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2510212021 Vida moral- Estado da Ate Vida moral 25/02/202125/02/2021 Desidério Murcho por Desidério Murcho © exame de varias maneiras inadequadas de tentar compreender a vida genuinamente moral sugere que este ndo é um conceito de facil apreensdo. Eis cinco dessas maneiras. Fala-se por vezes da Regra de Ouro como se fosse um principio moral: “faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti’. Isto ndo é um principio genuinamente moral, porque elege o que gostariamos que nos fizessem a nés como critério para determinar o que faremos aos outros. A Regra de Ouro nao capta a verdadeira natureza da aca moral, porque agir moralmente 6, entre outras coisas, e com restricgées, fazer aos outros o que eles querem que hes fagamos a eles, mesmo que isso seja diferente do que queremos que nos facam a nés. Enquanto nos centrarmos em nés préprios, nao compreenderemos o que é a vida moral A Regra de Prata é a ideia, reconhecidamente ainda pior do que a anterior, de que o principio moral seria ndo fazer aos outros 0 que nao gostarfamos que nos fizessem a nés. Nao se trata também aqui de pensamento genuinamente moral, e pela mesmissima razao: porque so as nossas preferéncias que constituem o critério da ac&o moral, em vez de serem as preferéncias dos outros. Agir moralmente é, em muitos casos, fazer aos outros 0 que nao gostarfamos que nos fizessem a nés — quando isso o que eles querem. Em contraste, a Regra de Ferro pretende caracterizar a natureza da agdo que nao é moral, mas falha também, e pelas mesmas razGes. A Regra de Ferro é fazer aos outros 0 que nao gostariamos que nos fizessem a nés. Como deveria ser evidente, fazer aos outros o que no gostariamos que nos fizessem a nés é precisamente o que por vezes a moralidade exige Uma quarta maneira de nao entender a moralidade é pensar que agir moralmente é cumprir a lei, Ora, a menos que a propria lei seja genuinamente moral, cumpri-la é muitas vezes uma garantia de que se age imoralmente. Se a lei impedir que se contrate uma pessoa devido ao seu sexo ou etnia, cumpri-la é agir imoralmente Por ultimo, também no se compreendeu ainda o que ¢ a moralidade quando se pensa que agir moralmente é agir de maneira justa. Neste caso, nao é to dbvio o que ha de errado nesta concesao da moralidade porque, em muitos casos, agir de maneira justa — no sentido da equidade — coincide com a acao moral, Mas em muitos casos ndo coincide, e é por isso que esta maneira de pensar é ainda uma maneira de ndo compreender a verdadeira natureza da vida moral. Em muitos casos, agir moralmente é ser solidario, o que significa dar hitpssestadodaarte.esladao com brhida-maral-desiderio-murcho! 18 2svo272024 Vida moral Estado da Ate aos outros nao aquilo a que tém direito, mas aquilo a que nao tém direito, mas é bom para eles. Voltaremos a este tera. O que @, entao, agir moralmente? Para tornar a pergunta mais vivida, imagine-se o Francisco, que esté a fazer uma prova de selecdo para urn bom emprego, e sente a tentacao de copiar pela Joana. Vejamos trés razdes para ele nao copiar, razées essas que ndo séo genuinamente morais. A primeira razo para nao copiar é que o Francisco tem medo de ser apanhado e ser excluido da selecdo para o emprego. Esta é uma boa razdo para nao copiar, mas responde exclusivamente aos interesses do préprio Francisco. Nao é, por isso, uma razdo moral para n&o copiar. £ uma razio interesseira. Claro que 0 ato em si de no copiar coincide com o que a moralidade Ihe exige, mas a razao pela qual ele nao copiou nao é moral — porque é meramente egoista Uma segunda razdo para nao copiar é o Francisco saber que a Joana detesta as pessoas que copiam, e se ela descobrir que ele copiou, deixa imediatamente de Ihe falar. Uma vez mais, esta ndo é uma razao moral para nao copiar. £ uma razdo interesseira; ele ndo quer perder a amizade da Joana. Por Ultimo, imagine-se que o Francisco nao copia por saber que, se o fizer, iré sentir-se mal porque estar a ser desleal para com os outros candidatos. Ele passou o fim de semana a cogar a barriga, enquanto os outros estudaram, mas depois consegue ser selecionado para 0 almejado emprego, tal e qual como eles. Uma vez mais, esta ndo é uma razao genuinamente moral para nao copiar. Tem alguns elementos de moralidade, porque o Francisco comecou a pensar um pouco no prejuizo que ira provocar aos outros, mas a sua razdo principal continua a ser egofsta: ndo quer sentir-se desleal para com eles, porque isso 0 incomoda Qual é ent&o a razio genuinamente moral para o Francisco nao copiar? E simplesmente que isso prejudica os outros candidatos. A Unica coisa que conta aqui é as preferéncias deles; nada mais. O pensamento moral é descentrado, e ndo uma espécie de egoismo mais ou menos disfarcado. Agir moralmente é agir ndo de acordo com as nossas preferéncias, mas de acordo com as melhores preferéncias relevantes de todos os envolvidos — 0 que nos inclui a nés, mas sem nos darmos a nés préprios um peso indevido, em contraste com 0 peso que damos aos outros, Agir moralmente, em muitos casos, é fazer algo que nos prejudica, devido aos outros. E é talvez por isso que € tao dificil compreender essa ideia, e é por isso que é de prever que a vida genuinamente moral seja quase ininteligivel para a generalidade das pessoas. Assim, uma maneira muito natural ¢ inicialmente promissora de formular o critério da aco moral é precisamente a que John Stuart Mill propés no século XIX: A felicidade que forma o padrdo utilitarista do que correto na conduta nao é a felicidade do préprio agente, mas a de todos os implicados. Entre a sua propria felicidade e a dos hitpssestadodaarte.esladao com brhida-maral-desiderio-murcho! 26 2510212021 Vida moral- Estado da Ate outros, o utilitarismo exige-Ihe que seja tao estritamente imparcial quanto um espetador imparcial e benevolente. ohn Stuart Mill, Utilitarismo, p. 148) Do seu ponto de vista, a aco moral é a que visa promover imparcialmente o florescimento humano — ou a felicidade, como Ihe chama Mill, ou a eudemonia, bem-estar ou realizacao. E este parece um excelente ponto de partida para compreender a natureza da vida moral Contraste-se com a ideia popular de que pensar e agir moralmente é simplesmente o resultado de nao cair em contradicao. Por detrés desta ideia estao ainda ecos da Regra de Ouro ou da Regra de Prata: a pessoa seria imoral porque quereria que os outros Ihe desse a ela 0 que ela no esta disposta a dar aos outros, 0 que parece envolver uma contradicao. Como vimos, isto é um despiste com respeito a compreensao da aco moral, nomeadamente porque é uma perspetiva egocéntrica. E também nao se compreende por que razdo haveria a ndo-contradicdo de ser moralmente relevante. E se para salvar vinte criangas de serem torturadas eu tiver de cair em contradigéo? Além disso, esta longe de ser ébvio que se encontre aqui qualquer contradigo. Encontra-se arbitrariedade, sem duvida, mas nao contradigao. Nao é contraditério uma pessoa defender que os outros devem responder adequadamente aos seus interesses, a0 mesmo tempo que ela se recusa a atender aos interesses dos outros. A pessoa nao defende que os seus préprios interesses exigem e nao exiger resposta adequada dos outros, e isto é que seria uma contradigao genuina. O que ela faz é dar-se a si propria uma prerrogativa que nao da aos outros, sem qualquer prova apropriada de que exista entre ela e os outros uma diferenga moralmente relevante que o justifique. Mas arbitrariedade nao é contradicao. Quem deu grande destaque filoséfico a ideia de que o fundamento da moral seria o desiderato de nao cair em contradigao foi Kant. De todos os exemplos de Kant que ilustram a suposta contradi¢éo da a¢ao imoral, o caso da promessa falsa é o que the é mais favoravel: Pergunto-me a mim préprio: ficaria eu realmente satisfeito se a minha maxima (livrar-me de dificuldades fazendo uma promessa falsa) fosse uma lei universal (para mim e também para 0s outros)? poderia eu de facto dizer para mim mesmo que toda a gente pode fazer uma promessa falsa quando esta numa dificuldade da qual nao pode livrar-se de outra maneira? Entdo logo me dou conta de que poderia de facto querer a mentira, mas jamais uma lei universal para mentir; pois de acordo com tal lei nao existiriam afinal quaisquer promessas, dado que seria futil assumir um compromisso corn respeito as minhas acdes do futuro perante quem nao acreditaria nele ou, caso irrefletidamente o fizessem, me pagariam na mesma moeda; e, por isso, a maxima, assim que se tornasse uma lei universal, teria de se destruir a si propria. (Immanuel Kant, Fundamentagdo da Metafisica dos Costumes, p. 4:403) hitpssestadodaarte.esladao com brhida-maral-desiderio-murcho! a6 2510212021 Vida moral- Estado da Ate A ideia de Kant tem bastante plausibilidade inicial, pois seria como defender que cada qual pode imprimir dinheiro ad libitum; a propria instituicdo social do dinheiro depende precisamente de nao se permitir tal coisa. No dia em que cada qual puder escrever que um papel vale cem euros, nenhum papel iré valer cem euros. A ideia de Kant é andloga: no dia em que cada qual puder fazer promessas falsas, deixa de haver promessas. Porém, apesar desta plausibilidade inicial, as coisas no sao assim to simples. A verdade & que nem toda a gente, em todos os casos, cumpre as suas promessas — mas nem por isso deixa de haver promessas. E a verdade é que ha quem imprima dinheiro falso, mas nem por isso deixa de haver dinheiro. A partir do momento em que se tem uma pratica social cooperativa, as prdticas parasitarias tornam-se possiveis. Nao é possivel que todo o dinheiro seja falso, e isso capta bem a ideia de Kant, e talvez nao seja também possivel que todas as promessas sejam falsas. Mas a questao moral é explicar o que ha de errado no parasita que quer que todos cumpram promessas, mas ele sé as cumpre quando Ihe da jeito, do mesmo modo que quer usufruir das vantagens do dinheiro genuino, ao mesmo tempo que imprime dinheiro falso. Uma vez mais, no parece haver da parte dele qualquer contradigao; h apenas arbitrariedade. Insistir na universalizabilidade dos princfpios morais, ideia que talvez Kant tivesse em mente, nao nos leva também muito longe. Para comegar, o principio moral do parasita é universalizavel: talvez ele pense que quem puder aldrabar sern ser apanhado, é tolo se néo aproveitar a oportunidade. Mas mesmo que um principio nao seja universalizavel sem contradigdo, falta ainda explicar por que razao haveria isso de ter algo a ver com a moralidade. Qualquer perspetiva acerca dos fundamentos da moral que nao radique diretamente nas caréncias e preferéncias alheias nao parece promissora, porque pressupde sem prova adequada o que parece simplesmente falso: que ha em si valor moral em nao cair em contradigao, ou em universalizar as nossas justificagdes morais, ou em nao cair na arbitrariedade. Outra maneira de ir na mesma direcdo nada promissora é oferecida pelo véu de ignorancia de John Rawls. A ideia aqui é que se um principio resultar da deliberacao de uma pessoa razodvel, sera genuinamente moral — desde que, para assegurar a sua imparcialidade, essa pessoa néo saiba o lugar que ira ocupar na sociedade: nao sabe se sera rico ou pobre, com talentos muito apreciados e bem pagos ou nem por isso, além de nao saber também a que etnia iré pertencer, nem que preferéncias sexuais tera, nem se ser religioso ou nao, conservador ou defensor das liberdades, anticapitalista ou empreendedor que gera empregos e riqueza. Se os principios que emergirem daqui forem genuinamente morais, importante anuncié-lo com fanfarra ao mundo inteiro pois significa, na pratica, que se resolveu de vez a perplexidade filoséfica quanto aos fundamentos da moralidade: 0 pensamento moral nada mais é, no fundo, sendo a coordenacao imparcial da acao de agentes com interesses egoistas. Sob o véu de ignorAncia, irei escolher os principios que respondam o melhor possivel aos meus interesses amorais. £, porque escolhi imparcialmente, esses principios séo automaticamente morais. hitpssestadodaarte.esladao com brhida-maral-desiderio-murcho! 406 2soare021 Vila moral - Estado da Ate Seria bom que isto fosse assim, mas nao é. Para se ver porqué, e por contraste, imagine-se que a pessoa que esta sob o véu da ignorancia nao sabe que lugar iré ocupar, mas ndo se esqueceu por magia das suas conviccdes morais. Em particular, trata-se de uma pessoa que considera da maxima importancia moral que ninguém seja explorado; trabalhar em prol dos outros é simplesmente inaceitavel, do seu ponto de vista; 0 seu, a seu dono, pensa esta pessoa. Ela ir ent&o organizar cuidadosamente as coisas para garantir tanto quanto possivel que ninguém produz duzentas unidades de riqueza, e fica apenas com cinquenta, porque os parasitas e exploradores Ihe comem as outras cento e cinquenta unidades. Chamemos-Ihe Max, porque sé Ihe falta uma letra. Emergira do pensamento de Max principios genuinamente morais? E aqui que reaparece a confusdo mencionada entre a justica, num sentido comum do termo, e a vida genuinamente moral, ou mais integralmente moral. Numa sociedade em que ninguém se apropria da riqueza alheia, nem dispée das pessoas dos outros a seu bel-prazer, é inequivoco que nao ha injustiga. $6 que também no ha ainda uma vida genuinamente moral, a menos que, além disso, exista solidariedade. Para minha surpresa, os dicionarios de lingua registam "solidariedade” como “mutualismo” u "cooperagao”, que estd longe de ser o que pretendo captar com este termo, e que me parece da mais alta importancia para compreender adequadamente o que é a vida moral. A cooperagao e 0 mutualismo so uma mera troca. Ora, apesar de ser verdadeiro que se daria um passo de gigante na direcdo da vida moral se ninguém fosse explorado — ou seja, se todos retribuissem na mesma moeda da ajuda, produto ou servico que receberam, em vez de receber e depois nao dar — estd ainda longe de ser uma vida integralmente moral porque falta a solidariedade. Mas em que sentido? No sentido da generosidade: dar a alguém nao o que resulta apenas da nossa obrigagao mutualista nascida das nossas relacées morais com ela, mas dar-Ihe o que é de importante para o seu bem-estar, mas que nao lhe devemos, porque simplesmente nao contraimos essa divida. © mutualismo é simplesmente a ajuda que o Max deu & Denise, em troca da ajuda que esta ja Ihe tinha dado. Ou o ordenado justo que a Denise paga ao Max pelo seu trabalho. Ou o dinheiro que 0 Max da 8 Denise quando esta, em troca, Ihe dé uma das suas galinhas. Tudo isto é a justica, no seu sentido mais cho e habitual: no sentido de ninguém explorar nem ser explorado, no sentido de todos darem o seu, a seu dono. Uma sociedade assim seria maravilhosa, e estamos a milhas de chegar Id. $6 que nao seria ainda uma sociedade integralmente moral. Porque faltaria ainda ajudar s6 porque isso é importante para quem & ajudado, apesar de quem ajuda nao ter contraido qualquer divida para com quem precisa da sua ajuda © conceito de vida moral plena, na qual a solidariedade é uma componente fundamental, é de tal modo exética no pensamento humano que quando se fala em ajudar os mais pobres, muitos acorrem a tentar provar que eles sé séo mais pobres porque foram roubados pelos mais ricos. E desse modo se revela que nao se entendeu ainda o que é a vida moral. Se hitpssestadodaarte.esladao com brhida-maral-desiderio-murcho! 56 2soare021 Vila moral - Estado da Ate amanha se descobrir numa das luas de Jupiter uns seres inteligentes desesperadamente pobres, pobreza pela qual a humanidade em nada é responsével, seria um gesto de genuina moralidade enviar-lhes toda a ajuda de que féssemos capazes. Mas nao os ajudar ndo seria injusto, precisamente porque nenhuma obrigacao moral contrairamos para com eles. Em termos praticos, e na realidade em que vivemos, isto significa que ndo precisamos de provar que as cerca de trinta mil pessoas que morrem por dia 8 fome e devido a doencas que resultam da pobreza extrema em que vivern, sé se encontram naquela tragica circunstancia porque foram vitimas de uma injustiga anterior. Isso certamente aconteceré em muitos casos, e 6 ainda mais chocante. Mas mesmo que a pobreza extrema de alguém, ou as suas limitagGes fisicas, mentais ou educativas nao sejam culpa de Max, que vive confortavelmente uma vida de classe média na Europa, no Brasil, nos EUA ou na Australia, Peter Singer defende que ele tem a obrigago moral de ajudé-la. Como esta proposta da mais pura bondade crista colide com o pensamento largamente amoral da humanidade, as pessoas apressam-se a encontrar racionalizagées para dourar a pilula, De um lado, a ideia falsa de que os pobres séo sempre pobres porque foram roubados; do outro, a ideia de que nada thes devernos, precisamente porque nao os roubémos. E em ambos os casos se revela uma incapacidade grotesca para pensar em termos genuinamente morais. A vida nao é ainda genuinamente moral enquanto nos limitarmos a dar aos outros o que por justica era deles desde 0 inicio, ou o que hes devemos devido as relages que com eles desenvolvemos. A vida sé é autenticamente moral quando damos generosamente a quem precisa, sem que essa pessoa tenha qualquer direito razoavel & nossa ajuda. Desidério Murcho Desidério Murcho é filésofo, escritor e professor de Filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto. £ autor, entre outros, de Filosofia Diretamente e O Lugar da Légica na Filosofia. Edita o site Critica na Rede hitpssestadodaarte.esladao com brhida-maral-desiderio-murcho! 6

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