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A Monstruosidade e o Mal em A Pequena Sereia e na sua versão contemporânea, Eu

Estou Aqui: Quem é o verdadeiro monstro?

Geórgia Linhares C. Lobão

Este ensaio visa, embora que de forma introdutória, a comparar e analisar as


questões da monstruosidade e do Mal no clássico conto de fadas, A Pequena Sereia, de
Hans Christian Andersen, e em uma de suas versões contemporâneas, Eu Estou Aqui, de
Clara Savelli, buscando observar e comparar como os conceitos vistos são representados
por meio dos personagens antagonistas, assim, compreendendo como eles metaforizam
os conceitos de Mal e de monstruosidade.

Primeiramente, ao analisar a dificuldade em definir o mal, segundo os próprios


filósofos, como Agostinho – um dos principais responsáveis pela definição do Mal
Teológico – portanto, é preciso observar justamente que pela Literatura figurar o
indizível, ela é responsável por usar representações, por meio das metáforas, por
exemplo, para significar conceitos tão difíceis de concretizar, como o do Mal, assim por
meio da dramatização há uma tentativa de apreender o mal e dá-lhe um significado,
conceituando-o por meio de metáforas, pois a arte tem a função de trazer representações
do que o homem, muitas vezes, não consegue compreender, trazendo suas próprias
experiências, anseios e temores por meio da ficção.

Segundamente, devido a essa dificuldade em conceituar o mal, o Mito e os


arquétipos surgem como uma maneira de simbolizar tais conceitos por meio da
literatura. É justamente o que acontece nos contos de fadas, um dos gêneros literários no
qual aparece mais fortemente a influência do mito e dos arquétipos. Desse modo, a
literatura obtém uma forma de definir conceitos tão complexos no plano ficcional.

Assim, uma das formas de observar a ligação presente entre o mito e os


arquétipos presentes nos contos de fadas é por meio da simbolização da bruxa má.
Justamente pelo Mal ser algo tão difícil de ser conceituado, esse arquétipo é um modo
de representar a monstruosidade no humano.

Segundo filósofos como Ricoeur e Adorno, o mal não pode ser representado
devido a sua tamanha complexidade, porém, como Simone Weil afirma, ele pode sim
ser representável, mas por meio do mundo ficcional. E é aí que entre a importância da
literatura, por intermédio da narrativa ela é capaz de representar o mal, ou ao menos
uma de suas fases diante tamanha imensurabilidade, e é justamente devido a essa
complexidade que há diversas formas da literatura representá-lo, como será visto aqui,
inicialmente, através do clássico de A Pequena Sereia.

A partir da melhor compreensão do embasamento da contextualização feitos,


agora podemos comparar a relação de monstruosidade com a personagem da Bruxa do
Mar. A monstruosidade é uma das formas de representação do mal e ela ocorre no
campo do estético ou moral. Assim, a personagem antagonista desse conto de fadas se
enquadra na categoria de monstro tanto por ocorrer no reino estético como no moral.

Primeiramente, e relação ao campo estético, a Bruxa do Mar tem uma aparência


não convencional, é um ser fantástico, com poderes, ela é antinatural, representa uma
transgressão pois além de não ser humana, ela é uma mulher com poderes. Portanto,
além de apresentar o antinatural por possuir poderes sobrenaturais, ela também o
representa por infringir limites culturais, já que em uma sociedade patriarcal o gênero
feminino não é bem-quisto se exercer alguma forma de poder sobre os homens.

Assim, a Bruxa do Mar é uma forma metafórica de simbolizar o que uma mulher
não deve ser para abrigar o mal, o monstruoso. O reino estético dessa personagem então
se dá tanto pelo seu poder, por ir contra as leis naturais, como também pelo seu aspecto
físico, sendo vista fora de um padrão de beleza convencional. Fato muito perpetuado
nos arquétipos dos contos de fadas, pois, geralmente, os personagens que representam o
mal nessas narrativas são monstruosos, não seguindo convenções de beleza, enquanto os
heróis são belos, seguindo uma visão de que o exterior representa o interior.

Apesar do foco no campo estético, a monstruosidade da Bruxa do Mar também


se dá no reino moral, pois esta extrapola os limites da moralidade, cometendo atitudes
que são atribuídas a sujeitos classificados como maus, a exemplo de: cometer
transgressões graves, afinal, ela põe a vida da Pequena Sereia em risco para conseguir o
que deseja; ela tem a intencionalidade de fazer o mal, não sendo inocente diante das
consequências dos seus atos, tendo ciência do mal que causará; além disso, ela sente
prazer em infligir dor, pois sente inveja da princesa, o que torna a sua motivação fútil e
inclemente; assim, a personagem que constitui com um caráter falho, comprovando a
sua monstruosidade também pela falha moral.
Outrossim, é visto a importância dessa figura arquetípica pois metaforiza
conceitos abstratos por meio dessas figuras do discurso, trazendo para o plano da ficção
o que é dificilmente comprovado na realidade. Nesse caso, o arquétipo da bruxa má é
visto também em várias outras narrativas, assim, comprovando a importância desses
mitos para representar o mal. Segundo De Man (1978):

As metáforas são capazes de inventar as entidades mais fantásticas por causa


do poder posicional inerente na linguagem. Elas podem desmembrar a
tessitura da realidade e entrelaçá-la de novo de maneiras as mais caprichosas,
emparelhando homem e mulher ou ser humano com fera, nas formas mais
antinaturais.

Assim, é possível ver a adequação de monstros e metáforas para representar o


mal, como em A Bruxa do Mar, no conto de A Pequena Sereia.
Apesar das características em comum e de Eu Estou Aqui ser inspirada no conto
original de A Pequena Sereia, ambas possuem formas divergentes na hora de abordar o
Mal e a monstruosidade. Em A Pequena Sereia, por seguir padrões mais clássicos e
mais antigos, ainda influenciada pela Teologia, há uma dominância do Mal Teológico,
pois ele traz o conceito do dualismo maniqueísta, cujo princípio se dá no conflito entre
dois conceitos equivalentes e eternos: Bem e Mal.
Esse conflito ainda é fortemente presente mesmo nos dias de hoje, sendo visível
em várias narrativas fictícias, fazendo parte dos produtos culturais da indústria de
entretenimento, como pode ser visto fortemente nos contos de fadas.
A luta do Bem contra o Mal está firmemente perpetuada nos arquétipos e uma de
suas principais fontes são justamente essas narrativas, como em A Pequena Sereia.
Portanto, essa divisão entre os dois polos fica bem clara, não havendo espaço para uma
dualidade entre os personagens, deixando bem óbvio quem é do bem e quem é do mal, o
que é ratificado pelo monstruosidade estética vista na personagem da vilã, que possui
uma aparência desagradável assim como a sua essência.
Já em Eu estou aqui, também há a monstruosidade, porém o seu foco se dá no
campo moral, já que o antagonista é um homem comum, sem nada esteticamente que
denuncie o mal em si. Conspicuamente, contextualizando com os tempos hodiernos,
essa forma de representação do mal traz uma nova visão, a de que o mal não precisa
necessariamente estar visível esteticamente, assim, trazendo uma maior complexidade à
representação do mal e do monstruoso.
Assim, o monstro aqui é simbolizado pela sua amoralidade, já que este extrapola
os limites da moralidade, cometendo atitudes que são atribuídas a sujeitos classificados
como maus, a exemplo do momento em que este comente tentativa de estupro da
personagem Ariella – representação do bem – violando as morais mais básicas em
virtude apenas do seus desejos, sem medir ou se importar com as consequências,
mostrando-se com um caráter falho e forte desvio de conduta ao cometer uma das piores
transgressões. Porém, a narrativa também faz uma crítica à monstruosidade ligada ao
estético, já que os próprios personagens da narrativa duvidam de sua monstruosidade
por este não possuir caraterísticas físicas que o tornassem um monstro.
Consequentemente, esta análise mostra que ao contrário do conto original, esta
versão contemporânea traz o Mal Moral em sua narrativa, pois o Mal aqui é culpa do
próprio ser humano, assim, passando a responsabilidade das atrocidades cometidas ao
próprio ser humano, como acontece na narrativa analisada. Seguindo a visão de Kant e
de Arendt, também podemos ver em Eu Estou Aqui o Mal Radical e a Banalidade do
Mal.
A partir do conceito de Mal Radical, vimos uma maior complexidade não só do
conceito do mal, mas do próprio ser humano, assim, este passa a ser visto como
propenso ao mal devido ao seu próprio egoísmo, instrumentalizando os seus iguais,
tratando de forma supérflua em prol dos seus objetivos. E é justamente isso que
Mauricio faz – o monstro dessa nova versão - , ele objetifica a personagem feminina
aos seus próprios interesses, mas vai além disso, ele também quer reforçar um controle
totalitário no papel feminino para vê-la submissa a ele e isso é forçado pela própria
personagem ao fazer observações críticas sobre o comportamento do mal a sua espreita.
Dessa forma, a narrativa também traz indícios da Banalidade do Mal, pois os
atos do monstro só foram possíveis graças a sua insensibilidade e à total falta de
reflexão sobre as consequências de suas ações, assim, a sua amoralidade vem tanto do
egoísmo em prol dos seus interesses como também da banalização das suas ações e das
consequências dos seus atos, e isso é comprovado pela visão dos outros personagens da
narrativa, pois eles também não admitem as graves consequências das suas ações.
Exemplificando perfeitamente a ideia que o conto Eu Estou Aqui traz a respeito
do mal e da monstruosidade, França e Araújo (2019) afirma que:

(...) Eichmann, de certa maneira, passou a simbolizar o Mal em nós


mesmos, alguém assustadoramente humano, mas que, ao não refletir
sobre as consequências dos seus atos, é responsável por causar
sofrimento extremo, se não de forma direta, certamente por meio de
uma negligência criminosa.

Assim, é visto que tanto Mauricio como seus amigos exemplificam exatamente
essa definição, pois além da monstruosidade vista em Mauricio ao tentar violar Ariella,
também são vistas diversas atitudes em seus amigos que colaboram para que tal
violência aconteça, pois eles são negligentes e banalizam as ações do amigo, o que
acaba incentivando-o a cometer tão ato criminoso. Portanto, aqui o mal e a
monstruosidade não aparecem apenas de forma de maldade escrachada, mas também
por meio de detalhes mais sutis.
Concluindo, ambos os contos trazem uma narrativa que visa, por meio dos
planos imaginários da arte e da literatura, criar temas, situações, personagens que se
convertem, alegoricamente, em paradigmas do mal. Contudo, apesar de ambos usarem
uma estetização do Mal e até mesmo da monstruosidade, eles trazem formas divergentes
de simbolizar o mal, com figuras metafóricas diferentes, uma mais próxima do
fantasioso e figurativo, outra já mais próxima do real e da complexidade do próprio ser
humano. Porém, é inegável que ambas usam recursos narrativos, artísticos e literários
para conseguir representar o irrepresentável, cada uma seguindo um dos embasamentos
vistos aqui, mas cada uma é importante e eficaz a sua maneira.

REFERÊNCIAS

BERTIN, Juliana Ciambra Rahe. O monstro invisível: o abalo das fronteiras


entre monstruosidade e humanidade. Outra travessia. n. 22 (2016): O monstro à mostra:
mostruário.
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 2004.

FRANÇA, Júlio; ARAUJO, Ana Paula. As artes e os atributos do Mal. In: ____
(Orgs.). As artes do Mal: textos seminais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bonecker, 2019. pp. 13-
21.
JEHA, Julio. Monstros como metáfora do mal. In: _____ (Org.). Monstros e
monstruosidades na literatura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007. p. 9-31.

SAVELLI, Clara. Eu Estou Aqui (Femme Fatale). Increasy, 2020.


SCHIAVO, Luigi. O mal e suas representações simbólicas. Revista Estudos da
Religião, São Bernardo do Campo, n. 19, p. 65-83, 2000

SILVA, Valmor da. Os poderes do mal e as máscaras do diabo. Revista Pistis


Prax., Teol. Pastor., Curitiba, v. 3, n. 1, p. 121-135, jan./jun. 2011.
.
https://www.editorawish.com.br/blogs/contos-de-fadas-originais-completos-e-
gratuitos/a-pequena-sereia-hans-christian-andersen-1837

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