos, situação e oposição
estavam no poder.
Quanto à representação política na Assembléia Legislativa, é fácil entender-se que essa teia
de compromissos locais e partidários lhe prendia muito mais. Para romper esse cerco invisível, o
governador eleito chama para formar o seu secretariado não apenas membros da coligação que o
elegera, mas também o candidato derrotado pelo PSD, e outros políticos de força eleitoral e
expressiva representatividade.
E não apenas a burguesia cacaueira e pecuarista é contemplada pelo seu governo. Embora
em proporções menores, também a cultura da mamona e do sisal no sertão baiano, e o cultivo de
cereais no chapadão de Irecê, onde surge uma nova burguesia, são estimulados9. Para desarmar os
espíritos e dar respeitabilidade à hierarquia de interesses contida no seu programa, Juraci promete
desfazer-se de velhas e sujas armas já rotinizadas na prática cotidiana de governo:
1. a perseguição política
"no setor educacional, começamos retirando o professorado da interferência da
política: e nem uma remoção foi feita para o atendimento de solicitações partidá-
rias ..."

2. a perseguição policial

"preocupamo-nos, no que toca a segurança pública, com as garantias individuais:


às autoridades nomeadas recomendamos o maior respeito ao direito alheio e
sempre que se verificou desentendimento às recomendações do Governo,
promovemos a demissão e o processo pelo abuso de autoridade ..."

9."Contando com a compreensão de industriais de óleo, dei impulso à lavoura da


mamona, que subirá a 2 milhões de sacas em 1960, caindo lamentavelmente, no
ano seguinte, em consequência da seca; estimulei a do sisal, com crédito e com
a industrialização..." (Juraci Magalhães, Mensagem à Assembléia Legislativa em
07.04.64). Para a região produtora de milho e feijão o Governo do Estado lança
a Operação Irecê, de mecanização da Agricultura, vendendo a preço de custo
tratores iugoslavos.
130

115

3. a corrupção administrativa

"fizemos realizar concursos... com a recomendação mais severa quanto à


honestidade de critério, o que foi obtido ..."

4. o tráfico de influência no setor público

"em dia também, estão os pedidos de gratificação de risco de vida e por trabalho
noturno, sem que, para o seu andamento, precisasse o servidor apelar para a in-
terferência de quem quer que fosse ..."(Juraci Magalhães, Mensagem à
Assembléia Legislativa em 07.04.60:16,19,20).

Mas Magalhães não terá êxito em sua peroração. A maioria governista na Assembléia
garantirá ao governador os instrumentos corriqueiros de governo e seguirá a sua liderança mas
jamais permitirá que ele transforme o Governo do Estado, o executivo, no centro irradiador do todo
o poder, enfeixando toda a articulação das classes sociais entre si, e entre elas e o Governo da União,
transformando o governador no líder unitário de todas as classes sociais baianas. Para as forças
políticas, a pacificação proposta por Magalhães ia além do requerido para forjar a unidade de ação
indispensável à defesa dos interesses burgueses, ela ameaçava a sobrevivência da própria pluralidade
necessária para a representação burguesa. E não são apenas os políticos que pensam assim, dirá, a
respeito, o jornal "A Tarde":
"que motivos levariam o governador a pretender pacificar nossa pacífica política?
Sob a alegação ostensiva de que a situação baiana precisa de apreesentar-se for-
talecida no plano federal, outras razões se escondem a desafiar a argúcia dos
observadores".
"Por sinal, que a anunciada pacifização baiana ameaça, entre outras coisas, de dar
cabo dos centros de oposição com que nossa política ainda contava" (A TARDE,
18.02.1961:5).

A grande burguesia baiana, no entanto, aquela que tinha forjado já a unidade de ação das
classes produtoras, não pensa do mesmo modo. Pelo contrário, verá em Juraci o paladino das liber-
dades democráticas:
131

116

"A qualquer homem de Estado que ao seu dever sobrepõe a popularidade fácil
não é difícil contentar as vistas curtas e as ambições estreitas dos imediatistas ..."
"Avulta o papel daqueles que não temem, não se acumpliciam, não colaboram,
antes enfrentam, condenam, combatem. Entre esses a sua posição é de vanguarda
pela confiança inabalável na superioridade de um sistema de vida que a ninguém
impõe a paz das necrópoles ..."(ACB, outubro 1962:1).

A contradição entre o ideal democrático de expressão pluralista dos interesses burgueses e


a disciplina requerida para efetivar a hegemonia em que tal ideal deve fundar-se, cobra seu preço,
em primeiro lugar, no episódio da não-aprovação do Plandeb, quando a Assembléia demonstra até
onde vai a sua fidelidade ao governador10. Pois embora Juraci controle efetivamente a maior força
política do Estado e tenha uma base municipal sólida, a Assembléia não lhe permite ter um
programa de investimentos e de governo a longo prazo que lhe possibilite governar sem a inter-
ferência constante da própria Assembléia. De fato, o PLANDEB representava liberar o Governo
através da planificação prévia dos recursos estaduais e federais, da ação pontual e tópica a que se
reduzia, na prática, o poder legislativo no Estado.
Com o avanço das lutas de classes que a crise econômica iniciada em 1962 intensifica, a
relação do governador com os políticos fica mais tensa. De um lado, a organização crescente das
classes trabalhadoras na Bahia e no Nordeste assustam-no; de outro, a persistência de antagonismos
político-partidários, apesar de seu trabalho de unificação das bases, irritam-no.
Em 1961 tentara, sem êxito, antecipar-se aos fatos, no melhor estilo getulista, propondo
"dar ao trabalhador baiano um órgão para atendimento às suas reivindicações
mais justas, que seria a Secretaria do Trabalho, onde não haveria a interferência
dos falsos líderes trabalhistas. Não quiseram Vossas Excelências, porém, até o
momento, aparelhar a administração pública de uma peça essencial à proteção do
trabalho, sem lutas de classes, dentro dos mais salutares princípios de harmonia
com o capital, da filosofia cristã" (MAGALHÃES, 1961:5).

Em 1962, juntam-se à crise econômica o avanço do movimento popular e uma seca de


grandes proporções para abalar, ainda mais, a confiança da burguesia nos seus representantes
políticos. A Associação Comercial da Bahia lança então um manifesto público onde pede aos

10. "Trata-se de um trabalho de mérito (o PLANDEB) e que, aprovado, será uma


arma de indiscutível eficiência na recuperação econômica de nossa terra, e em
que se procura conjugar o esforço público e o particular. Não logramos,
contudo, vê-lo ainda transformado em lei, embora as idéias nele contidas, os
propósitos nele defendidos, sejam o roteiro da nossa ação governamental".
132

117

partidos e às lideranças políticas que encontrem uma fórmula uninominal para a sucessão do
Governo Estadual de modo a evitar "danosas consequências de ordem social, econômica e política
que certamente advirão, resultantes de uma agitação política-eleitoral na disputa do Governo do
Estado" (ACB, abril 1962:1).
À essa altura parece claro que a burguesia já desconfiava do parlamento e dos seus
representantes políticos, achando-os incapazes de conter as reivindicações populares nos limites dos
compromissos que não ameaçassem os seus interesses. Segundo a fraseado barroco da Associação
Comercial,
"esses ideais democráticos sofrem, pelo processo de decantação a que os
submetem as contradições do mundo moderno, uma depuração que liberta as
formas anacrônicas e caducas dos valores espirituais que consubstanciam. A nós,
classes produtoras que somos inculpados de defendê-las pela atribuição falsa de
um conservantismo superado e sepulto, a oportunidade é excelente para dizer que
estamos comprometidos com os valores e não com as formas" (ACB, outubro
1962:1).

Atrela-se assim ao regionalismo, naqueles anos de acirramento das lutas de classes uma
versão conservadora de reformismo que procura se apoderar das principais bandeiras que
simbolizam o assalto das forças populares ao Estado. Não são mais os populistas sozinhos, que
advogam a inevitabilidade das reformas de base sem as quais, segundo eles, é impossível manter o
ritmo de crescimento econômico que as forças burguesas da nação requerem. Também a burguesia,
presa agora numa séria crise econômica, necessita reformar as instituições, os diplomas que regem a
vida civil e a administração pública para retomar o crescimento econômico em outro patamar, o que,
nas circunstâncias, e, respeitando-se o jogo democrático, só era possível através da colocação, no
plano ideológico, de um contra-discurso reformista, que atacasse o conteúdo popular e às vezes
anti-capitalista, das reformas de base, que já conquistavam a unanimidade da opinião pública na-
cional.
Na Bahia, dada a relativa juventude dos conflitos de classes, era ainda mais inconcebível
para a burguesia que os seus políticos não conseguissem antecipar-se às contradições para onde os
jogavam os compromissos eleitorais, retendo ou ampliando demasiadamente as reformas.

(Juraci Magalhães, Mensagem à Assembléia Legislativa em 07.04. 1961:7).


133

118

Juraci Magalhães tinha um papel importante na condução de um movimento reformista que


absorvia, entre outras, a reforma agrária, a reforma administrativa, a reforma tributária, a reforma
eleitoral11. Ao mesmo tempo, Magalhães tenta absorver ideologicamente a desmoralização e a perda
de função do parlamento. Em 1963, como se pressentisse a quebra da legalidade a que conduzira as
contradições do sistema político, permitindo que a organização do proletariado avançasse com os
estandartes burgueses, o tom de Magalhães passa a ser ameaçador e trágico:
"a verdade, contudo, é que as reformas não se fazem e o meio rural já não pode
esperar mais tempo pela sua libertação, nem as instituições subsistirão à
ilegalidade dos mandatos comprados a peso de ouro. O comunismo aí está,
pérfido e mistificador, na politização do campo através das ligas camponesas, na
ação urbana, pela imprensa, através dos sindicatos e associações estudantis. A
sorte de um povo não está sujeita a passes de mágica: não se retira a prosperidade,
ou a tranquilidade, ou o bem estar social, como um pombo, da cartola do
prestidigitador... As elites ou provam que existem, que possuem qualidades de
comando, ou sossobrarão; e, com elas, as lideranças, autênticas ou falsas,
ocasionais ou de direito"(MAGALHÃES, 1963:10).

Àquela altura, são os interesses mais caros à burguesia baiana que estão ameaçados:
"O nacionalismo aspeado está pondo em perigo a mais importante das empresas
nacionais, com as próprias instituições republicanas. O petróleo, porém, é nosso, e
nós baianos não podemos permitir que a Petrobrás resvale ladeira abaixo, POR
CONTA OU CULPA DE CERTOS INTERESSES PARTIDA'RIOS"
(MAGALHÃES, 1963:33).

Suas palavras são ameaçadoras: "Os partidos, porém, perderão sua razão de ser à hora em
que alheios ao instante vivido se tornarem elementos de repressão aos anseios coletivos"
(MAGALHÃES, 1963: 33).

11. "Os ricos insistem em se tornar mais poderosos enquanto os pobres, dia a
dia, se fazem miseráveis: esquecem-se aqueles de que não há poder capaz de
subsistir ao estado de miséria da grande maioria. Já não há lugar todavia para
os privilégios de uns poucos". "A terra não pode estar mais retida em mãos dos
que não a tornam produtiva ou apenas a fazem fator de exploração do trabalho".
Temos que sair do regime dos meeiros e que os posseiros possam orgulhar-se da
posse merecida".(Magalhães, 1962:7-8).
"Mas se a reforma agrária se impõe, impõe-se por outro lado, uma mais justa
tributação"(Magalhães, 1962:8).
"Entre as nossas reformas de base, contudo, há uma que precisa não ser
esquecida, a da sistematização administrativa"
"A serviço da democracia brasileira, todavia, há necessidade de uma reforma
ampla na lei eleitoral..." (Magalhães, 1962:10).
134

119

Não ter conseguido centralizar em si todas as decisões políticas não impediu, todavia, o
Governo do Estado de fortalecer-se o bastante para apresentar-se frente ao Governo da União como
o interlocutor privilegiado e o representante legítimo das classes dominantes baianas. Pela segunda
vez, no pós-guerra, depois de dois períodos governamentais, o Governo do Estado voltava a exercer
uma autêntica e reconhecida liderança12.
Logo ao assumir o governo, ainda no período Juscelino Kubitschek, sem contar com
qualquer representante baiano em cargo de importância na República e depois de ver derrotada sua
aspiração de empossar um baiano na vacante presidência da Petrobrás13, Magalhães procura articular
um espaço político adequado na esfera federal utilizando, para isso, tanto a força nacional do seu
partido, a UDN, e do seu aliado estadual, o PTB, quanto o seu trânsito junto às lideranças pessedistas
que a pacificação e a entrega de secretarias de Estado ao PSD ajudava a consolidar.
Com a finalidade explícita de cuidar da articulação com o Governo Federal, principalmente
da relação da Bahia com a recém criada Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, o
governador cria a Secretaria Sem Pasta para Assuntos do Nordeste, que passa a ser ocupada por
Rômulo de Almeida, seu parceiro de chapa, candidato derrotado a vice-governadoria nas eleições de
1958. Seu esquema de forças consegue estabelecer pontos de sustentação no Congresso e no Senado,
assim como nos principais Ministérios e órgãos federais, entre os quais se destacava a Petrobrás.
Será através do endividamento externo, com a tomada de empréstimos aos bancos privados e às
agências de desenvolvimento internacionais, e através dos investimentos federais da Bahia, com
especial destaque para a política de inversões da Petrobrás na construção e pavimentação da rede
viária e na formação de mão de obra, que Magalhães consegue a maior parte dos recursos com que
expande e melhora significativamente a rede rodoviária do Estado; que reequipa a Navegação
Baiana para o comércio com o sul da Bahia e a navegação de cabotagem; que acelera o plano de
eletrificação; que agiliza o sistema FUNDAGRO e põe em funcionamento as empreesas agrícolas e

12."Depondo a favor do governador poder-se-ia apontar seu desempenho no


cenário nacional, dando ao nosse Estado, nesse período, uma projeção política
de realce".(A TARDE, 07.04.1960:5).
13. "... perdemos ainda há pouco a batalha em favor da eleição de um baiano
para a direção da empresa, mas não cruzaremos os braços e insistiremos, tantas
assembléias surjam, nessa reivindicação mais que justa, até vê-la atendida"
(Magalhães, 1960:21).
135

120

de abastecimento projetadas pelo Plandeb; que cria a Tebasa (Cia. Telefônica da Bahia); que
constrói a adutora do Joanes, etc.
O Governo do Estado representa junto à SUDENE, junto à direção da Petrobrás e junto à
Presidência da República pelo aumento dos royalties do petróleo, pela instalação de indústrias petro-
químicas e pelo melhoramento das condições de transporte na Bahia. Nessas lutas o governo não
apenas foi respaldado pelas classes burguesas baianas e pela sua representação política como, na
verdade, viu sua ação secundada e consolidada pela ação dos órgãos de classe.
Essa política agressiva e decidida da burguesia baiana viu-se coroada com a eleição, em
1960, de Jânio Quadros para a presidência da República, que, depois de empossado, atendeu a todas
as reivindicações baianas tecnicamente possíveis de serem atendidas, quer na área do petróleo, quer
na área da política cambial, mesmo que não tivessem o necessário lastro político, como evidenciou-
se no episódio da frustada transferência da sede da Petrobrás para a Bahia.
Jânio Quadros nomeou Clemente Mariani para ocupar o Ministério da Fazenda; Josaphat
Marinho para a presidência do Conselho Nacional do Petróleo; Geonísio Barroso, ex-
superintendente da Região de Produção da Bahia, para a presidência da Petrobrás; e Pinto de Aguiar
para uma das diretorias da empresa, abrindo assim as portas desses aparelhos estatais às
reivindicações baianas.
O período Jânio, ainda que curto, significou, para a burguesia baiana a conquista de um
espaço político condizente com a envergadura de seus interesses. Mesmo depois da renúncia do pre-
sidente, as lideranças baianas mantêm ainda importantes posições no Governo Federal, seja através
do controle de Ministérios, como o de Minas e Energia e da Educação e Cultura, exercidos seguida-
mente por Oliveira Brito, ou o da Indústria e Comércio, exercido por Antonio Balbino; seja através
da presidência da Petrobrás, que passa a ser ocupada por Francisco Mangabeira, seja através da
conjugação do conjunto das forças burguesas nordestinas que a SUDENE representava.
O ano de 1962, todavia, marcará a impossibilidade da representação burguesa unificar-se
ideologicamente em torno de uma conduta política que preservasse os interesses da burguesia frente
ao avanço da organização das camadas populares. Nesse ano realizam-se as eleições para
governador num clima de grande mobilização popular, conforme os receios expressos da grande
burguesia baiana.
136

121

Àquela altura, a luta de classes no Brasil chegara a um ponto de inflexão decisivo, quando os
interesses populares começam a se cristalizar em torno das questões da propriedade da terra e das
relações de trabalho na agricultura, particularmente explosivas no Nordeste.
Na Bahia, apesar dos conflitos de terra não adquirirem a pujança que tiveram em outros
Estados, um movimento de crescente organização da massa camponesa e trabalhadora rural,
localizado sobretudo nas regiões mais ricas do Estado - a cacaueira e a pecuarista de Conquista e
Itapetinga - passa a influir decisivamente na conjuntura política local, junto com o desenvolvimento,
a passos largos, da organização operária na capital, através da mobilização dos setores da produção
petrolífera e do transporte ferroviário.
Ora, do ponto de vista das classes burguesas baianas, a questão fundiária era uma questão
fundamental e decisiva, unificando todas as suas facções, como um eixo. Destaque-se aqui a facção
industrial que se desenvolvera a partir dos anos 50 e que tinha como ramo mais importante a
indústria de derivados do cacau e de beneficiamento e transformação da mamona e do sisal, culturas
baseadas numa estrutura fundiária que era inclusive, como no caso do cacau, junto com a
comercialização para o exterior, o esteio dos grandes grupos e das grandes fortunas pessoais. O
outro grande ramo industrial baiano, a construção civil, tinha também na especulação, concentração
e monopolização da propriedade fundiária sua principal mola propulsora. A campanha majoritária de
1962 foi, portanto, desaguadouro natural das contradições dos interesses das classes.
O velho PSD baiano, que vinha de duas derrotas na política local, em 1954 e 1958, era
aliado, no plano federal, do PTB, partido que cedia politicamente ao avanço da classe trabalhadora.
A renovação do PSD baiano fazia-se assim pelo avanço das posições liberais e progressistas,
representadas por jovens políticos como Waldir Pires e Vieira de Mello. As posições conservadoras
encontravam, na Bahia, suas melhores chances eleitorais na UDN ou mesmo no PTB, aliado local da
UDN. É significativo, por exemplo, que Fernando Santana, deputado comunista na Constituinte de
1946, tivesse negada a legenda do PTB para a sua candidatura em 1962 indo abrigar-se, justamente,
no PSD.
Foi precisamente em torno da candidatura de Waldir Pires ao Governo do Estado que se
aglutinou o conjunto das forças progressistas e populares, assim como o conjunto das organizações
sindicais e partidárias da classe trabalhadora. Lentamente, à medida que progride a campanha
eleitoral, foi ficando nítida a ambiguidade do apoio da máquina partidária pessedista, controlada
137

122

pelos velhos caciques como Antonio Balbino e Oliveira Brito, à candidatura de Waldir. Até mesmo
um jornal tradicionalmente pessedista como "A Tarde" vai gradualmente definindo-se pela can-
didatura oponente. Pode-se dizer que o conjunto da burguesia baiana começa a cerrar fileiras em
torno da candidatura de Lomanto Júnior, apoiada pela UDN, pelo PTB, pelo PR e pelo PL.
Embora a candidatura Lomanto Junior não tivesse um caráter de radicalização, como aliás
também não tinha a de Waldir Pires, pois tratavam-se antes de posturas moderadas e progressistas,
na esfera discursiva, ela representava, todavia, compromissos de classe bem demarcados. Enquanto
Waldir buscava apoiar-se nas mesmas forças que sustentavam politicamente o Governo Goulart - a
organização sindical, camponesa e a pequena burguesia reformista - Lomanto Junior encontrava na
burguesia agrária e na oligarquia, apavoradas com as perspectivas de reformas de base, e nos demais
setores burgueses o sustentáculo para as suas aspirações políticas. Não descuidava-se, entretanto, de
procurar nas massas populares os votos de que precisava. O caráter populista de sua candidatura é
expresso por ele mesmo, nos seguintes termos:
"A minha eleição representa um fato novo na história política da Bahia e há de ser
interpretada sob a compreensão dos novos tempos, que tornaram superados os
velhos estilos, quando o povo acorria às urnas para sacramentar as escolhas
consumadas. À consciência municipalista e às massas trabalhadoras, até então
esquecidas, especialmente as das regiões sertanejas, que já começam a despertar e
participar efetivamente do processo democrático, devo a concretização de minha
candidatura, que não nasceu de conchavos nem de barganha. As forças políticas
do Estado já me encontraram proclamando e protestando contra esse estado de
coisas" (A TARDE, 08.04.1963:16).

É justamente esse caráter populista e moderado do discurso de Lomanto que permite às


forças populares baianas, superarem rapidamente a derrota de Waldir e se reagruparem à sombra da
ambiguidade e da vagueza das posições lomantistas, em torno da defesa do governo Goulart e de
suas principais bandeiras populares.
A postura política de Lomanto pautava-se pela ocupação de três espaços táticos. O
primeiro tinha como objetivo garantir a continuidade da ordem democrática para que o sucessor de
Goulart fosse normalmente eleito em 1965. Como, naquela conjuntura, a garantia da democracia
dependia de dar sustentação ao programa de reformas do presidente, a posição de Lomanto consistia
em apoiar as reformas e o mandato do presidente mas, ao mesmo tempo procurar esvaziá-las de seu
138

123

conteúdo popular inserindo-as num amplo movimento por maior autonomia dos Estados e muni-
cípios.
O segundo espaço tático consistia em construir em torno dessa posição uma ideologia pro-
gressista e cristã e apresentá-la como a única alternativa democrática real. Tentava assim esvaziar
tanto a postura direitista e conservadora que começava a desenhar-se cada vez mais vivamente nos
arraiais udenistas, em torno do Governador da Guanabara, Carlos Lacerda, quanto a postura con-
ciliadora tradicional, alimentada pelos pessedistas e que consistia em recuperar a aliança PSD-PTB
sob o comando moderado de Juscelino Kubitschek, àquela altura sensivelmente ameaçada pelo
espetacular crescimento do PTB durante a presidência de Jango.
O terceiro espaço tático consistia em apresentar o governador da Bahia como um candidato
natural dessa postura progressista cristã às eleições de 1964. Com essa finalidade Lomanto movia-se
entre os governadores de Estado buscando exercer uma liderança que se buscava construir com a
prudência, a conciliação e a moderação. Esse espaço foi disputado também pelo Governador de
Minas, Magalhães Pinto, que procurava neutralizar a ascendência de Lacerda na UDN e que
mantinha com Lomanto, até um mês antes do golpe de estado, um acordo tácito para consolidação
desse espaço progressista cristão que pudesse enfrentar não apenas as forças representadas por La-
cerda e Kubitschek mas principalmente, o conjunto das forças esquerdistas e populares que se
aglutinavam em torno dos governadores de Pernambuco e do Rio Grande do Sul, Miguel Arraes e
Leonel Brizola.
Diante desse quadro nacional, da eleição de 1962 até o golpe de 1964, a representação dos
interesses burgueses baianos acabou por trilhar diferentes caminhos políticos que acabarão por que-
brar a unidade representada pelo programa de desenvolvimento econômico amplamente aceito pelo
conjunto da classe.
Havia, em primeiro lugar, os elementos mais conservadores, tanto da UDN quanto dos
outros partidos, mas principalmente da UDN, cujos melhores exemplos são o ex-governador Juraci
Magalhães e o então presidente do diretório regional, Antonio Carlos Magalhães, que se dedicavam
a conspirar contra o regime democrático. Tentavam viabilizar uma solução ditatorial para a
promulgação de reformas econômicas, políticas e sociais que superassem a crise, desmantelando a
organização da classe trabalhadora e ampliando os pressupostos do crescimento capitalista. Havia,
em segundo lugar, os setores pessedistas e petebistas que participavam e se comprometiam cada vez
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124

mais com o pacto de forças populares que respaldavam as soluções reformistas gestadas no governo
Goulart. Havia, por fim, um terceiro grupo que, apoiando as reformas pregoadas pelo governo
federal e cerrando fileiras com aqueles que defendiam a ordem democrática, procuravam ao mesmo
tempo, distinguir-se e separar-se das organizações que expressavam a vontade do proletariado e do
campesianto brasileiros. Esses tentavam manter vivos os seus vínculos com a grande burguesia e
com a totalidade das suas fontes de expressão política.
É nesse último grupo que se deve situar o governo Lomanto Junior, entre sua posse a 7 de
abril de 1963 e o golpe de 19 de abril de 1964. Foi apostando na possibilidade de administração da
crise, enquanto se aguardavam as eleições de 1965 para formar um governo mais fiel aos interesses
burgueses, que Lomanto Junior procurou demarcar o espaço de sua atuação política14.
Lomanto coloca-se pois como um cristão progressista, de atitudes moderadas, uma espécie
de intermediário para a resolução dos conflitos de classes e de fiador do diálogo entre as diversas
facções burguesas, num momento em que a continuidade da democracia ia-se tornando cada vez
mais dificil. Essa postura de neutralidade e de moderação, construída entre os "reacionários em-
pedernidos e os comunistas sem pátria", complica-se, evidentemente, à medida em que o avanço da
luta de classes cinde a sociedade brasileira em dois campos, política e ideologicamente antagônicos,
que já atinge, em 1964, os governadores de Estado.
A moderação de Lomanto vai exigir, portanto, crescentemente, uma definição sua em torno
de algumas questões básicas. Em primeiro lugar sua fidelidade à ordem democrática e o seu respeito
à autoridade do presidente da República tem que ser continuamente reiterada de público à medida
que avança a conspiração direitista15.

14. Dizia, na época "A Tarde": "Por isso, foi com agrado que se ouviu o
pronunciamento de respeito à legalidade e à instituições vigentes que fez o
governador Lomanto Junior. Em si é uma posição de vanguarda, afirmativa que
lhe rende juros políticos, já agora em forma de uma aliança com o governador
de Minas, aspirante à presidência da República, portanto com reflexos práticos
e úteis à Bahia" (A TARDE, 02.09.1963:5).
15. "A Bahia é um altar para o culto da democracia. Mas também reafirmo: os
que querem perturbar a tranquilidade de nosso Estado, os reacionários empeder-
nidos, de um lado, os comunistas sem pátria e sem Deus, de outro, se me
levarem e me induzirem a tanto, eu transformarei a Bahia numa trincheira para
a defesa da democracia" (A TARDE, 06.03.1964:3).
140

125

Em segundo lugar, o compromisso do governo estadual com as reformas de base deve ser
constantemente reafirmado para não prejudicar nem a sua imagem progressista nem a sua base de
sustentação nacional. O bom relacionamento com o conjunto das forças que apoiavam o governo
federal era imprescíndivel tanto para garantir o futuro político do próprio governador, quanto para
viabilizar financeiramente a sua administração16. Lomanto esforça-se, porém, para manter, ao
mesmo tempo, a confiança da burguesia no seu comportamento, delimitando com precisão o alcance
que deve ter reformas de cunho popular, como a reforma agrária17. Lomanto deixa claro em diversas
oportunidades que a reforma agrária deve restringir-se ao contexto de dois dos principais pontos de
seu programa de governo: a resolução do problema de abastecimento das cidades e a modernização
e o avanço da agricultura de mercado interno.
Como parte de sua estratégia de aproximação com os setores burgueses mais
conservadores, o governador procura enfatizar questões chaves para o desempedimento de alguns
pontos de estrangulamento das atividades econômicas, como a reforma tributária, a reforma da
administração pública e uma reforma constitucional que dê maior autonomia financeira aos Estados.
É sob a bandeira federalista e autonomista, que para a burguesia brasileira ganha um novo sig-
nificado e um revigorado encanto, oferecendo a oportunidade de diminuir a importância da crise de
representatividade do governo federal, que Lomanto patrocina em Salvador há menos de um mês do
golpe, uma reunião dos governadores de Estado para discutir essas questões.

16. "Mas estaríamos dando atestado de cegueira se desconhecêssemos que a


democracia, praticada incompletamente no Brasil, tem permitido a perpetuação
de injustiças que constituem a negação de muitos dos seus postulados
fundamentais... Se as reformas são necessárias, e realmente o são, temos de
fazê-las nós mesmos, os democratas. Para isso cumpre advertir que a democracia
não pode continuar sendo, entre nós, a redoma para os privilégios de alguns"
(A TARDE, 13.03.1964:3).

17. "Enganam-se os que julgam existir uma contradição essencial entre os


interesses populares e os dos pecuaristas. O progresso de nosso Estado
encontra-se vinculado à atividade dos homens que se dedicam à pecuária,
criadores de riqueza e de prosperidade. Não concordamos com a política de
simples retalhamento de terra, nem achamos necessário destruir o direito de
propriedade para levar o progresso e a justiça social aos campos. O Estado
está começando a entregar a milhares de famílias camponesas não somente a
terra, mas a possibilidade para trabalhá-la, orientando o lavrador, dando-lhe
crédito, sementes, escolas e assistência médica" (A TARDE, 16.03.64:3).
141

126

De fato, para a burguesia, o aumento da autonomia dos Estados chegara a ser, durante os
anos que antecederam o golpe, uma alternativa também para a resolução pacífica de problemas mais
polêmicos, como a reforma agrária. Sobre essa questão, assim se expressa Magalhães Pinto em
março de 64:
"Mas não é possível que se deixe esse órgão restrito apenas à orientação federal.
A SUPRA que faça a reforma agrária, a reforma que todos nós desejamos e o
Brasil espera. Mas que essa reforma seja descentralizada porque é o poder local
que conhece de perto as necessidades que lhes são carentes. É o poder local que
pode dialogar, que pode fazer reformas sem o sistematismo que estamos sentindo
nesta hora. É o poder local que, enfim, evitará, sem dúvida nenhuma, o
derramamento de sangue de brasileiros inocentes..." (A TARDE, 02.03.1964:2).

A opinião do governador de Minas coincide com a de outros políticos golpistas, como a


expressa por Juraci Magalhães em mensagem a Assembléia baiana (MAGALHÃES, 1962:8), e
parece nos indicar ser essa a única solução, dentro do quadro democrático, que os conservadores
ainda acalentavam. Quanto a Lomanto, a sua estratégia consistia justamente em ocupar os espaços
do centro numa conjuntura onde as posturas rapidamente se radicalizam18.
O decreto de criação da Superintendência da Reforma Agrária assinado por João Goulart
no comício da Central do Brasil, a 13 de março, foi o fato que impôs o golpe de estado como a
solução vitoriosa entre as forças burguesas de oposição. No dia seguinte, a conspiração cresce nas
páginas dos jornais e os ataques à legalidade e o insuflamento ao golpe recrudescem de
intensidade19.

18. A Tarde (03.03.1964:3) salienta a importância do governador baiano naquela


conjuntura: "Mas esse encontro tão amplo só se pode efetivar diante do com-
portamento equilibrado do governador baiano cuja isenção política (tanto mais
difícil quanto se mantém nos dias agitados que correm), permitiu a reunião,
numa só mesa, de governadores líderes de tendências as mais díspares. Isso deu
ao governador baiano não só a oportunidade de realizar com êxito essa reunião,
mas evidenciou sua capacidade de árbitro entre extremos".

19. Na primeira página de "A Tarde" de 16 de março, Renato Simões, sócio-


proprietário do jornal, escreve:
"Verifica-se que, paulatinamente, com os dois ítens atendidos pelos decretos
firmados na fatídica sexta-feira, treze, inicia-se o começo do fim da
iniciativa privada no país. O Congresso, as Forças Armadas- a linguagem
revolucionária distribuida pelos oradores é o melhor incentivo para a
insubordinação militar os democratas, no sentido correto da palavra, os homens
de bem que não querem submeter-se ao jugo de uma ditadura falida e obsoleta
estrangeira, devem congregar seus esforços no sentido de salvar, enquanto é
tempo, a liberdade, a felicidade e o futuro do Brasil".
142

127

Lomanto, no entanto, já houvera realçado em demasia sua posição centro-progressista para


conseguir manter-se a prumo e a par do desenrolar da insurreição que se articulava. A força de sua
posição esvazia-se rapidamente. Embora reafirme, em palavras, sua postura de defesa da legalidade,
ao mesmo tempo, evita qualquer envolvimento mais eficaz com os segmentos realmente democrá-
ticos da nação. Dessa última atitude é índice a tentativa frustrada do governador de Sergipe de obter
de Lomanto um compromisso mais efetivo para a formação de um eixo de resistência democrática
no Norte, em torno dos Estados da Bahia, de Sergipe e de Pernambuco. Lomanto continua, todavia,
até o dia do golpe, a apoiar a política reformista do presidente.
A posição do governador não era, porém, isolada ou mesmo minoritária. A grande
imprensa continua a sustentar o elogio da posição moderada e independente de Lomanto procurando
separar os atos do presidente da pletora verbal dos que o acompanham20.
Em seu primeiro ano, o governo Lomanto concentrou suas energias em dois pontos
importantes para a burguesia baiana: no plano federal, a continuidade das obras de implantação da
infra-estrutura do Conjunto Petroquímico da Bahia, que começa a sofrer constantes paralizações e a
ser inviabilizado tecnicamente pela direção da Petrobrás; na esfera estadual, a revigoração do
sistema FUNDAGRO, com a conjunção de recursos do imposto de vendas e consignações e da
criação de um adicional reembolsável de 1% sobre esse imposto, além dos recursos do art. 34/18 da
SUDENE.
Além disso, o bom relacionamento de Lomanto com o governo Goulart, garantindo as
principais conquistas da burguesia baiana no governo Jânio, deve ser considerado como o real
motivo para o apoio que tanto um como o outro recebem da grande imprensa21.

20."Descontadas as palavras, que o vento carrega, os resultados positivos do


comício foram os decretos, decretando a desapropriação de Terras e refinarias.
Se parece ter mudado sexta-feira o rumo de sua administração resolvendo tomar
medidas de que o país realmente precisa, aplausos ainda merece pelo fato de
demonstrar seu desejo de respeitar o regime democrático, que são conquistas
inalienáveis do povo brasileiro. As últimas providências do presidente
contrastam, agradavelmente, com sua imobilidade anterior. Espera-se, por isso,
que não caia ele, outra vez, na perplexidade ou no acomodatismo, que faça
efetivas estas iniciativas necessárias ao desenvolvimento do país" (A TARDE,
16.03.1964:5).

21. Assim, por exemplo, escreve "A Tarde", a respeito da atitude do ministro
da Fazenda em relação ao financiamento do cacau: "São conhecidas as posições
antagônicas entre os srs. João Goulart e Ademar de Barros. Se o governo
143

128

Em resumo, pode-se dizer que o período 62/64 caracteriza-se pela impossibilidade política
da burguesia rearticular a sua representação em torno de um projeto de reforma ideológica e econo-
micamente coerentes com seus interesses. O fracasso político pode ser claramente sentido, na esfera
federal, quando o presidente Jânio Quadros não encontra o clima propício para a implantação de
uma política austera e realista, quer no plano monetário, através de uma maior vinculação do país ao
capital internacional, quer no plano da política externa, através da ampliação do mercado para
produtos brasileiros, quer no plano administrativo, através do combate à corrupção e a
implementação de uma política de descentralização dos aparelhos de Estado e de revigoração das
burguesias regionais.
A renúncia de Quadros e o fracasso de uma solução burguesa gestada politicamente teve
sua contrapartida estadual na frustada tentativa de Juraci Magalhães em forjar um forte comando
unitário de poder a partir das bases partidárias existentes.
Lomanto representou, assim, uma frágil e frustada tentativa, que nem mesmo chegou a
consolidar-se na vida nacional, da burguesia preservar a sua capacidade de liderança política sobre
as massas trabalhadoras e populares. O que chamamos de fracasso político da burguesia está no fato
de que, a partir de 1962, com a ascensão de Goulart à Presidência e a formação de um governo fe-
deral comprometido com plataformas populares, processa-se a descaracterização dos objetivos
burgueses das medidas e dos instrumentos necessários para a superação da crise de acumulação, e
evidencia-se o despreparo da burguesia para conviver, daí por diante, com a ascensão dos interesses
do proletariado e do campesinato, no plano político.
Na Bahia, dado as particularidades de sua vida política, serão em parte as mesmas forças
que articularam o apoio partidário à candidatura de Lomanto Junior (que acabou por se envolver
crescentemente com a política do governo federal) que conduzirão, à revelia do governo do Estado,
a conspiração golpista. Ao contrário, as forças progressistas que sustentaram a candidatura Waldir
Pires procurarão respaldar Lomanto e exigir-lhe coerência com os princípios democráticos e com o
projeto de reforma de base.

federal se confirma nos maltratos que tem infrigido às reivindicações baianas,


sabe muito bem que será difícil, senão impossível, ao Governo baiano, ficar
insensível, à boa vontade de quem lhe trata melhor. E, ironia das coisas da
política, o presidente acaba de receber um firme apoio do governador baiano
144

129

Quanto à burguesia, acompanhando a tendência de seus representantes, cinde-se entre


reformistas e conspiradores, não conseguindo, naquele momento histórico, apresentar uma postura
coesa. Enquanto a grande imprensa ficou ao lado do governo Goulart até o derradeiro dia, alguns
dos seus grandes grupos econômicos mantinha ligações diretas com os golpistas (DREIFUSS,
1981:627).
Entretanto, objetivamente, o regime que se instalou em 1964 significou para a burguesia da
Bahia um ponto de ruptura decisivo. Representou a consolidação do desenvolvimento capitalista que
teve início no pós-guerra e a realização das grandes aspirações de seus intelectuais. O governo
militar tomou a forma de uma aliança entre as diversas facções burguesas sob a égide do grande
capital nacional e internacional que tinha realmente interesses espacialmente mais amplos,
promovendo uma rápida expansão econômica nas várias regiões brasileiras. A burguesia mercantil e
financeira baiana pode fortalecer, desse modo, sem resistências, sua posição no mercado brasileiro.
De fato, do ponto de vista econômico, o período 64/66 se caracteriza por uma grande
recessão acompanhada por um processo de concentração e centralização de capitais que, com a
recuperação da economia a partir de 67, ensejou a consolidação, no âmbito nacional, de dois grupos
financeiros baianos, o Banco Econômico e o Banco da Bahia, e a projeção de outros novos, nos
setores industrial e comercial, como Barreto de Araújo, Odebrecht e Paes Mendonça.
Politicamente, com o governo ditatorial, ascende ao primeiro plano da vida nacional dois
dos principais líderes da grande burguesia baiana, Juraci Magalhães, como ministro das Relações
Exteriores e Luiz Viana Filho, como Ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República. A
esses dois nomes deve-se juntar o de Antonio Carlos Magalhães, principal administrador da máquina
eleitoral de Juraci Magalhães, que em 1970, com o afastamento de Juraci da vida política, se
apropria da maior parte do espólio do líder. Ao lado desses, com menor expressão, mantém-se ainda
a liderança de Lomanto Junior, que consegue continuar no Governo da Bahia até o fim do seu
mandato graças à interferência das organizações de classe da burguesia, da Igreja Católica e de uma
aliança de última hora com setores da oficialidade golpista22.

contra os que visivelmente tramam contra o seu legítimo mandato" (A TARDE,


21.09.1964:5).
22. A relação entre Lomanto e os antigos articuladores da sua candidatura pode
ser sentida no trecho seguinte:
145

130

O restante do mandato de Lomanto será marcado por uma ampla reforma da administração
pública e a construção do Centro Industrial de Aratu, que será inaugurado pelo seu sucessor, Luiz
Viana Filho. Neste último governo a burguesia baiana vê finalmente atendida sua reivindicação de
implantação de um pólo petroquímico na Bahia e assiste ao início de um surto industrial que per-
dura, com diferentes intensidades, até os 80.
O desenvolvimento econômico que sua intelectualidade almejara, projetara e pelo qual
lutara 18 anos, segue assim novos rumos políticos. O discurso regionalista, na economia e na
política, mostrar-se-á incongruente com os novos tempos ditatoriais e nacionalistas, embora
continuasse, durante mais alguns anos, a dividir com a ideologia militarista da segurança nacional os
esforços de legitimação do novo regime.
Mais que isto, o regionalismo econômico, durante os 25 anos de ditadura, perdeu a
utilidade política, passando a ser quase que apenas um discurso sobre a cultura e as especificidades
locais.

"A reiteração do apoio da UDN ao Sr. Lomanto Júnior, através da palavra do Sr.
Antonio Carlos Magalhães, falando num programa de televisão, eio dissipar os
boatos de que a posição do governador continuava ameaçada na área política,
mesmo depois de comprovada a sua boa situação no setor militar, como ficou
demonstrada com a visita do Gal. Justino Bastos e o claro pronunciamento do
comando da 6╕ Região Militar". "A verdade é que a manifestação do Sr. Antonio
Carlos Magalhães constitui uma surpresa para os círculos políticos em geral,
pois o que se esperava e temia, quando foi anunciada sua declaração pública,
era que abrisse as baterias contra o governo. A última visita do deputado
udenista a Salvador, quando ostensivamente deixara de procurar o Sr. Lomanto
Junior , deixara a impressão de que estava muito descontente com o chefe do
executivo" (A TARDE, 07.05.1964:3).
146

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