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COLUNA VIVIAN WHITEMAN

Brasil,
brasa, braseiro
de o “inimigo comunista” ser importado diretamente da Disneylândia polí-
Com quantas tica estadunidense. Vermelho antes de o fogo ficar prisioneiro de ruralistas,
cores se faz uma bandeira? militares e milicianos.
Vermelho como o tronco sanguíneo do pau-brasil. Vermelho como o
urucum e outros corantes naturais fundamentais na pintura corporal dos
povos originários brasileiros. Vermelhos como os desenhos rupestres mile-
nares encontrados na região do Parque Nacional da Serra da Capivara, no
Piauí. Vermelho de flores, de comidas, de plumas de bichos que voam.
É tanto vermelho que ofusca.
As cores da bandeira, aliás, são controversas. Em sua origem, todas elas ti-
veram muito a ver com símbolos das dinastias europeias, com o privilégio ob-
viamente da portuguesa. Os impérios acima de tudo, afinal, cor do dinheiro.
O amarelo é de fato o pior. Não se disfarça de verde-floresta nem de céu
azul. É ouro, com tudo o que tem de bonito, mas também de garimpo, de
ILUSTRAÇÃO VICTOR AGUIAR MAGALHÃES destruição, de exploração. A outra opção é pior. O losango amarelo repre-
sentaria o “lugar da mulher”. Adivinhem? Filha, mãe, esposa etc.
Também poderia ser uma homenagem à imperatriz. E de novo as cores
Dom Pedro I, aquele do coração em conserva, não durou nem dez das Casas europeias, seus casamentos arranjados, suas perucas sujas, empo-
anos no posto de imperador do Brasil. Nesse meio-tempo, porém, arran- adas, cara e perfume dessa supremacia europeia tão escabrosa, com seus ór-
jou brecha para compor o “Hino da Independência”, não a letra, a músi- gãos preservados em vidrões de patê para exposição.
ca. Assim, para louvar o grande feito que ele de fato não fez, ou não fez, O verde-amarelo é hoje também nosso, como país, mas somente se to-
como a história oficial descreveu. mado num sentido novo, oposto àquele das manifestações fascistas. Até
Entra e sai setembro, lá vem o hino, que, segundo o gosto de Pedro, já foi mesmo a camisa da seleção de futebol precisa de resgate, tamanha a profun-
até o hino nacional. A letra é totalmente megalomaníaca, com aquele lance didade do buraco em que foi atirada.
de um Brasil que resplandece “do universo, entre as nações”. E aí o verde-ama- A regra é clara e branca: não aceita Exu nas customizações. Uma recusa
relo das paradas, com aquele jeitão de desfile militar à moda da Ditadura. das religiões de matriz africana, de seus orixás e tradições negros, de pele
Emílio Garrastazu Médici, ditador entusiasta da censura e da tortura, se preta. Vermelho e preto estão entre as principais cores de Exu, um orixá de
emocionava com restos mortais, desde que fossem da realeza. Faltou cho- qualidades extraordinárias que hoje é base e até método para uma série de
rar em um pronunciamento sobre a volta do corpo de Pedro I ao Brasil, estudos nas mais diversas áreas do conhecimento humano.
nos idos de 1972, enquanto seu governo prendia sem provas e assassinava Mas não pode vermelho, não pode traduzir palavras indígenas, não
a rodo, como depois seria provado. Eram os 150 anos da Independência, se pode Exu. Só pode “ordem e progresso”, segundo o eixo supremacista. Só
fazia necessário disfarçar o quanto esse país seguia preso e oprimido. Dom pode “nossa bandeira”, nesse plural majestático, mentiroso.
Pedro I virou uma espécie de Mickey da Ditadura, figura sempre exaltada Não pode até poder. Verde, amarelo, preto, vermelho, azul, branco, es-
nos desfiles de 7 de Setembro, cheios de tanques, soldados e armas. Uma pectro infinito dispersando luz. E um transparente respiro, uma cor chama-
nova velha moda, o horror como base de um mau gosto amargo. da alívio. Que o alívio, sabemos, não dura pra sempre, sabemos, sabemos. E
Imagens dessa época ainda encantam as viúvas da Ditadura. Passam as tro- ainda assim precisamos, não é pouco.
pas, as criancinhas obrigadas a marchar, passa a bandeira. Aquela que surgiu A coisa do “ordem e progresso” é outra história e a mesma. De inspira-
já na República e que “nunca será vermelha”, dizem por aí. Cores e valores. ção positivista, do original descartaram o amor e foram com a ordem e o
“Vermelho feito brasa.” É isso que significa “Brasil” em tupi. Literalmente, progresso. Eu, por mim, acabava com isso e botava logo uma Hilda Hilst:
vermelho. Vermelho bem antes de qualquer partido, vermelho muito antes “Como se te perdesse, assim te quero”.

Vivian Whiteman é psicanalista e editora especial da ELLE.

ELLE 1

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