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EXER CICIOS ESPIR me PIERRE E FILOSOFIA Nien bel} Digitalizado com CamScanner (1922-2010). tee corneas Led PUREE En este nearer tor tae eWiia tice Ree ed ne ce PoE ones ai eMts Gok seu ni ah aca ecccem tn) ensaios aqui reunidos, dedicadas ora. a um assunto,ora’s um fildsofo especifico, gravitam em torno de uma questo alojada no cerne do trabalho incansavel ¢ exaustivo de Hadot; no ponto de partida, trata- -se de estabelecer, por meio da caracterizacao do que ele chamou de Becsiae eae CU Tee ta Coe eee a Peale w uals ima mem Ree acy de viyer"; esta, por ser uma atividade técnica de interpretagao de oa Tmt ats oer eee ence ee areca ee Ean UCM Se Teme RT ane easel La nag is Ee cero Me irr ram (rt ee cat OM emer aT SS SO Uo Cate macy oem Re Seca eh tates Ect an sear wt onr ene Cer ees Cir BCT onsale teN Ua eM eh arama oe aats Peta Tree coco eae ned enteeeks Mot em sua plenitude a partir do rompimento com as amarras da filo- sofia universitdria. Nessa perspectiva, xercicios espirituais”, a des- peito dos embaracos que a palavra “espiritual” causa em nos hoje, eRe Umm NmtE Meee RCE Lehy tcc Comune Irae igualmente 0 logos, a imaginacao e a sensibilidade. Assim, teduzir Penn eee oa on EME ca, acaba por sustentar uma concepcdo de histdria da filosofia‘como chien aoc ccna teen ene mint ee nt mc ec ate nC alee ue CRU me OR oT nw Ure Maem Cs LS nnn Make To a Cr Oca ud a CeCe ee ORCC cCR Se ieee rte ene iene MLC AMC mC UCU Tener MTU Dec au CR UOITTL TST cot ey CRon nea nian ipsa ewe hs mais facilmente observado. Nao ¢ por acaso, portanto, que a figur On Tne eat OEE MARE RC) EOS n ec ace Penny OCMC R tac lonte | Da uec MMe econ eters yo tn neon acy “Figura’ remete aqui relagdo indissohivel entre filosofia maneira de viver, ¢ Sdcrates passa a ser assim o modelo, mesmo que Digitalizado com CamScanner ado com GamScanner Digitaliz Copyright © Editions Albin Michel, 2002 Copyright da edicaa brasileira © 2014 £ Realizagses : | ‘Titulo original: Exercces Spirituels et Philosophie Antique Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Producto editorial, capa ¢ projete grffico ERealizagtes Editora Preparaciio de texto Nelson Barbosa Revisto de texto Célia Maria Trazzi Cassis (Cr Bras. Cenoaictana Prascagho Srtevcaro Nacokit os Eoeromes be Lavaos, Ry Hidde dot, Pierre, 1922-2010 Exescicias espirinusis, a itt stp / ler He edo vi Foteel Logue Larne Oliveira Id ~So Paulo: fRealinsées, 19, 368 p24 cm, (Filosofia atual) ‘Tradogio de: Eseries spirtul et philosophic antique Incl bibliog fadice ISBN 978-45-8083-182.0 |. oso Titla tt Sie. M1794 Wha TeAii2014 Reservados todos og direitos desta obra. Proibida toda e ‘qualquer reproducio desta ‘tiga por qualquer meio fora, sala eed ow mecca, ost, Bravado ou qualquer outro meio de repradugso, sem permisso expressa do eto. Realzagoes Editor, Livrarae istribuidora Lida. Rua Franga Pinto, 494 Sao Paula SP- 0016.02 ‘Telefone: ($511)5572 5363, atendimento@erealizacoes.com.be+ www, erealizacoes.com.be Estelvrofoiimpresso pla RX Donnelley, em jancire de 2019. 0s tpos sho da | familia Minion Condensed Adobe Garamond Regular O papel do nila fo Lux team 70g eda capa carte Cordenons Stardream Copper 285g. igitalizado com GamScanner ff HPT EXERCICIOS ESPIRITUAIS E FILOSOFIA ANTIGA PIERRE HADOT lmpressio Sumdrio Preficio por Amold I. Davidson... Apresentacio a edicao de 199: PARTE I - EXERCICIOS ESPIRITUAIS Exercfcios espirituais (Anudrio da V° Sepio da Ecole Pratique des Hautes Etudes, LLXXXIV, 1977, p. 25-70) Exercicios espirituais antigos e“filosofia criti”. . PARTE II - SOCRATES Afigura de Sécrates, (Conferéncia proferida na sessio Eranos em Ascona [Sut] em 1974 e publicada nos Annales d’Eranos, vol, 43, 1974, p. 51-90) wise Sl PARTE I - MARCO AURELIO A fisica como exercicio espiritual ou pessimismo e otimismo em Marco Aurélio, (Revue de Théologie et de Philosophie, 1972, p. 225-39) Uma chavedas Meditagdes de Marco Aurélto: os trés topei filosdficos segundo Epiteto... (Les Etudes Philosophiques, 1978, p.65-83) Michelet eMarco Aurélio..............2.c00eseeeseveee 175 PARTE IV - CONVERSAO (BnoylpediaUnivesais .979-81 ‘alizado com CamScanner ) PARTE V - TEOLOGIA NEGATIVA Apofatismo e teologia negativa.. 27 PARTE VI - A LICAO DA FILOSOFIA ANTIGA A histéria do pensamento helenistico eromano .......... 231 (Aula inaugural no College de France, sexta-feira, 18 de fevereiro de 1983) A filosofia como maneira de iver ...........seet esse eee 261 (Anudrio de Collége de France, 1984-1985, p. 477-87) Um didlogo interrompido com Michel Foucault. Convergéncias e divergencias........00ecceeeeseeeees 275 Posfécio & segunda edicao (1987).......00ccccce0ceeeees 283 PARTE VII - 0 EU EO MUNDO Reflexdes sobrea nocdo de “Cultura de Si”.........60.... 291 “Ha, nos nossos dias, professores de filosofia, mas nao fildsofos...” ... 0 sdbio ¢ o mundo. A filosofia é um luxo? .. Meus livros ¢ minhas pesquisas Bibliografia, Indice das citagdes de Nietzsche Indice das citagdes de Kierkegaard, Indice de temas Digitalizado com CamScanner we PREFACIO Arnold 1, Davidson Lembro-me muito bem do momento no qual Michel Foucault me falou de Pierre Hadot pela primeira vez. Mesmo constatan- do seu vivo entusiasmo naquele momento, respondi-the que cu no era de modo algum um especialista em filosofia antiga e que nao queria me aventurar nesse campo, Somente muito mais tar- de comecei a ler Pierre Hadot, depois da morte de Michel Fou- cault, Imediatamente, fiquei impressionado nao somente com a exatidao e lucidez de suas interpretacdes dos textos, fruto de um conhecimento filolégico ¢ histérico irrepreensivel, mas so- bretudo com a visao em filigrana da filosofia que encontrei em seus ensaios e livros. Que Pierre Hadot seja um dos maiores his- toriadores do pensamento antiga em nossa época ¢ evidente; 0 que talvez seja menos evidente ¢ que ele € também um grande filésofo, Basta estudar o conjunto de sua obra para estar conven- ido disso. Este livro, Exercicios Espirituais e Filosofia Antiga, ja é um classico, e, como todas os verdadeiros cléssicos, mantém sua forca de permanecer atual, Gostaria de detalhar alguns aspectos da nogio de exercicios espirituais para melhor explicar por que P Hadot fez dela o fio " Professor de Filosofia na Universidade de Chicago, membro do Conselho do Tnscinugo do Pensamento Contemporineo aa Universidade Paris VIL. Digitalizado com CamScanner condutor de sua concepeao da filosofia antiga. P. Hadot sempre disse que sua descoberta da nocao de exercicio espiritual estava Jigada a um problema estritamente literdrio: como explicar a apa- rente incoeréncia de alguns fildsofos? Longe de buscar um novo tipo de espiritualidade edificante, Pierre Hadot queria confrontar o tema, historicamente constante, da pretensa incoertncia dos fildsofos antigos. E essa investigacao que o conduziu “a ideia de que as obras filosdficas da Antiguidade nao eram compostas para expor um sistema, mas para produzir um efeita formativo: o fi- Iésofo queria trabalhar os espiritos de seus leitores ou ouvintes para que se colocassem numa certa disposicao”." Antes formar os espiritos que as informar; eis a base sobre a qual repousa a ideia de exercicio espiritual. Portanto, nao hd de causar espanto a im- portancia, reafirmada sem cessar, que a leitura dos textos ocupa em B.Hadot: ler é um exercicio espiritual e nés devernos aprender aler, isto ¢,“parar, libertarmo-nos de nossas preocupagdes, vol- tar a nds mesmos, deixar de lado nossas buscas por sutilezas ¢ originalidade, meditar calmamente, ruminar, deixar que os textos falem a nds” (“Exercicios Espirituais”, p. 66). A esse respeito, hd que meditar a extraordindria citagio de Goethe que ele escolheu para concluir 0 capitulo “Exercicios Espirituais": ‘As pessoas [..] nao sabem quanto custa em tempo e esforgo aprender a ler. Pre- cisei de oitenta anos para tanto e sequer sou capaz de dizer se tive sucesso” (“Exercicios Espirituais”, p. 65). Ler ¢ uma atividade de formagio e de transformagao de si mesmo, e, seguinda P. Hadot, nao se hd de esquecer que os exerc{cios espirituais nao sao limi- tados a um campo particular de nossa existéncia; eles tém um alcance muito largo e penetram nossa vida cotidiana. ‘Na expressio “exercicios espirituais”, preciso levar em conta a mesmo tempo a nogdo de “exercicio” e o significado do termo “spiritual”. Os exercicios espirituais ndo funcionam simples ‘mente no nivel proposicional e conceitual. Nao é uma nova teoria metafisica que nos ¢ proposta aqui, pois os exercicios espirituais so precisamente exercicios, isto ¢, uma pratica, uma atividade, uum trabalho sobre si mesmo, o que se pode chamar uma ascese * Pierre Hadar, La Philerphie comme Menitre de Visre, Entretiens avec Jemit Garler Arnold 1. Daviton. Pais, Albin Michel, 2001, p. 101. § | xis prise hi ana Digitalizado com CamScanner de si. Os exercicios espirituais fazem parte de nossa experiéncia, so “experimentados”, Além disso, P. Hadot no emprega o termo “espiritual” no sentido de “religioso” ou “teoldgica”; os exercicios religiosos eram apenas um tipo, muito particular, de exercicio espi |. Por que, entdo, o termo “espiritual”? Somente apés ter climinado outros adjetivos, P. Hadot finalmente escolheu carac- terizar esses exercicios como “espirituais”; com efeito, “exercicios intelectuais” ou “exercicios morais” dio conta apenas parcialmen- te da densidade do sentido — “intelectual” nao recobre todos os aspectos desses exercicins e“moral” pode dara impressio inexata de que se trata de um cédigo de boa conduta. Como P. Hadot cla- ramente disse: “A palavra ‘espiritual’ permite entender bem que esses exercicios sio obra nio somente do pensamento, mas de todo o psiquismo do individuo” (“Exerefcios Espirituais”, p. 20). A-expressio engloba o pensamento,a imaginacia,a sensibilidade assim como a vontade.“A denominacio de exercicios espirituais é, finalmente, portanto,a melhor, porque marca bem que se trata de ‘exercicios que engajam todo o espirito” (“Exercicios Espirituais Antigos eFilosofia Crista™, p. 68-69). A filosofia antiga “é exerci- cio espiritual porque ela ¢ um modo de vida, uma forma de vida, uma escolha de vida",’ de modo que se poderia dizer também que esses exercicios so “existenciais”, porque possuem um valor existencial que diz respeito & nossa maneira de viver, nosso modo de ser no mundo; eles séo parte integrante de uma nova orien- taco no munda, uma orientagao que exige uma transformagao, uma metamorfose de si mesmo. P. Hadot resumiu sua concepgao dizendo que um exercicio espiritual ¢ “uma pratica destinada a operar uma modanga radical do ser’* Para compreender a radicalidade e a profundidade da ideia dos exercicios espirituais na concepgao de P. Hadot, ¢ preciso ter consciéncia da distingdo essencial que ele opera entre 0 discur- s0 filoséfico e a prépria filosofia, E uma distingao que, no fundo, faz emergir a dimensio prética ¢ existencial dos exercicios espi- rituais. Partindo da distingdo estoica entre 0 discurso segundo a 2 Thidem, p. 152. “Pierre Hadot, Qu et-ce que la Philosophie Antique? Patis, Folio, 1995, p. 271. (Em porugués: Pierre Hadot, O.queé « Filosofia Antiga? 3, ed. Trad. D. D, Machado, Sio Paulo, Loyola, 2008.] Prefiio | 9 Digitalizado com CamScanner filosofia ea prépria filosofia, P Hadot mostra que se pode utilizar ‘essa distingao “de uma maneira mais geral para descrever o fend- reno da filosofi’ na Antiguidade” * Segundo os estoicos, 0 discurso filosdfico se divide em trés partes - aldgica,a fisica ea ética; quando se trata de ensinar a fi- Josofia, expde-se uma teoria da Iégica, uma teoria da fisica e uma teoria da ética. Todavia, para 0s estoicos ~ e, num certo sentido, paraos outros filésofos da Antiguidade -, esse discurse filosdfico ndo eraa propria filosofia.* A filosofia nao é uma teoria dividida em trés partes, mas “um ato tinico que consiste em viver a légica, a fisica e a ética, Nao se faz mais entdo a teoria da ldgica, isto é,do falar bem e do pensar bem, mas pensa-se ¢ fala-se bem; nao se faz maisa teoria do mundo fisico, mas contempla-seo cosmos; nao se far maisa teoria da agao moral, mas age-se de uma maneira retae justa” (A Filosofia como Mancira de Viver",p. 264). Dito de outro modo," filosofia era o exercicio efetivo, concreto, vivido, a pratica da logica, da ética e da fisiea’,’ P. Hadot recapitula essa ideia da seguinte maneira: O discurso sobre afilosofia nao ¢ a filosofa [...|. As teorias filos6- ficas estdo a servign da vida filos6fica [... A filosofia, na época helenistica ¢ romana, apresenta-se entéo ism i midda de vide, dowd wii atte de Hivedi conm.imp maneira de ser. De fata, 20 menos desde Sécrates, a filosofia antiga tinha essa earacteristiea [...]. A filosofia antiga propde ao homem uma arte de viver; a filosofia moderna, ao contréria, apresenta-se antes de tudo como a construgdo de uma lingua gem técnica reservada a especialistas. (“A Filosofia como Ma- neira de Viver”, p. 271). Na Antiguidade, a tarefa essencial do fildsofo no era construir Ou expar um sistema conceitual; é por isso que P. Hadot critica 0s historiadores da filosofia antiga que representam a filosafia “Para a distinglo andloga em P imérodo da teologia d catre © mérodo i spi ‘mitica ver © capttulo "Apofatimo ¢ Tealagia Nepeat penty. ™ Prete Hadot La Phsophie comme Maitre de Vine, op. cep. 153. 10 | ris ese Sota Digitalizado com CamScanner primeiramente como um discurso ou uma teoria filoséficos, um sistema de proposi¢des. Ele explica esse ponto desta maneira: Todas as escolas denunciaram o perigo que o filésofo corre se imagina que sex discurso iloséfica pode bastar a simesmo sem estar de acordo com a vida Gloséfica [.... Tradicionalmente, aqueles que desenvolvem um discurso aparentemente filos6- fico, sem buscar relacionar a vida ao discurso e sem que o dis- curso emane da experitncia eda vida sio chamados “sofistas” pelos fildsofos [.)* Nesse sentido bastante preciso, poder-se-ia dizer que 0s sofis- tasenccarnam sempre um perigo para a filosofia, uma ameaca ine- rente’ tendéncia que considera que o discurso filoséfico basta asi mesmo ¢ ¢ inteiramente independente de nossa escolha de vida. Recentemente, P: Hadot continuou a detalhar sua cencepgao do papel do discurso filasdfico na prépria filosafia. Segunda ele, quando o discurso nio est separado da vida filosdfica, quando 6 parte integrante da vida, quando o discurso é um exercicio da vida filoséfica, ele-¢ entaa completamente legitimo ¢ até indispen- sdvel, Se os fildsofos da Antiguidade recusam-se a identificar a filosofia ao discurso filoséfico, bem evidente que ndo pode haverflosofia sem um discurso in- terior e exterior do fildsofo, Todavia, todos esses fildsofos |. se consideram filésofos nia porque desenvolvern um discursa filo- séfico, mas porque vivem flosoficamente. O discurso se integra a vida filsdfica [.} Para eles, a prépriaflosofia€antes de tudo uma forma de vida eno um discurso.? B, Hadot pretende combater a representacio da filosofia “re- duzida a seu contetido conceitual” e “sem relacdo direta, em tado caso, com a matéria do viver do fildsofo”. Quando.a filosofia se torna simplesmente um discurso filosdfico sem estar ligada e in- tegrada a um modo de vida filoséfico, ela sofre uma modificagéo "Idem, Qurestce que la Philsophie Antique’, op. cit, p- 268-69. * Idem, “La Philosaphie Antique: une Ethique ou une Pracique”, Ender de Philosophie Ancienne, Paris, Les Belles Lertres, 1998, p. 228. " Idem, Qu carce gue de Philowphie Antique’, op. cit... 387, 379. refi | 11 Digitalizado com CamScanner radical A filosfia comega a ser uma disciplina profundamente escolar ¢ universitaria, € 0 fildsofo, segundo a expressio de Kant, | torna-se um “artista da razio” que se interessa apenas pela pura | especulacio. P Hadot cita Kant: | ‘Quando tu vais comegara viver virtuosamente, ditia Patio a um, velho que Ihe contava que escutava ligGes sobre virtude. Nao se trata de especular sempre, mas é preciso, em algum momento, pensar em passar ao exerci. Hoje, porém, se toma por exatado aqoele que vive de uma maneira conforme ao que ensina,! Encontra-se um eco dessa citacao nestas questées de P Hadot: 0 que ¢, em dltima instincia, o mais dil ao homem enquanto homem? £ discorrer sobre finguagem ou sobre o sere 0 nao ser? Nao &, antes, aprender a viver uma vida humana? (“A Filosofia é uum Luxo?”, p. 329) Apesar dessa critica ao discurso filesdfico considerado como autnomo e separado da vida filoséfica, é claro também que nao he, por isso, uma desqualificagdo desse discurso. Todavia, contra- riamente 4 maior parte dos fildsofos contemporaneos, retém sua atengdo antes a modalidade psicagdgica do discurso que a mo- dalidade proposicional ¢ abstrata, No final das contas, escolha de vida e mancita de viver, exercicios espirituais ¢ discurso psicag6- gico e transformador sao trés elementos essenciais da visio da filosofia nos escritos de Pierre Hadot. Esta nova edi¢ao dos Exercicios Espirituais de P Hadot traz al- guns textos até entio dificeis de encontrar ou inéditos.“Reflexdies sobre a No¢do de ‘Cultura de Si", um texto jd muito discutido, continua o “didlogo interrompido” com Michel Foucault. Nessa discussio, P.Hadot acentua sobretudo o contraste entre “a estéti- cada existéncia" em Foucault e a consciéncia edsmica”, uma ou- tra ideia-chave de sua andlise, A nogao de conscitncia césmica, associada & prética da fisica como exercicio espiritual ¢ ao ideal de sabedoria, permanece wm dos aspectos mais surpreenden- tes ¢ singulares de seu pensamento. 0 exercicio da cansciéncia N Idem, Le Philomphrie comme Manitre de Vivre, op. cit é , Op. cit, p. 185. Ver cambérn Hador, Quistce que la Philosophie Antique’, op. cit, p.387-91, 399-406, 12 | Ec ias enige Digitalizado com GamScanner césmica nfo é somente um elemento capital de sua interpretagao da Antiguidade; ele permanece, a seus olhos, uma pratica atwal que modifica nossa relagio com nés mesmos ¢ com 0 mundo, 0 texto sobre Thoreau nos lembra como a ideia dos exerci- cios espirituais pode funcionar como um quadro interpretative para reler a histdria do pensamento de mado a nos permitir ver as dimensGes filosdficas de pensadores que, habitualmente, sio deixados na sombra pela representacio tradicional da histéria da filosofia, Nao somente Thoreau, mas também Goethe, Miche- Jet, Emerson e Rilke, entre outros, sie assim reconduzidos & di- ‘mensao propriamente filosdfica; ¢ até Wittgenstein, em P. Hadot, torna-se um outro tipo de pensador: além do professor de filoso- fia, um filésofo que exige um trabalho sobre nds mesmos ¢ uma transfiguragio de nossa visio do mundo, no mais forte sentido dessas expressdes. Em “0 Sibio € 0 Mundo”, novamente falando da consciéneia cdsmica,mas também da concentracdo sobre o momento presen- te,PHadot destaca a importincia da figura do sibio ¢ 0 papet do exercicio da sabedoria em sua concep¢io da filosofia."" A norma da sabedoria pode e deve realizar uma transformacio da relagie entre 0 eu ¢ 0 mundo, “gragas a uma mutago interior, gracas a uma mudanga total da maneira de ver € de viver” (“O Sdbio eo Mundo”, p. 326), A percepgao estética, coma destaca P Hadot, é “am tipo de modelo da percep¢Sa flaséfica” (“0 Sébio e 0 Mun- do", p.316), um modelo da conversio da atengao ¢ da transfor- macio da percepedo habitual que 0 exercicio da sabedoria exige. B-Hadot nos fornece instrumentos para aprender as possibilida- des existenciais e cosmolégicas da percepcao estética e, tal coma Merleau-Ponty, ele percebe numa certa visio estética um meio para reaprendera ver o mundo, Os trés outros textos novos desenvolvem ¢ ay jam 0 quadro das nocées das quais j4 tentei fornecer um esboco ¢ nos mostram a ligacéo intima entre o P, Hadot historiador da filoso- fia e oP: Hadot fildsofo. Ninguém detalhou melhor do que ele a ——_— * Ver também Hate, "La Figure du Sage dans 'Anciquieé Gréco-Larine", Erudes de Philssphie Ancienne, op. cit. Drei | 13, Digitalizado com CamScanner necessidade dessa relacao. Examinando a vasta tarefa do historia. dor da filosofia, ele conclui: [0 historiador da filosoGia] devers ceder logar a0 filésofo, 20 f- \gofo que deve sempre permanecer viv na histariador da filo. sofia. tarefa thima consistiré em colocar para si mesmo, com uma lucien aguda, a questdo decisiva:“o que ¢ filosofar?™.* Agora, deixo que os textos falem a nds. Se “1 Pieire Hadot, “Préface 4 Richard Goulet, Disrionnati ire des Philosophes Antiques", nudes de Philesephie Ancienne, op. ce, p. 272. a 14] Exc erie Shoviantign Digitalizado com CamScanner ApRESENTAGAG AppIcio pe 1993 presente volume reiine estudos, jd publicados ou inéditos, que escrevi ha varios anos, mas a tema geral a que eles dizem respeito esteve no centro de minhas preocupagdes desde minha juventude. Um dos meus primeiros artigos, publicado nas Atas do Congresso de Filasofia de Bruxelas, em 1953, jé tentava descrever o ato filoséfico como uma conversio, ¢ lembro-me sempre do en- tusiasme com 0 qual, no inquietante verdo de 1939, acasiéo de ‘meu Baccalauréat em Filosofia, ew comentavao tema da redagdo extraido de Henri Bergson: “A filosofia nao é uma construgao de sistema, mas a resolucdo, uma vez tomada, de olhar ingenuamen- tepara si eaoredor desi.Sobainfludnci de Bergson, depois do existencialismo, sempre concebi a filosofia como uma metamor- fose total da maneira de ver o mundo ede estar nele. Nao previa, em 1939, que passaria minha vida aestudaro pen- samento antigo e, mais pormenorizadamente, a influéncia que a filosofia grega exerceu na literatura latina. Todavia, € nessa dire- do quea misteriosa conjungio do acaso edanecessidade interior que dé forma a nossas destinos me orientou, Nessas pesquisas, constatei que muitas das dificuldades que experimentamos para compreender as obras filoséficas dos Antigos frequentemente provinham do fata de que cometemos, 20 interpreté-las, um du- plo anacronismo: cremos que, como muitas obras modernas, elas Digitalizado com CamScanner sdo destinadas a comunicar informagdes referentes aum conteg.. do conceitual determinado ¢ que podemos também tirar direta.. mente delas informagées claras sobre o pensamentoea psicologia de seus autores. De fato, porém, elas sia muito frequentemente exercicios espirituais que 0 proprio autor pratica ¢ faz seu leitor praticar, Elas sto destinadas a formar as almas, Tém um valor psicagdgico, Toda assercao, portanto, deve ser compreendida na perspectiva do efeito que visa a produzire ndio.como uma propa sigdo exprimindo adequadamente o pensamento ¢ os sentimen- tos de um individuo. Assim, minhas conclusbes metodoldgicas acabaram por se unir 4s minhas conviccées filoséficas. Esses temas filoséficos ¢ metodolégicos encontram-se na presente coletinea. Varios dos estudos aqui reunidos exprimem. em seus proprios titulos sua relacao com a nocd de exercicio espiritual. Contudo, compreender-se-é facilmente por que outros trabalhos tém lugar neste volume. A figura mitica de Sécrates a figura mesma do fildsafo, daquele que “se exercita” na sabedo- ria, Marco Aurélio é um homem da Antiguidade que pratica seus exercicios espirituais segundo um metodo rigoroso. Michelet & um homem moderno, mas ele também se cxercitava, ao longo de toda sua vida, na esteira de Marco Aurélio, para realizar em si mesmo a “harmonizagic", 0 esboco relativo ao fendmeno ge- ral da conversio permite compreender melhor como a filosofia € essencialmente conversio; portanto, uma vea mais, exercicio vivido, 0 outro esbo¢o, consagrado desta vez ao apofatismo e & experiéncia mistica, deixa entrever os problemas do discurso filo séfico deparando com os limites da linguagem, precisamente por- que @ filosofia é uma experiéneia que transcende toda expressio (e entrevé-se, a esse respeito, que 0 Tractatus de Wittgenstein & também um exercicio espiritual). Agradeco de todo coragao a meu amigo de longa data Georges Folic, gragas a quem esta coleténea péde ser publicada. Dedico esta obra & meméria de Pierre Courcelle, que tanto me legou pela riqueza de suas obras ¢ 0 exempla de seu método. 16 | Burin espe oe ania zado com CamScanner PARTE! EXERCICIOS ESPIRITUAIS Digitalizado com CamScanner whe EXERCICIOS ESPIRITUATS "Fazer seu vow a cada dia! Pelo menas ian momento que pode ser breve, desde que soja intense. Cada dia wa ‘exerciioespictual'~ sazinho ou Aacompaithado de unt harsem que torsbém quein melhorar asi mes, Bxericiosepirituns air dodecursa do temp, Esforcar-se past -despojarse de tues préprins pairées das yaidales, do praride do rate ena torn da teu name (que. de tempor ert temps, te pure comme wt al «vinica), Fugir da maledicencia, Despojar-se da pedade edo do. Amar tides os hones lives, Bternizarseultrapassarda-sc _Esse esforgo sobre sid necessdrio, essa amibicio,justa, Numerosos silo sagueles que seabsorem inieramente na pottca wilitant, ma (preparagdo da revolugdo socal, Rasos, muito raras aquees que, para reparar a revelugée, querem dela se tra dignas* Postas & parte essas tltimas linhas, o texto nao parece ser um pastiche de Marco Aurélio? E de G. Friedmann, ' e é bem pass(vel que, ao escrevé-lo, seu autor nao tenha estado consciente dessa semelhanca, No resto de seu livro, als, buscando “onde voltar & fonte"? ele chega & conclusiio de que ndo existe tradi¢o alguma °G.Fredmana, Le Pune tl Sage. Paris, 1970, p. 359, Noda 30 de juno dc £977, poucn tempo antes desua morte, G. steve agentilera demees- ever pura dies o quanta hava fcada “tocado” por minha reac arespeita de seu lito, Na mess care, ele me remeti 3 reflesdes que havia sido encarepado de ‘presenta no Bal da coldquio organizado pelo CNRS, de 3 a $ de mainde 197, ara comemorar e tricentendrio da morte de Espinosa e nas quis ele evocava, 4 Propthito de uma passagem da Erica de Espinos, o extaicismo das Antigos. CE gitalizado com CamScanner (judaica, crst, oriental) que seja compativel com as exigdncias da situagdo espiritual contemporinea. Curiosamente, porém, ele indo se interoga sobre o valor da tradigao filosdfica da Antiguj. dade greco-romana, embora as poucas linhas que acabamos de citar mostrem a que ponto, inconscientemente, a tradigao antiga continua a viver nele como em cada um de nés. © leitor contempordneo. Primeiramente, nao é mais de muito bom tom, hoje, empregar a palavra “espiritual”. E preciso, po- rém, resignar-se a empregar esse termo, porque os outros ad- jetivos ou qualiicativos possiveis:“psiquico”, “moral”, “tic, “intelectual”, “de pensamenta”, “da alma” ndo recobrem todos og aspectos da realidade que queremos descrever, Pader-se-ia falar, evidentemente, de exercicios de pensamento, pois, nes- ses exercicias, o pensamento € tomado, de algum moda, como matéria’ e busca modificar a si mesmo. A palavra “pensamen- to”, porém, nao indica de uma maneira suficientemente clara que a imaginagao e a sensibilidade intervém de uma maneira muito importante nesses exercicios, Pelas mesmas raz0es, nao € possivel se-contentar com “exercicios intelectuais”, ainda que os aspectos intelectuais (definigio, diviséo, raciocinio, eitura, pesquisa, amplificacdo reldrica) desempenhem um grande pa- pel. “Exercicios éticos” seria uma expresso bastante sedutora, pois, como veremos, os exercicios em questo contribuem po- derosamente para a terapéutica das paixdes e se relacionam & conduta de vida, Todavia, seria, mais uma vez, uma visio de- masiado limitada, De fato, esses exercicios - nds 0 entrevemos pelo texto de G. Friedmann ~ correspondem a uma transforma- Gio da visio de mundo ¢ a uma metamorfose da personalidade. A palavra “espiritual” permite entender bem que esses exer- cicios sio obra ndo somente do pensamenta, mas de todo 0 psiquismo do individua e, sobretudo, ela revela as verdadeiras dimensbes desses exercicios: gracas a eles, o individuo se eleva 4 vida do Espirito objetivo, isto , recoloca-se na perspective do Todo (“Eternizar-se ultrapassando-se”). . _ | “Byercicios espirituais”.A expresso desconcerta um poueo + Episto, Diaribe, IE, 22,20 (md, Soule); “Doravante, a maria sobee squat devo trabalar é.0 pensamento (diana), el coma-ado carpineeiro & x maceirh € ado sspatero, 0 couro” 20) Bucs ie lve ati | igitalizado com GamScanner Aceitamos, s¢ é 0 casa, a expressio “exercicios espirituais”, dird nosso leitor. Trata-se, porém, dos Exercitia Spiritualia de Inacio de Loyola? Qual relago hd entre as meditagbes ina- cianas e 0 programa de G, Friedmann; “Sair do decurso do tempo... eternizar-sc ultrapassando-se?”, Nossa resposta serd, simplesmente, que os Exercitia Spiritualia so apenas uma versio cristd de uma tradicao greco-romana, cuja amplitude haveremos de mostrar. Primeiramente, a na¢ao e a expressio exercitium spirituale sao atestadas bem antes de Indcio de Loyola, no antigo cristianismo latino, ¢ correspondem aske- sis do cristianismo grego.' Mas essa askesis, por sua vez, que se deve entender bem nao coma ascetismo, mas como prética de exercicios espirituais, existe jé na tradigdo filoséfica da An- tiguidade’ E, portanto, a esta tiltima que se deve finalmente remontat para explicar a origem eo significado da nogao de exercieio espiritual, sempre viva, come atesta G. Friedmann, na consciéncia contemporinea. Nosso presente estudo nio gostaria de somente relembrar a existéncia de exercicios es- pirituais na Antiguidade greco-latina; ele gostaria, sobretudo, de especificar todo o alcance ¢ a importincia desse fendmeno ¢ mostrar as consequéncias que dele decorrem para a com- preensdo do pensamento antigo e da propria filosafia.* ‘No domini latino, por exeroplo, Rufino, Hf. Momac., cap. 7 (PL. t. XX1,-4E0 D): "Cum guadvaginte exis fuiset in exerts spirinalibus convent.” © xp. 29 (453.D): "Ad acrisa semeniprim sprinlis vite extendit exercise”. No. dominio prego, jem Clemence de Alexandria, Som, TV, 6, 27,1. Cf. J. Leclerc, art *Exercies spisituele", Dirionnatte de Spirit, t. LV, col, 1902-1908. 4A obra muito importante de P. Rabbow, Selenfibrung. Methadil der Beerciten Jn der Anite, Munique, 1954, ecolocau os Exéretia Spiritual de Inco de Loyo- la na tradigio antiga. As abeas sobre esse tema slo relativamente raras. Q livie fundamental € a de P. Rabbow cicado na nota precedente. Ver tambéma zesenha de P. Rabbow feta por G. Luck, Gnomon, XXVIII, 1956, p. 268-271; B.-L. Hijonans Jr Aaterit, Nower an Epiciens Educational Sem, Assen, 1959 (ctado nas noras sequins com @ tirula Aube); AC. Van Geyrenbeek, Mutonius Rufs end Greek Dissribe, Assen, 1963; W. Schmid, are. “Epikur", Ralleckion fir Ante und Chréstewrum, t.V. col, 740-755; L. Hador, Seneca und die piechinch-rimische Tradition der Selemeireng, Berlim, 1969; HG. Ingenkamp, Plas Schrifen wher die Heong der Seele, Gortingen, 1971; P. Hadot, “A Fisica como Excrcicio Espiriual ou Pessimisono ‘¢ Ocimismo em Marco Aurébio”, nese volume. Ver também V, Goldschraide, Le ‘Spsttme Stocien et Udée de Teonp, Pasi, 1953. Patel - rn its | 2 gitalizado com CamScanner I. Aprender aviver nas esenlas helenisticase romanas de filosofia que fenéme. ro é mais fil de abservar. Os estoicas, por exempl, edaram. no explicitamente: para eles,a Filosofia € um exercicid "A seus alhos, 4 flosofia n0 consiste no ensino de uma teoria abstrata,! ainda menos na exegese de textos,? mas numa arte de Viver," numa atitude concreta, num estilo de vida determinado, que en- ploba toda existéncia. O ato filosdfico néo se situa somente na dem do conhecimento, mas na ordem do “eu” e do ser: é um progresso que nos faz ser mais, que nes torna melhores.” E uma conversao™ que subverte toda a vida, que muda o ser daquele que arealiza.” Elao faz passar de um estado de vida inauténtico,obs- curecido pela inconsciéncia, corrofda pela preocupagao, pare um estado devidaauténtico, no qual o homem atinge a consciéncia de sia visio exata do mundo, a paze aliberdade interiores. Para todas as escolas filosdficas, a principal causa de so- frimento, desordem, inconsciéncia para 0 hamem sio as pai- sxdés: desejos desordenados, medos exagerados. A supremacia + Preudo-Caleno, Hi, Phil, 5, Doxegraphi Grae p. 602, 18 Dieb, ¢ Praca, De Pla, 1,2 bidem, pe 273, 4 Dis, Essa concepcio provéan dos cinicas, ef. Didgenes Latiio, VI, 70-71. Sobre anocSo cinica de ace, of. imporeate bra de MO. Goulet Ciné, Lieke Cynigne, Un Commennize de Diogine Late, Vi, 70-71, Pars, 1986. Luciano (Texans 27, Vitarum Aucto, 7) di o nome de aks 3s prdpias sets floss, Sobre a ncesidade do execlio flostico, pico, Disribs, I, 9, 3; Il, 18, 26: 11,8 1; IE, 12, 1-7: 1,6, 16, 1V, 12 135 Mustaie Refo,p. 22,9 ss, Hens; Sénecs, Api, 90,46 *Stncea, Epis, 0, 2: "facer doce philwaphia, on dire. * Epi, L 14-18:0 progres espsiaal nda consisce em expiear melhor Cxi- 2; masem vansforma: a prépei liberdade I, 16, 34. Tepfeny| 15, ‘a ance de viver (= a filosofi) tem como manéria a vida de cada u's ef 1,26, tate, Quist. Camviv. 1, 2, 613 B: “a filosafia, sendo arve de ‘iver, ho deveser mantida dante de nexhum diverimento” pe eee a cep 11, 4 Marquardss“womar-se elhot”. CEA D. Nock, Cinsemion, Oxford, 1933, p. 164-186; P. Hador, “Zpistrapht Maus aa soe fos beh decek XP sens acid Tiosphis Bros, 19$8.1.X0,p. 31-36 ae. "Convesa' Matrices Wire> = Pilonpbis, ct, "Comesion”, Engrlopardi Unicel, ec, Epi, 6 1: "Helle, Luci, mam emer. anita iGpiming! concert cian nance “ 22 | Bcd Digitalizado com CamScanner da preocupacao o impede de viver verdadeitamente, A filoso- fia aparecerd entdo, em primeiro lugar, como uma terapéutica das paixdes" (“Esforcar-se para despojar-se de tuas prdprias paixOes”, escreve G. Friedmann). Cada escola tem seu méto- do terapéutico préprio,* mas todas ligam a terapéutica a uma transformacdo profunda da maneira de ver e de ser do indi duo. Os exercicios espirituais terdo precisamente como abjetivo a realizago dessa transformacao. ‘Tomemos primeiramente 0 exemplo dos estoicos. Para eles, toda a infelicidade dos homens provém de buscarem alcancar ou manter bens que correm o risco de nao obter ou de perder e de buscarem evitar males que frequentemente sao inevitaveis. A filosofia vai entio educar o homem para que busque alcan- ‘gar apenas o bem que pode obter e busque evitar apenas 0 mal que pode evitar, O bem que se pode sempre obter, o mal que se pode sempre evitar devem, para ser tais, depender unicamente da liberdade do homem: so, portanto, o bem moral ¢ o mal moral, Somente cles dependem de nds, resto no depende de nds, Portanto, 0 resto, o que nao depende de nds, corresponde ao encadeamento necessdrio das causas e dos efeitos que esea- pam a nossa liberdade, Ele nos deve ser indiferente, isto, nfio devemos introduzir diferenga nele, mas aceité-lo por inteiro como desejado pelo destino. & o dominio da natureza. Hé al, pois, uma inversao total da maneira habitual de ver as coisas, Passa-se de uma visdo “humana” da realidade, visio na qual os valores dependem das paixdes, para uma visdo “natural” “Ese precio animi medicinaphilesphia", Epteto, 1,21, 15 © 22. Crisipo havia composto uina. Tengpbutica dar Prixder, Stic, Ve, Frage, ts Hll, §474, CE também a veguinte sentenca aribulda a Epicuro por H. Usene, Epicurea, ft. 221: “E-vatio o discurso do fildsofo se nda contribul para tratar uma paisio do homem". Segundo H. Chadwick, The Sentences of Sereus. Cambridge, 1959, p. 178, n.338, esa sentenga seria pitagSrica Epineta, IN, 23, 30; “A-cscola do Elésofo ¢ uma clinica”, ' Distinguiremos © méodo extoien do método epicurista, Noran-se as caacterts- sas das diferentes escolas segundo Olimpiodoro, Jn Abib, p. 6, 6 5, 54, 15 35 145, 12 ss, Westerink os estoicos tratam es contrérias com os conttios; as pita péticos deixam komem experimentar as paixies com a ponta do dedo; Sdcrates trata pela homeopatia, condurinda, por exemplo, do amar das belensseerresres 20 da beler eterna Sobre a métods homeopdsica de Sécrates, ver também Proclo, In Adib, A. Segonds (Ed). Pars, Les Belles Letres, 1986, p. 151, 145. Ip. 217. Pare -Exaccesespirtuas | 23 gitalizado com CamScanner das coisas, que coloca cada acontecimento na perspectiva dy natureza universal." Essa mudanca de visio ¢ dificil E precisamente af que devem intervir 0s exercicios espirituais, a fim de operar pouco a pouco 3 transformacao interior que ¢ indispensavel. Nao possuimos ne. nhum tratado sistemético que codificaria um ensino ¢ uma técnj. ca dos exercicios espirituais.” Todavia, as alusdes a esta ou aquela dessas atividades interiores sdo muitos frequentes nos escritos da época helenistiae romana. & previso concluir daf que esses exer- cicios eram bem conhecidos, que bastava fazer alusao a eles por. que faziam parte da vida cotidiana das escolas filosoficas, porque faziam parte, portanto, de um ensino oral tradicional. No entanto, gragas a Filo de Alexandria, possufmos duas listas de exercicios, Elas ndo coincidem totalmente, mas t¢m CEP. Hadot, “A Fisica como Excrccio Expsinal.”, nee volume. A distngén centre oie depende de née e que nio depende de nds encontr-e em Eph, 1,751, 4, 2751, 22, 95 IT, 22, 95 I, 5.4 Mamual § 1 Nuitos tratadas estoicor De Exerricie se perderam, cf. Didgenes Laéscio, VII, 166-167. Existc um caplrulo nas Diatridvs de Epiteta cansagrado & drkesi (I, 12, 1-7) Ele elasfica of exereciox do panto de vista dos ope loses que corres: ponder is és faculdads da ales: 2 feeuldade da deseo, a Fsculdade da sgio,a faculdade do pensamento. No que cancer i faculdade do dese, hi que resalar as seguintes Liha: “Nem tudo que ¢ diffi e petgosa & adequado ao exeicicia, mas a que esc adaptado a0 objetivo proposto para os nassoxesfooras, Equal’ exe bjetve? Usar, sem impedimentos, nossos dees © nossas averbes. O que iso ‘quer dizer? Nio se ver frastrado nos descjos € nio ear no. que desejdvamos evitas Eisentio a que objetivo deve tender o exerecio... Camo esearsos habiruados a usar nnossos desejos e nostas aversées unicamente a propésita de coisas que mito depear dem de nés, & preciso opars ese hébita um habito contrénio” (cf, n, 15 amir). ‘A continvagie do texto & us convite para se exerciar, comecando pelas pequenat ‘coisas. O desenvolvimento consagrada a faculdade de aga ¢ bem curto: esforsat-se para gir no tempo lal desejados. © dltimo desenvolvimento, coaagrado i br ‘uldade do pensamento, onvida e diseipula 2 controls o valor de suas represent ‘es, Como conclusio, Epiteto-aconselha fazer esses exerccios com discigio ese ‘oitentagio. Existe eambém um pequeno catade Dv Bxercicio de Musénio Rus (p. 22-27 Hense). Apdés uma introdug3o geral relativa a necessidade do exercicin fia filosofia, cle recomenda o exercicio sion (habiuar-se &s incempéries, & foe: * sede), que-é provetoso também para a alma, dandovthe forea « teauperancs © ‘xctcicis proprios 3 ama. Pura Musiiio, esses tltimos consistem em seimptege chs demonsuagées ¢ principio: relacionados & distingSo cnere verdadeise« faes bem, verdadeiraeflso mal. Gragas a ese exercicia dupla, hd de ve Bicar babinuad a nio temer@-que a maior pare das homens considera como males: & pabres. saftimento, a more. © trade De Exericie de Pscuda-Plutateo, consereido € frabe (cl. }. Gildemeiser ¢ F.Bicheler, “Pseudo-Plutarchos, peri arkéwd. Rh ‘itches Muorurm, WF, «. XVI, 1872, p. 520-538) no aprese ata muito inceres 2 | oie at igitalizado com GamScanner o mérito de nos dar um panorama bastante completo de uma terapéutica floséfica de inspiragdo estoico-platénica, Uma dessas listas"* enumera: a pesquisa (zetesis), 0 exame apro- fundado (skepsis), a leitura, a audicao (akroasis), a atengao (prosoch?), 0 dominio de si (enkrateia), a indiferengaas coisas indiferentes, A outra’® nomeia sucessivamente: as leituras, as meditagées (meletai), as terapias™ das paixdes, as lembrangas do que é bom,” o dominio de si (enkrateia), a realizagio dos deveres. Com ajuda dessas listas, poderemos fazer uma breve descri¢ao dos exercicios espirituais estoicos estudando suces- sivamente os seguintes grupos: em primeiro lugar, a atencao; depois, as meditagdes ¢ as “lembrancas do que ¢ bom’; em se- guida, os exerc(cios mais intelectuais que sdo a leitura, a au- digdo, a pesquisa, 0 cxame aprofundado; enfim os exercicios mais ativos que do 0 dominio de si,.a realizagao dos deveres, aindiferenga as coisas indiferentes. A atengao (prasaché) é a atitude espiritual fundamental do estoico.” E uma vigilancia e uma presenga de espirito cont{- nnuas, uma consciéncia de si sempre desperta, uma tensio constante do espitito." Gracas a ela, ofildisofo sabe ¢ quer ple- namente o que faz a cada instante. Gracas a essa vigilancia do espirito, a regra de vida fundamental, isto é, a distingao entre a que depende de nds ¢ 0 que nao depende de nds, estd sem- pre “a mao” (procheirou). £ essencial para o estoicismo (como, alids, para o epicurismo) fornecer a seus adeptos um principio fundamental, extremamente simples e claro, formuldvel em "Fil, Quis rer ai, hers, $253. "Filo, Log. Allg, Il, § 18. A palavra shenapeis pode também significa os atns daculo , no expitode Filo de Alexandria, esse sentido seria bastante plaustvel, Eniretanto, parse me que, no ‘canterto presente, ela designa a teraplutica das paites cf. Speial dep, 1, §§ 191, 197, 230 IL, § 17. 2 Tin balin enémai, Solve a prscmediato maleruny, cP. Rabbow, Selenfibrang... op. eit. p. 160- 79, e1. Hador, Seneca... op. cit, p. 60-61 Chm. 35 amcrion CE a 31 ancerior, 4 CE HG. Ingenkamp, Mnarchs Seirifen... op. ct, p. 99-105; P. Rabbow, Sealenftiran.. op. cit, p. M48 ©340-342. “9 Galeno, De cagnase cuz: ania’ morbi, 1, 5,24, p. 18, Marquardt: “E precio, dade o momento dese levanar da cama, eauminar de antenio, a propésito dat dlfeentes antes do dia, se vale mais viverexcravo de suas paixtes ou servicse da fo con eat. Maco Aur I, 1,1: “Desde a aura, dae a mesmo de aameemso; Encontrarei um indiscreo, um ingearo, um insolente, ua filo, um ‘goin, Todo ees vcs fram causes pla jgoorincia do verdes bess verdadeiros male”. V, 1,1: “De mank, quanda é custoso se levanta, tenba Sie pemsamento 4 mio: ¢ para faze wma obra de homem que eu acordo” “© Sobve o xame de eansiénia, cf. P, Rabhove Selenfhrumg. op ct Rabbow, OP pe 180 Be SCHL Had, Stop yp 68.70; Bl. pean A Of 25 ersertui Boar gitalizado com CamScanner Como se vé, 0 exercicio de meditaco se esforca para domi- nar 6 discurso interior, para torn4-lo coerente, para ondené-lo a partir do principio simples ¢ universal que é a distingdo entre 0 que depende de nds € 0 que nao depende de nds, entre a liber- dade ea natureza. Por meio do didlogo consigo mesmo" ou com ‘outrem, também por meio da escrita,” quem quer progredir se esforga para“conduzir com ordem seus pensamentos™ e chegar assim a uma transformagao total de sua representacdo do mun- do, de seu clima interior, mas também de seu comportamento exterior, Esses métodos revelam um grande conhecimento do poder terapéutico da palavra.” Esse exercicio de meditagio e de memorizagao precisa ser alimentado, E aqui que encontramos os exercicios mais propria- mente intelectuais enumerados por Fila: a leitura, a audigio, a pesquisa, 0 exame aprofundado, A meditacao se nutrird de uma maneira ainda bastante simples da leitura de sentengas de poetas ede fildsofos ou de apotegmas." Masa leitura poderi sertambém faculdades de representagin e de afetividade da alma, descontrafdas pela rari res plndecem como em um oceano didfano de serenidade que nenhuma onda chegaa. perturbar”. Sobre.@ mesmo tema, cf. adiante, nota 114 € 115. CL adianee, noe 93, Esse é 0 campo da diregio espirimal, of. 1. Hadot, Semeea..s op. cit, p. 5-97, Hi que deseacar, notadamente, Galena, De cognese, cur. animi morbis, 1, 7, 36, p-27, 22 Marquaide; € preciso pedir a um homem mais velho para nos advertie com franqueza de nosso eros. © CEP. Rabbow, Seclerfithraimg..o. op. cit. p. 321, m. 645 1, Hador, Seneca. ap. cit, p. $9. Medisarser de Marco Aurdlio sio aqui, evidentemente, o modelo ‘por excléncia, mas hi quc observar tambémn Hoedeia, Sar, 4, 138: “Quando ‘tenho Scio, divirto-me escrevendo esses pensamencos no papel” ("Ubi guid datur tilde chard). A férmula ¢ de Descartes (Diirours de la Méthode, Il, p. 18, 27 Gilson), mas ela cexprime bem o ideal estoio de eoeréncia terior. Sobce esse tema, ef P. Lain Entralgo, pete Katine der Besprechung (epéid) und die Erfindung der Peychothe: fo Homey 8, Ss 298-323, The Therapy ofthe Word in Clecical Ansgui, New Haven, 1970 (resenha de F. Kudlien, Gnomon, 1973, p. 410-12). CEP. Rabbow, Seelenfiibrung. cic, p.215-22.¢ 352-54; G. A. Gethard, Phoi- nix con Kolophan, Leipaig, 1909, phew Hador, See, op.cit. p. 16-17. Ver Séneca, Epirt,, 34, 27 ¢ 43; 98, 5; 108, 9. Sobse as coletineas de senteneas floséficas, cf. W. Spoerri, ‘att. “Gnome”, Der bleine Pandy, «Ul, 1967, ool 822- 29; H. Chadwick, The Siena of Soar, op. cits Th. Klawser, are “Apophuhepna's ian 1, 1950, ool. 545-50. Ver também ap. P. Wendiand, Amaximener vom Lampaatns, Berlin, 1905, p. 10038 Pauses | 29 gitalizado com CamScanner aexplicagdo de textos propriamentefilosdfios, de obras redigidas pélos mestres da escola, E ela poderd ser feita ou ouvida no qua. dro do ensino filoséfico dado por um professor.” Gracas a esse ensino, todo o edificio especulativo que sustenta ¢ justifica aregra fundamental, todas as pesquisas fisicas e Idgicas, das quais cla é 0 resumo, poderdo ser estudadas com preciso.” A “pesquisa” c.g “exame aprofundadc” serio ent a efetivacio desse ensina, Ha- bituar-se-4, por exemplo,a definir as objetos € os acontecimentos numa perspectiva “fisica”, a vé-los entao tal como estio situados no Todo césmico.**Ou ainda eles serao divididos parase reconhe- ceros elementos aos quais eles se reduzem.* Vém, enfim, os exerc{cios praticos destinados a criar hdbitos. Alguns si0 ainda muito‘interiores" ainda bastante préximos dos exereicins de pensamento de que acabamos de falar: por exem- plo, a indiferenca as coisas indiferentes que ¢ apenas a aplicagio da regra de vida fundamental."* Outros supdem comportamentos ™ O vermo akroasis empregado por Filo (cf. a. 18 anterior} design, entre autias, a audigio de um curso de flosofia, ef. Epiteo, M1, 23, 27 ¢ 38. Em geral, 0 cura ‘comprcendia a leitura comentada de um texto filséfico (anagnoni), frequente- mente feta por um discipule e dscurida pelo mestee (Epiteto, 1, 26,1; Poet, Vita Plein, § 14). Ver I. Brons, De schol Epicer, Kiel, 1897. Isso nfo excui, evidentemente, a leitura individual dos textos floséficos, Epitero, IV, 4, 14-18 {em que Epiteto reprova seus discipulos por lerem textos sem coloci-las em priti- 2). O curso de flosofia compreendin, depois da leitura comentada, uma corwersa {diatrib) com os ouvinnese diseussGesindividuas (f. 1. Hadot, Seneist.n. p. cit, 65). Todo-esx conjunto podia ser um exercicio espiriual para wouvinte. Acres- ceateros, no-que concern a leurs, que a exepes, literal oa alegbica ser um dos exerccios espiriuais mais imporrantes no final da Antiguidade, canto entre ot pagios coma entre 6 cristios, Sobre o programa de ensino das excole hele 0s qpitemei (resumo de grandes principios), depois 20s grandes warados, cf. 1 Hador, Seca... op. city p. 53-56 ¢ “Epicure et |'Enstignement Philosophique Hellénistique et Romain", Actes dau VIIP Congrbs de 'Avociation Guidlewme Budd, Paris, 1969, p. 347-33, ™ Sobre esse exercicio de definigSo, cf. P. Hadar, “A Fisica. como Exexcicio Espiri- tual...” neste volume. ™ Sobre enc cxrcicio, of P, Rabbavr, Seelenfirang... op. cit, p.42-A9. * A cxpessio de Filo (cf. nm. 1B ante ‘indiferenga as coisas indiferentes", corresponde completamente 20s exercicios espitituais de Marco Aurcho, XI, 16: ‘viver sempre perfeitamente feliz: nossa alma encontra em si mesma o poder part tanto, se permanece indiferente com relagso 4s coisas indiferentes”. Essa férraula parece 0 eco da definiciode fim da vida humana segunda Aveton de Quios (Sta Wer Fragen. tl, § 360). Sobre esse tema, of. P. Hador, “A Fisica coma Exercicio Espirimal..", neste volume. Lembremor que a “indifrenga” no significa ura. 3)| Erdos aaa niicas, passage das semtengas igitalizado com GamScanner praticos: o dominio de si, a realizacdo dos deveres da vida social. Reencontramos aqui os temas de G, Friedmann: “esforcar-se para despojar-se de suas préprias paixdes, das vaidades, do prurido do ruido em torno do seu nome... Fugir da maledicéncia. Despojar-se da piedade e do ddio. Amar todos os homens livres”. Encontramos em Plutarco um grande mimero de tratados que se relacionam ‘a esses exercicios: Do Controle da Célera, Da Tranquilidade da Alma, Do Amor Fraterno, Do Amor pelas Criancas, Da Tagarelice, ‘Da Curiosidade, Do Amor pelas Riguezas, Da Falsa Vergonha, Da Jnveja e do Odio, Seneca também compas obras do mesmo géne- 10: Da Colera, Dos Beneficios, Da Tranquilidade da Alma, Do cio, Um principio muito simples é sempre recomendado nesse género de exercicio: comegar a se exercitar pelas coisas mais faceis para adquirir pouco a pouco um hdbito estével ¢ sélido.* Para 0 estoico, filosofar ¢ entao exercitar-se a “viver”, isto é, a consciente ¢ livremente: conscientemente, ultrapassando os limites da individualidade para se reconhecer como parte de um ‘cosmos animado pela razdo; livremente, renunciando a desejar 0 ‘que nao depende de nds ¢ que nos escapa, para se ater apenas a0 que depende de nds - a acdo reta conforme a razio. Compreende-se bem que uma filosofia, como o estoicismo, que exige vigiléncia, energia, tensdo da alma, consista essencial- mente em exercicios espirituais, Pode-se, porém, ficar espantado em constatar que 0 epicurismo, habitualmente considerado uma filosofia do prazer, reserve um lugar tao grande quanto o estoicis- ‘mo para praticas especificas que nao s4o nada além de exercicios espirituais. E que, para Epicuro, como para os estoicos, a filosofia éuma terapéutica: “nossa nica ocupacao deve ser nossa cura’.” Dessa vez, porém,a cura consistiré em conduzir aalma das preo- cupagdes da vida & simples alegria de existir A infelicidade dos auséncia de interese, mas, 20 contrdria, um amor igual (no finer “diferenca”) por cada instanre da vida. Seelenfibrieng.., op. cites. 223-49 ¢ G.-H. Ingenkamp, Plata ip. cit., p. 105-118, O) termo técnico & eatiemes, © Gromologinm Varicanuom, § 64, Cl ambém Cares a Menecen § 122: "Ninguém ¢ do jorem nem io velho para se ncupar da sade da ala”. Encootra-e 0 texto 4990 ds obras que citumos eomodamente reunido por G. Arrighert, Epicw, Opere, Trim, 1960. Patel Expt | 31 Digitalizado com CamScanner homens provém do fato de que eles temem coisas que nio sig temiveis e desejam coisas que nao € necessdrio desejar e que thes ‘escapam.A vida ge consome assim na perturbacao dos medas in. justificados e dos desejos insatisfeitos, Eles sao ento privados do tinico verdadeiro prazer,o prazer de set.E por issoque a fisica epi- ‘curista libertard do medo mastrando que os deuses nao tomam parte na marcha do mundo e que a morte, sendo dissolucio total, indo faz parte da vida.* A ética epicurista libertard dos desejos jnsacidveis, distinguindo entre os desejos naturais necessdrios, desejos naturais¢ ndo necessarios, ¢ desejas que ndo sio nem na- turais nem necessdrios.A satisfagao dos primeiros, a rentincia aos diltimos e eventualmente aos segundos bastard para assegurar a auséncia de perturbagio™ e para fazer aparecer 0 bem-estar de existirs“os gritos da carne sao: ‘nao ter fome’, ‘nda ter sede, ‘ndo ter frio'. Quem desfruta desse estado e da esperanga de desfruta- -lo pode rivalizar em felicidade com o préprio Zeus”. Donde 0 sentimento de reconhecimento," quase inesperado, que ilumina o que se poderia chamar de piedade epicurista com telagao as coi- sas: "gracas sejam dadas a bem-aventurada Natureza que fez com que as coisas necessérias sejam faceis de alcangar ¢ que as coisas ificeis de aleancar nao sejam necessdrias”." Para chegar & cura da alma, os exercicios es necessdrias, portanto. Como nos estoicos, assimilar-se-o, medi- tar-se-do, “dia e noite”, curtas sentengas ou resumos que permi- tirdo ter “4 mao” os dogmas fundamentais.® Tal é por exemplo, ™ ReiceSentetiae, § 11; “Sento tivéssemos perturbagBes por causa das apreenses referentes aos fendmenos-celeses ¢ morte, temendo que esa ciltima seja algo para nbs, tamblm por cast de nossa ignortnca do limites da dare dos desejos, no termes necsidad da prisls", Sobve a teolopa epicuriss, cf. W. Schmid, art, “Epikur", Reailecikan fiir Antike und Cristentum, op. cit... V, 1962, ea 735+ 40; D. Lemke, Die Theolegie Epitvrs, Munique, 1973. ” Retae Senientiae, § 29; Carts a Menecen, § 137, © Grom. Vat: § 33 (wad. A}. Festugitre, A.J. Festugitre, Epicure ot se: Dies, Pati, 1946, p44), p Range A Boaghee betes « See eta, of. W. Schmid, art. “Epikur", cal. 722-723, cf. adiante 2.70 Frog. 409, H, Usener, Epicure, p. 300; ighert “1 ideas urea, p. 300; fragm. 240, G. Arrigherti, Epiewrs- © Sobre os exercicios de meditagio, cf. W. Schmid, an. “Epikur”, p- 744 P. tagio, cf. W. art “Epilur", p- 744: Rabbow, Seelenffung... op. cit, p. 129 ¢ 336-38; I. Hadot, Seneca... op. éits 32 | Euercicisespiiuais oso antiga Digitalizado com CamScanner 0 famoso tetrapharmakor, o quddruplo remédio: “os deuses nio sio temiveis,a morte ndo oferece risco,o bem é facil de adquirir,o mal é facil de suportar”.* A abundancia de coletineas de senten- as epicuristas corresponde a essa exigéncia do exercicio espiri- tual de meditacao.© Mas, como nos estoicos,o estudo dos grandes tratados dogméticos das mestres da escola também serd um exer- cicio destinado a alimentar a meditagio,* a melhor impregnar a alma da intuicao fundamental. O estudo da fisica é assim um exercicio espiritual particularmente importante: "E preciso estar bem persuadido de que o conhecimento dos fendmenos celestes... no tem outro fim senao a ataraxia e uma confianga segura, como é igualmente o objetivo de todas as outras pesquisas”.” A con- templacdo do mundo fisico, a imaginacao do infinito, elemento capital da fisica epicurista, provocam uma mudanga total na ma- neira de -ver as coisas (0 universa fechado se dilata aa infinito) um prazer espiritual de qualidade tinica:“as muralhas do mundo se abrem ¢ tombam, vejo no vazio do universo as coisas se produ- zirem... Entio, perante esse espetéculo, um tipo de prazer divino ‘toma conta de mim e um frémito, porque por teu poder (isto é, 0 de Epicuro) a natureza, descobrindo-se com tanta evidéncia, & assim em todasas suas partes despida de seus véus”. ps 52-535 ef. Carts ¢ Meneceu, § 135: “Todas esses ensinameatos ¢ todos as de mesma narureza, medita-os dia ¢ noite, sozinho ou também com um companheiro semelhante a tL Assim, jamais experimentaris perturbagio nem em sonho nem na vigllia, mas viverds como um deus entre os homens” (trad, Emour). CE. também ‘idem, § 123; Para i, rctomando os ensinamentor que cansei de wedar,colaca-ot em pritica e mediraos no peasamente, porque sia ot preceitos de bem viver: § 124: “Habirua-te a viver no pensamento de que a morte nio é nada para nds” Cf, Filodema, Adbersns fiophistar’, col. 4, 10-14, p. 87 Sbordone, citado por ALJ, Festugitre, Epicure et ses diews, op. cit, p. 46, 1, ¢ W. Schmid, “Epikur’, at Gtado, eal. 744. O retma técnica empregado aqui para dizer que esa sentenga deve sempre estar “A mio" ¢ parhepomenon. Por exemplo, az Ratae Sententiae (Krist Dasa) (conhecidas por Cloero, De fin» 1, 20) ¢ 0 Gromologinum Vasicanum, % Sobre o plano de estudos na escola epicurista, cf. n. Santerior, © Carta a Pitcle, § 85, ¢ Ceres ¢ Herddoto, § 37: “Recomendo aplicar uma cons: tanteatividade 20 estudo da plysiabgi, considerando que écssaatividade que mais produ a serenidade na vida". ; 8 Lyerécio, De Rerum Nanuna, Ill, 16 ¢ 30: "Moenia mundi discedunt, totum wi- deo per inane geri ren. His ibi sme rebut queda divine wolipta Pri, ie error, quod sie natura tud sei sum manifesta patens ex omni arte renee et = passagem de Lucrécio ¢ absoluramence notivel. Por um Lado, ex mostra bem qu Patel Bucs ea | 33 gitalizado com CamScanner Mas a meditacio, simples ou sapiente, no €0 tinico exerctejg espiritual epicuriste. Para curar 2 alma, é preciso, nao como que. rem os estoicos, exercitd-la para manter-s¢ tensa, mas, a0 contr4. rio, exercité-la para se descontrair. Em vez de conceber os males de antemio para se preparar para sofré-los,€ preciso, 0 contri, tlescolar nosso pensamento da visio das coisas dolorosas e far rnossos olhares sobre os prazeres. E preciso fazer reviver a lem. branga dos prazeres: do passado ¢ desfrutar os prazeres do presen- te, reconhecendo 0 quanto os prazeres do presente so grandes e agradéveis® Ha aqui um exercicio espiritual bem espectfico; nig mais a vigiléncia continua do estoico, esforgando-se para estar sempre pronto para salvaguardar a cada instante sua liberdade moral, mas a escolha deliberada, sempre renovada, da descon- tracio ¢ da serenidade, e uma gratido profunda” com relagdo & natureza a vida” porque, se sabemos encontr4-las, oferecem-nos sem cessar o prazer €a alegria, Do mesmo modo, o exercicio espi- ritual que consiste em se esforcar para viver no momento presente & muito diferente nos estoicos e nos epicuristas. Nos primeiros, ele &tensio do espirito, despertar constamte da consciéncia moral; nos segundos, é mais unta vez convite & descontracdoe a serenidade: a preocupacio, que nos aflige ante 0 futuro, esconde de nés 0 valor incompardvel do simples fato de existir: “nascemos apenas uma a fisica epicurista era verdadeiramente um dos prazeres do sihio: permitia uma ‘io imaginativa grandiosa da farmagio e da dissolusio da universe na infinitude do espaga, Por outro lado, ela valoria um dos secximentos mais fundamentais da cexperiéneis humana, 0 borer daa do enigma da natureea, Somos remetidos 2 palavra de Goethe, Feuto I 6272: “O fiémito #2 melhor parte do homem. Por fnais cto que © munda Ihe fara pagar por esra emorSa, €repleco de surpresa que ‘ele sente cm scu coracio a tealidade prodigisa” ("Das Schanidern ist der Menscnbeit ‘estes Teil Wie auch die Welt ilrm das Gefihl vereure, Engifem fle er vief des ‘Ungeheure’). Acerca dos exercicos espriuaisepicurstas, ver aoradamenteo liv deP.H. Scheijvets, Horror ae divina Vaduptar, Brades sur la Poétique et la Posie cde Lucttee, Amsterdam, 1970. © 1, Hadoc, Senect.. op. cits p. 62-63; P. Rabbow, Seelenfirung... op: tts Ps 280, Ver Cicero, De fimibns, 1, 17, 55¢1, 19, 62; Tiseadh, IL, 15, 32-33. * Gnom. Vat, § 75:°O provésbio que dix ‘espera © Bm de uma longa vida’ movatinnietieen tn daluus at ras §6e§ 19: "Quem esquece um bem passed jd é um velha”. ” Cf. E, Hoffmann, “Epileur", M. Dessoic, Die Geichichte der Philosophie, & L Wiesbaden, 1925, p. 225; "A existncia deve primeiro ser considerada como ura puro acaso para em seguida poder sr viva totalmente coma uma maravillt al ca. E preciso primeira dar-se conta de que-a existéncia, inexoravelmente, #4 sedi “uma vex para poder em seguida festejé-la no que cem de insuberinufre! e de wilco". 34 | Eo eps sti igitalizado com GamScanner ver, duas vezes nao € permitido; portanto, é necessdria que deixe- mos de existir e por toda a eternidade; mas tu, que nao é senhor do amanhé, tu ainda remetes para amanhd a alegria. A vida, contudo, consome-se em vo nesses adiamentos e cada um de nés morre sobrecarregada de preacupagdes”.” F 0 famaso verso de Hordcio: carpe diem. “Enquanto falamos, o tempo cioso foge. Colha o hoje, sem te fiares no amanhal.”” Em iltima instancia, para os epicu- ristas, 0 prazer é exercicio espiritual: prazer intelectual da con- templacdo da natureza, pensamento do prazer passado.e presente, prazer, enfim, da amizade. A amizade,”* na comunidade epicurista, também tem seus exercicios espirituais que sio realizados numa atmosfera alegre e descontraida: a confissio publica dos erros,*.a corregao fraternal, ligadas ao exame de consciéncia.”* Mas, sobre- tudo, a prdpria amizade é, de algum modo, exercicio espiritual por exceléncia: “Cada um devia tender a criar a atmosfera na qual florescam os coragdes. Tratava-se, antes de tudo, de ser feliz e a afeicgo muitua, a confianga com a qual um se apoiava no outro contribufam mais que tudo para a felicidade".” IL Aprender a dialogar ‘A pratica dos exercicios espirituais provavelmente se enraiza em tradigSes que remontam a tempos imemoriais.” Mas ¢ a 7 Gaom, Vas § 14, ¢ Lucrécio, Il, 957-960. CE. G, Rodis-Lewis, Epicure et sem Eeale, Pasis, 1975, p. 269-283. Hordeio, Odes, 1, 11. 7: “Dut loguinanr fer imide aetar: carpe diem, quan anima eredule pote”, I, 16, 25: “Laer im pracsens exis Sobre esse rema, cf. W. Schmid, “Epikur", art. citado, col. 740-755: A.J. Fesnugitre, Epicure ef ses Diewx, op. cit, p. 36-70 ; 1. Hadot, Seneca... op. cit, (p63 355 G, Rodis-Lewis, Epicure... 0p. 69, Arco ir Religionsisenchfis ty 1911, p. 647 ss. O texto fundamental éFilodemo, Péri Parésiai, A. Olivieri (ed), Leipnig, 1914; cf. 1. Had, Seneca... op. cit. p. 63. CEM. Gigante, “Philodtme: Sur la Libereé de Parole”, Actes die VILF Congres de 'Aswciation Guillewmee Bud, Paris, 1968, p. 196-217. 78W. Schmid, "Epikur”, art citade, cal. 741-743. 7 ALJ, Festugitre, Epicure et es Dire, op. cic, p. 69. 7A pesquisa sobre a pré-hiséria do exercicio expisitual ainda esc para sec fciex primeiramente na tradigo das regras de vida e da parénese popular (cf. I. Hador, Patel - Eres exits | 35 Digitalizado com CamScanner figura de Sdcrates que a faz emergit ma consciéncla ocidenta), porque essa figura foie continua senda o apelo vivo que d a consciéncia moral.” E notavel que esse apelo se faca ouvir mums certa forma:a de didlogo. No dilogo“socratica”," avverdadeira questio que esté em jogo ni é aquila de que se fla,mas aquele que fala: Quando chegamos muito perto de Sdcrates € entramos em didlogo com ele, mesmo se tivermos em principio comegado afalar com ele deuma coisa completamente diferente, neces. sarlamente acabamos por ser enredados pelo fio do discur. | sa em todos os tipos de desvios, até que chegamos a ter de dar razio de nds mesmos, tanto da maneira como vivemas presentemente quanto daquela como conduzimas a existén- cia na passado. Quando chegamos a esse ponto, Sécrates ndo Sect, OP: 6s ps 10-22). & preciso reraontar ainda mais Jonge ¢ bused-la pri- Ineo pageisme ¢ aém do picagorsmo, nas wales mice eiiogy ¢ aminicas de técnicas respratbrias ¢ de exerclcios de menvéria? Essa & 4 teotis feseenada por E-R. Dos, Ler Gres tron Vais, 1965, p. 135-78 [em porragoés ER. Dodds, Os Grgu ee lraconal Trad. P, D. net Sao Pua Escuta, 2002]; L. Germet, Anthropologie de be Gréve Ancienne, Paris, 1968, p. 423- 25; J.-P. Vernann, Mythe er Pensde ches les Grecs, Paris, 1971, p94 ss € 108 ss, jem portuputs JoP. Vernant, Mize ¢ Prsamenes ene as Grego. ‘Trad. H. Saran Rin de fanczo, Paz ¢ Terra, 1990]; M. Detienne, Les Mites de Writ dar br (Grice Archie, Pass, 1967, p 124s [em porrugués; M. Detienne, Ot Mesne ds ‘Verdade nt Grévia Arcaica, Trad. A, Daher, Rio de Janciro, Jorge Zabar, 1988), € De be Porte Religie la Perade Philocephigue, Lt Netion de Daiaom dans le Py ‘hegorinne Ancien. Pats, 1963; H. Joly, Le Rerrrement Pletonicen, Pais, 1974, 1p 67-70. loo € completamente possivel, Eneretanco, no desenvalverci aqui est tera, peimeiramente em rea de miaha incomperéncia no campo da antroelo- 2 préhisadrica eno da Grecia ancaica; em segundo luge, porque me parece Git ‘4 problemas prdgtos 4 histéia do pitagorismo sin extremamente complexes ¢ (que tsa rigorosa critica dos testemvunhas deve ser observada (mouivos esses weste- smurhor so ‘wma projepio iia rari ma qual se reflevem concepgbes vies © plana); em teieio lugs pong os exctecios exprcuais que nos inseessm so preciamente procesot mentas que no tém mais nada ver com IaRSES CH” lépricos, mas carrspondem, ao contririo, a uma rigorosa necesidade de controle sabe elias pechige inte pad cael © Séerteshindricarepreenta um enipms, provarclmente insokive, Mat 2 std Secs tlc € doshas ps Pint, Xeofone ies © io hitrico bem steed, Em tnar ot pious que ve aeguem, €2 cas figure Stare que me lie, quando far deSeeecs ™ Com 26 apas, lmeja desscaro fito de que nfo se trata de dilogos autcae® ‘mente wcriticns, mas de compongSeslierrias que iaitam mais ou menos Bet oS diddogos de Séevares ou ‘em que a ine ee Figura de Sécrates interxém, Os dslogr® 35] Fx eps eae italizado com CamScanner nos deixaré partir antes de ter, bem a fundo e sem reservas, submetido tudo isso & prova de seu controle... Nao vejo mal algum no fato de que me lembrem que agi ou ajo de uma ma- neira que nav é boa. Quem nao foge disso serd necessaria- mente mais prudente no resto da sua vida." ‘No didlogo “socratico”, o interlocutor de Sdécrates nao aprende nada e Sécrates no tem a pretensao de lhe ensinar coisa alguma: cle repete, als, a quem quiser escutéslo, que a tinica coisa que sabe é que nada sabe." Mas, como um tavdo incansavel,* Sécrates acossa seus interlocutores com questées que os colocam em ques- to, que os obrigam a prestar atencdo a si mesmos, a ter cuidado consigo mesmos:"* Que! Caro amigo, tu és ateniense, cidadio de uma cidade que é maior, mais renomada que qualquer outra por sua cigncia € seu poder, tu nio te ruborizas por euidar de tua fortuna para aumenté-la a mais possivel, assim camo de tua reputago e de tuas honras; mas, quanto ao teu pensamento (pleronesis), & tua verdade (aletheia), & tua alma (psyche), que se trataria de melha- rar, disso tu:nio cuidas, nisso tu nao pensas!® A missdo de Sécrates consiste em convidar seus contempora- neos a examinar a consciéncia,a cuidar do progresso interior: Nao tenho nenhum cuidado com o que a maior parte das pessoas cuida: coisas de dinheiro, administracao de bens, cargos milita- res, sucesso oratério, magistraturas, coalizes, facgBes politicas. Eu me engajei nio nessa via... mas naquela onde, a cada um de vs em particular, farei o maior ber, tentando vos persuadir a " Platio, Laguer, 187e6 (wad, Robin). Aristbceles, Sophise. Elenchi, 1838: “Sécrates sempre asiumia o papel de quem incerroga, nie de quem respoude, pois ele reivindicava nada saber”. Patio, Apolo: Soerae,21d5: "Nao cieio saber o que eu nio sti. © Platlo, Apolog. Soerat 305 (trad. Crviset: “Se vos me Enerdles morrcr, nio ¢n- contrac faclmente outro homem [x] apegado a ws pela vontade de Deus para vor estimular como um tava extimularia um cavalo”, "Tet cuidado consigo mesma, Apal Somat, 29d, 31b, 36c. " Plato, Apolo. Seenet, 2945; e também 3036: "Meu Unio afer é, om efeito, andar pelas ruas para vos persuadir a ndo vos preacupar nem core vosso corpo, nem: ‘com vossa fortuna tia apaixonadamente como com vossa alma para tomi-la tio toa quanto posse" Potel Eres | $7 gitalizado com CamScanner se preocupar menos com o que se tem do que como que sé, ase tornar tio excelente racional quanto possivel."* (0 Alcibiades do Banquete de Platdo exprime assim 0 efeitg exercido sobre ele pelo didlogo com Sdcrates:“ele me constrange a confessat a mim mesmo que, embora tenha tantos defeitos, con. tinue a ndo cuidar de mim [...]. Mais de uma vez, ele me calocou, um tal estado que nao me parecia posstvel viver comportando- -me como me comporto”.” 0 didlogo socratico aparece assim, portanto, como um exer- cicio espiritual praticado em comum que convida® ao exercicio espiritual interior, isto é,a0 exame de consciéncia, 4 atengao a si, ‘em sintese, a0 famoso “conhece-te a ti mesmo’, Se 0 sentido ori- ginal dessa {rmula ¢ dificil de discernir, no é menos verdadei- ro que cla convida a uma relacio de si para consigo mesmo que constitui o fundamento de todo exercicio espiritual. Conhecer-se a si mesmo € ou conhecer-se como nao sdbio (isto é nfo coma sophos, mas como philo-sophas, como a caminho em diregdo da sabedoria) ou conhecer-se em seu ser essencial (isto é separaro que nao somos do que somos) ou conhecer-se em seu verdadeiro estado moral (isto, examinar sua consciéncia).” ‘Mestre do didlogo.com o outro, Sdcrates parece ser também, no retrato que dele traram Platdo e Aristfanes, um mestre do diflogo consigo,portanto um mestrena pritica dos exercicios espirituais Ele nos ¢ apresentado como capaz de uma extraordindria concentracio mental, Ele chega atrasado ao banquete de Agatdo porque, ‘aplican- do seu espirite, de algum modo, a si mesmo, ele ficou para tris’? Patho, Apolog. Socnat., 36¢1. "© Plt, Banquet (cad. Robin), 215-2163. fem pan dev era ene src Mais de uma ‘conversa teto parece imitar a mancira socricica, por exemplo, {, 11, 1-40. elt iy ope modo ort I 12, 5-16, mas obra que no ms ea reat facilmente em seu tempo (II, 12, 17 e 24): “Em nossos dias, = ‘io oferece seguranga sobrerudo em Rema”, Epiteto imagina um flésofo tcarnda comers mans de Séerates com um penonagem conn ¢ rea lo por recber um soc. E verdade que urna aventura semelhaate ocorrea ci grees cee 22 crerem Diigenes Laéreio, Hl, 21. re ahiséria desse tema, cf. P. Courcelle, Co tai Socrate Sune Berea Pa LU agraagas, me Mine De * Platio, Rengurte, 174d. 38 Eni iitise fasion Digitalizado com CamScanner EAlcibfades conta que na expedicao de Potideia Sécrates ficou em péum dia e uma noite “concentrado em seus pensamentas”."" Nas ‘Nivens, AristOfanes parece também fazer alusio a essas priticas socraticas: “Medita agora e concentra-te profundamente; por todas os meios, dobra-te sobre ti mesmo, concentrando-te, Se cafres em algum impasse, corre répido para um outro ponto... Nao conduzas sempre teu pensamento sobre timesmo, mas deixa teuespirito voar ‘no ar, como tm besouro preso por um fiona pata’? A meditagao, pratica do didlogo consigo mesmo, parece ter sido apreciada entre os discipulos de Sdcrates, Perguntou- -se a Antistenes que beneficio ele havia extraido da filosofia: " Tbidem, 220-4. ® Avisefanes, Ar Nuvens, 700-706; 740-745; 761-763 (wad. van Daele modif- cada). Na verdade, o sentido desses versos nio ¢ completamente claro, Pode-ae interpretd-los como uma alusio a excrclcios de cancentragso mental; ¢ 0 que fazer G. Méautis, L'dme Hellénique, Paris, 1932, p. 183: A. Festupitee, Contempla- tion et Vie Contemplative seon Piston, Paris, 1950, 2. ed, p. 67-23: W. Schinid, “Das Sakratesbild der Wolken", Philologa, 1948, t. 17, p. 209-28: A. E. Taylor, Varia Socrstics, Oxford, 1911, p, 128-75, Os termos phrontizein e ebpsironsizein, cempregados na descrigfo de Arstéfanes, tamaram ae, tale por influéncia de Aris- tfanes, termes séenicos para designar es hibitos de Sécrates: cf, Patio, Bangwert 220c (Sécrates Bica em pé, phronsizée 1), ¢ Nenoforte, Bnuete, VI. 6 (Sécrates € cognominado phrontims). Mas nfo € certo que esse phyantizeim corresponda, em Aristfaner, A um exerciio de mediagio dirigido si mesmo. Primeiramente, a comparagio com 0 besoure leva a entender que 0 pensamenta levanta voo em diregio a coisas “elevadas” ¢, como diz Xenofonte no Banquete, relaciona-se com ‘9g “meteoror", isto &, com af coisas celestes (cf, Patio, Apoleg. Sacra, 18h). Por ‘outro lado, 0 Escrepsfades de Ar Vavens pirontize’ sobre os expedientes que utili ard para resolver um assunto, nia sobre si mesmo, Traca-e ances de um méodo ade pesquisa (cf, 742: “divide e examina”), O dealhe mais interessante me parece sera férmul: “Se cafres em algum impasse, corte répido para um outro: ponto"s repetido em 743: “Se ficares embaragado com alguma ideia, deixa-a e paste; depois, submetendo-a novameace a rey julgamemto, examina a coisa c pestea bem". Ela sige nifica que, quando se chega a uma aporia, ¢ previo retomar a questio de ums nova ponto de partida, Esse método é cortentemente aplicado nos didloges de Plario, como hem mostrau R. Schaerer, La Question Plaranicienne, Pasis, 1969 (2. ed), p. 4-87, que cia Mésan, 796; Fédon, 105b; Tectet, 187a-b; Fitea, 60a. Como observa R. Schaerer, p. 86, trata-se de um procedimento “que cbrign 0 esptira a ineansavelmente girar em clrculo na investigacio do verdadeito”. Talvex seja esse ‘specto do mérode que expliqueas alusées de Aristéfanes aos desvios rircuites do pensaenento, Seja como for, ese métode se encontra em Aristbeles (ver os exe los ceunidas por H. Banite, Jndex Avivoilicut, Berlim, 1870 [2. ed., Graz, 1955], col, 111, inhas 35 ss): “Assumindo um outro panto de partida, diremos [...", © meine método se encontra em Platina, por exerplo, Ex. V, 8,4, 54:8, 13, 24; V1,4, 16,47. A propdsito de Aristbreles, veras observagiies de I. Diiring, “Atis- toteles und das platonische Erbe", na coletines Arsovle in der neueren Forchuog, Darmstadt, 1968, p. 247-248. Pete Exes | 9 gitalizado com CamScanner “aquele, respondeu, de poder conversar comigo mesmo”. Essa intima ligagao entre 0 didlogo com outrem € 6 didlogg consigo tem um significado profundo. Somente aquele que ¢ capaz de ter um vyerdadeiro encontro com outrem € capaz: de um encontro auténtico consigo mesmo, € 0 inverso ¢ igual- mente verdadeiro. O didlogo s6 € verdadeiramente didlogo a presenga de autrem € de si mesmo, Desse ponto de vista, toda exercicio espiritual € dialdgico na medida em que € exercicio de presenga auténtica perante si e perante os outros." ‘A fronteira entre dilogo “socratico” e 0 didlogo “platdnica” & impossive de delimiter. 0 didlogo platinico, porém, perma nece sempre “socrdtico” de inspiragdo, porque & um exerctcio 5 Didgenes Laércio, V1, 6, Exemplas de priticas desse género (o homem anti 4p fds faiimeme consign mesmo cm vor aka): Piro, Diigenes Ladeco, 1X, 6: Sfiavendo ae surpreendido Pirro filando consigo mesmo, perguntowse-lhe por ae fia isa. Ele respandeu que se cxecitava (etn) para ver bom”. Filo de ‘Krenae, Didgenes Laérco, IX. 69: “Fila frequentemcnee flava consigo mesmo, é por sto que Tima thedise: "0 Filo, agucle que, longe dos homens, convemarae falaa consigo mesmo, sm preacupasie conta glia ccom asdispuras™. Chante, cm Didgenes Ladrcio, VIL, 171: *Cleanes frequentemente fizia reprimendss as fnesmo em vor alt. Arston, endo o ouvido, perguntouthe: ‘A. quem tu fans teprimenda?, Cleans respondew:'A um velho que ten cabelas brancos, mas ‘qve nfo tem inwligénca”, Hordco, ef, Horleio, Sa, I, 4, 137: “Eis reflenbes {que examino comigo mesmo com os lis ccrados” hate ego cum compres agie brit), Epieco, I], 14, 1: "Homem, se tu 6 alguém, vi caminkar sotinho, conversa centige mesmo", Sobre a mediagio ma caminhada, cf. Hotdeio, Epi, 1, 4,455: "Qu cu vais silenchaso ¢ com pequenos passes ao long das florea salu- Ines, tendo na cabegs todos os pencamentos dignos de um sibio e de um home de bem?" (trad. Villencuve), Sobre as problemas do didlogo interior ou exterioe ‘consign mesmo, cf. F, Leo, “Der Monolog im Drama", Abhavellungen der Gétting Sani vena F.X, 5, Berlim, 1908; W. Schadewale, Monalog. and Selbsigespeiich. Untersuchungen ser Formgeschichte der griechixchen Tragiie, Beatin, 1926 . Disha, "Vorn Monolog der Dicheung num ‘inners’ Logs bei Plstom und Aristoteles", Axes Schrifien 2x Dichtung und Philaophie der Griechen, Heidelberg, 1970, p. 142-54; G. Misch, Geschichte der Aurobiograpbicn £1, Bern, 1949, p. 86, 4, 363, 380, 426, 450, 468, Acerca da pre-hissia des exerci, hd que observar Homncro, Odixeis, XX, 18-23: "Batendo no seu pet, cle repreendeu seu ooraglo: ‘paciéacia, coragia meu! Cachorrice bem pior foi tet de ruporrara dia em que o Cidope em hiria devorou meus bravos companheiros! ani gi cl lea did eu crassa sis amulet lures’, Ese tert € citado por Platio, Repaibics, 441 (trad. Chambry): “Nest passgem, Homero manifestamente reptescacou duas coisas diferentes das quis uma repreende 4 eutra, arazio que releti sobre o melhor e sobre o pior, ea cilera ane d Latent ‘ve Fédon, O4¢-¢, Cf, acima, n. 46-47, ¢ n, 48-49. % Assim, segundo Porfirio, Viea Plesini, 8, 9: “Plotino cscava ao mesmo tempo presente para simesmo ¢ pars os outros”. 40 | ccs eprucse vo ange a gitalizado com GamScanner intelectual ¢, em tltima instdncia, “espiritual”. Essa caracteristica do didlogo platénico precisa ser destacada, Os didlogos platdnicos séo exercicios modelares, Modelares, pois nao sao estenografias de didlogos reais, mas composigdes li- terdrias que imaginam um didlogo ideal. Exercicios, precisamen- te porque sao didlogos: jé entrevimos, a propdsito de Sécrates, 0 cardter dialégico de todo exercicio espiritual. Um didlogo é um itinerdrio de pensamento cujo caminho é tragado pelo acordo, constantemente mantido, entre aquele que interroga ¢ aquele que responde. Opondo seu métoda ao dos eristicos, Plato destaca fortemente este ponto: “quando dois amigos, como tue eu, estado dispostos a conversar, é preciso fazé-lo de uma maneira mais doce mais dialética. ‘Mais dialética’ significa, parece-me, que nao so- mente dao-se respostas verdadeiras, mas que sé se fundamen- taa resposta no que o préprio interlocutor reconhece saber”. ‘A dimensio do interlocutor € entao capital, Ela impede o didlogo de ser uma exposicao tedrica e dogmatica e o obriga a ser um exercicio concreto ¢ pratico, porque, precisamente, nao se trata de expor uma doutrina, mas de conduzir um interlocutor a certa atitude mental determinada: é um combate, amistoso, mas real. Destaquemos esse ponto, pois é 0 que se passa em todo exercicio espiritual; é preciso fazer a si mesmo mudar de ponto de vista, de atitude, de conviceao; portanto, dialogar consigo mesmo; pot- tanto, lutar consigo mesmo. E por isso que os métodos do didlogo platénico apresentam, nessa perspectiva, um interesse capital: “Independentemente do que se tenha dito dele, o pensamento platénico nao se assemelha ao pombo leve para o qual nada cus- ta deixar o solo para voar no espaco puro da utopia... 0 pombo, a todo instante, deve se debater contra a alma daquele que res- ponde, carregada de chumbo. Cada elevagdo & uma conquista’.* Para vencer nessa luta, nao basta expora verdade, nao basta nem mesmo demonstré-la, é preciso persuadir, utilizar a psicagogia, portanto aarte de seduzir as almas; e ainda nao somente a ret6ri- ca que busca persuadir, por assim dizer, delonge, por um discurso continuo, mas sobretudo a dialética, que exige, a cada momento, Plato, demon, 75c-d. ™V, Goldsehmide, Ler Dialogues de Platon, Paris, 1947, p. 337-38. Pate | Boeri epruss | 4 Digitalizado com CamScanner ‘© acordo explicito do interlocutor. A dialética, pois, deve sco habilmente uma via tortuosa, nee ainda, uma série de vis ente divergentes, mas, todavia, convergentes# pare pesheabe P pechttat sontradigbes de sua al posi¢ao ou admitir uma conclusio imprevista. Os Citeuitos, dee. ‘vios, divisdes sem fim, digressOes, sutilezas, que desconcertam leitor moderno dos Didlogos s80 destinados a fazer 0 interlogy. tor ¢ os leitores antigos ee um nS dle: jionam-se com muita forga Uns contra os outros, ng. Has visdes e sensagies”, “frequentam-se longamen. te as questbes”, “vive-se com elas™ até que Surja a luz. Portanto, ‘os exercicios so feitos pacientemente:“a medida de discusses como essas €a vida inteira, para pessoas sensatas”. 0 que conta ndo é a solugéo de um problema particular, mas 0 caminho per- corrido para chegara cla, caminho no qual interlocutor, o disei- pulo,o leitor formam seu pensamento, tornam-no mais apto para descobrir por si mesmo a verdade (“a didlogo quer antes formar que informar”):"" Nas aulas em que se aprende a ler, quando se pergunta ao alu- ‘a com quais letras € composta esta ou aquela palavra, busca- -Se assim conduzi-lo & resalugao de um problema particular ow ‘ornd-lo mais apto para resolver todos os problemas possiveis de gramitica? ~ Todos os problemas possiveis, evidentemente, - ‘0 que diriamos entio de nossa investigagio a respeito do “poli- tico"?£ por interesse dseto sobre ele que nés a empreendemos ‘au € para nos tornarmos melhores dialéticos sobre todos os te- mas possiveis? ~ Aqui, de modo ainda mais evidente, ¢ para nos tornarmos melhores dialéticas sobre todos os temas possiveis. "CE a. 92 anterior, R. Schacrer, La Platomicienne, op. cit, p. 847 snostra bem todo o significade desse método platénico. "Patio, Can VIL 3446 ¢ Med. CE. ¥. Goldschmide, Les Dilogues de Plat, Op. cies BB RL tet La Question Platénicienne, op. cit, p. 86. Essas diss obras x30 de enetme importinc i Pato, Reb, 450d. PA Goldschmidt, Ler Dialogues de Plato, 3, que cita do texto do Politico, 285-286 Fassia ea afm. Cf waar a egies 162-163 a ‘mramsebrtR Scheer, La Question latnicione op, p.216. "" Pho, ole, 285d (nad. Dit). 8 | a pice naa Digitalizado com CamScanner O tema do didlogo canta entao menos do que o método que nele aplicado, a solugio do problema tem menos valor do que 0 caminho percorrido em comum para resolvé-lo, Nao se trata de encontrar primeiro ¢ de modo mais répido a solucao, mas de se exercitar da maneira mais eficaz possivel na aplicacdo de um método: “quanto a solucao do problema proposto, encontrd-la da maneira mais fécil ¢ mais répida possivel deve ser apenas uma ‘preocupa¢ao secundaria e nao o fim principal, se cremos na razdo que nos recomenda estimar muito e em primeiro lugar o método que ensina a dividir por espécies ¢ segui-lo resolutamente, mes- mo quando um discurso for muito longo, se ele deve tornar mais engenhoso quem 0 escuta’.’* Exercicio dialético,o didlogo platénico corresponde exatamen- te a um exercicio espiritual por duas raz6es, Primeiramente, ele conduz, discreta, mas realmente, interlocutor (e 0 leitor) a con- versio. Cam efeito, o didlogo sé é possivel se o interlocutor quer vyerdadeiramente dialogar, isto é, se realmente quer encontrar verdade, se quer, no fundo de sua alma, o Bem, se aceita se sub- meter &s exigéncias racionais do Logos," Seu ato de fé deve car- responder aquele de Sdcrates:“E porque tenho fé na sua verdade que resolvi buscar contigo o que éa virtude”." De fato, 0 esfor- 0 dialético é uma ascensio em comum na diego da verdade ¢ na diregao do Bem “que toda alma deseja”.' Por outro lado, aos olhos de Platio, todo exercicio dialético, precisamente porque € submissio as exigéncias do Logos, exerccio do pensamento puro, 10: thidera, 286d, Como noma R. Schaerer, La Question Plarnisienne, op. cits p+ 87:"A definigio nfo é mada por si mesma; tudo ext no caminho percorido para alcancl-la; por ele, 0 interlocutor adquire mais acuidade de esptito (Sefsta, 2272- 1), mais confianga (Téette, 1876), mais habilidade em todas as coisas (Police, 285d ss), sua alma se purifica rejeitando as opinides que fechavarn asviasdo casino (Sofie, 230b-<). Mas qualsquer que sejam as palavras empregadss para designar ‘esse progresso dialético, ¢ sempre alma do inserlocutor ~ ¢, assim, na alma do Ieivor inteligente — que else reali CER. Schaerer, La Querion Plaonicieune, op. cit. p. 38-8. V- Goldschmidt Le: Dialogues de Pleven, op. cit, p. 79-80, 292¢ 341: “A Repaiblica resolve © pro- blema da juscga ede suas vanrager. Aa mesmo tempo € par isso mesino, cla crores A Justga” Sobre o eatiter protéptica das dslogos, o£. K. Galser, Prmepait und Parincxe bei Platon, Uncersuchungen cur Foren der plaranischen Dialogs, Srargart, 1959, « Plarone come senstoe floc, Naples, 1994. ™ Platio, Ménom, Ble. "© Plato, Repiblicg, 505d. Pareles | 8 Digitalizado com CamScanner desvia a alma do sensfvel e lhe permite se Converter para.o Bem, E um itinerdrio do espirito em direcdo ao divin, IL Aprender a morrer Hi uma misteriosa ligagao entre a linguagem ¢ a morte. Esse foi um dos temas favoritos do pensamento do saudoso Brice Pa- rain:“A linguagem apenas se desenvolve a partir da morte dos individuos”."” E queo Logos representa uma exigéncia de racio- nalidade universal - supde um mundo de normas imutaveis - que se opée ao perpétuo devir e aos apetites mutdveis da vida corporal individual. Nesse conflito, quem permanece fiel ao Lo- gos corre risco de perder a vida, Essa foi a historia de Sdcrates, ‘Sdcrates foi morto por fidelidade ao Logos. A morte de Sécrates é 0 acontecimento radical que funda o platonismo. A esséncia do platonismo nao consiste, com efeito, na | afirmagao de que o Bem é a razio ultima dos seres? Coma diz um neoplaténico do século IV: "Se todos os seres so seres somente pela bondade e se eles participam do Bem, é preciso que o pri- meiro prinefpio seja um bem que transcenda o ser. Bis uma prova eminente: as almas de valor desprezam o ser par causa do Bem, quando elas espontaneamente se colocam em perigo pela patria, por aqueles que amam ou pela Virtude”." Sécrates se expds & morte pela virtude, Preferiu antes morrer a renunciar As exigén- ‘ias dessua consciéncia;™ portanto, preferin o Bem.ao ser, preferit a consciéncia e 0 pensamento a vida de seu corpo. Essa escolha ¢ precisamente a escolha filosdfica fundamental e pode-seentio dizer que a filosofia ¢ exercicio aprendizado para a morte, se é verdadeiro que ela submete 0 querer viver do corpo as exigéncias : scparando o pensamento das iusBer dos semtides, raion f988aprendiayern ca more da qual flaremos f, Mati, Fedgn, 83a, | tots Pain, “Le Langage et Existence", na cole eoletiva &Exctence Pasi 96.0.3 Oivmnndeh tammmntacaenae ates | a lingsagern ea mote, nota La Mort de Sacra, Pats, 1950, I" Susi, Des Deses «do Mundo, V, 3 (rad. Rochefort modifeads), °™ Plato, Apod. Sarrar., 28b-30b, | % © exercieto diuléice, | Eseries ati Digitalizado com CamScanner superiores do pensamento. “Assim, portanto, diz 0 Sécrates do Fédon,ébem verdadeiro que aqueles que, no sentido exato do ter- mo, poem-se a filosofar exercitam-se para morrer e que a ideia de estar morto é, para cles, menos do que para qualquer pessoa no mundo, objeto de payor.” "° A morte, que aqui estd em questao, ¢ ‘uma separagao espiritual entre a alma e 0 corpo: Apartar 0 mais possivel a alma do corpo, habitud-la a se recolher, a se concentrar sobre si mesma partindo de cada um dos pontos do corpo, a viver tanto quanto pode, nas circunstncias atuais tanto quanto naque- las que virdo, isolada ¢ por si mesma, inteiramente desapegada do corpo, come se estivesse desapegada de seus lacas”.""' Tal 60 exercicio espiritual platénico, Mas é preciso compreendé-lo bem. e, notadamente, no o separar da morte filosdfica de Sdcrates, cuja presenca domina todo o Fédon, A separagdo entre a alma € 0 corpo que esti em questo aqui, qualquer que tenha sido sua pré-histéria, ndo tem absolutamente mais nadaa ver com um es- tado de transe ou catalepsia, no qual o corpo perdia consciéncia e gragas ao qual a alma estaria num estado de vidéncia sobrenatu- ral.!!"Todos os desdobramentas do Fédon que precedem e que se seguem & nossa passagem mostram bem que se trata, para a alma, de se libertar,de se despojar das paixdes ligadas aos sentidos cor- porais para adquirir a independéncia do pensamento.'"* De fato, apreender-se-4 melhor esse exercicia espiritual compreendendo- -0 como um esforgo para se libertar do ponto de vista parcial e passional, ligado ao corpa e aos sentidos,e para se elevar ao ponto de vista universal e normativo do pensamento, para se subme- ter as exigéncias do Logos ¢ 4 norma do Bem. Exercitar-se para a morte ¢ exercitar-se para a morte de sua individualidade, de suas paixdes, para ver as coisas na perspectiva da universalidade ¢ da objetividade. Evidentemente, um tal exercicio supde uma concen- tragio do pensamento sobre si mesmo,um esforgo de meditagao, um diélogo interior, Platao faz alusio a isso na Reptiblica, mais "* Placio, Fédom, G7e (trad, Rabin}; ver também (4a © BOe- " Platio, Fédem, 67e (observar o verbo “habituar” que supe um exerccio), "Cf a, 78 anterior, "CE Patio, Féden, G5e, G6c, 79, 81b, B3b-d, 84a: “A alma floséfica acalma 4S panes, apega-se ans passos do raciocinio ¢ no cesta de estar presente nele; ela toma @ verdadeiro, 0 divino, 0 que nga abjeto de opinifo, como espeticula e ‘umbém comm alimento.”. Fore Exegesis | 5 Digitalizado com CamScanner ‘uma vez a propésito da tirania das paixdes individuais, 4 tirania do desejo se revela, ele nos dir, particularmente no sonho;"4 Ta te selvagem de nosso see..no hesita em tentar em pensameniy violar sua mie ou qualquer outro, seja quem for, homem, deys. animal; no hd nem assassinato com o qual nao se manche, nem alimento do qual seabstenha; em sintese, nao ha loucuranem inp. pudor que ele se profba’.' Para se liberar dessa tirania, hi que recorrer a um exercicio espiritual do mesma tipo que aquele des. crito no Fédon: Nio se entregar ao sono sendo depois de ter despertado a parte racional de nosso sere t-lo nutrido com belos pensamentos ¢ belas pesqutisas, concentrando-se sobresi mesmo, apés também ter acalmado a parte apetitiva de nosso ser... ¢ amansido a parte irascivel;apds ter, portanto, apaziguado essas duas tltimas ¢ es- timulado a primeira, na qual reside 0 pensamento, aalme atinge melhor a verdade.""* Que nos seja permitida aqui uma curta digressdo. Apresentar a filosofia como um “exercicio para a morte” era uma decisio de ex- trema importancia. 0 interlocutor de Sécrates no Fédon observa imediatamente: isso dispée ao riso e os profanos terdo boa razio para tratar os fildsofos como “pessoas que reivindicam a morte” ‘€ que, $e séo postos & morte, bem terdo merecido sua sorte."* To- davia, para quem leva a filosofia a sério, a férmula platénica ¢ de uma yerdade muito profunda: ela obteve, aliés, um imenso eco na filosofia ocidental; mesmo adversdrios do platonismo, como Epicuro e Heidegger, retomaram-na. Em face dessa férmula, toda as tagarelices filosdficas, de outrora e de hoje, parecem bem va~ zias. “Nem o sol nem a morte podem ser olhados fixamente?”" Somente os fildsafos se aventuram em fazé-lo; sob suas diversas representacSes da morte, encontra-se uma virtude unica: a luci- dez, Para Platio, o desenraizamento da vida sensivel ndo pode assustar quem jd provou da imortalidade do pensamento. Para © epicurista, o pensamento da morte é consciéncia da finitude ™" Plaio, Republics, 37L¢ (trad. Chambry). "9 Tbiders, 57145725, "* Platio, Fédom, 64a-. Peovivel alusio hs Munem de Aristfanes (103 ¢ 304). \) La Rochefoucauld, Mima, 626, 46 | ese Satin Digitalizado com GamScanner da existéncia e ela dé um valor infinito para cada instante; cada momento da vida surge carregado de um valor incomensurdyel: “Imagina que cada dia que brilha serd para ti o tltimo; é entao com gratidao que tu receberds cada hora inesperada”." 0 estoi- cismo encontrard nesse aprendizado da morte o aprendizado da liberdade. Como diz Montaigne, plagiando Seneca, num de seus mais célebres ensaios (“Que filosofar & aprender a morrer”): “Quem aprendeu a morrer desaprendeu a servi", 0 pensa- mento da morte transforma o tom eo n{vel da vida interior:“Que a morte esteja diante dos teus olhos a cada dia, diz Epiteto, ¢ tu jamais terds qualquer pensamento baixo nem qualquer desejo excessivo”," Esse tema filoséfico vincula-se aquele do valor in- finito do momento presente, que é preciso viver como se fosse ao mesmo tempo o primeiro eo titimo.'” Também para Heidegger, a filosofia é “exercicio para a morte”: a autenticidade da existéncia reside na antecipagao liicida da morte. Cabe a cada um escolher entre a lucidez eo divertimento.!* Para Plato, o exercicio da morte é um exereicio espiritual que consiste em mudar de perspectiva, em passar de uma visio das coisas dominada pelas paixSes individuais a uma representa ao do mundo governada pela universalidade ¢ objetividade do ™ Hocicio, Epi, I, 4, 13-14: "Oommen enede diem tii dihecive supremum, grata superwenieeguce now spershinur bora”. Encontra-st aqui mals uma vez o tema epi- casa da grarido; cf, acima, n. 61 ¢m, 70, ™ Montainge, Eats, A. Thibaudce (cd), Pass, 1953, p. 110. CE Stncea, Epis, 26, 8: "Interne commedabit Epicurus qui ait: weditare maréer’ wel i carmmodins sc transi ad ros hie potetrensus‘ereyia es ext mortem conde. Meditare marten: _gni hoe dict meditar Wbercanem inbet. Qui mari didi, servre dedidicit™, Véswe ‘que westoico Seneca toma emprestada a maxima “meditare mortem” de Epicuro. © piteto, Mamual,§ 21. Marco Auli, [I, 113 “Agi, falar, pensar sempre como alguém que pode imediatamente deixar a vida", "CE, acima, a. 266 n. 72-73. "Ch AL de Waelhens, La Philesphie de Martin Heidegger, Louvain, 1942, p- 135-51. Ch sobretudo M. Heidegger, Sein und Zeit, § 53, p. 260 ss, em que; como observa com rario R, Brague, na resenha que fr ds presente obra nos Eudes Phrleophigue, 1982, Heidegger “cuida de distinguir 0 Ser-paraa-morte da medi- tnnie martis”. & bem verdade que o Ser para-a-marte heideggeriano 6 adquire, seu sentido na perspectiva propria a Heidegger; mas nfo ¢ menos verdadeiro que seesté cm presenga de um pensamento que faz da antecipaglo ow antevidéncia da morte ‘uma condicéo da exisiéncia auténtica, Lembremos que, na flosofia platBnica, nfo sera somente de pensar na morte, mas de praticar um exerccio parua morte que 6.de fato, um exerciio para a vids. Patel es epi | 4 Digitalizado com CamScanner

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