You are on page 1of 95

SOBRE O RIGOR NA CIÊNCIA

“…Naquele império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa de


uma única Província ocupava uma cidade inteira, e o mapa do Império uma
Província inteira. Com o tempo, estes Mapas Desmedidos não bastaram e os
Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o Tamanho
do Império e coincidia com ele ponto por ponto. Menos Dedicadas ao Estudo da
Cartografia, as gerações seguintes decidiram que esse dilatado Mapa era Inútil e
não sem Impiedade entregaram-no às Inclemências do sol e dos Invernos. Nos
Desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa habitadas por
Animais e por Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas
Geográficas.”

Jorge Luís Borges

Borges, Jorge Luís, “Sobre o Rigor na Ciência”. In: Obras completas de Jorge Luis Borges.
Vol. II. Vários tradutores. São Paulo: Globo, 1999.
Alberto Caeiro/Fernando Pessoa

II - O meu olhar é nítido como um girassol.

O meu olhar é nítido como um girassol.


Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no Mundo como num malmequer,


Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...


Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,


E a única inocência é não pensar...
8-3-1914

“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e


notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
Braga, Rubem. “O mistério da poesia. In: A traição das elegantes. Rio de Janeiro: Record,
1982.

O mistério da poesia

Não sei o nome desse poeta, acho que boliviano; apenas lhe conheço um poema,

ensinado por um amigo. E só guardei os primeiros versos: ‘Trabajar era bueno en el sur…

Cortar los árboles, hacer canoas de los troncos’.

E tendo guardado esses dois versos tão simples, aqui me debruço ainda uma vez

sobre o mistério da poesia.

O poema era grande, mas foram essas palavras que me emocionaram. Lembro-me

delas às vezes, numa viagem; quando estou aborrecido, tenho notado que as murmuro para

mim mesmo, de vez em quando, nesses momentos de tédio urbano. E elas produzem em mim

uma espécie de consolo e de saudade não sei de quê.

Lembrei-me agora mesmo, no instante em que abria a máquina para trabalhar

nessa coisa vã e cansativa que é fazer crônica.

De onde vem o efeito poético? É fácil dizer que vem do sentido dos versos; mas

não é apenas do sentido. Se ele dissesse: ‘Era bueno trabajar en el sur’ não creio que o

poema pudesse me impressionar. Se no lugar de usar o infinito do verbo ‘cortar’ e do verbo

‘hacer’ usasse o passado, creio que isso enfraqueceria tudo. Penso no ritmo; ele sozinho não

dá para explicar nada. Além disso, as palavras usadas são, rigorosamente, das mais banais da

língua. Reparem que tudo está dito como os elementos mais simples: ‘trabajar, era bueno,

sur, cortar, árboles, hacer canoas, troncos’.

Isso me lembra um dos maiores versos de Camões, todo ele também com as

palavras mais corriqueiras de nossa língua:

‘A grande dor das coisas que passaram’.


Talvez o que impressione seja mesmo isso: essa faculdade de dar um sentido

solene e alto às palavras de todo dia. Nesse poema sul-americano a ideia da canoa é também

um motivo de emoção.

Não há coisa mais simples e primitiva que uma canoa feita de um tronco de

árvore; e acontece que muitas vezes a canoa é de uma grande beleza plástica. E de repente me

ocorre que talvez esses versos me emocionem particularmente por causa de uma infância de

beira-rio e de beira-mar. Mas não pode ser: o principal sentido dos versos é o do trabalho; um

trabalho que era bom, não essa ‘necessidade aborrecida’ de hoje. Desejo de fazer alguma

coisa simples, honrada e bela, e imaginar que já se fez.

Fala-se muito em mistério poético; e não faltam poetas modernos que procurem

esse mistério enunciando coisas obscuras, o que dá margem a muito equívoco e muita

bobagem. Se na verdade existe muita poesia e muita carga de emoção em certos versos sem

um sentido claro, isso não quer dizer que, turvando um pouco as águas, elas fiquem mais

profundas….

Rubem Braga

Fevereiro, 1949
FELIZ ANIVERSÁRIO

A família foi pouco a pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos
porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana. A nora de Olaria
apareceu de azul-marinho, com enfeite de paetês e um drapeado disfarçando a barriga sem
cinta. O marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandara sua
mulher para que nem todos os laços fossem cortados – e esta vinha com o seu melhor vestido
para mostrar que não precisava de nenhum deles, acompanhada dos três filhos: duas meninas
já de peito nascendo, infantilizadas em babados cor-de-rosa e anáguas engomadas, e o menino
acovardado pelo terno novo e pela gravata.
Tendo Zilda – a filha com quem a aniversariante morava – disposto cadeiras unidas ao
longo das paredes, como numa festa em que se vai dançar, a nora de Olaria, depois de
cumprimentar com cara fechada aos de casa, aboletou-se numa das cadeiras e emudeceu, a
boca em bico, mantendo sua posição de ultrajada. “Vim para não deixar de vir”, dissera ela a
Zilda, e em seguida sentara-se ofendida. As duas mocinhas de cor-de-rosa e o menino,
amarelos e de cabelo penteado, não sabiam bem que atitude tomar e ficaram de pé ao lado da
mãe, impressionados com seu vestido azul-marinho e com os paetês.
Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá. O marido viria depois. E como
Zilda – a única mulher entre os seis irmãos homens e a única que, estava decidido já havia
anos, tinha espaço e tempo para alojar a aniversariante – e como Zilda estava na cozinha a
ultimar com a empregada os croquetes e sanduíches, ficaram: a nora de Olaria empertigada
com seus filhos de coração inquieto ao lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras
fingindo ocupar-se com o bebê para não encarar a concunhada de Olaria; a babá ociosa e
uniformizada, com a boca aberta.
E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que fazia hoje oitenta e nove anos.
Zilda, a dona da casa, arrumara a mesa cedo, enchera-a de guardanapos de papel colorido
e copos de papelão alusivos à data, espalhara balões sungados pelo teto em alguns dos quais
estava escrito “Happy Birthday!”, em outros “Feliz Aniversário!”. No centro havia disposto o
enorme bolo açucarado. Para adiantar o expediente, enfeitara a mesa logo depois do almoço,
encostara as cadeiras à parede, mandara os meninos brincar no vizinho para não desarrumar a
mesa.
E, para adiantar o expediente, vestira a aniversariante logo depois do almoço. Pusera-lhe
desde então a presilha em torno do pescoço e o broche, borrifara-lhe um pouco de água-de-
colônia para disfarçar aquele seu cheiro de guardado – sentara-a à mesa. E desde as duas
horas a aniversariante estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa.
De vez em quando consciente dos guardanapos coloridos. Olhando curiosa um ou outro
balão estremecer aos carros que passavam. E de vez em quando aquela angústia muda: quando
acompanhava, fascinada e impotente, o voo da mosca em torno do bolo.
Até que às quatro horas entrara a nora de Olaria e depois a de Ipanema.
Quando a nora de Ipanema pensou que não suportaria nem um segundo mais a situação de
estar sentada defronte da concunhada de Olaria – que cheia das ofensas passadas não via um
motivo para desfitar desafiadora a nora de Ipanema – entraram enfim José e a família. E mal
eles se beijavam, a sala começou a ficar cheia de gente que ruidosa se cumprimentava como
se todos tivessem esperado embaixo o momento de, em afobação de atraso, subir os três
lances de escada, falando, arrastando crianças surpreendidas, enchendo a sala – e inaugurando
a festa.
Os músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam mais, de modo que ninguém
podia saber se ela estava alegre. Estava era posta à cabeceira. Tratava-se de uma velha
grande, magra, imponente e morena. Parecia oca.
– Oitenta e nove anos, sim senhor! disse José, filho mais velho agora que Jonga tinha
morrido. – Oitenta e nove anos, sim senhora! disse esfregando as mãos em admiração pública
e como sinal imperceptível para todos.
Todos se interromperam atentos e olharam a aniversariante de um modo mais oficial.
Alguns abanaram a cabeça em admiração como a um recorde. Cada ano vencido pela
aniversariante era uma vaga etapa da família toda. Sim senhor! disseram alguns sorrindo
timidamente.
– Oitenta e nove anos!, ecoou Manoel que era sócio de José. É um brotinho!, disse
espirituoso e nervoso, e todos riram, menos sua esposa.
A velha não se manifestava.
Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum. Outros trouxeram saboneteira, uma
combinação de jérsei, um broche de fantasia, um vasinho de cactos – nada, nada que a dona da
casa pudesse aproveitar para si mesma ou para seus filhos, nada que a própria aniversariante
pudesse realmente aproveitar constituindo assim uma economia: a dona da casa guardava os
presentes, amarga, irônica.
– Oitenta e nove anos! repetiu Manoel aflito, olhando para a esposa.
A velha não se manifestava.
Então, como se todos tivessem tido a prova final de que não adiantava se esforçarem, com
um levantar de ombros de quem estivesse junto de uma surda, continuaram a fazer a festa
sozinhos, comendo os primeiros sanduíches de presunto mais como prova de animação que
por apetite, brincando de que todos estavam morrendo de fome. O ponche foi servido, Zilda
suava, nenhuma cunhada ajudou propriamente, a gordura quente dos croquetes dava um cheiro
de piquenique; e de costas para a aniversariante, que não podia comer frituras, eles riam
inquietos. E Cordélia? Cordélia, a nora mais moça, sentada, sorrindo.
– Não senhor! respondeu José com falsa severidade, hoje não se fala em negócios!
– Está certo, está certo! recuou Manoel depressa, olhando rapidamente para sua mulher
que de longe estendia um ouvido atento.
– Nada de negócios, gritou José, hoje é o dia da mãe!
Na cabeceira da mesa já suja, os copos maculados, só o bolo inteiro – ela era a mãe. A
aniversariante piscou os olhos.
E quando a mesa estava imunda, as mães enervadas com o barulho que os filhos faziam,
enquanto as avós se recostavam complacentes nas cadeiras, então fecharam a inútil luz do
corredor para acender a vela do bolo, uma vela grande com um papelzinho colado onde estava
escrito “89”. Mas ninguém elogiou a ideia de Zilda, e ela se perguntou angustiada se eles não
estariam pensando que fora por economia de velas – ninguém se lembrando de que ninguém
havia contribuído com uma caixa de fósforos sequer para a comida da festa que ela, Zilda,
servia como uma escrava, os pés exaustos e o coração revoltado. Então acenderam a vela. E
então José, o líder, cantou com muita força, entusiasmando com um olhar autoritário os mais
hesitantes ou surpreendidos, “vamos! todos de uma vez!” – e todos de repente começaram a
cantar alto como soldados. Despertada pelas vozes, Cordélia olhou esbaforida. Como não
haviam combinado, uns cantaram em português e outros em inglês. Tentaram então corrigir: e
os que haviam cantado em inglês passaram a português, e os que haviam cantado em português
passaram a cantar bem baixo em inglês.
Enquanto cantavam, a aniversariante, à luz da vela acesa, meditava como junto de uma
lareira.
Escolheram o bisneto menor que, debruçado no colo da mãe encorajadora, apagou a chama
com um único sopro cheio de saliva! Por um instante bateram palmas à potência inesperada do
menino que, espantado e exultante, olhava para todos encantado. A dona da casa esperava com
o dedo pronto no comutador do corredor – e acendeu a lâmpada.
– Viva mamãe!
– Viva vovó!
– Viva d. Anita, disse a vizinha que tinha aparecido.
– Happy birthday! gritaram os netos, do Colégio Bennett.
Bateram ainda algumas palmas ralas.
A aniversariante olhava o bolo apagado, grande e seco.
– Parta o bolo, vovó! disse a mãe dos quatro filhos, é ela quem deve partir! assegurou
incerta a todos, com ar íntimo e intrigante. E, como todos aprovassem satisfeitos e curiosos,
ela se tornou de repente impetuosa: – parta o bolo, vovó!
E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação, como se hesitando um momento ela
toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina.
– Que força, segredou a nora de Ipanema, e não se sabia se estava escandalizada ou
agradavelmente surpreendida. Estava um pouco horrorizada.
– Há um ano atrás ela ainda era capaz de subir essas escadas com mais fôlego do que eu,
disse Zilda amarga.
Dada a primeira talhada, como se a primeira pá de terra tivesse sido lançada, todos se
aproximaram de prato na mão, insinuando-se em fingidas acotoveladas de animação, cada um
para a sua pazinha.
Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos, num silêncio cheio de rebuliço. As
crianças pequenas, com a boca escondida pela mesa e os olhos ao nível desta, acompanhavam
a distribuição com muda intensidade. As passas rolavam do bolo entre farelos secos. As
crianças angustiadas viam se desperdiçarem as passas, acompanhavam atentas a queda.
E quando foram ver, não é que a aniversariante já estava devorando o seu último bocado?
E por assim dizer a festa estava terminada.
Cordélia olhava ausente para todos, sorria.
– Já lhe disse: hoje não se fala em negócios! respondeu José radiante.
– Está certo, está certo! recolheu-se Manoel conciliador sem olhar a esposa que não o
desfitava. Está certo, tentou Manoel sorrir e uma contração passou-lhe rápido pelos músculos
da cara.
– Hoje é dia da mãe! disse José.
Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de Coca-Cola, o bolo desabado, ela era a mãe.
A aniversariante piscou.
Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente
não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a
aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a
presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-
os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu
joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a
carne de seu coração, Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada. Cadê Rodrigo?
Rodrigo com olhar sonolento e entumescido naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria
um homem. Mas, piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. Oh o desprezo pela vida
que falhava. Como?! como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, com
braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom
homem a quem, obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera
filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles
azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à
luz aqueles seres risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns
comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos
se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no
chão.
– Mamãe! gritou mortificada a dona da casa. Que é isso, mamãe! gritou ela passada de
vergonha, e não queria sequer olhar os outros, sabia que os desgraçados se entreolhavam
vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha, e não faltaria muito para dizerem que
ela já não dava mais banho na mãe, jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia. –
Mamãe, que é isso! – disse baixo, angustiada. – A senhora nunca fez isso! – acrescentou alto
para que todos ouvissem, queria se agregar ao espanto dos outros, quando o galo cantar pela
terceira vez renegarás tua mãe. Mas seu enorme vexame suavizou-se quando ela percebeu que
eles abanavam a cabeça como se estivessem de acordo que a velha não passava agora de uma
criança.
– Ultimamente ela deu pra cuspir, terminou então confessando contrita para todos.
Todos olharam a aniversariante, compungidos, respeitosos, em silêncio.
Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Os meninos, embora crescidos –
provavelmente já além dos cinquenta anos, que sei eu! – os meninos ainda conservavam os
traços bonitinhos. Mas que mulheres haviam escolhido! E que mulheres os netos – ainda mais
fracos e mais azedos – haviam escolhido. Todas vaidosas e de pernas finas, com aqueles
colares falsificados de mulher que na hora não aguenta a mão, aquelas mulherezinhas que
casavam mal os filhos, que não sabiam pôr uma criada em seu lugar, e todas elas com as
orelhas cheias de brincos – nenhum, nenhum de ouro! A raiva a sufocava.
– Me dá um copo de vinho! disse.
O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo imobilizado na mão.
– Vovozinha, não vai lhe fazer mal? insinuou cautelosa a neta roliça e baixinha.
– Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. – Que o diabo vos carregue,
corja de maricas, cornos e vagabundas! me dá um copo de vinho, Dorothy! – ordenou.
Dorothy não sabia o que fazer, olhou para todos em pedido cômico de socorro. Mas, como
máscaras isentas e inapeláveis, de súbito nenhum rosto se manifestava. A festa interrompida,
os sanduíches mordidos na mão, algum pedaço que estava na boca a sobrar seco, inchando tão
fora de hora a bochecha. Todos tinham ficado cegos, surdos e mudos, com croquetes na mão. E
olhavam impassíveis.
Desamparada, divertida, Dorothy deu o vinho: astuciosamente apenas dois dedos no copo.
Inexpressivos, preparados, todos esperaram pela tempestade.
Mas não só a aniversariante não explodiu com a miséria de vinho que Dorothy lhe dera
como não mexeu no copo.
Seu olhar estava fixo, silencioso. Como se nada tivesse acontecido.
Todos se entreolharam polidos, sorrindo cegamente, abstratos como se um cachorro
tivesse feito pipi na sala. Com estoicismo, recomeçaram as vozes e risadas. A nora de Olaria,
que tivera o seu primeiro momento uníssono com os outros quando a tragédia vitoriosamente
parecia prestes a se desencadear, teve que retornar sozinha à sua severidade, sem ao menos o
apoio dos três filhos que agora se misturavam traidoramente com os outros. De sua cadeira
reclusa, ela analisava crítica aqueles vestidos sem nenhum modelo, sem um drapeado, a mania
que tinham de usar vestido preto com colar de pérolas, o que não era moda coisa nenhuma,
não passava era de economia. Examinando distante os sanduíches que quase não tinham
levado manteiga. Ela não se servira de nada, de nada! Só comera uma coisa de cada, para
experimentar.
E por assim dizer, de novo a festa estava terminada.
As pessoas ficaram sentadas benevolentes. Algumas com a atenção voltada para dentro de
si, à espera de alguma coisa a dizer. Outras vazias e expectantes, com um sorriso amável, o
estômago cheio daquelas porcarias que não alimentavam mas tiravam a fome. As crianças, já
incontroláveis, gritavam cheias de vigor. Umas já estavam de cara imunda; as outras, menores,
já molhadas; a tarde caía rapidamente. E Cordélia, Cordélia olhava ausente, com um sorriso
estonteado, suportando sozinha o seu segredo. Que é que ela tem? alguém perguntou com uma
curiosidade negligente, indicando-a de longe com a cabeça, mas também não responderam.
Acenderam o resto das luzes para precipitar a tranquilidade da noite, as crianças começavam
a brigar. Mas as luzes eram mais pálidas que a tensão pálida da tarde. E o crepúsculo de
Copacabana, sem ceder, no entanto se alargava cada vez mais e penetrava pelas janelas como
um peso.
– Tenho que ir, disse perturbada uma das noras levantando-se e sacudindo os farelos da
saia. Vários se ergueram sorrindo.
A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua pele tão infamiliar
fosse uma armadilha. E, impassível, piscando, recebeu aquelas palavras propositadamente
atropeladas que lhe diziam tentando dar um final arranco de efusão ao que não era mais senão
passado: a noite já viera quase totalmente. A luz da sala parecia então mais amarela e mais
rica, as pessoas envelhecidas. As crianças já estavam histéricas.
– Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se a velha nas suas
profundezas.
Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava. E para aqueles que junto da porta ainda
a olharam uma vez, a aniversariante era apenas o que parecia ser: sentada à cabeceira da mesa
imunda, com a mão fechada sobre a toalha como encerrando um cetro, e com aquela mudez
que era a sua última palavra. Com um punho fechado sobre a mesa, nunca mais ela seria
apenas o que ela pensasse. Sua aparência afinal a ultrapassara e, superando-a, se agigantava
serena. Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo e severo sobre a mesa dizia para a infeliz
nora que sem remédio amava talvez pela última vez: É preciso que se saiba. É preciso que se
saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta.
Porém nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade era um relance. Cordélia olhou-a
estarrecida. E, para nunca mais, nenhuma vez repetiu – enquanto Rodrigo, o neto da
aniversariante, puxava a mão daquela mãe culpada, perplexa e desesperada que mais uma vez
olhou para trás implorando à velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto
dilacerante, enfim agarrar a sua derradeira chance e viver. Mais uma vez Cordélia quis olhar.
Mas a esse novo olhar – a aniversariante era uma velha à cabeceira da mesa.
Passara o relance. E arrastada pela mão paciente e insistente de Rodrigo a nora seguiu-o
espantada.
– Nem todos têm o privilégio e o orgulho de se reunirem em torno da mãe, pigarreou José
lembrando-se de que Jonga é quem fazia os discursos.
– Da mãe, vírgula! riu baixo a sobrinha, e a prima mais lenta riu sem achar graça.
– Nós temos, disse Manoel acabrunhado sem mais olhar para a esposa. Nós temos esse
grande privilégio – disse distraído enxugando a palma úmida das mãos.
Mas não era nada disso, apenas o mal-estar da despedida, nunca se sabendo ao certo o que
dizer, José esperando de si mesmo com perseverança e confiança a próxima frase do discurso.
Que não vinha. Que não vinha. Que não vinha. Os outros aguardavam. Como Jonga fazia falta
nessas horas – José enxugou a testa com o lenço – como Jonga fazia falta nessas horas!
Também fora o único a quem a velha sempre aprovara e respeitara, e isso dera a Jonga tanta
segurança. E quando ele morrera, a velha nunca mais falara nele, pondo um muro entre sua
morte e os outros. Esquecera-o talvez. Mas não esquecera aquele mesmo olhar firme e direto
com que desde sempre olhara os outros filhos, fazendo-os sempre desviar os olhos. Amor de
mãe era duro de suportar: José enxugou a testa, heroico, risonho.
E de repente veio a frase:
– Até o ano que vem! disse José subitamente com malícia, encontrando, assim, sem mais
nem menos, a frase certa: uma indireta feliz! Até o ano que vem, hein?, repetiu com receio de
não ser compreendido.
Olhou-a, orgulhoso da artimanha da velha que espertamente sempre vivia mais um ano.
– No ano que vem nos veremos diante do bolo aceso! esclareceu melhor o filho Manoel,
aperfeiçoando o espírito do sócio. Até o ano que vem, mamãe! e diante do bolo aceso! disse
ele bem explicado, perto de seu ouvido, enquanto olhava obsequiador para José. E a velha de
súbito cacarejou um riso frouxo, compreendendo a alusão.
Então ela abriu a boca e disse:
– Pois é.
Estimulado pela coisa ter dado tão inesperadamente certo, José gritou-lhe emocionado,
grato, com os olhos úmidos:
– No ano que vem nos veremos, mamãe!
– Não sou surda! disse a aniversariante rude, acarinhada.
Os filhos se olharam rindo, vexados, felizes. A coisa tinha dado certo.
As crianças foram saindo alegres, com o apetite estragado. A nora de Olaria deu um
cascudo de vingança no filho alegre demais e já sem gravata. As escadas eram difíceis,
escuras, incrível insistir em morar num prediozinho que seria fatalmente demolido mais dia
menos dia, e na ação de despejo Zilda ainda ia dar trabalho e querer empurrar a velha para as
noras – pisado o último degrau, com alívio os convidados se encontraram na tranquilidade
fresca da rua. Era noite, sim. Com o seu primeiro arrepio.
Adeus, até outro dia, precisamos nos ver. Apareçam, disseram rapidamente. Alguns
conseguiram olhar nos olhos dos outros com uma cordialidade sem receio. Alguns abotoavam
os casacos das crianças, olhando o céu à procura de um sinal do tempo. Todos sentindo
obscuramente que na despedida se poderia talvez, agora sem perigo de compromisso, ser bom
e dizer aquela palavra a mais – que palavra? eles não sabiam propriamente, e olhavam-se
sorrindo, mudos. Era um instante que pedia para ser vivo. Mas que era morto. Começaram a se
separar, andando meio de costas, sem saber como se desligar dos parentes sem brusquidão.
– Até o ano que vem! repetiu José a indireta feliz, acenando a mão com vigor efusivo, os
cabelos ralos e brancos esvoaçavam. Ele estava era gordo, pensaram, precisava tomar
cuidado com o coração. Até o ano que vem! gritou José eloquente e grande, e sua altura
parecia desmoronável. Mas as pessoas já afastadas não sabiam se deviam rir alto para ele
ouvir ou se bastaria sorrir mesmo no escuro. Além de alguns pensarem que felizmente havia
mais do que uma brincadeira na indireta e que só no próximo ano seriam obrigados a se
encontrar diante do bolo aceso; enquanto que outros, já mais no escuro da rua, pensavam se a
velha resistiria mais um ano ao nervoso e à impaciência de Zilda, mas eles sinceramente nada
podiam fazer a respeito: “Pelo menos noventa anos”, pensou melancólica a nora de Ipanema.
“Para completar uma data bonita”, pensou sonhadora.
Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contingências, estava a aniversariante sentada
à cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior do que ela mesma. Será que hoje não vai ter
jantar, meditava ela. A morte era o seu mistério.
FELIZ ANIVERSÁRIO

A família foi pouco a pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos
porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana. A nora de Olaria
apareceu de azul-marinho, com enfeite de paetês e um drapeado disfarçando a barriga sem
cinta. O marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandara sua
mulher para que nem todos os laços fossem cortados – e esta vinha com o seu melhor vestido
para mostrar que não precisava de nenhum deles, acompanhada dos três filhos: duas meninas
já de peito nascendo, infantilizadas em babados cor-de-rosa e anáguas engomadas, e o menino
acovardado pelo terno novo e pela gravata.
Tendo Zilda – a filha com quem a aniversariante morava – disposto cadeiras unidas ao
longo das paredes, como numa festa em que se vai dançar, a nora de Olaria, depois de
cumprimentar com cara fechada aos de casa, aboletou-se numa das cadeiras e emudeceu, a
boca em bico, mantendo sua posição de ultrajada. “Vim para não deixar de vir”, dissera ela a
Zilda, e em seguida sentara-se ofendida. As duas mocinhas de cor-de-rosa e o menino,
amarelos e de cabelo penteado, não sabiam bem que atitude tomar e ficaram de pé ao lado da
mãe, impressionados com seu vestido azul-marinho e com os paetês.
Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá. O marido viria depois. E como
Zilda – a única mulher entre os seis irmãos homens e a única que, estava decidido já havia
anos, tinha espaço e tempo para alojar a aniversariante – e como Zilda estava na cozinha a
ultimar com a empregada os croquetes e sanduíches, ficaram: a nora de Olaria empertigada
com seus filhos de coração inquieto ao lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras
fingindo ocupar-se com o bebê para não encarar a concunhada de Olaria; a babá ociosa e
uniformizada, com a boca aberta.
E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que fazia hoje oitenta e nove anos.
Zilda, a dona da casa, arrumara a mesa cedo, enchera-a de guardanapos de papel colorido
e copos de papelão alusivos à data, espalhara balões sungados pelo teto em alguns dos quais
estava escrito “Happy Birthday!”, em outros “Feliz Aniversário!”. No centro havia disposto o
enorme bolo açucarado. Para adiantar o expediente, enfeitara a mesa logo depois do almoço,
encostara as cadeiras à parede, mandara os meninos brincar no vizinho para não desarrumar a
mesa.
E, para adiantar o expediente, vestira a aniversariante logo depois do almoço. Pusera-lhe
desde então a presilha em torno do pescoço e o broche, borrifara-lhe um pouco de água-de-
colônia para disfarçar aquele seu cheiro de guardado – sentara-a à mesa. E desde as duas
horas a aniversariante estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa.
De vez em quando consciente dos guardanapos coloridos. Olhando curiosa um ou outro
balão estremecer aos carros que passavam. E de vez em quando aquela angústia muda: quando
acompanhava, fascinada e impotente, o voo da mosca em torno do bolo.
Até que às quatro horas entrara a nora de Olaria e depois a de Ipanema.
Quando a nora de Ipanema pensou que não suportaria nem um segundo mais a situação de
estar sentada defronte da concunhada de Olaria – que cheia das ofensas passadas não via um
motivo para desfitar desafiadora a nora de Ipanema – entraram enfim José e a família. E mal
eles se beijavam, a sala começou a ficar cheia de gente que ruidosa se cumprimentava como
se todos tivessem esperado embaixo o momento de, em afobação de atraso, subir os três
lances de escada, falando, arrastando crianças surpreendidas, enchendo a sala – e inaugurando
a festa.
Os músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam mais, de modo que ninguém
podia saber se ela estava alegre. Estava era posta à cabeceira. Tratava-se de uma velha
grande, magra, imponente e morena. Parecia oca.
– Oitenta e nove anos, sim senhor! disse José, filho mais velho agora que Jonga tinha
morrido. – Oitenta e nove anos, sim senhora! disse esfregando as mãos em admiração pública
e como sinal imperceptível para todos.
Todos se interromperam atentos e olharam a aniversariante de um modo mais oficial.
Alguns abanaram a cabeça em admiração como a um recorde. Cada ano vencido pela
aniversariante era uma vaga etapa da família toda. Sim senhor! disseram alguns sorrindo
timidamente.
– Oitenta e nove anos!, ecoou Manoel que era sócio de José. É um brotinho!, disse
espirituoso e nervoso, e todos riram, menos sua esposa.
A velha não se manifestava.
Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum. Outros trouxeram saboneteira, uma
combinação de jérsei, um broche de fantasia, um vasinho de cactos – nada, nada que a dona da
casa pudesse aproveitar para si mesma ou para seus filhos, nada que a própria aniversariante
pudesse realmente aproveitar constituindo assim uma economia: a dona da casa guardava os
presentes, amarga, irônica.
– Oitenta e nove anos! repetiu Manoel aflito, olhando para a esposa.
A velha não se manifestava.
Então, como se todos tivessem tido a prova final de que não adiantava se esforçarem, com
um levantar de ombros de quem estivesse junto de uma surda, continuaram a fazer a festa
sozinhos, comendo os primeiros sanduíches de presunto mais como prova de animação que
por apetite, brincando de que todos estavam morrendo de fome. O ponche foi servido, Zilda
suava, nenhuma cunhada ajudou propriamente, a gordura quente dos croquetes dava um cheiro
de piquenique; e de costas para a aniversariante, que não podia comer frituras, eles riam
inquietos. E Cordélia? Cordélia, a nora mais moça, sentada, sorrindo.
– Não senhor! respondeu José com falsa severidade, hoje não se fala em negócios!
– Está certo, está certo! recuou Manoel depressa, olhando rapidamente para sua mulher
que de longe estendia um ouvido atento.
– Nada de negócios, gritou José, hoje é o dia da mãe!
Na cabeceira da mesa já suja, os copos maculados, só o bolo inteiro – ela era a mãe. A
aniversariante piscou os olhos.
E quando a mesa estava imunda, as mães enervadas com o barulho que os filhos faziam,
enquanto as avós se recostavam complacentes nas cadeiras, então fecharam a inútil luz do
corredor para acender a vela do bolo, uma vela grande com um papelzinho colado onde estava
escrito “89”. Mas ninguém elogiou a ideia de Zilda, e ela se perguntou angustiada se eles não
estariam pensando que fora por economia de velas – ninguém se lembrando de que ninguém
havia contribuído com uma caixa de fósforos sequer para a comida da festa que ela, Zilda,
servia como uma escrava, os pés exaustos e o coração revoltado. Então acenderam a vela. E
então José, o líder, cantou com muita força, entusiasmando com um olhar autoritário os mais
hesitantes ou surpreendidos, “vamos! todos de uma vez!” – e todos de repente começaram a
cantar alto como soldados. Despertada pelas vozes, Cordélia olhou esbaforida. Como não
haviam combinado, uns cantaram em português e outros em inglês. Tentaram então corrigir: e
os que haviam cantado em inglês passaram a português, e os que haviam cantado em português
passaram a cantar bem baixo em inglês.
Enquanto cantavam, a aniversariante, à luz da vela acesa, meditava como junto de uma
lareira.
Escolheram o bisneto menor que, debruçado no colo da mãe encorajadora, apagou a chama
com um único sopro cheio de saliva! Por um instante bateram palmas à potência inesperada do
menino que, espantado e exultante, olhava para todos encantado. A dona da casa esperava com
o dedo pronto no comutador do corredor – e acendeu a lâmpada.
– Viva mamãe!
– Viva vovó!
– Viva d. Anita, disse a vizinha que tinha aparecido.
– Happy birthday! gritaram os netos, do Colégio Bennett.
Bateram ainda algumas palmas ralas.
A aniversariante olhava o bolo apagado, grande e seco.
– Parta o bolo, vovó! disse a mãe dos quatro filhos, é ela quem deve partir! assegurou
incerta a todos, com ar íntimo e intrigante. E, como todos aprovassem satisfeitos e curiosos,
ela se tornou de repente impetuosa: – parta o bolo, vovó!
E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação, como se hesitando um momento ela
toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina.
– Que força, segredou a nora de Ipanema, e não se sabia se estava escandalizada ou
agradavelmente surpreendida. Estava um pouco horrorizada.
– Há um ano atrás ela ainda era capaz de subir essas escadas com mais fôlego do que eu,
disse Zilda amarga.
Dada a primeira talhada, como se a primeira pá de terra tivesse sido lançada, todos se
aproximaram de prato na mão, insinuando-se em fingidas acotoveladas de animação, cada um
para a sua pazinha.
Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos, num silêncio cheio de rebuliço. As
crianças pequenas, com a boca escondida pela mesa e os olhos ao nível desta, acompanhavam
a distribuição com muda intensidade. As passas rolavam do bolo entre farelos secos. As
crianças angustiadas viam se desperdiçarem as passas, acompanhavam atentas a queda.
E quando foram ver, não é que a aniversariante já estava devorando o seu último bocado?
E por assim dizer a festa estava terminada.
Cordélia olhava ausente para todos, sorria.
– Já lhe disse: hoje não se fala em negócios! respondeu José radiante.
– Está certo, está certo! recolheu-se Manoel conciliador sem olhar a esposa que não o
desfitava. Está certo, tentou Manoel sorrir e uma contração passou-lhe rápido pelos músculos
da cara.
– Hoje é dia da mãe! disse José.
Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de Coca-Cola, o bolo desabado, ela era a mãe.
A aniversariante piscou.
Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente
não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a
aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a
presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-
os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu
joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a
carne de seu coração, Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada. Cadê Rodrigo?
Rodrigo com olhar sonolento e entumescido naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria
um homem. Mas, piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. Oh o desprezo pela vida
que falhava. Como?! como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, com
braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom
homem a quem, obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera
filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles
azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à
luz aqueles seres risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns
comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos
se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no
chão.
– Mamãe! gritou mortificada a dona da casa. Que é isso, mamãe! gritou ela passada de
vergonha, e não queria sequer olhar os outros, sabia que os desgraçados se entreolhavam
vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha, e não faltaria muito para dizerem que
ela já não dava mais banho na mãe, jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia. –
Mamãe, que é isso! – disse baixo, angustiada. – A senhora nunca fez isso! – acrescentou alto
para que todos ouvissem, queria se agregar ao espanto dos outros, quando o galo cantar pela
terceira vez renegarás tua mãe. Mas seu enorme vexame suavizou-se quando ela percebeu que
eles abanavam a cabeça como se estivessem de acordo que a velha não passava agora de uma
criança.
– Ultimamente ela deu pra cuspir, terminou então confessando contrita para todos.
Todos olharam a aniversariante, compungidos, respeitosos, em silêncio.
Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Os meninos, embora crescidos –
provavelmente já além dos cinquenta anos, que sei eu! – os meninos ainda conservavam os
traços bonitinhos. Mas que mulheres haviam escolhido! E que mulheres os netos – ainda mais
fracos e mais azedos – haviam escolhido. Todas vaidosas e de pernas finas, com aqueles
colares falsificados de mulher que na hora não aguenta a mão, aquelas mulherezinhas que
casavam mal os filhos, que não sabiam pôr uma criada em seu lugar, e todas elas com as
orelhas cheias de brincos – nenhum, nenhum de ouro! A raiva a sufocava.
– Me dá um copo de vinho! disse.
O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo imobilizado na mão.
– Vovozinha, não vai lhe fazer mal? insinuou cautelosa a neta roliça e baixinha.
– Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. – Que o diabo vos carregue,
corja de maricas, cornos e vagabundas! me dá um copo de vinho, Dorothy! – ordenou.
Dorothy não sabia o que fazer, olhou para todos em pedido cômico de socorro. Mas, como
máscaras isentas e inapeláveis, de súbito nenhum rosto se manifestava. A festa interrompida,
os sanduíches mordidos na mão, algum pedaço que estava na boca a sobrar seco, inchando tão
fora de hora a bochecha. Todos tinham ficado cegos, surdos e mudos, com croquetes na mão. E
olhavam impassíveis.
Desamparada, divertida, Dorothy deu o vinho: astuciosamente apenas dois dedos no copo.
Inexpressivos, preparados, todos esperaram pela tempestade.
Mas não só a aniversariante não explodiu com a miséria de vinho que Dorothy lhe dera
como não mexeu no copo.
Seu olhar estava fixo, silencioso. Como se nada tivesse acontecido.
Todos se entreolharam polidos, sorrindo cegamente, abstratos como se um cachorro
tivesse feito pipi na sala. Com estoicismo, recomeçaram as vozes e risadas. A nora de Olaria,
que tivera o seu primeiro momento uníssono com os outros quando a tragédia vitoriosamente
parecia prestes a se desencadear, teve que retornar sozinha à sua severidade, sem ao menos o
apoio dos três filhos que agora se misturavam traidoramente com os outros. De sua cadeira
reclusa, ela analisava crítica aqueles vestidos sem nenhum modelo, sem um drapeado, a mania
que tinham de usar vestido preto com colar de pérolas, o que não era moda coisa nenhuma,
não passava era de economia. Examinando distante os sanduíches que quase não tinham
levado manteiga. Ela não se servira de nada, de nada! Só comera uma coisa de cada, para
experimentar.
E por assim dizer, de novo a festa estava terminada.
As pessoas ficaram sentadas benevolentes. Algumas com a atenção voltada para dentro de
si, à espera de alguma coisa a dizer. Outras vazias e expectantes, com um sorriso amável, o
estômago cheio daquelas porcarias que não alimentavam mas tiravam a fome. As crianças, já
incontroláveis, gritavam cheias de vigor. Umas já estavam de cara imunda; as outras, menores,
já molhadas; a tarde caía rapidamente. E Cordélia, Cordélia olhava ausente, com um sorriso
estonteado, suportando sozinha o seu segredo. Que é que ela tem? alguém perguntou com uma
curiosidade negligente, indicando-a de longe com a cabeça, mas também não responderam.
Acenderam o resto das luzes para precipitar a tranquilidade da noite, as crianças começavam
a brigar. Mas as luzes eram mais pálidas que a tensão pálida da tarde. E o crepúsculo de
Copacabana, sem ceder, no entanto se alargava cada vez mais e penetrava pelas janelas como
um peso.
– Tenho que ir, disse perturbada uma das noras levantando-se e sacudindo os farelos da
saia. Vários se ergueram sorrindo.
A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua pele tão infamiliar
fosse uma armadilha. E, impassível, piscando, recebeu aquelas palavras propositadamente
atropeladas que lhe diziam tentando dar um final arranco de efusão ao que não era mais senão
passado: a noite já viera quase totalmente. A luz da sala parecia então mais amarela e mais
rica, as pessoas envelhecidas. As crianças já estavam histéricas.
– Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se a velha nas suas
profundezas.
Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava. E para aqueles que junto da porta ainda
a olharam uma vez, a aniversariante era apenas o que parecia ser: sentada à cabeceira da mesa
imunda, com a mão fechada sobre a toalha como encerrando um cetro, e com aquela mudez
que era a sua última palavra. Com um punho fechado sobre a mesa, nunca mais ela seria
apenas o que ela pensasse. Sua aparência afinal a ultrapassara e, superando-a, se agigantava
serena. Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo e severo sobre a mesa dizia para a infeliz
nora que sem remédio amava talvez pela última vez: É preciso que se saiba. É preciso que se
saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta.
Porém nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade era um relance. Cordélia olhou-a
estarrecida. E, para nunca mais, nenhuma vez repetiu – enquanto Rodrigo, o neto da
aniversariante, puxava a mão daquela mãe culpada, perplexa e desesperada que mais uma vez
olhou para trás implorando à velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto
dilacerante, enfim agarrar a sua derradeira chance e viver. Mais uma vez Cordélia quis olhar.
Mas a esse novo olhar – a aniversariante era uma velha à cabeceira da mesa.
Passara o relance. E arrastada pela mão paciente e insistente de Rodrigo a nora seguiu-o
espantada.
– Nem todos têm o privilégio e o orgulho de se reunirem em torno da mãe, pigarreou José
lembrando-se de que Jonga é quem fazia os discursos.
– Da mãe, vírgula! riu baixo a sobrinha, e a prima mais lenta riu sem achar graça.
– Nós temos, disse Manoel acabrunhado sem mais olhar para a esposa. Nós temos esse
grande privilégio – disse distraído enxugando a palma úmida das mãos.
Mas não era nada disso, apenas o mal-estar da despedida, nunca se sabendo ao certo o que
dizer, José esperando de si mesmo com perseverança e confiança a próxima frase do discurso.
Que não vinha. Que não vinha. Que não vinha. Os outros aguardavam. Como Jonga fazia falta
nessas horas – José enxugou a testa com o lenço – como Jonga fazia falta nessas horas!
Também fora o único a quem a velha sempre aprovara e respeitara, e isso dera a Jonga tanta
segurança. E quando ele morrera, a velha nunca mais falara nele, pondo um muro entre sua
morte e os outros. Esquecera-o talvez. Mas não esquecera aquele mesmo olhar firme e direto
com que desde sempre olhara os outros filhos, fazendo-os sempre desviar os olhos. Amor de
mãe era duro de suportar: José enxugou a testa, heroico, risonho.
E de repente veio a frase:
– Até o ano que vem! disse José subitamente com malícia, encontrando, assim, sem mais
nem menos, a frase certa: uma indireta feliz! Até o ano que vem, hein?, repetiu com receio de
não ser compreendido.
Olhou-a, orgulhoso da artimanha da velha que espertamente sempre vivia mais um ano.
– No ano que vem nos veremos diante do bolo aceso! esclareceu melhor o filho Manoel,
aperfeiçoando o espírito do sócio. Até o ano que vem, mamãe! e diante do bolo aceso! disse
ele bem explicado, perto de seu ouvido, enquanto olhava obsequiador para José. E a velha de
súbito cacarejou um riso frouxo, compreendendo a alusão.
Então ela abriu a boca e disse:
– Pois é.
Estimulado pela coisa ter dado tão inesperadamente certo, José gritou-lhe emocionado,
grato, com os olhos úmidos:
– No ano que vem nos veremos, mamãe!
– Não sou surda! disse a aniversariante rude, acarinhada.
Os filhos se olharam rindo, vexados, felizes. A coisa tinha dado certo.
As crianças foram saindo alegres, com o apetite estragado. A nora de Olaria deu um
cascudo de vingança no filho alegre demais e já sem gravata. As escadas eram difíceis,
escuras, incrível insistir em morar num prediozinho que seria fatalmente demolido mais dia
menos dia, e na ação de despejo Zilda ainda ia dar trabalho e querer empurrar a velha para as
noras – pisado o último degrau, com alívio os convidados se encontraram na tranquilidade
fresca da rua. Era noite, sim. Com o seu primeiro arrepio.
Adeus, até outro dia, precisamos nos ver. Apareçam, disseram rapidamente. Alguns
conseguiram olhar nos olhos dos outros com uma cordialidade sem receio. Alguns abotoavam
os casacos das crianças, olhando o céu à procura de um sinal do tempo. Todos sentindo
obscuramente que na despedida se poderia talvez, agora sem perigo de compromisso, ser bom
e dizer aquela palavra a mais – que palavra? eles não sabiam propriamente, e olhavam-se
sorrindo, mudos. Era um instante que pedia para ser vivo. Mas que era morto. Começaram a se
separar, andando meio de costas, sem saber como se desligar dos parentes sem brusquidão.
– Até o ano que vem! repetiu José a indireta feliz, acenando a mão com vigor efusivo, os
cabelos ralos e brancos esvoaçavam. Ele estava era gordo, pensaram, precisava tomar
cuidado com o coração. Até o ano que vem! gritou José eloquente e grande, e sua altura
parecia desmoronável. Mas as pessoas já afastadas não sabiam se deviam rir alto para ele
ouvir ou se bastaria sorrir mesmo no escuro. Além de alguns pensarem que felizmente havia
mais do que uma brincadeira na indireta e que só no próximo ano seriam obrigados a se
encontrar diante do bolo aceso; enquanto que outros, já mais no escuro da rua, pensavam se a
velha resistiria mais um ano ao nervoso e à impaciência de Zilda, mas eles sinceramente nada
podiam fazer a respeito: “Pelo menos noventa anos”, pensou melancólica a nora de Ipanema.
“Para completar uma data bonita”, pensou sonhadora.
Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contingências, estava a aniversariante sentada
à cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior do que ela mesma. Será que hoje não vai ter
jantar, meditava ela. A morte era o seu mistério.
ANDRADE, Carlos Drummond. Sentimento do mundo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

MÃOS DADAS CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO

Não serei o poeta de um mundo caduco. Provisoriamente não cantaremos o amor,


Também não cantarei o mundo futuro. que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Estou preso à vida e olho meus companheiros. Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. não cantaremos o ódio, porque este não existe,
Entre eles, considero a enorme realidade. existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
O presente é tão grande, não nos afastemos. o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, igrejas,
Não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos
janela, democratas,
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, cantaremos o medo da morte e o medo de depois da
Não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. morte.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os Depois morreremos de medo
homens presentes, a vida presente. e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e
medrosas.
CECÍLIA MEIRELES

Motivo Retrato

Eu canto porque o instante existe Eu não tinha este rosto de hoje,


e a minha vida está completa. Assim calmo, assim triste, assim magro,
Não sou alegre nem sou triste: Nem estes olhos tão vazios,
sou poeta. Nem o lábio amargo.

Irmão das coisas fugidias, Eu não tinha estas mãos sem força,
não sinto gozo nem tormento. Tão paradas e frias e mortas;
Atravesso noites e dias Eu não tinha este coração
no vento. Que nem se mostra.

Se desmorono ou se edifico, Eu não dei por esta mudança,


se permaneço ou me desfaço, Tão simples, tão certa, tão fácil:
— não sei, não sei. Não sei se fico — Em que espelho ficou perdida
ou passo. a minha face?

Sei que canto. E a canção é tudo.


Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
Lf ~l(\ç rrD e VliX) - rtO( se::; Poderíamos
sinônimas,
substituir
(Existirão
a palavra criaçiio
realmente
por outras,
sinônil~lOs. isto é. palavras
quase
que
tenham exatamente o_l1lcsmo significado'!) Se ~ubstituíssemos a
. Ir L~ C'f' ~~
(
t~~
. \ YC7'-' v-l_ ~ \. \
palavra criaçiio pela palavra ill\·cllçiio. por exemplo. j,Í seria ou-
tra teoria da literatura que estaria por detr,ís. "A i;1venção do
8 texto litenírio." Invenção é lambém a criaç;)o de lima coisa no-
va. mas não de modo divino e al1soluto. Inventar é usar o en-
A CRIAÇÃO genho humano. é interferir localizada.mente no conjunto dos
DO TEXTO LITERÁRIO artefatos de que o homem dispüe para tornar sua vida mais rica
e mais interessante. Dentro de um sistema de Verdade. ifl-
VCIIÇÜO tem até algo de pejorativo. Diz-se de uma mentira: isso é
uma invenção. Daí havcr algo de provocador n() uso da palavra
illFCIIÇÜO para designar o fazer artísticQ. O e~erilor que diz "eu
o título que me propuscram. e que aceitei. é extremamente invento" recusa as verdades ab~olutas e os I'alo"res e~l<Íveis.
ambicioso. Quercr sintetizar. numa breve comunicação, as ressalta sua habilidade mais do que SU<linspiração. O inVl:nlor
questões que esse título anuncia. seria urna pretcnsão ou uma in- não acredita necessariamente em Deus: Irah,lIll<I no mundo dos
genuidade. Fique. pois. desde logo claro que pretcndo apenas le- recursos humanos. Cham,lda de ill\·CflÇilo. a ohra de arte é com-
vantar aqui alguns pontos quc me parecem ftilldamentais. deixan- parável ;\ pülvora ou ao <I\·ião. ;\ceila-~e assim (Iue um,i in-
do (1 campo aberto para os dcpoimentos·dos escritores e as inter- venção também é circunscrita no templi: 01a ~er<Í suhstituída por
vençücs dos ouvintes que se seguirão 8S minhas colocações. outra. mais engenhosa. llIais llIoderna. Ess;\ é ln11,\ 1),11,1\'1';1 C<lra
., A criação do texto litenírio." Embora pareça bastante neutro, às vanguardas uo século XX. que ddendem o constantc prnduzir
cio novo como Ulll valor.
em sua generalidade. esse título j<Í implica uma determinada teoria
da literatura. !\ palavra criaçtlo supüc o tirar do nada, o tornar ex- Outra palavra quase sinllllim;1 das du,ls ;lIllL'riorcs é a p,lIana
istente aquilo que não existia antes. É urna palavra teológica. As- pmdllçiio. "A produç;)o do texto liler;íri(l." 1:,,;\ é uma pal;I\'1a
sim como Dcus criou o mundo a partir do Verbo. a~;sim o autor marcadamcnte materialista. Fm ccollollli;l. IJ/'IIdll('cllI é ;1 <:ri;u,:;)o
literário instauraria um munuo novo. nascido de sua vontade e de de bens e de serviços C<lP;lICS de suprir as Ilccessitl:ides m;llc.ri;lis
sua palavra. Para o leitor. esse mundo seria doado. com todas as do homcm. Produção implica quantidadc de o\ljC!OS c wlclivi-
suas maravilhosas novidades. como o jardim do Éden a Adão. A elade de produtores e consumidores. Não telll, portanto, qualquer
palavra criaçiiIJ, aplicada ao razcr artístico, pertcnce ao vocabulário conotação sobrenatural: é ainda mais tern:na do que a p,1I;I\'1'a ill-
uo idealismo romântico: presume que o artista não imita a na- vCJlçiio. E, das três p,llavras "qui apreselll<ld,IS COIllO p()ssí\Tis. l; <I

tureza. mas cria uma outra natureZ<1. gerada por um c,:.;cesso de que se liga ele nH)do mais homo!!êne(1 COIll a palavra (C.rlO, COIll-
car:íter divino c destinada a uma completude autúnoma. preendido este como objeto nl<ltcri;d l' COIIClC[O. Inserido IllIlll
Entretanto, o título proposto aeopla criaçt70 a outra palavra processo de produç;10. o lc.\!o fica cquil';lr,ldo ,I um produto dI)
que aponta para outras teorias. mais recentes. I~ a palavra texto. mundo industrial. como um guarda-chuva ou uma m,íquinil dc
costura.
Ao introduzir-se a palavra (exlO. remete-se para a matcrialidadc
du escrito, e atenua-se o incf<Ívcl da palavra criaçt7o, Forma-se as- Outras duas palanas poderi;lm ainda substituir. lH:sse univer-
sim um título de compromisso. de conciliação entre o "divino" da so vocabular. ,IS três anteriores: scri;lIn as pal,lvr;ls rt'{JU',I'('II(({(:C;Ol'
!!Cnese e o "humano. demasiadamentc hUlTlano" do objeto criado. expresstlIJ. Mas. para uS<Í-las. dcvcríamos rclirar ,I 1,;1I,IH<I (CX(O e
Como. porém. as alianças contaminam. o pniprio texto. aqui re- deixar ,lpenas ";] representaç:io liter;:ri;l" ou "a cxpress;lo lill'-
sultante de uma criação. torna-se um objeto algo miraculoso, co- r,íria", E esse fato ilOS mostra que j<Í eSI;lIlIO$ (:1\1outras C<lte,l!ori;ls
discursivas e enl outr,lS \'isadas ll'(íric;ls.
mo uma pomba surgida dc uma cartola.

fOI) {Ii{
\:' l-.} ~() - .•...
y

Por que fica impróprio "a representação do texto literário" ou \_;.':,\,\~»),\j,. ~) \h *


"a expressão do texto literáriÇ>"? Porque representação e ex- \)\)J
. .c,,!,f\~G\\
.f,,-<~j··· -..
pressão, diferentemente das três palavras previamente sugeridas,
;~. A literatura nasce de uma dupla fa!t<l: uma falIa sentida no
remetem para algo anterior ao texto, algo de preexistente; um
mundo (no caso da representação), um indivíduo (no caso da ex- mundo, que se pretende suprir pela linguagem. ela própria senlid;l
pressão). Representação é a palavra mais antiga em nossa teoria ef!l seguida com falta,
literária; é a mimese de Aristóteles. Supõe uma visão do real e /, A primeira falta é experimentada por todos, no mundo físico a
uma determinada imitação que, mesmo sendo uma transfor- ; que chamamos real. O mundo em que vivenlos. o rilllndo em qUL'
mação, tem o mundo como ponto lIe partilla. Expressão pertence tropeçamos diariamente. não é satisfatôrio, FSS;l 0 uma conslal;lç:io
ao vocabulário da psicologia e foi valorizada pelo romantismo tar- a que se chega bem cedo. na existência. ;\0 nascermos. o primeiro
dio. que privilegia, no ato de escrever. o sujeito emissor, com sua esforço para respirar e o choro emitido cm Cllnseqii0ncia j,i el'idell-
personalidade e seus afetos. ciam a falta do conforto 1I0 útero materno, Nos dias e meses
;\mbas as palavTas estão atualmente postas sob suspeita, na seguintes o bebê percebe (reclamando) o hlo de que a m,je 11;10 es-
teoria literária; porque a filosofia contempor<1nea duvida da possi- tá sempre presente, como ele o desejaria. ou de quc seu corpo mio
bilillade de se captar o mundo como uma totalidade representável está em permamellle bem-estar. Esse descontenlamento plimiíril1
e a lingüística questiona a anterioridade da idéia à palavra, a pri- que nos traz o estar no l11undo só faz acentuar-se pela vida ;lIora. ;'1

mazia do sentido sobre o dito. medida que à simples sensação da falta sc acrcseen[;lm as espLCU-
E agora, como ficamos? O que faz o escritor? Cria? Inventa? " lações racionais sobre como as coisas deveriam ser c n,IO S,IO.
Produz? Representa? Exprime? A respeito de cada um desses "~'o Quando digo qúe o mtindo não é satisfalório. pensa-se logo
verbos manifestei urna margem de reserV<l. que é característica de (concordando) no mundo atual. lIesde as amcaças de guerra nu-
um certo mal-estar da teoria- literária alual. pouco propensa às clear até os problemas gritantes de nossa realidadc brasileira, tvlas
definições categóricas e totalizantes. mais desconfiada dc scus seria ilusório pensar que nos c<lbe o doloroso privilégio de vivcr
pressupostos filosóficos e mais cética a respeito de suas possibili- um real insatisfatório. Todos os momentos da história do homelll
d<ldes "científicas". foram vividos como insatisfal<Írios ou mcsmo insuporl<íl'eis,
Esse mal-estar terminológico não deve, entretanto, desenco- Flaubert gostava de lembrar S<lO Policarpo, um rwírtir do século 11
rajar-nos. As palavras lIevcl11 ser revisitadas. reexaminadas e ex- de nossa era, que dizia: "tvleu Deus. em que século me lileslL's
ploradas. elas nos ajudam na aproximação 1I0 saber que buscamos nascer!", Dezessete séculos mais ta rde. o escri lor Ira ncês rc lom;l-
na medida mcsma em que conhecemos seus pressupostos e seus va essas palavras como suas, Cem anos lIepois. eu comcntci com
limites. E essa foi minha intenção ao examiná-Ias aqui, de modo Osrnan Lins essa citação de Policlrpo/Flauberl. O escritor bra-
forçosamente sumário, Q,i~x~o. invenção. produçã(?2._ rep'!:esen- sileiro concordou C()~llela. élcrcsccntando por SU;I conla: "Em quc
~~5~~ .~?'PJe~Jiio-:--q u ai q uc ~'~~sKU2~I~~'~rjã JiPJ~iilli!.SLd~s g,?s- século e em qlle IlIgl/r me fizestes nélscer!", Podemos arrematar
t:rl/as. com as qUals se tenta captar o fazer lIterárIO, pode ser por com 130rges em sua fina ironia. dizendo ;1 rcspcito de ;d~uL;m:
nós agora retomada, contanto que explicitel110s o modo como as "Coube-lhe, como a todos. maus tcmpos p;lra l'i\Tr",
estamos retomando. O que torna o real de nosso momento histórico mais agulla-
A literatura, felizmente. continua existindo, apesar de não mente insatisfatório éa maior complexidade de dados de quc dis-
acreditarmos mais na possibilidade de a linguagem representar ou pomos, aumentando nossa capacidade lIe conhecer c. paradoxal-
expressar um real prévio, criar, inventar ou produzir um objeto mente, impedindo-nos de chegar a uma vis,lo de conjunto, O que
que seja auto-suficiente ou. pelo contrário. reabsorvido e utilizado há, e já houve em doses. mais confortadoras para o homem. S;IO
pelo real concreto, A literatura parte d~l)}.u~ce_ill....9!L~retende di- modos de reagir à insatisfação que o mundo nos causa: pela re-
zer. falha sempre ao-JízTiu--:-iiúls--âüTiliwr lIiz outra cOlSã,"ÕeSVen- ligião. aceitando os desígnios da providência c remctendo () mun-.
-J;ilU]l ~)~nUõ'maIsr~alllo
.-- o

- que ;ql'ieJe qa-eprete;:;di~·di;.-er.


._----~..._- ._--" _. -~
'_.
---- ~ do sem falhas para o além-morte: pela aç;lo social. desde aquelas

102 lO3
~... ,;
I'

integradas num vasto projeto político até as isoladas, _que se apli-


Inúmeros ~ão os escritores quc defincm a literatura a partir da
cam a fazer pequenos consertos no rcal: pcla imaginação, pelo faz- faltaJFlaubcrlf; "A vida é 1,1u horrível que st'> seyod~ ..?up(~rt<í-Ia
dc-conta,_'lL!.~_r~os compensa~ po~_alg.un~ ~l~f!1<::IJtos~ºá iiisütis- evitan~lo-a; e p(xlemos f<l7:~-lo'quando se vive ii~mundo da arlc".
façiio causada peiõrc~t1. ' " Fernando Pess'o1: "/\ literatUJ:;I,~Õnl~) loda ;;rte:-Cllma Cllnfiss,10
Det~nhiliiló:il'l;s n'esse lÍitimo rccurso. o da imaginaçãà, A de que a vida não basta", No cntanto, nl'nhum d()s d(jis es'crevcu
imaginaç,10 como fuga ou compcnsaç<1o. como prêmio de pn!~er, é ul11a obra que se possa C<lracterizar conlll uma fuga para um Illun-
cxcrciUdct jj(JI' todós os st:res hum;lIlos, /\Iguns, eriirelanto, exte- do mais alegrc do que o rc'll. E !3(lI'ges) l'llj;IS Lihulas podem parc-
riorizam sua imaginação, inscrcvem-se em objetos expostos à per- cer, ü primeinL visla. como desvincul"das do rcal. ,Irirm<t: "A lite-
ccpção de outras pessoas, Esse é o modo artístico de exercer a ratura nasce da inrclicidade. A felicidadc n;locxi 'e nada, t\""m'Mi-
imaginaç,10 c de compensar o que falta no mundo. Nãu nos impor- CiUal e queC~~Ji?Xljj~~ã'"filt'(jlI;~í~lcL~~Ea':" Essa ~~"
ta, por enquanto, o valor dessc razer. isto é, se o objeto produzido ein-'(jlIé'sC; transfo'lli'í7í- a infelicidade é qll'e pode Cllmpensar a falta,
realiza ou n<1o o objctivo de substituir um real insatisfatôrio. Ten- não pelo que ela cria ou representa. mas por scu modo dc ser. /\
tar dar uma forma concrcla ao imaginado é. de qualquer modo, isso voitnremos mais adianlc,
uma atividadc dc tipo artístico.
De todas as prMicas de que podcmos valer-nos para refazer o , . Invcntar um outro Illllildo mais plenl! ou e\'illenci,lr as lacullas !!/"-
, elesse em que vivcmos s,10 duas mancir,ls dc rcclamar da l'all,1, •
rcal. COI11 a ajuda da imaginação. a quc aqui nos ocupa é a Mas aí chcgamos ao grande p'lrado.\o quc funda o fazer lilcr<Írio,
literária. isto é, a rcconstrução do mundo pelas palavras. 'Nas A literatura cmpreendc suprir;1 falIa por um sistcma quc funciona
histórias in\'cnladas podemos, eventlwlmente, encontrar um mun- em falta, em falso: cssc sisiCnia é <l lingu'lgclll. Us signos verbais
do preferível àquele em que vivemos: el11 certos poemas podemos \ 1-·· s<1o substitutos das coisas.scu uso rcpousa numa nler;1 cOJl\'cnção
Clll.:ontrar os dados do rcal harmonizados dc modo mais satis- I '

fatôrio, 1\las dizer que a ohra liteníria compensa assim, positiva- sIm. dIZer as cOisas e 'aceitar pcrdc-Ias, dIstanCIa-bis c alc Illcsmo
mentc. as falhas do real kvar-nos-ia a uma vis<1o idílica da literatu-
anulá-Ias, /\ linguagcm ni'io podc subslituir o Illundo, ncm ao
ra: supor quc todas as n,llTati\'as e todos os poemas apresentam mcnos represenl<í-Io ,(,li
d.c cor.rcspondência: I'ielmenle, l'mle
c~)isa ser;í apenas cv(icá~li),
.represcnlad;l ,por tal aludir
si~no, a AS_/'
ele
um mundo mais belo. mais prazeroso do que o mundo real. A li- através ele um pacto que implica a perda do rc;lI concreto,
teratura seria cntão aquele famoso "sorriso da sociedade", e o es- \ A lingu,lgem tem uma funçiio rdercnciaJ c uma prclenstlO
critor uma incorrigívd Poliana ou UIlI inofensivo sonhador. ./ , represcntaliv,l. Entrcl'lnl(). o IllUllLio l'Ii"Lil! pcl<l linguagcm nuncl
As obras estão aí para desmenti-Io. Que dizer daquelas narra- esl<Í tolalmcntc ,ldcquado ao rc,lI, Narr<lr uma histúria, Ill_esnll'.
tivas que nos mostram Urll mundo ainda mais terrível do que esse.
q 1~1~'U:.sl~~I,~i,l:.ll)"I7çúÜ:Y]íiÚ""h~_J2U;~~· pessoas
j,í t<1o insatisfatório. quc nos cerca? E daqueles poemas que mani- nunca contam o Illcsmo fal,o da mesnlil forma: a simples cscolha
fcstam urna dor ou um pavor ainda maiores do que os quotidiana- dos pnrmclllires.a sc.:rcm n,lITados, a (lrdcn,lç,lo dos fatos e o ,in-
mente nos assaltam? E csse é o modo de ser histórico da literatura '\l

!
guio de quc eles si'io cllcar'ldos. (udo isso l'Iia a possibilidade dc
co~lp()r'inca'.-'~:~~-J.-:.'-ll-'a-~-(~-_~~~~-,S-)_ COE=~e:r~ mil e uma hislúrias. das quais Ilcnhum;1 sl'r;í <I "rcal", Sempre cs-
-Ura. ncssàs-í."J, .H1SOl;gatlvas Te-se ,nnda l11alS claramente a IIlSatls- j lar,í faltando. na hisl(íria. <l1~(l dl! rc,lI: c 1ll1lil,IS vezcs se cs(ar;í
ração causada pela falta. Áccntuar o quc estú mal. torná-Io per- ~ criando. na histlÍria, algo quc f,lIla\',1 no rcal. Uu mclllllr. algo que,
ceptível e generalizado até o insuporlúvel. é ainda sugerir. indire- t
ao se produzir na hislúria. rcvel<l,uma illlpcrdo;ivl'i fal~l~1no real. ~
tamentc, o q uc devcria sc r e não é . Escrever um poem,l é l,imbcm. PCllJ tem:l, Ill<lgnlilcar um llU
,.•' .' ')-'
. ,.!. -, , Na sua .~
gênese
--'-~---e na sua realizaçüo. a literatura a. 011la-.--
sempre • v;írius aspectos dl! 1'C,i1.dcsprczando outros: l'cl,1 forma. rilmar as
" \:I 7'.\., '".I ~
pará'o 'ue
•. __falta,~-:;no mundo c...•••
~em __.•••..••
nós.
_ Ela emprcende dIzer as palavras como um convitc a rilmar o mundo, criar harmonias de f
, :.,' coisas como são. faltantes, ou como deveriam scr. completas, som c de sentido que n<1ose percehclll na linguagem correnle: ins-
" . ".

(
.
--
Trágica ou epifânica. negativa ou positiva, ela estéí sempre dizendo
:~

, ljue
" !__
1
: -
---

2 rea!JwQ.~~,_
=. ~.--~~-'''"''-._....... ....• '.......... -'- .... - - -
taurar o que Valéry define COIllO a "hcsilaç,10 cntre_ C! ,~onl e o SCIl-
tido", Na mônada do pocma. o mundo fica momentancamcilic

10·1 IO,'i
Ç)
( cifrado, a captação do particular insinuando que uma plenitude do , ou o poema e são suas linhas de força invisíveis. até o lavor minu-
. mundo é de~ejável e possível. ~Ti,aso do estilo, que consiste em colocar as r'alanas cm determina-
O hurizonte da literatura é sempre o real que se pretende re- da ordem, pesando como numa balança os sons c os ritmos. A for-
presentar-em sua dolorosa condiç;lo de falta ou reapresentar nu- ma buscada pelo escri.t9r'é"'não apenas essa forma sensívcl íiãõíã:
._ _._, ~ .- ,_ _ __ •• _'_. ,.:... __ - •• _ •• - __ .o~ ---_

ma proposta alternativa de cOlllplelude. Mas. por ser linguagem, a , Teriafiaade do Iscurso-maso aõ"mesrno f'enipo. a forma do sentido.
literatura nunca pode ser realista. O chamado realismo nada mais f , nõ arranjo )LIsta' as'rcfêrg-nci,is',-n7t-'cxriõr;lç~o-d;ls éOrl~(aç()~s. ;\
é do que um conjunto de efeitos, baseados el11 convenções que t 1~~irrCo'§là-~r.é~i~j~ ,f,': ~C_~l rdLi~)~.aIn<;!lt.e t ~,!ll]
ad ãj)7lra
variam historicamente. Céline assim explicava sua experiência, f 'colher,
I ,.""'''' no ••real,
'" veruades
.",,_. .__que
••...• não
>- '--', se vêem
~-, ,',-" •..0'" 'QP.S q~l_c
a ulho ..vistas,
'obri am a reformular o'prórrio real.-_
ele parcce torto pelo deito da rclraçao: entao, se qUIsermos que ' - Só poJ'êser-;;CritZ;j: nqucl~-(íue ~onhecc c aceita esse pcrcur-
ele pareça reto, lemos de quebr;í-lo antes de mergulhá-Io na água. so enviesado do real às palavras e das palavras ao real. aquele quc
aparentemente realIsta: ~uando se m=rgulh,~ um bast.ão na ágUa,)'
~ssa
------ ág,ua que
-~ obriga •.•••a~ entortar _ o real..•__rara que
.~ ~_ •.•• ele volte a
...-._••'_';.o~_. 1.'
sabe que seu caminho é o indireto. Dizia Clarice Lis[Jector:
ser Q.~ -realmente era, é a IlIlguagem li~!.ária. Já dizia
Words\Vorth: "A [Joesia é 'lm11\:;'/íiigüilgcj;]'JJStz;rcid;'::-Qualq uer Escrever é o modo de qucm tem a palavra como iSC1:a )ala ,-~t
linguagem dCfo)-niii-ã"SColsas:'e a ling~prénaaocscritor, para cando o quc
,",":;.-\ ••.~ •••.•
niio é pal'1\'fa..;.Um;1,-cz quc SCPL'SCOU
~_:..;.'~~,--,<"''''''.~~:;''-,.r-.':!,"-''~:'': ,
,I cl1lrclinh,l,
._
po-
dar verdade;ls coisas. assume decididamente seu estatuto de ar- dia-se com aliVIO Jogar a palavra lora, "',Ias,11 ccssa a analogia: a nao,
tifício e de ilusão. Daí a importância da forma e sua relação com a
Jalavra. ao ~ morder
.•.. -..;:..~""" -
a isca, incorporou-a,
",~~-,"--
.•..
~
verdade. na literatura.
Para se pensar essa relação da literatura com a verdade, vale a Saber que o escritor só atinge o "dcveras" como um "fingi-
pena lembrar os vari,riveis sentidos da palavra miro. Para os povos dor" (Fernando Pessoa), só alcança a verdade através de uma téc-
primitivos, o mito é a história verdadeira ror excelência; em nica, é ter consciência da gravidade de seu ofício: um fazer que
muitos desses [JOvos. são os relatos do quotidiano que são chama- !J.0 ~~s.~~e_(: n~.~,~~._~I.~~~~~SI,~~:
() que se COrl(lffm'f;~~larZJi'-
dos de "históri<JS falsas'o, Em nossa civilização. ao contrário, mito {) ma nau e um mero obJclO ornameHtal. l1]as Ulll objillLQ.!.lde o n:al
se dá a ver. O compromisso do CSCril(;r'C'õiíl~undo I~;;;r:)r
tomou oMais
tirosa. sentido
do que
de coisa
duas [Juramente
concepções imaginária
diferentes e.daportanto,
verdade. men-'
dois modos diferentes de buscá-l<í. Muito diverso de um devaneio
são {{V
,.1
fl't•... 'li;nc'(;;'~I:;;-misso com a forma: é o que Roland Barthes chamou
de "responsabilidade da forma",
fantasioso. o mito é um sistema simbólico rigorosamente forma- A simples denúncia, pela linguagcm. do que vai mal no mun-
lizado. O modo literária de buscar a verdade continua sendo o do, não tem a eficácia conscguida pelo trabalho da forma na lite-
modo simbólico do mito. ratura. Os artifícios do escritor revelam. ao rneslllo lempo. o quc
Contrariamente ao quc pensam os que têm uma concepção falta no mundo e aquilo que ncle- devcria eslar. FeI,1 força de SU,1
meramente instrulllental da linguagem~ a fonnQiizQÇào ejorati- articulação. contra[JoSta ú "desordem asi;ítica do mundo real"
vamcnte chamada de artifício),
~~-.._,.-c'.''''''. .---~'.'
n<llitera~n;~
" •..•. __ ,,~_~ __ ,_ •.•.
_
6:11í"ê;;ação'efirrí
_.__ ~_~_ •..• ~.-. . .
(Sorges). a obra literária dcmonstra que o hOlllcm é capaz de unl<l
ll~~~ uma ce;:.\.i!-'(er(~~:~~l~J}~o .....
L!~lr5)Elll~~..in~disp~nsá- harmonia maior. Mesmo as obras cuja tern,ílic;1 é a dcsordem c a

~.r.~~.0~:. 0l)g_~~h.~~~.
~~!J}5!JJ.l,!;1,S.~~ que.{(nº~)
A.:~~~!~j~!l~!!.~.5?,,~~':.r~~t~r
...p.JL.~I<Í.~q.u.s.h!.~i;!--ilguçada .valõ.~_~_s,~ --1~'1i\lhtt-
ahre .t~'i<~has]2'
~ laz:~_u.~,-i~!.an Q~.oY_9~.~11ge~;.~12~aJeorclenaç~:?~?..m,~~~.o. E
I
í
falta. quando possuem essa i'orça da forma. Clllnprclll uma funç;lo
positiva. Nietzsche dizia: "Todas ,IS cois<ts hoas siio fortes estimu-
lantes em favor da vida: é a!i,ís o caso dc t(ld(l~!I_
" ) por esse art1llcl0 da_toj'IDa que a literatura atinge uma verdade do ~
.'
}',
", ( rC~.:..,~:.rp'or -ii'ii~~giress;o verd,~~_<9iec li} -e~~ç~ií~~~iz~1:!Fiaube'iJ
'd~ia que nunc'a cõ fundo que escandaliza mas a formü:"-""':-:-::-:-:;;-'- rentemente uma ,lção alienante do real. I'ois. quando esse Illullllo
. ·~)\-tnra5aITll)uã,,-oTõril1a seexerce "em-iodos oÇ'níveis da obra
... ··'iteníria. desde as grandes estruturas. que sustentam a narrativa
justa.
invenlado
Por Ulll
ele outro
é se [Joderoso
erg.ue
lado, com arival edaquele
perturbadora
inventar que accil<ív,\\11OS
celtoa
arresenLHr quc lhe dü COIllOreal.
a for\11a
(1 illl'xistl'nte é só apaj
.,:'dl ).'}~
, ( : 106 107
,
.) j

-
Já Arist6teles, em sua teorra da_ representação poética, defendia
não a veracidade mas a verossimilhança: No
pli'a ato
e asdeintenções
recriação primitivas
da obra pela leitura, sãoa proposta
cio autor superadas, inicial
Entre se oam-l
di- . o

Não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é. sim. o de represen-


tar o que podia acontecer, quer dizer. o que é possível segundo a que °
zer eos propósitos
ouvir, entrede oum emissor e eo as
escrever ler.expectativas de ummaiores
ocorrem coisas receptor:do )
verossimilhança e a necessidade. há um saber inconsciente circulando na linguagem. instiluiç,lo c ,.J
"/,\"): - o Representnr o que poderia ter acontecido é sugerir o que bem O
comum de autoresassim,
que importa, e leitores.
n<lo S,IO as intcnçCles mensageiras do ,.ff
>"lf

)'i; J .\) r.0~.~~~r"e.[e~êàrlJoSS-íbliLd·;ile~Er;,alfZã'd.~~do:e,a~.,s é autor (por melhores que sejam), e sim sua cap:lcidadc de imprimir
,- -nesse sentido que a htemtura pode ser e c rcvoluclOnana: por n obra aquele impulso poderoso e aquela ahcrtura estimulante
, () nHÍliTer'V'íva aú(opià: nãõ' cônio 'o irrí~lgini{rio"<illlP,(;s~Ívél~m'a~' co- que convide o leitor a prosseguir sua criação, Todavi;1. assim como
o T1TGõ~lsna-gíiiáverpósSível.0"-'-- ", ", .. ,. o autor nüo é o dono absoluto da obra, que o ullrapassa. o leilor
·l-'-!(;-t'iXricc~Lispector observava: "Escrever é tnntas vS?~~~r-
.,; §e do ue nunca existiu". Lembrm::::~e do que nuncn existiu é não também nüo pode ler a prelensão de ser sober;lIlO em sua leilur:l. /
Aleilara <5um aprendizado de alenç:lo. de sensihilidade e dc in- ,
'cOl';-formar·se C(;111() mUlldo e suas histlÍrias. não considerar o real
venção. A grande obra não pode ser lida de qualquer maneira, ao (
, como o inelut;ívet; é afirmar
que as coisas poderiam ter sido ou-
tras. poderão ser outras. A função revolucionária da literatura não
consiste em emitir mensagens revolucionárias, mas em levantar, cri tas ciquela~
bel-prazer linhas subjetividade
da pura de força quc dopodem
leilor.serporquc
moduladas c prolon;
nela estão ins-{
gadas .. mas nao anuladas.
por suas reordenações e invenções. uma dúvida radical sobre a fa- Na circulação entre a proposta que é a ohra e sua recepção
talidade do real. sobre o determinismo da histlÍria. É o que diz pe'lo leitor cria-se não propriamcnle um mundo paralelo, repre-
Miguel Torga. emadminíveis versos: "Canta, poeta. canta!! Violen- sentado, e sim uma vis:lo valorativa do mundo em que vivcmos,
ta o silêncio conformado.! Cega com outra luz a luz do din.! Desns- Assim, a obra liter:íria é construç;lo do rcal e convite reiler:Hlo ao
sossega o mundo sossegado.! Ensina a cada alma a sua rebeldia". seu ultrapassamento. Essa comprecnsão permitida pela obra
Assim COlllO a literaturn não representa fielmente o real, tam- !ileníria é diversa da compreensão racional. visada pelos discursos
b<5m não age diretamente
•....
sobre ele. ~:::;,.~-..-_.-._--.-
A falta p(~de.. ~~ ser -.-.~
di Ia..•..,...-
m'ls _.não
.•.•..-
", instrumcntais da eiênci;l e da filosofia: é uma inteligC'ncia scnsí\'el.
~9JS~12!i~, Ainda Flaubert: "S~.:2·~s' fcil'lis piiIj dizêJg. que se opera cm nossa mente como em nosso corpo. pelo podcr
nüo par.1 tê-Io;'. O que a literatura pode. e faz, <5ampliar nossa com· de uma linguagem e111que as palavras eVOC:lI11ohjetos. mas SÜO.
pr~eal. por um processo que consiste em destruÍ-lo e re- ao mesmo tempo. objdos se nsÍ\'l:is e ;110 meSnlll sel)suais.
constrUÍ-Ia, alribuindo-Ihe valores que. em si, ele não lemo Como Assim. a literatura IlllI 1 C:l cst;,í afaslada do rc,J1. Trabalh:lr o
"
loJa arte "representativa". aliás. Comentando um filme sobre o j imagilHírio pela lingu:g!.em n,IO é scr C:lplur,ldo I)elo imagin:írio.
garimpo, que lhe foi moslrndo. um velho garimrciro observou: "Tu- mas caplurar. ;llravés uo illlagin,írio. \'erd,l(ks do re;J1 que n;lo se
do o que está lá, a genle já conhece: mas no filme ludo transpareee dão a ver fora de uma ordem silllb<ilica, ,\ IU~:J do re,J1. ou scu
c a gente reconhece" (U Estado de S. Paulo, .( de mnio de IlJ7K). oposto, o realismo, nunca se efetuam tol<J1lllcnte na liter:llur:1.
pois as duas atitudes têm o real como hori/onle e a ling.uagem co-
mo mediação. A linguagem é obsuículo. 11\1C:lminl1o do real. f.lJ:1S
( A criaçüo liter<Íria é um processo que tem dois p,ólos:. 0. es- é também possibilidade de fund:í-Io. Fora da ordem da lingua~em.
lerilor c o Ieilor. Â obra literária só cXlste. de falo (' IIldeflnlda- o real é apenas C'IOS. Como lembra Oct:l\'jo 1',1/. "a palaHa não S(l
\mente, enquanto recriada pela leitura. ofício que deve ser tão ali- diz o mundo. 'mas tamb<5m o funda - ou II tr:Jnsforma", Pre-
'vo quanto o do escritor. tendendo subslituir o real ou. pelo contnírio. l'Slll'lh,í-lo. scmpre <5
Nesse processo. o escritor é o deseneadendor. mas não o dono a ele que a literatura se refere. Tanto a fuga CllnlO o mergulho·
bsoiuto, como certo romantismo remancscentc quer fazer crer. obrigam-nos aTcr esse rcal. a question,í-Io e a ITin\'cnt:í-lo.

108 1M
Como todas as atividades humanas (a partir da própria fala),
ali-teratura nasce da vivência da falta e da aspiraçãc à comple-
tud:e. Essa compJetude. a literatura não nos pode dar. O que ela .';'
nos ,pode dar. isso sim. é uma forma de conhecimento que satisfaz:
não )uma verdade abstrata e dada. mas Ullla verdade corporificada
e em obra.
Cls inúmeros saberes carreados pela literatura são meros pre-
textos para um saber maior: o saber lia falta. e a permanente
manute nçào do desejo de supri-Ia. O mundo deixa a desejar, as
palavras estão sempre em falta: a literatura o diz. insistente e ple-
namente.[ IS184]
i
J
r
~.;·._.I
_ ~
•..

110
POEMAS GREGÓRIO DE MATOS “À cidade da Bahia”

“Inconstância dos bens do mundo” Triste Bahia! ó quão dessemelhante


Estás e estou do nosso antigo estado!
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia, Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Depois da Luz se segue a noite escura, Rica te vi eu já, tu a mi abundante.
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.
A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura? A mim foi-me trocando, e tem trocado,
Como a beleza assim se transfigura? Tanto negócio e tanto negociante.
Como o gosto da pena assim se fia?
Oeste em dar tanto açúcar excelente
Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza, Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Na formosura não se dê constância, Simples aceitas do sagaz Brichote.
E na alegria sinta-se tristeza.
Oh se quisera Deus, que de repente
E tem qualquer dos bens por natureza
Um dia amanheceras tão sisuda
A firmeza somente na inconstância.
Começa o mundo enfim pela ignorância. Que fora de algodão o teu capote!
A uma freira, que satirizando a delgada fisionomia do poeta lhe chamou OLAVO BILAC
“Pica-flor”
‘A um poeta’
Se Pica-flor me chamais,
Pica-flor aceito ser, Longe do estéril turbilhão da rua,
mas resta agora saber, Beneditino escreve! No aconchego
se no nome, que me dais, Do claustro, na paciência e no sossego,
meteis a flor, que guardais Trabalha e teima, e lima, e sofre, e sua!
no passarinho melhor!
Se me dais este favor, Mas que na forma se disfarce o emprego
sendo só de mim o Pica, Do esforço: e trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua
e o mais vosso, claro fica,
Rica mas sóbria, como um templo grego.
que fico então Pica-flor.

Não se mostre na fábrica o suplício


[Gregório de Matos]
Do mestre. E natural, o efeito agrade
Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade


Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.
RAIMUNDO CORREIA JOSÉ ALBANO

“As pombas”
Poeta fui e do áspero destino
Senti bem cedo a mão pesada e dura.
Vai-se a primeira pomba despertada...
Conheci mais tristeza que ventura
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
E sempre andei errante e peregrino.
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada...
Vivi sujeito ao doce desatino
E à tarde, quando a rígida nortada Que tanto engana, mas. tão pouco dura;
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas, E ainda choro o rigor da sorte escura,
Ruflando as asas, sacudindo as penas, Se nas dores passadas imagino.
Voltem todas em bando e em revoada...
Porém, como me agora vejo isento
Também dos corações onde abotoam, Dos sonhos que sonhava noite e dia,
Os sonhos, um por um, céleres voam, E só com saudades me atormento;
Como voam as pombas dos pombais;

Entendo que não tive outra alegria


No azul da adolescência as asas soltam,
Nem nunca outro qualquer contentamento
Fogem... mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...
Senão de ter cantado o que sofria.
PAULA NEI PADRE ANTÔNIO TOMÁS
[dedicado a FORTALEZA, Ceará, Brasil]
“A morte do Jangadeiro”
Ao longe, em brancas praias embalada
Pelas ondas azuis dos verdes mares, Ao sopro do terral abrindo a vela
A Fortaleza, a loura desposada Na esteira azul das águas arrastadas,
Do sol, dormita à sombra dos palmares. Segue veloz a intrépida jangada,
Entre os uivos do mar que se encapela.
Loura de sol e branca de luares,
Como uma hóstia de luz cristalizada, Prudente, o jangadeiro se acautela
Entre verbenas e jardins pousada Contra os mil acidentes da jornada;
Na brancura de místicos altares. Fazem-lhe, entanto, guerra encarniçada
O vento, a chuva, os raios, a procela.
Lá canta em cada ramo um passarinho,
Há pipilos de amor em cada ninho, Súbito, um raio o prostra e, furioso
Na solidão dos verdes matagais... Da jangada o despeja na água escura
E, em brancos véus de espuma, o desditoso
É minha terra! A terra de Iracema,
O decantado e esplêndido poema Envolve e traga a onda intumescida,
De alegria e beleza universais! Dando-lhe, assim, mortalha e sepultura
O mesmo mar que o pão lhe dera em vida.
Correspondências | Charles Baudelaire ALPHONSUS DE GUIMARAENS

A Natureza é um templo onde vivos pilares “Ismália”


Deixam escapar, às vezes, confusas palavras;
Quando Ismália enlouqueceu,
O homem ali passa por entre florestas de símbolos
Que o observam com olhares familiares. Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Como longos ecos que ao longe se confundem Viu outra lua no mar.
Em uma tenebrosa e profunda unidade, No sonho em que se perdeu,
Vasta como a noite e como a claridade, Banhou-se toda em luar...
Os perfumes, as cores e os sons se correspondem. Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...
Há perfumes frescos como carnes de criança, E, no desvario seu,
Doces como oboés, verdes como as pradarias Na torre pôs-se a cantar...
— E outros, corrompidos, ricos e triunfantes, Estava perto do céu,
Estava longe do mar...
Tendo a expansão das coisas infinitas, E como um anjo pendeu
Como o âmbar, o almíscar, o benjoim e o incenso,
As asas para voar...
Que cantam os transportes do espírito e dos sentidos.
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...
Charles Baudelaire [Tradução de Álvaro Cardoso Gomes]
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...
SOUSA, Cruz e. Poesia completa. Florianópolis: Fundação
Catarinense de Cultura, 1981. p. 135

“O Assinalado”

Tu és o louco da imortal loucura,


o louco da loucura mais suprema.
A Terra é sempre a tua negra algema,
prende-te nela a extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,


mas essa mesma Desventura extrema
faz que tu'alma suplicando gema
e rebente em estrelas de ternura.

Tu és o Poeta, o grande Assinalado


que povoas o mundo despovoado,
de belezas eternas, pouco a pouco.

Na Natureza prodigiosa e rica


toda a audácia dos nervos justifica
os teus espasmos imortais de louco!

[Cruz e Sousa]
AUGUSTO DOS ANJOS

ANJOS, Augusto dos. Antologia poética. Rio de Janeiro: Ediouro, 1991

“Psicologia de um vencido” “Versos íntimos”

Eu, filho do carbono e do amoníaco, Vês?! Ninguém assistiu ao formidável


Monstro de escuridão e rutilância, Enterro de tua última quimera.
Sofro, desde a epigênese da infância, Somente a Ingratidão – esta pantera –
A influência má dos signos do zodíaco. Foi tua companheira inseparável!

Profundissimamente hipocondríaco, Acostuma-te à lama que te espera!


Este ambiente me causa repugnância... O Homem, que, nesta terra miserável,
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia Mora entre feras, sente inevitável
Que se escapa da boca de um cardíaco. Necessidade de também ser fera.

Já o verme – este operário das ruínas – De olho na mídia Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
Que o sangue podre das carnificinas O beijo, amigo, é a véspera do escarro.
Come, e à vida em geral declara guerra, A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Anda a espreitar meus olhos para roê-los, Se a alguém causa inda pena a tua chaga
E há de deixar-me apenas os cabelos, Apedreja essa mão vil que te afaga.
Na frialdade inorgânica da terra! Escarra nessa boca que te beija!
Antes, o mundo não existia
Ailton Krenak

Os intelectuais da cultura ocidental escrevem livros, fazem filmes, dão conferências,


dão aulas nas universidades. Um intelectual, na tradição indígena, não tem tantas
responsabilidades institucionais, assim tão diversas, mas ele tem uma
responsabilidade permanente que é estar no meio do seu povo, narrando a sua
história, com seu grupo, suas famílias, os clãs, o sentido permanente dessa herança
cultural.
Aqui nesta região do mundo, que a memória mais recente instituiu que se chama
América, aqui nesta parte mais restrita, que nós chamamos de Brasil, muito antes de
ser 'América' e muito antes de ter um carimbo de fronteiras que separa os países
vizinhos e distantes, nossas famílias grandes já viviam aqui, são essa gente que
hoje é reconhecida como tribos. As nossas tribos. Muito mais do que somos hoje,
porque nós tínhamos muitas etnias, muitos grupos com culturas diversas, com
territórios distintos. Esses territórios se confrontavam, ou às vezes tinham vastas
extensões onde nenhuma tribo estava localizada, e aquilo se constituía em grandes
áreas livres, sem domínio cultural ou político. Nos lugares onde cada povo tinha sua
marca cultural, seus domínios, nesses lugares, na tradição da maioria das nossas
tribos, de cada um de nossos povos, é que está fundado um registro, uma memória
da criação do mundo. Nessa antiguidade desses lugares a nossa narrativa brota, e
recupera o feito dos nossos heróis fundadores. Ali onde estão os rios, as
montanhas, está a formação das paisagens, com nomes, com humor, com
significado direto, ligado com a nossa vida, e com todos os relatos da antiguidade
que marcam a criação de cada um desses seres que suportam nossa passagem no
mundo. Nesse lugar, que hoje o cientista, talvez o ecologista, chama de habitat, não
está um sítio, não está uma cidade nem um país. É um lugar onde a alma de cada
povo, o espírito de um povo, encontra a sua resposta, resposta verdadeira. De onde
sai e volta, atualizando tudo, o sentido da tradição, o suporte da vida mesma. O
sentido da vida corporal, da indumentária, da coreografia das danças, dos cantos. A
fonte que alimenta os sonhos, os sonhos grandes, o sonho que não é somente a
experiência de estar tendo impressões enquanto você dorme, mas o sonho como
casa da sabedoria.
Vocês têm uma instituição que se chama universidade, escola, e têm a instituição
que se chama educação. Todas estas instituições: educação, escola, universidade,
elas estão no sonho, na casa do conhecimento. Esse sonho tem um aprendizado
para o sonho. E, quando nós sonhamos, nós estamos entrando num outro plano de
conhecimento, onde nós trocamos impressões com os nossos ancestrais, não só no
sentido de nossos antigos, meus avós, meu bisavô, gerações anteriores, mas com
os fundadores do mundo. Tomara que a palavra habitat tenha esse sentido que
estou pensando, que ela não seja só um sítio, uma cidade, ou lugar só na geografia,
que ela tenha também espírito, porque, se ela tiver espírito, então eu consigo
expressar uma idéia que aproxima, para você, o lugar de onde estou tentando contar
um pouco da memória que nós temos de criação do mundo, quando o tempo não
existia.
Quando eu vejo as narrativas, mesmo as narrativas chamadas antigas, do Ocidente,
as mais antigas, elas sempre são datadas. Nas narrativas tradicionais do nosso
povo, das nossas tribos, não tem data, é quando foi criado o fogo, é quando foi
criada a lua, quando nasceram as estrelas, quando nasceram as montanhas,
quando nasceram os rios. Antes, antes, já existe uma memória puxando o sentido
das coisas, relacionando o sentido dessa fundação do mundo com a vida, com o
comportamento nosso, como aquilo que pode ser entendido como o jeito de viver.
Esse jeito de viver que informa a nossa arquitetura, nossa medicina, a nossa arte, as
nossas músicas, nossos cantos.
Nós não temos uma moda, porque nós não podemos inventar modas. Nós temos
tradição, e ela está fincada em uma memória de antiguidade do mundo, quando nós
nos fazemos parentes, irmãos, primos, cunhados, da montanha que forma o vale
onde estão nossas moradias, nossas vidas, nosso território. Aí, onde os igarapés, as
cachoeiras, são nossos parentes, ele está ligado a um clã, está ligado a outro, ele
está relacionado com seres que são aquilo que chamaria de fauna, está ligado com
os seres da água, do vento, do ar, do céu, que liga cada um dos nossos clãs, e de
cada um das nossas grandes famílias no sentido universal da criação.
Algumas danças nossas, que algumas pessoas não entendem, talvez achem que a
gente esteja pulando, somente reagindo a um ritmo da música, porque não sabem
que todos esses gestos estão fundados num sentido imemorial, sagrado. Alguns
desses movimentos, coreografias, se você prestar atenção, ele é o movimento que o
peixe faz na piracema, ele é um movimento que um bando de araras faz,
organizando o vôo, o movimento que o vento faz no espelho da água, girando e
espalhando, ele é o movimento que o sol faz no céu, marcando sua jornada no
firmamento e é também o caminho das estrelas, em cada uma das suas estações.
Por isso que eu falei a você de um lugar que a nossa memória busca a fundação do
mundo, informa a nossa arte, a nossa arquitetura, o nosso conhecimento universal.
Alguns anos atrás, quando eu vi o quanto que a ciência dos brancos estava
desenvolvida, com seus aviões, máquinas, computadores, mísseis, eu fiquei um
pouco assustado. Eu comecei a duvidar que a tradição do meu povo, que a memória
ancestral do meu povo, pudesse subsistir num mundo dominado pela tecnologia
pesada, concreta. E que talvez fosse um povo como a folha que cai. E que a nossa
cultura, os nossos valores, fossem muito frágeis pra subsistirem num mundo preciso,
prático: onde os homens organizam seu poder e submetem a natureza, derrubam as
montanhas. Onde um homem olha uma montanha e calcula quantos milhões de
toneladas de cassiterita, bauxita, ouro ali pode ter. Enquanto meu pai, meu avô,
meus primos, olham aquela montanha e vêem o humor da montanha e vêem se ela
está triste, feliz ou ameaçadora, e fazem cerimônia para a montanha, cantam para
ela, cantam para o rio... mas o cientista olha o rio e calcula quantos megawatts ele
vai produzir construindo uma hidrelétrica, uma barragem.
Nós acampamos no mato, e ficamos esperando o vento nas folhas das árvores, para
ver se ele ensina uma cantiga nova, um canto cerimonial novo, se ele ensina, e você
ouve, você repete muitas vezes esse canto, até você aprender. E depois você
mostra esse canto para os seus parentes, para ver se ele é reconhecido, se ele é
verdadeiro. Se ele é verdadeiro ele passa a fazer parte do acervo dos nossos
cantos. Mas um engenheiro florestal olha a floresta e calcula quantos milhares de
metros cúbicos de madeira ele pode ter. Ali não tem música, a montanha não tem
humor, e o rio não tem nome. É tudo coisa. Essa mesma cultura, essa mesma
tradição, que transforma a natureza em coisa, ela transforma os eventos em datas,
tem antes e depois. Data tudo, tem velho e tem novo. Velho é geralmente algo que
você joga fora, descarta, o novo é algo que você explora, usa. Não há reverência,
não existe o sentido das coisas sagradas. Eu fiquei com medo. Eu fiquei pensando:
e agora?
Parecia que eu estava vendo um grande granito parado na minha frente. Eu não
podia olhar. Fiquei muitos dias sem graça até que eu ganhei um sonho. Ganhei um
sonho desses que eu falei com vocês que não é só uma impressão de estar vendo
coisas dormindo. Mas para nós o sonho é um sonho de verdade, um sonho
verdadeiro, e tem sonho, sonho de verdade é quando você sente, comunica,
recupera a memória da criação do mundo onde o fundamento da vida e o sentido do
caminho do homem no mundo é contado pra você. Você toma, aprende como se
estivesse dentro de um rio. Este rio, você fica olhando ele, depois você volta, aí você
olha. Não é o mesmo rio que você está vendo, mas é o mesmo. Porque se você fica
olhando o rio, a alma dele está correndo, passando, passando... mas o rio está ali.
Então ele é sempre, ele não foi, é sempre. Não existiu uma criação do mundo e
acabou! Todo instante, todo momento, o tempo todo é a criação do mundo. Por isso
que no sonho a gente entra dentro dele, aprende, alimenta o espírito. Esse sonho
veio me mostrar que aquela caricatura de poder que os homens estavam inventando
aqui na terra é só uma simulação, porque eu pude encontrar, andar junto com os
meus parentes, meu irmão mais velho, que na nossa língua original se chama
Kiãnkumakiã. Este irmão mais velho que estava com a gente sempre, desde a
fundação do mundo, só que não é Deus. E nós vimos os meninos, os rapazes
andando num campo bonito, vasto. Uma relva baixinha e os rapazes traziam na mão
esquerda feixes de varas, daquelas varas sem gomo, lisas, taboca de fazer flecha,
mas na ponta não tinha lâmina, na ponta tinha pendão assim igual ao trigo florando.
Um grupo grande, incontável de rapazes e um guerreiro mais maduro, que estava de
lado, só mostrando uma parte do rosto, a vista apontando para o leste. Quando olhei
assim eu vi um grande lago, saindo quase da mesma altura da terra firme. Aí
aqueles moços foram andando para lá e, num gesto, eles se transportavam para
outro lugar firme, para a outra margem de um lago muito grande, que liga tudo,
numa canoa grande de luz, como se fosse de luzes assim... com gesto de vontade,
só com a vontade. Não tem foguete, míssil que faz isso, tecnologia que se inventa. E
todo esse 'futuro' já aconteceu na fundação do mundo. Os meus irmãos mais velhos
já conhecem tudo isso. Então, de sonho é isso. É um caminho que só podemos
fazer dentro da tradição e aprender que além do nosso conhecimento restrito sobre
uma ou outra coisa avançada para uma percepção que é integral, tudo está ligado,
as coisas que têm existência física, elas foram todas fundadas a partir da palavra
que foi ordenando a criação do mundo, que quando nós narramos as histórias
antigas nós criamos o mundo de novo, limpamos o mundo.
Então, antes do mundo, existia não só a história dos espíritos, dos elementos, mas a
história de todos os nossos povos antigos que conseguiram, ao longo dos tempos,
manter esta memória da criação do mundo.
Existem milhões de toneladas de livros, arquivos, acervos, museus guardando uma
chamada memória da humanidade. E que humanidade é essa que precisa depositar
sua memória nos museus, nos caixotes? Ela não sabe sonhar mais. Então ela
precisa guardar depressa as anotações dessa memória. Como estas duas memórias
se juntam, ou não se juntam? É muito importante para nossos povos tradicionais que
ainda guardam esta memória, herdeiros dessa tradição, cada vez mais restrita no
planeta, ilhados em alguns cantinhos do Pacífico, da Ásia, da África, aqui da
América, num mundo cada vez mais mudado pelo homem, onde o dia e a noite já
não têm mais fronteira, porque inventaram artifícios para ele rodar direto –
dia-noite-dia. Quando o homem rompe a separação entre o dia e a noite, como ele
vai sonhar? Quando os homens trabalham de dia, de noite, de dia, de noite,
qualquer hora, eles estão se parecendo muito com a criação dos homens mesmo,
que são as máquinas, mas muito pouco parecido com o criador do homem, que é o
espírito.
Para estes pequeninos grupos humanos, nossas tribos, que ainda guardam esta
herança de antiguidade, esta maneira de estar no mundo, é muito importante que
essa humanidade que está cada vez mais ocidental, civilizada e tecnológica, lembre,
ela também, dessa memória comum que os humanos têm da criação do mundo, e
que consigam dar uma medida para sua história, para sua história que está
guardada, registrada nos livros, nos museus, nas datas, porque, se essa sociedade
se reportar a uma memória, nós podemos ter alguma chance. Senão, nós vamos
assistir à contagem regressiva dessa memória no planeta, até que só reste a
história. E, entre a história e a memória, eu quero ficar com a memória.

KRENAK, Ailton. Antes, o mundo não existia. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e
história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. (Trad. Oscar Mendes e Milton Amado). São
Paulo: Globo, 1999. 3. ed. revista.

A Filosofia da Composição

Charles Dickens, numa nota que agora está à minha frente, aludindo a uma análise que
fiz, certa vez, do mecanismo, de Barnaby Rudge, diz "De passagem, sabe que Godwin escre-
veu seu Caleb Williams de trás para diante? Envolveu primeiramente seu herói numa teia de
dificuldades, que formava o segundo volume, e depois, para fazer o primeiro, ficou procu-
rando um modo de explicar o que havia sido feito".
Não posso pensar que esse seja o modo preciso de proceder de Godwin, e, de fato, o que
ele próprio confessa não está completamente de acordo com a idéia do sr. Dickens. Mas o
autor de Caleb Williams era muito bom artista para deixar de perceber a vantagem procedente
de um processo, pelo menos, um tanto semelhante. Nada é mais claro do que deverem todas
as intrigas, dignas desse nome, ser elaboradas em relação ao epílogo, antes que se tente
qualquer coisa com a pena. Só tendo o epílogo constantemente em vista, poderemos dar a um
enredo seu aspecto indispensável de conseqüência, ou causalidade, fazendo com que os
incidentes e, especialmente, o tom da obra tendam para o desenvolvimento de sua intenção.
Há um erro radical, acho, na maneira habitual de construir uma ficção. Ou a história nos
concede uma tese, ou uma é sugerida por um incidente do dia, ou, no melhor caso, o autor
senta-se para trabalhar na combinação de acontecimentos impressionantes, para formar
simplesmente a base da narrativa, planejando, geralmente, encher de descrições, diálogos ou
comentários autorais todas as lacunas do fato ou da ação que se possam tomar aparentes, de
página a página.
Eu prefiro começar com a consideração de um efeito. Mantendo sempre a originalidade
em vista, pois é falso a si mesmo quem se arrisca a dispensar uma fonte de interesse tão
evidente e tão facilmente alcançável, digo-me, em primeiro lugar: "Dentre os inúmeros
efeitos, ou impressões a que são suscetíveis o coração, a inteligência ou, mais geralmente, a
alma, qual irei eu, na ocasião atual escolher?" Tendo escolhido primeiro um assunto
novelesco e depois um efeito vivo, considero se seria melhor trabalhar com os incidentes ou
com o tom - com os incidentes habituais e o tom especial ou com o contrário, ou com a
especialidade tanto dos incidentes, quanto do tom - depois de procurar em torno de mim (ou
melhor, dentro) aquelas combinações de tom e acontecimento que melhor me auxiliem na
construção do efeito.
Muitas vezes pensei quão interessantemente podia ser escrita uma revista, por um autor
que quisesse, isto é, que pudesse, pormenorizar, passo a passo, os processos pelos quais
qualquer uma de suas composições atingia seu ponto de acabamento. Por que uma publicação
assim nunca foi dada ao mundo é coisa que eu não sei explicar, mas talvez a vaidade dos
autores tenha mais responsabilidade por essa omissão do que qualquer outra causa. Muitos
escritores, especialmente os poetas, preferem ter por entendido que compõem por meio de
urna espécie de sutil frenesi, de intuição estática; e positivamente estremeceriam ante a idéia
de deixar o público dar uma olhadela, por trás dos bastidores, para as rudezas vacilantes e
trabalhosas do pensamento, para os verdadeiros propósitos só alcançados no último instante,
para os inúmeros relances de idéias que não chegam à maturidade da visão completa, para as
imaginações plenamente amadurecidas e repelidas em desespero como inaproveitáveis, para
as cautelosas seleções e rejeições, as dolorosas emendas e interpolações; numa palavra, para
as rodas e rodinhas, os apetrechos de mudança no cenário, as escadinhas e os alçapões do
palco, as penas de galo, a tinta vermelha e os disfarces postiços que, em noventa e nove por
cento dos casos, constituem a característica do histrião literário.
Bem sei, de outra parte, que de modo algum é comum o caso em que um autor esteja
absolutamente em condições de reconstituir os passos pelos quais suas conclusões foram
atingidas. As sugestões, em geral tendo-se erguido em tumulto, são seguidas e esquecidas de
maneira semelhante.
Quanto a mim, nem simpatizo com a repugnância acima aludida nem1 em qualquer
tempo, tive a menor dificuldade em relembrar os passos progressivos de qualquer de minhas
composições; e, desde que o interesse de uma análise, ou reconstrução, tal como a que tenho
considerado um desiderato, é inteiramente independente de qualquer interesse real ou
imaginário na coisa analisada, não se deve encarar como falta de decoro de minha parte,
mostrar o modus operandi pelo qual uma de minhas próprias obras se completou. Escolhi “O
Corvo”, como a mais geralmente conhecida. É meu desígnio tornar manifesto que nenhum
ponto de sua composição se refere ao acaso, ou à intuição, que o trabalho caminhou, passo a
passo, até completar-se, com a precisão e a seqüência rígida de um problema matemático.
Deixamos de parte, por ser sem importância para o poema per se, a circunstância, ou
digamos, a necessidade que, em primeiro lugar, deu origem à intenção de compor um poema
que, a um tempo, agradasse ao gosto do público e da crítica.
Comecemos, pois, a partir dessa intenção.
A consideração inicial foi a da extensão. Se alguma obra literária é longa demais para
ser lida de uma assentada, devemos resignar-nos a dispensar o efeito imensamente importante
que se deriva da unidade de impressão, pois, se se requerem duas assentadas, os negócios do
mundo interferem e tudo o que se pareça com totalidade é imediatamente destruído. Mas,
visto como, ceteris paribus, nenhum poeta pode permitir-se dispensar qualquer coisa que
possa auxiliar seu intento, resta a ver se há, na extensão, qualquer vantagem que
contrabalance a perda de unidade resultante. Digo logo que não há. O que denominamos um
poema longo é, de fato, apenas a sucessão de alguns curtos; isto é, de breves eleitos poéticos.
É desnecessário demonstrar que um poema só o é quando emociona, intensamente, elevando a
alma; e todas as emoções intensas, por uma necessidade psíquica, são breves. Por essa razão,
pelo menos metade do Paraíso Perdido é essencialmente prosa, pois uma sucessão de
emoções poéticas se intercala, inevitavelmente, de depressões correspondentes; e o conjunto
se vê privado, por sua extrema extensão, do vastamente importante elemento artístico, a
totalidade, ou unidade de efeito.
Parece evidente, pois, que há um limite distinto, no que se refere à extensão para todas as
obras de arte literária, o limite de uma só assentada, e que embora em certas espécies de
composição em prosa, tais como Robinson Crusoe (que não exige unidade), esse limite pode
ser vantajosamente superado, nunca poderá ser ele ultrapassado convenientemente por um
poema. Dentro desse limite, a extensão de um poema deve ser calculada, para conservar
relação matemática com seu mérito; em outras palavras, com a emoção ou elevação; ou ainda
em outros termos, com o grau de verdadeiro efeito poético que ele é capaz de produzir. Pois é
claro que a brevidade deve estar na razão direta da intensidade do efeito pretendido, e isto
com uma condição, a de que certo grau de duração é exigido, absolutamente1 para a produção
de qualquer efeito.
Tendo em vista essas considerações, assim como aquele grau de excitação, que eu não
colocava acima do gosto popular nem abaixo do gosto crítico, alcancei logo o que imaginei
ser a extensão, conveniente para meu pretendido poema: uma extensão de cerca de cem
versos. De fato, ele tem cento e oito.
Meu pensamento seguinte referiu-se à escolha de uma impressão, ou efeito, a ser obtido;
e aqui bem posso observar que, através de toda a elaboração, tive firmemente em vista o
desejo de tornar a obra apreciável por todos. Seria levado longe demais de meu assunto
imediato, se fosse demonstrar um ponto sobre o qual tenho repetidamente insistido e que,
entre poetas, não tem a menor necessidade de demonstração; refiro-me ao ponto de que a
Beleza é a única província legítima do poema. Poucas palavras, contudo, para elucidar meu
verdadeiro pensamento, que alguns de meus amigos tiveram inclinação para interpretar mal.
O prazer que seja ao mesmo tempo o mais intenso, o mais enlevante e o mais puro é, creio eu,
encontrado na contemplação do belo. Quando, de fato, os homens falam de Beleza, querem
exprimir, precisamente, não uma qualidade, como se supõe, mas um efeito; referem-se, em
suma, precisamente àquela intensa e pura elevação da alma - e não da inteligência ou do
coração - de que venho falando e que se experimenta em conseqüência da contemplação do
Belo. Ora, designo a Beleza como a província do poema, simplesmente porque é evidente
regra de arte que os efeitos deveriam jorrar de causas diretas, que os objetivos deveriam ser
alcançados pelos meios melhor adaptados para atingi-los. E ninguém houve ainda bastante
tolo, para negar que a elevação especial a que aludi, é mais prontamente atingida num poema.
Quanto ao objetivo Verdade, ou a satisfação do intelecto, e ao objetivo Paixão, ou a excitação
do coração, são eles muito mais prontamente atingíveis na prosa, embora também, até certa
extensão, na poesia. A Verdade, de fato, demanda uma precisão, e a Paixão uma familiaridade
(o verdadeiramente apaixonado me compreenderá), que são inteiramente antagônicas daquela
Beleza que, asseguro, é a excitação ou a elevação agradável da alma. De modo algum se
segue, de qualquer coisa aqui dita, que a paixão e mesmo a verdade não possam ser
introduzidas, proveitosamente introduzidas até, num poema, porque elas podem servir para
elucidar ou auxiliar o efeito geral, como as discordâncias em música, pelo contraste; mas o
verdadeiro artista sempre se esforçara, em primeiro lugar, para harmonizá-las, na submissão
conveniente ao alvo predominante, e, em segundo lugar, para revesti-las, tanto quanto
possível, daquela Beleza que é a atmosfera e a essência do poema.
Encarando, então, a Beleza como a minha província, minha seguinte questão se referia ao
tom de sua mais alta manifestação, e todas as experiências têm demonstrado que esse tom é o
da tristeza. A beleza de qualquer espécie, em seu desenvolvimento supremo, invariavelmente
provoca na alma sensitiva as lágrimas. A melancolia é, assim, o mais legitimo de todos os
tons poéticos.
Estando assim determinadas a extensão, a província e o tom, entreguei-me à indução
normal, a fim de obter algum efeito artístico agudo que me pudesse servir de nota-chave na
construção do poema, algum eixo sobre o qual toda a estrutura devesse girar. Passando
cuidadosamente em revista todos os efeitos artísticos usuais, ou, mais propriamente,
situações, no sentido teatral não deixei de perceber de imediato que nenhum tinha sido tão
universalmente empregado como o do refrão. A universalidade desse emprego bastou para me
assegurar de seu valor intrínseco e evitou-me a necessidade de submetê-lo à análise.
Considerei-o, contudo, em relação a sua suscetibilidade de aperfeiçoamento e vi logo que
ainda se achava num estado primitivo. Como é comumente usado, o refrão poético, ou
estribilho, não só se limita ao verso lírico, mas depende, para impressionar, da força da
monotonia, tanto no som., como na idéia. O prazer somente se extrai pelo sentido de
identidade, de repetição. Resolvi fazer diversamente, e assim elevar o efeito, aderindo em
geral à monotonia do som, porém continuamente variando na da idéia: isto é, decidi produzir
continuamente novos efeitos, pela variação da aplicação do estribilho, permanecendo este, na
maior parte das vezes, invariável.
Assentados tais pontos, passei a pensar sobre a natureza de meu refrão. Desde que sua
aplicação deveria ser repetidamente variada, era claro que esse refrão deveria ser breve, pois
haveria insuperáveis dificuldades na aplicação de qualquer sentença extensa. Em proporção à
brevidade da sentença estaria, naturalmente, a facilidade da variação. Isso imediatamente me
levou a uma só palavra como o melhor refrão.
Suscitou-se, então, a questão do caráter da palavra. Tendo-me inclinado por um refrão, a
divisão do poema em estância surgia, naturalmente, como corolário, formando o refrão o
fecho de cada estância. Não cabia dúvida de que tal fecho, para ter força, devia ser sonoro e
suscetível de ênfase prolongada; e tais considerações inevitavelmente me levaram ao o
prolongado, como a mais sonora vogal, em conexão com o r como a consoante mais
aproveitável.
Ficando assim determinado o som do refrão, tornou-se necessário escolher uma palavra
que encerrasse esse som e, ao mesmo tempo, se relacionasse o mais possível com a
melancolia predeterminada corno o tom do poema. Em tal busca, teria sido absolutamente
impossível que escapasse a palavra "never more". De fato, foi ela a primeira que se
apresentou.
O desiderato seguinte era um pretexto para o uso continuo da palavra "never more"
(nunca mais). Observando a dificuldade que já encontrara em inventar uma razão
suficientemente plausível para sua continua repetição, não deixei de perceber que essa
dificuldade nascia somente da presunção de que a palavra devia ser contínua ou
monotonamente pronunciada por um ser humano. Não deixei de perceber, em suma, que a
dificuldade estava em conciliar essa monotonia com o exercício da razão por parte da criatura
que repetisse a palavra. Daí, pois, ergueu-se imediatamente a idéia de uma criatura não
racional, capaz de falar, e muito naturalmente foi sugerido de início, a de um papagaio, que
foi logo substituída pela de um Corvo, como igualmente capaz de falar e infinitamente mais
em relação com o tom pretendido.
Eu já havia chegado à idéia de um Corvo, a ave do mau agouro, repetindo
monotonamente a expressão "Nunca mais", na conclusão de cada estância de um poema de
tom melancólico e extensão de cerca de cem linhas. Então, jamais perdendo de vista o
objetivo - o superlativo ou a perfeição em todos os pontos -, perguntei-me: "De todos os
temas melancólicos, qual, segundo a compreensão universal da humanidade, é o mais
melancólico?" A Morte - foi a resposta evidente. "E quando", insisti, "esse mais melancólico
dos temas se torna o mais poético?" Pelo que já explanei, um tanto prolongadamente, a
resposta também aí era evidente: “Quando ele se alia, mais de perto, à Beleza; a morte, pois,
de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo e, igualmente, a
boca mais capaz de desenvolver tal tema é a de um amante despojado de seu amor”.
Tinha, pois, de combinar as duas idéias, a de um amante lamentando sua morta amada e a
de um Corvo continuamente repetindo as palavras "Nunca mais". E tinha de combiná-las
tendo em mente meu propósito de variar, a cada vez, a aplicação da palavra repetida, mas a
única maneira inteligível de tal combinação era a de imaginar o Corvo empregando a palavra,
em resposta às perguntas do amante. E então aí vi imediatamente, a oportunidade concedida
para o efeito do qual eu tinha estado dependente, isto é, o efeito da variação da aplicação. Vi
que poderia fazer da primeira pergunta, apresentada pelo amante - a primeira pergunta a que o
Corvo deveria responder "Nunca mais" -, que poderia fazer dessa primeira pergunta um lugar-
comum da segunda uma expressão menos comum, da terceira ainda menos, e assim por
diante, até que o amante, arrancado de sua displicência primitiva, pelo caráter melancólico da
própria palavra, pela sua freqüente repetição e pela consideração da sinistra reputação da ave
que a pronunciava, fosse afinal excitado à superstição e loucamente fizesse perguntas de
espécie muito diversa. Perguntas cujas respostas lhe interessavam apaixonadamente ao
coração, fazendo-as num misto de superstição e daquela espécie de desespero que se deleita
na própria tortura, fazendo-as não porque propriamente acreditasse no caráter profético, ou
demoníaco da ave (que a razão lhe diz estar apenas repetindo uma lição aprendida
rotineiramente), mas porque experimentaria um frenético prazer em organizar suas perguntas
para recebei, do esperado "Nunca mais", a mais deliciosa, porque a mais intolerável, das
tristezas. Percebendo a oportunidade que assim se me oferecia, ou, mais estritamente, que se
me impunha no desenrolar da composição, estabeleci na mente o climax, ou a pergunta con-
clusiva: aquela pergunta de que o "Nunca mais" seria, pela última vez, a resposta; aquela
pergunta em resposta à qual o "Nunca mais" envolveria a máxima concentração possível de
tristeza e de desespero.
Aí, então, pode-se dizer que o poema teve seu começo pelo fim por que devem começar
todas as obras de arte, porque foi nesse ponto de minhas considerações prévias que, pela
primeira vez, tomei do papel e da pena para compor a estância:

“Profeta!” - exclamo. “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave


[infernal!
Pelo alto céu, por esse Deus, que adoram todos os mortais,
fala se esta alma, sob o guante atroz da dor, no Éden distante
verá a deusa fulgurante a quem, nos céus, chamam Lenora
- essa, mais bela do que a aurora, a quem, nos céus, chamam
[Lenora!”
E o Corvo disse: “Nunca mais!”.
Compus essa estância, nesse ponto, primeiramente porque, estabelecendo o ponto
culminante, melhor poderia variar e graduar, no que se refere à seriedade e importância, as
perguntas precedentes do amante e, em segundo lugar, porque poderia definitivamente
assentar o ritmo, o metro, a extensão e o arranjo geral da estância, assim como graduar as
estâncias que a deviam preceder, para que nenhuma delas pudesse ultrapassá-la em seu efeito
rítmico. Tivesse eu sido capaz, na composição subseqüente, de construir estâncias mais
vigorosas, não teria hesitações em enfraquecê-las propositadamente, para que não
interferissem com o efeito culminante.
E aqui bem posso dizer algumas palavras sobre versificação. Meu primeiro objetivo,
como de costume, era a originalidade. A amplitude com que esta tem sido negligenciada na
versificação é uma das coisas mais inexplicáveis do mundo. Admitindo-se que haja pequena
possibilidade de variedade no ritmo, permanece claro, porém, que as variedades possíveis do
metro e da estância são absolutamente infinitas, e contudo, durante séculos, nenhum homem
,em verso, jamais fez ou jamais pareceu pensar em fazer alguma coisa original. A verdade é
que a originalidade (a não ser em espíritos de força muito comum) de modo algum é uma
questão, como muitos supõem, de impulso ou de intuição. Para ser encontrada, ela, em geral
tem de ser procurada trabalhosamente, e embora seja um mérito positivo da mais alta classe,
seu alcance requer menos invenção que negação.
Sem dúvida, não pretendo que haja qualquer originalidade, quer no ritmo, quer no metro
de "O Corvo". O primeiro é trocaico, o segundo é octâmetro acatalético, alternando-se com
um heptâmetro catalético, repetido no refrão do quinto verso e terminando com um tetâmetro
catalético. Falando menos pedantescamente, o pé empregado no poema (troqueu) consiste em
uma sílaba longa, seguida por uma curta; o primeiro verso da estância compõe-se de oito
desses pés; o segundo, de sete e meio (de fato, dois terços), o terceiro de oito, o quarto de sete
e meio o quinto idem, o sexto de três e meio. Ora, cada um desses versos, tomado
separadamente, tem sido empregado antes, mas a originalidade que "O Corvo" tem está em
sua combinação na estância, nada já havendo sido tentado que mesmo remotamente se
aproximasse dessa combinação. O efeito dessa originalidade de combinação é ajudado por
outros efeitos incomuns, alguns inteiramente novos, oriundos de uma ampliação da aplicação
dos princípios de rima e de aliteração.
O ponto seguinte, a ser considerado, era o modo de juntar o amante e o Corvo: e o
primeiro ramo dessa consideração era o local. Para isso, a sugestão mais natural seria a de
uma floresta, ou a dos campos; mas sempre me pareceu que uma circunscrição fechada do
espaço é absolutamente necessária para o efeito do incidente insulado e tem a força de uma
moldura para um quadro. Tem indiscutível força moral para conservar concentrada a atenção
e, naturalmente, não deve ser confundida com a mera unidade de lugar.
Determinei, então, colocar o amante em seu quarto - num quarto para ele sagrado, pela
recordação daquela que o freqüentara. O quarto é apresentado como ricamente mobiliado, isso
na simples continuação das idéias, que eu já tinha explanado, a respeito da Beleza como a
única verdadeira tese poética.
Tendo sido assim determinado o local, tinha agora de introduzir a ave e o pensamento de
fazê-lo pela janela era inevitável. A idéia de fazer o amante supor, em primeiro lugar, que o
tatalar das asas da ave contra o postigo é um "batido" à porta, originou-se de um desejo de
aumentar, pela prolongação, a curiosidade do leitor, e de um desejo de admitir o efeito casual
surgindo do fato de o amante abrir a porta, achar tudo escuro e depois aceitar a semifantasia
de que fora o espírito de sua amada que batera.
Fiz a noite tempestuosa, primeiro para explicar por que o Corvo procurava entrar e, em
segundo lugar, para efeito de contraste com a serenidade (física) que reinava dentro do quarto.
Fiz o pássaro pousar no busto de Minerva, também para efeito de contraste entre o
mármore e a plumagem - sendo entendido que o busto foi absolutamente sugerido pelo pássa-
ro - e escolhido o busto de Minerva, primeiro, para combinar mais com a erudição do amante
e, em segundo lugar, pela sonoridade da própria palavra Minerva.
Pelo meio do poema, também, aproveitei-me da força do contraste, tendo em vista
aprofundar a impressão derradeira. Por exemplo, um ar do fantástico - aproximando-se o mais
possível do burlesco - é dado à entrada do Corvo. Ele entra "em tumulto, a esvoaçar".

Como um fidalgo passo, augusto, e sem notar sequer


[meu susto,
adeja e pousa sobre o busto - uma escultura de
[Minerva.

Nas duas estâncias que se seguem, esse desígnio é ainda mais evidentemente
solicitado:

Ao ver da ave austera e escura a soteníssima figura,


desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus
[ais.
“Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular” - então lhe
[digo -
"não tens pavor; fala comigo, alma da noite, espectro
torvo, qual é o teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu
[no inferno torvo!"

E o Corvo disse: "Nunca mais".

Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe,


misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais,
Pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no
[presente,
que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua
[porta,
uma ave (ou fera, pouco importa) empoleirada, em sua porta,
e que se chama "Nunca mais".

Sendo assim assegurado o efeito do desenvolvimento, imediatamente troquei o fantástico


por um tom da mais profunda seriedade, começando esse tom na estância imediatamente
seguinte à última citada, com o verso:

Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave [sombria etc.

Daí para a frente, o amante não mais zomba, não mais vê qualquer coisa de fantástico na
conduta do Corvo. Fala dele como “horrendo, torvo, ominoso e antigo”, sentindo "da ave,
incandescente, o olhar" queimá-lo "fixamente". Essa revolução do pensamento, ou da
imaginação, da parte do amante, destina-se a provocar uma semelhante da parte do leitor,
levar o espírito a uma disposição própria para o desenlace, que é agora completado tão rápida
e diretamente quanto possível.
Com o desenlace conveniente, com a resposta do Corvo, "Nunca mais", à pergunta final
do amante, sobre se ele encontraria sua amada em um outro mundo, o poema, em sua fase
evidente, que é a da simples narrativa, pode ser considerado como completo. Até aí, tudo está
dentro dos limites do explicável do real. Um corvo, tendo aprendido rotineiramente a dizer
apenas "Nunca mais" e tendo escapado à vigilância de seu dono, é levado à meia-noite, em
meio à violência de uma tempestade, a buscar entrada numa janela, pela qual se vê ainda a luz
brilhar: a janela do quarto de um estudante, ocupado entre folhear um volume e sonhar com
uma adorada amante morta. Sendo aberta a janela, ao tumultuar das asas da ave, esta pousa no
sítio mais conveniente, fora do alcance imediato do estudante, que, divertido pelo incidente e
pela extravagância das maneiras do visitante, pergunta-lhe, por brincadeira e sem esperar
resposta, por seu nome. O Corvo, interrogado, responde com seu costumeiro "Nunca mais",
frase que logo encontra eco no coração melancólico do estudante, que, dando expressão, em
voz alta, a certos pensamentos sugeridos pelo momento, é de novo surpreendido pela
repetição do "Nunca mais" do Corvo. O estudante adivinha então a real causa do
acontecimento, mas é impelido, como já explanei, pela sede humana de autotortura e, em
parte, pela superstição, a propor questões tais à ave que só lhe trarão, ao amante, o máximo da
volúpia da tristeza, graças á esperada frase "Nunca mais". Levando até o extremo essa
autotortura, a narração, naquilo que denominei sua fase primeira ou evidente, tem um fim
natural e até ai não ultrapassou os limites do real.
Mas nos assuntos assim manejados, por mais agudamente que o sejam, por mais vivas
riquezas de incidentes que possuam, há sempre certa dureza ou nudez que repele o olhar
artístico. Duas coisas são invariavelmente requeridas: primeiramente, certa soma de
complexidade, ou, mais propriamente, de adaptação; e, em segundo lugar, certa soma de
sugestividade, certa subcorrente embora indefinida de sentido. Esta última, afinal, é que dá a
uma obra de arte tanto daquela riqueza (para tirar da conversação cotidiana um termo eficaz)
que gostamos demais de confundir com o ideal. É o excesso do sentido sugerido1 é torná-lo a
corrente superior, em vez da subcorrente do tema, que transforma em prosa (e prosa da mais
chata espécie) a assim chamada poesia dos assim chamados transcendentalistas.
Mantendo essas opiniões, ajuntei duas estâncias que concluem o poema, sendo sua
sugestividade destinada a penetrar toda a narrativa que as precede. A subcorrente de
significação torna-se primeiramente evidente no verso

"Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa


[porta!"
E o Corvo disse: "Nunca mais!"

Deve-se observar que as palavras "o peito" envolvem a primeira expressão metafórica no
poema. Elas, com a resposta "Nunca mais", dispõem a mente a buscar uma moral em tudo
quanto foi anteriormente narrado. O leitor começa agora a encarar o Corvo como simbólico,
mas não é senão nos versos finais da última estância que se permite distintamente ser vista a
intenção de torná-lo um emblema da Recordação dolorosa e infindável:
E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas
a fio, sobre o alvo busto de Minerva, inerte sempre
[em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em
[sonhos, dorme,
e a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua
[sombra.
Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma e,
[presa à sombra,
Não há de erguer-se, ai! nunca mais!

Tradução de Oscar Mendes e Milton Amado


O PRESO

Dr. Antero, charuto na boca, em mangas de camisa e suspensórios, derramava-se na


espreguiçadeira naquela tarde de domingo, os braços para cima, no alto da calçada. Já a sombra
das casas deitava-se larga sobre a praça da estação. Viera até ali para uma questão de terras e
hospedara-se na casa do próprio tabelião, conhecido velho. Estudara o processo, arrazoara, a pedido
seu1 o do cartório antedatou um documento, e Dr. Antero deveria voltar na manhã seguinte.

Ao lado, o tabelião, na blusa de pijama e chinelos, jogava gamão com o farmacêutico, figura
seca e encurvada, num grande nariz.

— Quina, compadre! — disse o serventuário, esfregando os pés um no outro embaixo da


cadeira. — Dou-lhe uma, dou-lhe duas. Tire esta.

O farmacêutico recolheu a pedra num silêncio concentrado. Homem de poucas palavras,


quando perdia ficava mudo e aborrecia as expansões do outro.

Dr. Antero tornou a estender a vista sobre a praça. Tirou o charuto melado da boca, cuspindo
peles de fumo:

— Há vinte anos que conheço esta terra, e não muda! Já vinte! A mesma coisa. Agora pior,
parece.

O do cartório, que era do situacionismo, guardou silêncio, O da farmácia aproveitou-se:

— Falta de um homem na Prefeitura.

— Ah! isso não, compadre, que ele até tem se esforçado.

— Aonde? Quer dizer a mim?

Dr. Antero escarrou:

— A falta de administração é geral. Uns irresponsáveis!

— Muito bem!

— Cinco e três. Casa de novo, compadre. Tire a sua pedra.

1
Dr. Antero falava por fado. No momento até aprovava aquela falta de progresso: saturado
da capital, todo ele repousava na paz dormente do lugarejo.

A estação em frente. Carros de carga no desvio. Um empregado da estrada de ferro passou


firmado na muleta, a lanterna apagada na mão. Um carro de boi esquecido à sombra de velha
mongubeira. Perto da cerca mais a distância, na grama verde, porque era fim de inverno, crianças
se divertiam com uma bola de meia. Trecho de serra em frente, saindo por trás da estação, onde as
nuvens caíam em grandes manchas na tarde.

O tabelião lembrou-se de que estava na hora do café, e dali mesmo, curvando-se um pouco,
gritou para dentro de casa através do corredor úmido e escuro:

— Belinha, um cafezinho aqui, nega.

— Vai já.

Foi aí que Dr. Antero resmungou na cadeira:

— Lá vem gente presa.

Os olhos ergueram-se do gamão e o dono da casa girou a cabeça para ver melhor:

— Vem mesmo.

Um velho mirrado e de pele escura puxava um jumento pelo cabresto, entre dois soldados
do destacamento. Atrás vinham alguns moleques, guardando distância, já enxotados pelos
soldados.

Ao aproximarem-se da casa, Dr. Antero levantou-se:

— Que há?

O grupo estacou. Os moleques tomaram chegada e se postaram de braços cruzados e


escorados nas pernas.

— Ele estava na feira... — iniciou-se um dos soldados.

— Doutor, me solte pelo amor de Deus! Eu peço a vosmecê pela sua bondade. Não fiz nada,
acredite.

Esqueceu-se o jogo. Já havia gente nas calçadas e janelas das outras casas. D. Belinha trouxe
a bandeja com café e ficou esquecida também, nas pontas dos pés, para olhar por cima do ombro
de Dr. Antero. Alguém derrubou o tabuleiro de gamão: bozó, pedras e dados por baixo das cadeiras.

2
— Um momento. Mas, afinal? — tornou Dr. Antero.

— Ele tem um apelido. Caroço.

— Mas me chamo Inácio2! Que eu não posso atender por um nome desse.

Houve risos em volta e os olhos se detiveram num 3lobinho que quase cobria a vista
esquerda do velho.

- Como? — fez Dr. Antero, pondo a mão em concha no ouvido.

— Caroço. É um apelido. Brincadeira de menino. Começaram a aperrear ele na feira.


Zangou-se, deu com o cacete pra trás e pegou no menino na altura da testa.

— Mas só foi na pele. E eu mesmo fiquei agoniado e procurei estancar o sangue. Um


vexame, doutor. Frecham em riba de mim todo o tempo. Empurrão, atiram casca de banana, toda
porqueira que dão de garra (com licença de vosmecê). Vem isto de anos. Já quis até me mudar de
canto, se pudesse. Apelo para vossa senhoria.

Dr. Antero irritou-se:

— Isto vale nada! Soltem o pobre do homem!

Inácio tomou-se de grande esperança, enquanto olhava para os que o detinham:

— Muito bem, muito bem, doutor!

— Não pode. O menino ferido é filho do Dr. Targino - falou o soldado.

— De quem?

— E filho do juiz de direito — esclareceu o farmacêutico ao lado.

— Meu velho, pra que você fez isso! — disse Dr. Antero, já sorvendo o café e perdendo
um pouco do primeiro entusiasmo.

— Não tava no meu propósito. Eu peço aos senhores. Me soltem, que eu não tenho
paciência de ser preso. Nunca fui. É o que eu digo aos meninos lá em casa.

Riram muito com a frase. O tabelião divertia-se, vermelho e todo sacudido pela novidade.
Sungava as calças com os cotovelos e comentava em volta de um para outro:

3
— Hem? Hem? Que tal? Esta é boa! “Não tenho paciência...” Como é que ele diz?

— Eles soltam logo, meu velhinho — adiantou D. Belinha, fazendo sinal ao marido para
conter-se.

Soltam não, dona. Eu sei o que é isso.

O velho apanhava numa das mãos o chapéu de palha desfiado nas abas, o cabresto do
jumento enrolado na outra. Pés descalços. Os cotos de unhas negros, comidos pela terra, lembravam
nós. Calcanhares gretados. As calças de morim ralo e sujo, curtas nas pernas e com joelheiras. No
pescoço fino e de pele engelhada uma medalha barata num cordão sebento. Os olhos miúdos e
escuros confundiam-se com a pele, lá dentro, um deles diminuído pelo lobinho.

Era grande o seu ar de aflição, dirigindo-se a todos os lados, com apelos gerais:

— Vim vender banana nesses caçuá. Antes não tivesse vindo.

Repetia-se, pedinte:

— Moços, vosmecês todos, me soltem.

Voltavam a rir:

- Ora, veja!

O jumento4 soprava forte nas narinas, baixando a cabeça, ou dava com a pata traseira para
tanger as moscas que lhe mordiam a pisadura na cilha.

O soldado mais novo insistia em que a prisão fosse feita. O outro quase não falava.
Limitava-se a soltar cusparadas de lado: nariz vermelho, gordo, o casquete colocado ridiculamente
no alto da cabeça, o cinto frouxo na barriga. Piscava e comia os beiços, num tique comum aos que
bebem. Dava a impressão de que tudo aquilo para ele era uma grande maçada.

Obedecia.

— Toca! — falou o mais novo.

O grupo retomou a marcha. Já iam distantes, e aqui na calçada o tabelião, rindo e enquanto
procurava pelo chão um dos dados:

— Como era que ele dizia mesmo?

4
— “Me soltem, que eu não tenho paciência de ser preso.”

— Aparece cada uma!

— Isto é uma judiação! — falou D. Belinha.

— É assim mesmo. Talvez ele tenha bebido, e foi violento — concluiu Dr. Antero, voltando
à espreguiçadeira.

Em frente à cadeia, amarraram-lhe o jumento no tronco da mangueira e o meteram na


primeira cela, com grades para a praça. Ele ainda se agarrou às barras de ferro da porta, numa
súplica:

- Me soltem... eu peço ao senhor.

O soldado girou o molho pesado de chaves e os seus passos se perderam ao longo do


corredor.

Vindo da luz, Inácio enxergava pouco ali dentro. Apertava os olhos, pondo a cabeça de lado
para orientar-se. Acocorou-se a um canto, onde os olhos miúdos brilhavam. Por fim, foi-se
acostumando à sombra: a cela era espaçosa e alta, chão de tijolo úmido, em cima um travejamento
forte e antigo. Passou o dedo no tijolo e provou o barro vermelho, supondo que ali tinham guardado
sal noutros tempos. Descobriu um caixão perto da janela, e acomodou-se melhor. Revia os seus: a
filha, a mulher e os meninos. Dizia-lhes sempre: “Nunca fui preso, e filho meu não me dá esse
desgosto. Está no bom comportamento de cada um.” Não sabia por que, insistia o rosto da filha,
que tinha os seus olhos pequenos, o cabelo apanhado num cocó. Encarregava-se de levar-lhe o
prato de comida5 no roçado. Ficavam os dois no canto da cerca, sob a sombra do cajueiro, enquanto
ele almoçava. O rosto da filha agora encarava-o de perto, em cima, sem compreender, o olhar
espantado.

Levantou-se e deu várias passadas na cela. Parou em frente a janela. Os olhos ficavam no
plano do peitoril, e podia avistar o jumento, que cochilava paciente, o cabresto muito curto, os
caçuás ainda na cangalha. De quando em quando dava com a pata traseira para a frente, tangendo
varejeiras.

Ao fundo, a calçada alta, com batentes, de um trecho do mercado. O sol declinava, filtrando-
se horizontal e vermelho na luz branda da tarde, e punha na parede da cela retângulos da grade.

5
Inácio aproximou o caixão da janela e alçou-se até o peitoril. O menino que ia passando em
frente à cadeia as sustou-se vendo aquele braço escuro a acenar-lhe entre as barras de ferro:

— Tenha medo não, meu filho.

— Hem?

— Ouça. Aí mesmo na ponta de calçada.

— Que é?

— Olhe, solte ali aquele jumento. Ele é meu. Quer se deitar e não pode. Tire o cabresto e
me dê.

— Vai embora.

— Faz mal não.

O menino obedeceu e entregou-lhe a corda pela janela.

Quando no outro dia pela manhã o soldado empurrou a porta pesada, Inácio pendia
enforcado da grade da janela, o nó apertando-se no terceiro varão, o caixão caído ao lado.

—Oh!

O rosto estava arroxeado e intumescido, a língua de fora, os pés, esticados para baixo,
roçavam a parede. O lobinho parecia tragicamente maior.

— Que coisa! Aqui, aqui! Ora, vejam!

Presos, soldados, gente das casas vizinhas e, dentro em pouco, uma multidão à porta da
cadeia.

A frase tomou conta das consciências. Pelas nove horas, o tabelião, ao assinar uma escritura,
6
ainda repetia, arrastando a pena no papel:

— “Me soltem, que eu não tenho paciência de ser preso.”

D. Belinha misturava-a com o caldo na cozinha, enquanto girava a colher de pau. O


farmacêutico triturava-a com o pó que mexia no almofariz.

Já o trem de Dr. Antero partira. Tentou a leitura de uma revista, que atirou de lado. Ergueu-
se, foi ao carro- restaurante, tornou à sua cadeira. Olhou pela janela. Um açude, bois que pastavam,

6
carnaubeiras e, logo a seguir, a ponte de ferro. As rodas do carro matraqueavam nos trilhos num
ritmo que reproduzia a frase inesperada:

— “Me soltem, que eu não tenho paciência de ser preso. Me soltem, que eu não tenho
paciência de ser preso.”

7
Tassos Lycurgo
www.lycurgo.org

ROSA, João Guimarães. “A terceira margem do rio”. In: ______. Ficção


completa: volume II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 409-413.

A Terceira Margem do Rio

João Guimarães Rosa


Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde
mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando
indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio
nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem
regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu
que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena,


mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda
fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por
uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que
nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada
não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto
de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não
se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa
ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus
para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma
recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu
somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca
volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir
também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O
rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me
leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção,
com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato,
para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se
indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a
invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro
da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para.
estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e
conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.

Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos
pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o
entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe,
por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para
outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando
pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra
banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem
canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então,
pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse,
Tassos Lycurgo
www.lycurgo.org

ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para


jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para
casa.

No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um
tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal
nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no
alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura,
broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão
custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa,
suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de
comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de
chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde
tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela
mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito
não se demonstrava.

Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios.
Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se
revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de
desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois
soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou
diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo
quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e
tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra
banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só
ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.

A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a


gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que
queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para
trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma,
como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas
friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por
todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava
em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão
nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da
canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia,
nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de
comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da
gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável.
Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido,
mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza
enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore
descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma.
Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se
podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para
se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.

Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele,
quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no
desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma
cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido
Tassos Lycurgo
www.lycurgo.org

nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele
agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e
dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de
roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.

Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de
respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom
procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que
não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se
lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio,
para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã
teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos,
no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do
casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender
os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã
chorou, nós todos aí choramos, abraçados.

Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu
e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos.
Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava
envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci,
com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no
ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme
indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse
revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse
homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as
falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras
cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam:
que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha
antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam
já em mim uns primeiros cabelos brancos.

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa?
Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu
sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha
achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê?
Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor,
deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se
despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o
fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou
o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas
fossem outras. E fui tomando idéia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se
falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido.
Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser
mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o
vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E
falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor
está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor
vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar,
do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais
certo.
Tassos Lycurgo
www.lycurgo.org

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá,
concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o
braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E
eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num
procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E
estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou
homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que
agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao
menos, que, no artigo da mo rte, peguem em mim, e me depositem também numa
canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a
fora, rio a dentro — o rio.

You might also like