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Anténio Sudrez Abreu Ana Carolina Speranga-Criscuolo (Organizadores) Ensino de Portugués e Linguistica ‘Teoria e pratica editoracontexto Morfo(légica): flexao nominal Daniel Soares da Costa Neste capitulo, abordamos 0 ensino da flexdo nominal no portugués. Obser- vando esse tema em gramiticas tradicionais ¢ livros didaticos, percebemos que, da maneira como é tratado, ou se apresenta 0 contetido de maneira confusa, ou sim- plesmente conceitos importantes para a compreensio do mecanismo flexional da lingua no que diz respeito aos nomes ficam sem uma explicagdo mais convincente. iS) as sobre o funcionamento da prépria lingua por parte do aluno. ita VEZES, faze Qaluno perder orostorpelor : ensino médio assimilar alguns conceitos de descri¢do estrutural do funcionamento do processo flexional dos nomes do portugués, Pensando nisso, analisamos diversos manuais de Morfologia, obras consagradas de descrigdo estruturalista do portugués, gramaticas descritivas, no intuito de buscarmos uma abordagem que seja compreen- sivel em sala de aula. Trabalhando com a abordagem estruturalista, com os conceitos de morfema, morfe e alomorfe, pretendemos apresentar um quadro descritivo da flexao nominal do portugués, sintetizando aquilo que consideramos mais adequado a partir dos livros analisados. Por exemplo, CAmara_Ity (2004 [1970]) langa mao de “formas te6ricas” para explicar o plural de palavras como “ledio” e “facil”, Uma abordagem assim é complicada demais para a compreensiio do processo por parte do aluno. Por outro lado, uma abordagem que leve em consideragao 0 conceito de 50 Ensino de Portugués € Linguistica alomorfia na sua descri¢ao, como a deLaroca(2003 [1994]), se tora mais palpavel, mais facil de assimilar. Assim, combinando ideias de diversos estudiosos do por- tugués e também dando nossa contribuigao para a descrig’io do processo de flexiio nominal, apresentaremos uma proposta de como abordar essa questo em sala de aula e nos livros didaticos, principalmente no que diz respeito ao ensino de Lingua Portuguesa no ensino médio. Conceitos basicos: morfema, morfe, alomorfe e morfema zero Antes de entrarmos na descrigdo do processo de flexaio nominal propriamente, €necessaria uma explicagiio a respeito dos conceitos basicos que estiio por tras de uma descrigdo morfolégica, mais especificamente das unidades basicas com as quais esse nivel trabalha: 0 morfema, 0 morfe, o(s) alomorfe(s) ¢ 0 morfema zero. A definigao mais comum de morfema é a de que se trata da menor unidade da lingua, portadora de significado. Na definigao de Bloomfield (1957 [1926]), 0 thorfema ¢ uma forma recorrente, com significado, que no pode ser segmentada € analisada em formas recorrentes menores, sem que o significado se perca. Por outro lado, vale a pena destacar que a nogao de morfema é abstrata, ou seja, o morfema é uma unidade que tem existéncia virtual, isto é, trata-se de um conceito, uma ideia, um significado, que serd, posteriormente, veiculado, na su- perficie linguistica, por uma unidade de som, o morfe. Para entendermos melhor esas definigdes de morfema e morfe, tomemos 0 exemplo da questo do plural nds substantivos do portugués. Sabemos que pode existir a nogdo de néimero plural em substantivos que po- dem ser contados, por exemplo, “mulher > mulheres”,' “casa > casas”. No entanto, podemos ver, por meio desses exemplos, que ndo existe uma tinica forma para a expresso desse plural, uma vez que, no caso de “mulher”, 0 que carreou esse sig- nificado foi o acréscimo da terminagao “-es”, ao passo que, no caso de “casa”, essa nogo de plural foi transmitida por meio do acréscimo apenas da terminagiio “-s”. Mas, nos dois casos, 0 significado veiculado é 0 mesmo: “mais de um(a)”. Sendo assim, podemos dizer que existe um morfema de plural, que carrega 0 significado de “mais de um(a)”, o qual podera ser realizado, na superficie linguistica, por meio das terminagées “-es”, “-s”, além de outras que, por ventura, possam aparecer. ‘Essas terminagdes “-es” e “-s” sfio, portanto, dois morfes, existentes na lingua portuguesa, que podem dar existéncia real (fonica, realizag&o como se- Morfo(légica) 51 quéncia sonora na lingua) ao morfema (unidade virtual, abstrata) de plural dos substantivos do portugués.) Partindo dessa observacao, entramos no conceito de alomorfia, que é muito importante para a compreens&o da descricdo estrytiral da flexdo nominal e de qualquer processo morfoldgico da lingua portuguesa ou de qualquer outra lingua. Quando constatamos que existe mais de um morfe para realizar um mesmo morfe- ma (como no caso do plural descrito anteriormente), estamos na presenga, entio, de alomorfes. Sendo assim, a alomorfia diz respeito a existéncia de mais de um morfe para a realizagiio de um mesmo morfema, Mais adiante entenderemos por que a nogao de alomorfia é tio importante para a descrig&o morfolégica. Para finalizar esta parte, é necessario definirmos também 0 que ¢ morfema zero. O morfema zero, representado pelo simbolo @, indica que um determinado significado é representado justamente pela falta de um morfe especifico. Isto é, trata-se de uma auséncia significativa. Por exemplo, se comparamos as palavras “autor” ¢ “autora”, sabemos que o género da palavra “autor” é 0 masculino, e o que nos indica isso é a auséncia do sufixo “-a”, que flexiona a palavra para o género feminino. Se comparamos as palavras “autor” e “autores”, sabemos que o nimero da palavra “autor” € 0 singular, e o que nos indica isso ¢ a auséncia do sufixo “-es”, que flexiona a palavra para o mimero plural. Sendo assim, sempre que a auséncia de um morfe indicar um significado oposto ao significado assumido pelo item lexical com a sua presenca, estamos diante de um morfema zero, mesmo que ele se refira a significados gramaticais diferentes, de género masculino e namero singular, como nos exemplos dados. Portanto, chegamos ao significado completo da palavra “autor”, considerando também a questo dos significados gramaticais de género ¢ nimero, porque reconhecemos a auséncia dos morfes “-a”, de feminino, e “-es”, de plural. Podemos considerar, entéio, dois morfemas zero para a palavra “autor”, um © que indica género masculino e outro @ que indica numero singular. Flexdo e derivacao ‘Apesar de estudos modernos de Morfologia (Bybee, 1985, por exemplo) tratarem flexao ¢ derivagdo como uma tinica operagio, atribuindo uma gradagao ou escala ao processo morfolégico dentro de um continuo (ou seja, um processo morfoldgico pode “pender mais” para flexo ou para derivagao, no entanto, nao haveria limites intransponiveis entre as duas coisas), € possivel apontar algumas caracteristicas de cada um desses processos que podem contribuir para a compre- ensio da descrigaéo morfoldgica.; 52. Ensino de Portugués e Linguistica No processo de flex, temos uma mesma palavra se desdobrando de forma a apresentar o acréscimo de outro significado ao significado lexical basico.,Por exemplo, se tomarmos a palavra “gato”, no seu sentido denotativo, temos, como significado lexical basico, “animal doméstico, felino, de pequeno porte”. Ao acrescentarmos 0 sufixo “-s”, formando, assim, o item lexical “gatos”, ocorre um acréscimo de significado ao significado lexical basico. Nesse caso, continuamos falando do “animal doméstico, felino, de pequeno porte”, mas acrescentamos a nogio de que se trata, agora, de “mais de um” desse animaly Ja no processo de derivacao, ocorre uma mudanga no significado lexical € nao apenas o acréscimo de um significado a ele. Tomemos como exemplo 0 item lexical “arroz”, cujo significado poderia ser descrito como “cereal vindo de uma planta da familia das gramineas”. Ao acrescentarmos a essa palavra o sufixo “-al”, formando “arrozal”, 0 significado lexical basico da palavra muda, passando a significar “a plantacdio, o campo de cultivo” desse cereal Outra caracteristica marcante na distingdo entre flexdo e derivagdo é a de que o processo flexional no portugués nunca mudaré a classe da palavra, ao passo que um processo derivacional nao necessariamente causard esse tipo de mudanca, porém pode acontecer. Por exemplo, a palavra “casa” pertence a classe dos subs- tantivos; ao flexionarmos esta palavra no plural, formando “casas”, continuamos ater um substantivo. Jaa palavra “leal” pertence a classe dos adjetivos, porém, ao criarmos a palavra “lealdade”, pelo processo derivacional, ocorre.a transformag’io de um adjetivo “leal” para um substantivo abstrato “lealdade”. Outra diferenga interessante é que a flexdo, na lingua portuguesa, ocorre ex- clusivamente por meio do acréscimo de sufixos (morfes pospostos ao radical),” ja no caso da derivag’o podemos ter o acréscimo de sufixos ou de prefixos (morfes antepostos ao radical). Por exemplo, tomando a palavra “feliz”, que é um adjetivo, podemos formar um advérbio acrescentando o sufixo “-mente”, originando a palayra “felizmente”, ou podemos manter a palavra na classe dos adjetivos, dando 0 sentido de negacao a ela com 0 acréscimo do prefixo “in-“, originando a palavra “infeliz”. Na flexdo, o nimero de morfemas, no caso, sufixos, disponiveis na lingua é bastante restrito e esses elementos tém uma aplicagio muito abrangente. Por exem- plo, para indicar o plural de substantivos e adjetivos, temos os sufixos “-s” e “-es” (casa > casats > casas; mar > mar+es > mares), além de palavras que assumem o significado de plural, porém sem apresentarem algum tipo de marcagaio por segmen- tos fénicos (0 lapis > os lapis). Essa nogao de plural se aplica a todos os substantivos da lingua que podem ser contados, ¢ aos adjetivos que se relacionarem com eles. Por outro lado, na derivacao, o nimero de morfemas disponiveis é muito maior, além de nao haver uma aplicacio tao abrangente quanto a da flexdo. Por Morfo(légica) 53 exemplo, a partir da palavra “altar”, que pertence a classe dos verbos, podemos derivar a palavra “saltitar”, com acréscimo do sufixo “-itar”. No entanto, esse sufixo nao se aplica a todos 08 verbos, no geral, e nem mesmo a todos os verbos da mesma conjugagao, no caso, primeira conjuga¢ao, conforme podemos obser- var por meio dos exemplos, “pular > *pulitar, correr > *corritar, cair > *caitar”? Outro fator interessante é que a flexdo estérelacionada diretamente a um processo sintatico, que & a concordancia. 1ss0 quer dizer que as palavras que se relacionam entre si na frase estabelecem concordancia por meio dos significados transmitidos pelo processo flexional. Em uma frase como “O menino saiu cor- rendo assustado”, o substantivo “menino” é a palavra regente da concordancia, fazendo com que todos os elementos relacionados, ligados a ela na frase (0 artigo “O”, o verbo “saiu’” € 0 participio/adjetivo “assustado”) concordem com ela em mamero e/ou em género. Se a palavra escolhida, nessa frase, fosse “meninos”, flexionando-se no plural, todas as outras palavras relacionadas a ela teriam que estabelecer uma concordancia com ela, flexionando-se também no plural. Assim, teriamos a frase “Os meninos sairam correndo assustados”. Por sua vez, em processo derivacional nao hé.a obrigatoriedade dessa concor- dancia, Esse é um dos argumentos para se afirmar que 0 grau nao se expressa por meio de um processo flexional no portugués, mas por um proceso derivacional, uma vez que utilizar a forma do diminutivo ou do aumentativo de um substantive em uma frase nao desencadeia o processo sintatico da concordancia, e as palavras ligadas aesse substantivo nao precisam necessariamente estar na sua forma do diminutivo ou aumentativo. Por exemplo, em uma frase como “A crianca educada respeita 0s colegas”, a palavra “crianga” rege a concordancia do artigo “A”, do adjetivo “edu- cada” e do verbo “respeita”, j4 que essas palavras esti ligadas, relacionadas a cla. Se utilizamos a palavra “orianca” no diminutivo, “criancinha”, essas palavras rela- cionadas a ela nao tém a obrigatoriedade de estar também no diminutivo: “*Azinha criancinha educadinha respeitinha os colegas”. A frase torna-se absurda porque 0 artigo e o verbo nao saio passiveis da alteragao de grau; no entanto, o adjetivo “edu- cada” é e, mesmo assim, nao hd a obrigatoriedade de ser colocado no diminutivo, uma vez que poderfamos ter a frase “A criancinha educada respeita os colegas”. Flexao nominal: género e numero Podemos estabelecer as formas basicas da flexdo nominal da seguinte manei- ra: para a expresso do género, ha uma oposigo entre um @, que indica o género masculino, ¢ um sufixo “-a", que indica o género feminino; para a expresso do 54 Ensino de Portugués e Linguistica niimero, hé a oposicao entre um ©, que indica 0 singular, ¢ um sufixo “-s”, que indica o plural. Essas so as formas basicas da flexao nominal, uma vez que sio as mais recorrentes na lingua portuguesa, No entanto, chegaremos a descrigao morfolégica completa da flexdo nominal quando contemplarmos todos os casos de alomorfia que aparecem na lingua. Para isso, apresentamos um apanhado geral dessa descrig&o a partir da andlise dos trabalhos de alguns autores, ressaltando 0s pontos fortes de suas Pposigdes tedricas em relagao a esse assunto ‘¢ discutindo 0S seus pontos fracos. Além disso, na medida do possivel, apontamds possiveis formas de trabalhar determinados tépicos com alunos do ensino médio. Flexdo de género Antes de entrarmos na descricao morfoldgica da flexao de género em si, é necessdrio fazermos algumas observagdes em relagiio & expressdo do género na lingua portuguesa. Primeiramente, é importante deixar claro para o aluno que, quando falamos em géncro masculino e género feminino, estamos nos referindo a uma categoria gramatical, isto é, a uma parte da teoria gramatical associada ao nivel morfologi- co da anilise linguistica. Uma compreensao eficaz da descrigao morfoldgica do género em uma lingua s6 sera Posstvel se conseguirmos desyincular o significado de “género gramatical” da ideia de sexo dos seres. Por muito tempo, foi permitido, na escola, pela tradi¢0 gramatical normativa, que a nogiio de género gramatical se confundisse com a ideia de género relacionada ao sexo dos seres, Isso levoua afirmagées um tanto inconsistentes, a ponto de se dizer que a palavra “mulher” é 0 feminino da palavra “homem”, que a flexdo de substantivos epicenos (substantivos que se referem a determinados animais) se da por meio da relacdo do substantivo com as palavras “macho” ou “fémea”, como em “cobra macho” e “cobra fémea”. Bensando no género como categoria gramatical apenas, desvinculada da ideia do sexo dos Seres, pode-se perceber que a palavra “mulher” é uma palavra de género tnico, feminino, que nao se flexiona em outro género. Percebemos isso pelo fato de que, se precisarmos escolher um artigo para acompanhar essa palavra, escolheremos sempre o artigo feminino “a” — “a mulher” mesmo acontece com a palavra “cobra”, que também é uma palavra de género tinico, feminino. Além do mais, fazer a combinac&o dessa palavra com as palavras “macho” ou “fémea” nao €um proceso flexional, sequer um processo morfoldgicgy Trata-se de um Processo Sintitico, a criagao de um sintagma, Afirmar que esse processo é flexdo é absurdo. Mesmo colocando a palayra “macho” na frente da palavra “cobra”, podemos per- ceber que 0 artigo escolhido Para acompanhar o sintagma continua sendo 0 artigo Morfo(légica) 55 definido “a” —“a cobra macho”, o que quer dizer que o género da palavra “cobra” continua sendo feminino, mesmo a palayra se referindo a um ser do sexo masculino.¢ "Todos os substantivos do portugués possuem género, quer se refiram a ani- mais, que tm sexo, quer sé refiram a objetos, sentimentos, abstragdes etc. Assim, “faca’ e “mesa” nao possuem sexo, mas sio do género gramatical feminino. Da mesma forma, “copo” e “prato” no possuem sexo, mas sio do género gramatical masculino. Os substantivos “felicidade” e “amor” nao sao objetos, pois represen- tam sentimentos, porém sao, respectivamente, do género gramatical feminino—“a felicidade” — ¢ masculino —“o amor”. FTambém ha substantivos que se referem a animais ou pessoas que apresentam discrepancia na relagdo género/sexo. Por exemplo, a palavra “vitima™ ser sempre do género feminino — “a vitima’ —, quer se refira a um homem ou a uma mulher, Em termos de descrigao linguistica é, portanto, incorreto dizer que “mulher” é feminino de “homem”, como algumas gramaticas tém feito. O que se tem so duas palavras diferentes, sendo uma pertencente 4 categoria gramatical de género feminino e a outra a de masculino. Outro fator importante que devemos apontar é que, no proceso derivacional, existem alguns sufixos que trazem também, no seu significado, a nogio do género gramatical, partindo de uma palavra do género masculino ¢ derivando uma palavra que pertencerd ao género feminino. F.o que acontece, por exemplo, com as palavras imperador (masculino) > imperatriz (feminino), galo (masculino) > galinha (dimi- nutivo, feminino). Nesses casos, ocorre a mudanca do género gramatical da palavra, no entanto, nao se trata de um processo flexional, mas de um caso de derivagio. Os substantivos e adjetivos da lingua portuguesa se agrupam em conjuntos de- finidos por sua vogal tematica nominal. Temos, na lingua, palavras terminadas com a vogal tematica nominal “-a” (casa, poeta, mesa), com a vogal “-e” (ponte, mestre, tenente) e com a vogal temitica “-0” (livro, gato, cademo). Os adjetivos, quase que exclusivamente, se restringem as vogais tematicas “0” e “-e” (bonito, elegante), Por fim, ha, também, nomes atematicos, que sao as palavras terminadas em consoante (autor, més, amor) ¢ as palavras oxitonas terminadas em vogal (urubu, café, maracuja). Feitas as observa¢6es preliminares em relagiio expressao do género no portu- gués, entraremos, agora, na descri¢4o morfoldgica da flexdo de género nessa lingua. Na sua forma basica, podemos dizer que‘a flexdio de género acontece, na Imgua, por meio da adjun (0 do sufixo “-a” & forma masculina da palavra, que funciona como a base para 0 processo. Isso quer dizer que partimos da palavra na sua forma masculina para chegarmos 4 forma femininag Em relagio aos nomes atematicos, ocorre apenas o acréscimo do sufixo (ou desinéncia) de ferninino “a” forma de base masculina (autor > autor + a > autora). 56 Ensino de Portugués ¢ Linguistica O mesmo acontece com as oxitonas terminadas em vogal, também nomes atematicos, quando ha a possibilidade de variagio de género para a palavra (peru> peru+a>perua). Jé em relagSo aos nomes tematicos ocorre a supressio da vogal tematica nominal quando do acréscimo do sufixo “-a”, de género feminino, 4 forma de base masculina, como podemos ver no diagrama a seguir. menino > menino +a aa menina 4 supressao da vogal tematica “o” "Essa éa postura descritiva adotada por Mattoso Camara Jr. (2004 [1970], na sua obra Estrutura da lingua portuguesa, com a qual concordamos e adotamos, também, para o nosso quadro descritivo da flexfo de género do portugués. » —> No entanto, ha autores que tém uma viso um pouco diferente a esse respeito. Laroca (2003 [1994]), no seu Manual de morfologia do portugués, nao considera as vogais “o” ¢ “e”, de palavras masculinas, como vogais tematicas, mas como alomorfes do morfema de género masculino, junto com o alormofe @, que re- presenta, na visdo da autora, o masculino em palavras terminadas em consoante, ditongo, ou vogal t6nica. Nessa visio, nao ocorreria, portanto, 0 processo de “supressiio da vogal tematica”, pois as palavras nfo teriam vogal tematica. O que ocorre, entdo, é a opeao pelos morfes possiveis para a representacado do género da palavra (“o”, “e” e , como alomorfes do morfema de género masculino, em oposi¢aio ao morfe “a”, representativo do morfema de género feminino). Para Kehdi (1990), em Morfemas do portugués, as vogais atonas finais dos nomes do portugués podem ser desinéncias de género ou vogais tematicas. Segun- do 0 autor, se a palavra apresenta a oposi¢&o de género “masculino x feminino”, entio a vogal Atona final é desinéncia de género, marcando a escolha de um ou de outro género; no entanto, se a palavra nao apresenta a oposi¢dio de género, ent&o a vogal dtona final dos nomes é vogal tematica. Dessa forma, terfamos: livro 8 live+0 (no apresenta oposigao de género) (0 = vogal temitica) carta wy cart +a (nao apresenta oposigao de género) (a= vogal tematica) garoto = garot +0 (apresenta oposigao de género) (0 = desinéncia de género masculino) mestre mestr +e (apresenta oposigio de género) (e= desinéncia de género masculino) Morfo(légica) 57 ‘Consideramos a postura descritiva de Mattoso Camara Jr, mais adequada, pois simplifica a descrigao a uma oposigao bindria de @ x “-a”, ou seja, o morfe a” indica o género feminino da palavra, ao passo que a auséncia desse morfe (re- presentada pelo @) indica 0 masculino. Se adotassemos a postura dos outros dois autores citados, aumentariamos o ntimero de alomorfes representativo’ de género, pois teriamos que considerar, de um lado, os alomorfes “-o, -e e @”, para masculino, se opondo a “-a”, para o feminino, o que torna a descrigzio mais complicada,, Descrita a fora basica da representagdo de género na lingua portuguesa (@ de masculino x “-a” de feminino), passaremos, agora, 4 discussio sobre as alomorfias de género. Oprimeiro caso a ser apontado € 0 da alterndincia vocdlica nas palavras av6 x avd. ‘No caso dessas duas palavras, é a mudanga da qualidade da vogal (de vogal fechada ‘6” para vogal aberta “6”) que é responsavel pela distingao entre o género masculino (0 avé) € 0 género feminino (a avé). Como esse € 0 tinico trago distintivo entre o género das duas palavras, podemos dizer que essa alterndncia vocdllica morfémica. Também temos palavras em que a alterndncia vocdlica corre, no sendo, porém, otrago principal responsavel pela disting&io de género. Eo que acontece, por exemplo, em palavras como gostoso (6, fechado, em “to”) x gostosa (6, aberto, em “to”), grosso (6, fechado, em “gro”) x grossa (6, aberto, em “gro”). No entanto, podemos perceber que o morfe “-a”, que indica género feminino na lingua, esta presente nessas palavras (gostoso > gostoso + a> gostosa), sendo o principal responsdvel pela mudanga do gé- nero. Nesses casos, a alterndncia vocdlica atua como um trago secundario, um reforgo para a distingo do género. Sendo assim, podemos dizer que, nessas palavras, temos uma alterndncia vocdlica submorfémica, ja que esse nao é 0 inico nem o principal trago distintivo responsdvel pela indicacdo de género. Ha também palavras em que a mudanga de género do masculino para o fe- minino ocorre simplesmente por meio da subtracao da vogal tematica da palavra na forma masculina. E 0 que acontece, por exemplo, com as palavras drfaio > Orfai, irmao > irma. O quarto caso de alomorfia que podemos apontar ocorre em palavras como europeu > europeia. Nesse caso, a adjungao do morfe “-a”, de feminino, desen- cadeia alguns processos fonoldgicos. O primeiro deles € a supressdo da vogal temética que, no caso dessa palavra, é 0 “u” final. Temos, entio: europeu > europeu +a > europea a 1 supressdo da vogal tematica 58 Ensino de Portugués e Linguistica Em seguida, ocorrem mais dois processos fonoldgicos, 0 da ditongacdo e, depois, a alterndncia vocdlica submorfémica, passando a vogal “e”, da silaba “pe”, de fechada para aberta. europea > europeia > europeia | | (“e” aberto em “pe”) ditongagaio alternancia vocalica Um caso relacionado com esse, que sofre processos fonolégicos diferentes, porém, é 0 do feminino da palavra judew, que é judia. Ocorre a supressio da vogal tematica “u”, ao ser adjungido o morfe “-a” de feminino. No entanto, ao invés de ocorrer a ditongacdo e, posteriormente, a alterndncia vocdllica, ocorre apenas uma mudanga na vogal “e”, que passa a ser “i”. A esse processo damos 0 nome de alte- amento, uma vez que a vogal passa de vogal-média fechada “e” para vogal alta “i”. judeu > judea > judia t 4 supressao da alteamento “e” > “i” vogal tematica £0s casos de alomorfia com as explicagdes mais complicadas na literatura da Area dizem respeito as palavras terminadas em -Ao, tanto no que se refere a flexio de género quanto A flexdo de namero. Por exemplo, o feminino da palayra ledo é/eoa, e o plural é /edes. Podemos perceber que ha mudangas fonoldgicas muito grandes, dificeis de explicar por meio da descrigio de processos. CAmara Jr. (2004 [1970] recorre ao reconhecimento de formas teéricas, que sfio as formas das palavras, que nao aparecem na superficie, mas que estariam na estrutura profinda da lingua. Por exemplo, para explicar a formagao do feminino da palavra /edio (eoa), © autor diz que a forma teérica de base dessa palavra seria *leon! (que aparece em derivagdes como, por exemplo, /eonino). Partindo dessa forma de base, entio, ocorreria apenas a supressio da nasal “n” ao se adjungir o morfe “-a” de feminino. *leon > *leon +a > leoa 4 supressio da nasal “n” Morfo(légica) 59 Seguindo esse mesmo raciocinio, 0 autor diz que, no caso do feminino da palavra valentdo, cuja forma teérica de base seria *valenton, nao ocorre a supres- sao da nasal, porém ocorre um processo de ressilabificagdo, em que a nasal passa a formar uma nova silaba junto com o morfe “-a” de feminino. Teriamos, entdo: *valenton > va.len.ton +a > va.len.to.na? J ressilabificagio da nasal “n” Reconhecemos que o recurso de Camara Jr. a formas tedricas na base simplifica bastante a descrigéo morfoldgica, reduzindo o numero de processos fonolégicos que ocorrem. No entanto, acreditamos que 0 conceito de formas ted- ricas, e mesmo a busca por essas formas, na estrutura profunda da lingua, scja de dificil compreensdo por alunos de ensino médio. Nossa experiéncia com alunos de pés-graduagio nos mostra que, mesmo nesse nivel académico, ¢ dificil ensinar e compreender a reflexdo a que chega 0 autor. Por outro lado, na base da sua reflexio, podemos reconhecer 0 conceito de alomorfia, que é a existéncia de mais de um morfe para a realizagdo de um mes- mo morfema. Pensando em uma forma de explicar os processos que acontecem coma flexiio de género ¢ de ntimero nas palavras terminadas em “Go”, chegamos & conclusio de que, aplicando 0 conceito de alomorfia ao radical das palavras, chegamos a mesma descrigéo dos processos fonolégicos desencadeados, sem precisarmos nos remeter a estrutura profunda da lingua, nem forcar estudantes de nivel médio a uma reflexao linguistica que ainda nao esto preparados para fazer. E ainda continuamos no nivel superficial do funcionamento da lingua, ao qual qualquer falante tem acesso, sem precisar ser um linguista formado. Laroca (2003 [1994]) também adota essa postura descritiva, dizendo que sio es- colhidos radicais alomérficos para as palavras terminadas em “Zo”, quando flexionadas em género ou em numero. Segundo a autora, o item lexical terminado em ditongo “io” passa a utilizar uma base alomérfica com “0” no lugar desse ditongo. Sendo assim, na flexdo de género ou de numero de uma palavra como /edo, por exemplo, a forma do radical escolhida passa a ser /ed. A essa forma é que serfio adjungidos os morfes de género ou de mtimero. Podemos ilustrar esse processo com o diagrama a seguir: lefo > led, > led +a oy leoa u } radical perda da alomérfico nasalidade 60. Ensine de Portugués e Linguistica No caso de palavras como valentéo, temos, entio: valentdo > valent6 ° > valent6+a = > va.len.to.na 4 L radical espalhamento da alomérfico nasalidade com ressilabificagao asta, entdo, ao aluno saber que, quando se trata de palavras terminadas em “Xo”, haveré uma alomorfia no radical, ou seja, 0 radical escolhido para fazer a flexo de género ou de ntimero sera diferente da forma primitiva da palavra. Assi- milando esse contetido, 0 trabalho reflexivo maior fica por conta da compreensao dos processos fonolégicos desencadeados, tais como a perda ou 0 espalhamento da nasalidade, como mostrado nos diagramas anteriormentey O tiltimo caso de alomorfia que temos a apresentar, em relagao a flexdo de género, ¢ 0 das palavras que possuem a oposigao de género, no entanto, nao apre- sentam um morfe que marque essa oposigao. E 0 que acontece em palavras como artista (0 artista > a artista), fenente (o tenente > a tenente), colega (0 colega > a colega), os chamados substantivos comuns de dois pela gramatica tradicional. FlexGo de numero ‘Assim como fizemos em relagio a flexdo de género, é importante fazermos algumas observacdes preliminares em relagao A expressdo de numero dos nomes do portugués antes de tratarmos da sua descricio morfolégica em si. fO conceito da expressfio de numero trata da oposigao entre “um” x “mais de um”. E interessante observarmos a nogao dos nomes coletivos na lingua. As palavras que indicam coletivo se apresentam na forma do singular, morfologi- camente, apesar de, semanticamente, passarem a ideia de plural. Por exemplo, cardume é uma palavra que indica coletivo e significa um grupo de peixes, varios peixes. Essa palavra tem, portanto, um significado que é plural (mais de um peixe), porém, morfologicamente, pertence a categoria gramatical de nimero singular (0 cardume). Tal palavra pode, também, ser flexionada no plural (os cardumes), no entanto, seu significado passa a ser mais de um grupo de peixesy Ha, também, na lingua portuguesa, palavras que funcionam como se fossem ‘o contrario dos coletivos, ou seja, palavras que se apresentam, morfologicamente, sempre no plural, porém, semanticamente, referem-se a um conceito que ¢ indecom- ponivel. Como exemplos, podemos citar as palavras mipcias, parabéns, pésames, Morfo(légica) 61 bodas, entre outras,"Ha outros exemplos de palavras que so usadas somente no plural, porém, com uma nuance de significado um pouco diferente, indicando, de acordo com Camara Jr. (2004 [1970]), amplitude. Eo caso de palavras como céus, ares, trevas, bandas (O que 0 traz para essas bandas? Vocé vem de tao long: Dy O plural também pode ser usado com sentido conotativo, metaforico. E 0 que acontece, por exemplo, quando flexionamos, em numero, nomes prdprios, Marias, Antonios, Severinos (Somos muitos Severinos /iguais em tudo na vida...).° Nesse uso, o significado da palavra indica 0 agrupamento de pessoas com base em alguma caracteristica em comum, seja de personalidade, de condigao social ou qualquer outra caracteristica que as torne semelhantes. No caso, por exemplo, de Severinos, que € 0 plural de Severino, nome do protagonista da histéria contada na obra de Jo%io Cabral, a palavra significa 0 agrupamento de pessoas que estejam nas mesmas condigdes sociais, de vida, do protagonista, mesmo que seus nomes verdadeiros nao sejam iguais ao dele. A flexiio de numero se aplica a nomes que representam elementos contdveis, isto é, que podem aparecer como uma unidade apenas ou como a somatéria de mais de uma unidade, por exemplo, pastel (uma unidade apenas) > pastéis (mais de uma unidade, duas, trés, quatro...). De acordo com Camara Jr. (2004 [1970]), o plural também pode ser aplicado a “nomes de massa”, “quantidades descontinu- as”, isto é, nomes que representam elementos do contdveis, como, por exemplo, acucar, farinha, leite etc. Nesses casos, 0 autor diz que o significado indicaré uma oposicao entre “uma tnica qualidade ou mais de uma qualidade da substancia continua designada” (Camara Jr., 2004 [1970]: 93). Isso quer dizer que, quando dizemos agzicares, estamos nos referindo a “varios tipos de agticar: 0 refinado, 0 grosso, 0 mascavo etc.”. O mesmo vale para /eites, que significara “varios tipos de leite: desnatado, integral, semidesnatado, de soja, de cabra, de vaca etc.”. Feitas as observagdes preliminares em relagdo 4 expresso de ntimero dos nomes em portugués, passemos a sua descrigdo morfoldgica. A flexdo de numero, na lingua portuguesa, é estabelecida por meio da opo- sigdo entre um morfe @ (auséncia da marcag&o de plural), que indica o ntimero singular da palavra, e um morfe “-s”, que indica o nimero plural da mesma palavra. Essa € a forma basica da descrig&o morfoldgica da flexdo de namero do portugués, uma vez que a grande maioria das palavras da lingua se flexiona no plural por meio do acréscimo de um morfe “-s”. Essa regra se aplica a palavras terminadas em vogal e em consoante nasal. casa (singular) > casat+s > casas (plural) album (singular) Be album +s > Albuns’ (plural) 62. Ensino de Portugués e Linguist Assim como acontece com a flexdo de género, também temos que considerar as alomorfias relacionadas 4 flexao de nimero. Em relacio a flexdo de nuimeto, ocorrem alomorfias que sao fonética ou fo- nologicamente condicionadas e alomorfias que sio exclusivamente morfoldgicas. ‘As alomorfias foneticamente condicionadas estdo relacionadas a variacao dialetal existente na lingua portuguesa. Por exemplo, o morfe “-s”, que € adjun- gido no final da palavra, pode ter uma prontncia diferente dependendo da regiéio do pais de onde o falante é. Em uma palavra flexionada no plural, como camisas, por exemplo, o “-s” final € pronunciado chiado por falantes nascidos ¢ criados no Rio de Janeiro. Essa promincia seria transcrita foneticamente da forma [kamizal]., A alomorfia condicionada fonologicamente acontece na jun¢ao de duas pa- lavras, quando a primeira estiver flexionada no plural e a segunda comegar por uma vogal. Podemos citar, como exemple, o sintagma rosas abertas. Um sintag- ma como esse é pronunciado como se fosse uma unidade s6 (rosasabertas), pois ocorre um processo de ressilabificagdo entre o “s” final de rosas e 0 “a” inicial de abertas, sendo que os dois sons passam a constituir uma tinica silaba (ro.sa.sa.ber. tas). Além disso, ao se juntarem as duas palavras, 0 morfe “-s”, do final de rosas, passa a ficar em contexto intervocélico e, assim, sofre um proceso de vozeamento, passando a ser pronunciado como “2”. O diagrama a seguir ilustra os processos: y rosas + abertas > 10.8a.sa.ber.tas = *rézazabértas* J 4 ressilabificagado vozeamento Entrando, agora, na quest&io das alomorfias morfoldgicas, o primeiro caso que vamos apresentar é 0 da alferndncia vocdlica. Assim como ocorre na flexao de género de algumas palavras (gostoso > gostdsa, por exemplo), conforme apresen- tamos na seco anterior deste capitulo, a flexao de numero, na lingua portuguesa, também provoca a abertura de vogais em algumas palavras, quando utilizadas no plural. Por exemplo, temos corpo (no singular, com “o” fechado em “cor”) e cor- pos (no plural, com “0” aberto, c6rpos), povo (singular, “o” fechado, em “po”) ‘povos (plural, “0” aberto, povos). E importante lembrarmos que o morfe principal na marcagio da flexdo de ntimero é 0 “-s”, que é adjungido no final da palavra. A abertura das vogais, nesses casos, atua como um trago de refor¢o na marcagao do plural das palavras, sendo, portanto, secundario. Dessa forma, podemos dizer que a alterndncia vocdlica que ocorre nessas palavras & submorfémica. Na flexdo de niimero, também temos palavras que podem ser “contadas”, mas que nao apresentam marcag4o alguma de plural, ou seja, tm a mesma forma Morto(légica) 63 no singular e no plural. Eo que acontece, por exemplo, com as palavras [dpis e ourives (0 ldpis preto > os lapis pretos; 0 ourives perito > os ourives peritos).? Em casos assim, para sabermos se a palayra est4 no singular ou no plural, é preciso observar a concordancia que ela estabelece com outras palavras a ela relacionadas. No exemplo os /dpis pretos, 0 que nos indica que palavra /dpis estd sendo usada com 0 significado de plural é 0 artigo que a antecede, os, e 0 adjetivo que a sucede, pretos, pois esto estabelecendo concordincia com ela e esto no plural IK parte mais complicada da descric&o morfoldgica da flexio de numero esta relacionada com as palavras terminadas em consoante e as terminadas com © ditongo “Zo”, que apresentam marcagao de plural. Dividiremos a explicagao em irés partes: (1) palavras terminadas com as consoantes “r”, “s” ou “z”; (2) palavras terminadas com a consoante “I”; (3) palavras terminadas com 0 ditongo “Ao”. Antes de entrarmos na explicagiio dessas ocorréncias, é importante fazermos uma observagdo, Nesses trés tipos de palavras, o morfe que indica o plural nfo sera “3”, mas o alomorfe “-es”, como em més (singular) > més + es > meses (plural). No entanto, é necessirio dizer que “es” é apenas a sua representagao ortogriifica, pois, foneticamente, esse alomorfe se realiza como [is] e, algumas vezes, aparecerd assim. também na grafia, como em animal (singular) > animal + is > animais (plural).'° Em relagao ao primeiro caso, o de palavras terminadas em “r”, “s” ou “z”, ha diferencas entre as posturas tedricas dos diversos autores. Camara Jr. (2004 [1970]) recorre a explicagdio por meio de formas tedricas"! para justificar a presenca da vogal (“e” ou “i”) entre a consoante final da palavra e o morfe “-s” de plural. Para o autor, a flexdo de plural de uma palavra como mar, por exemplo, que é mares, é feita tendo, como base, na estrutura profunda da lingua, uma forma teérica *mare, que pode ser encontrada na derivacao, como, por exemplo, em maresia. Segundo 0 autor, esse “e” da forma teérica no aparece no singular, mas emerge no plural. Exemplificamos com o diagrama: mar > “*mare > *mare +s > mares: 4 J forma terica _adjungio do morfe “-s” A vantagem dessa descrigdo é que nfo se aumentaria o niimero de morfes de plural. Continuariamos tendo G, para singular, oposto a“-s”, de plural, eliminando aexisténcia de um alomorfe “-es”. No entanto, como ja dissemos anteriormente, acreditamos que uma abordagem como essa seja de dificil compreensao por alunos de ensino médio. 64 Ensino de Portugués e Linguistica Outra possibilidade de descrig&o é a que trazem Silva e Koch (1997). As autoras consideram o “e”, que aparece entre a consoante final da palavra e 0 “-s” de plural, uma vogal epentética. Esse termo se refere a uma vogal que é inserida na palavra com o intuito de consertar as estruturas silébicas que estariam mal- formadas, isto é, em desacordo com 0 sistema fonolégico da lingua no que diz respeito a formago da silaba. No caso do plural de palavras terminadas em “r’, “s”, ou “z”, sem essa vogal, as silabas teriam as terminagées “rs”, “ss” e “zs”, que nao so permitidas no portugués. Vejamos o diagrama: cruz cmz+s > cruzs > eruztet+s > cruzes L ih adjungao do insereao da morfe “-s” vogal epentética O problema com essa perspectiva é que a vogal epentética representaria 0 que Rosa (2000) chama de morfe vazio, ou seja, seria um morfe sem um significado, 0 que vai contra a definig&o de morfema.”? Nem é possivel dizer que essa vogal seria um fonema, pois também nao exerce fungao na distingao de significado, ja que a palavra sem ela (crvzs) nao teria significado algum. Mais uma vez, chega- mos a conclusao de que a melhor saida € considerarmos 0 conceito de alomorfia e afirmarmos a existéncia de um alomorfe “-es”, com realizagao fonética [is], para morfema de plural das palavras terminadas em consoante. Nesse sentido, concordamos novamente com Laroca (2003 [1994]), que considera a existéncia de dois alomorfes de plural, “-s” e “-es” ([is]), descartando a hipotese da vogal epentética. A flexdo de nimero das palavras terminadas com as consoantes “r”, “s” ou “z” fica da seguinte forma, entdo: fregués > fregués + es > fregueses mar = mar+ es = mares cruz > cruz + es > cruzes J adjungao do alomorfe “-es” Tratando, agora, do segundo caso, o de palavras terminadas em “I”, temos que ponderar trés contextos diferentes, que vio desencadear processos fonolégicos diferentes: (a) quando a palavra termina em “I”, mas a vogal que antecede esse “I” é diferente de “i”; (b) quando a palavra termina em “1” ¢ a vogal que antecede esse Morfo(légica) 65 “1” & um “i” tOnico (oxitonas terminadas em “il”); (c) quando a palavra termina em “I” © a vogal que antecede esse “I” ¢ um “i” dtono (paroxitonas terminadas em “il”). Podemos tomar, como exemplo do primeiro caso, a palavra animal, cujo plural € animais. O morfe escolhido para a flexao de plural, nesse caso (¢ nos outros dois também), sera o alomorfe “-is” (que, ortograficamente, pode aparecer como “-es” ou “-is”, porém, foneticamente, sempre sera realizado como [is], com raras exceges em dialetos muito especificos). Na flexao de numero dessa pala- vra, € das outras que apresentam esse mesmo contexto, ocorre apenas 0 processo fonoldgico de supressdo do “I” final.'? Vejamos o diagrama. > animais J supressio do “I” animal > animal Tratando do segundo caso, o de oxitonas terminadas em “il”, tomemos, como exemplo, a palavra canil, cujo plural é canis. Nesse caso, apés a supressiio do “I”, quando da adjungio do alomorfe “-is”, temos 0 encontro do “i” final da palavra com 0 “i” inicial do alomorfe e, no portugués, quando ocorre o encontro de duas vogais idénticas, é desencadeado o processo fonolégico da crase, conforme podemos ver no diagrama. canil > canil + is > cani + is oy canis | Vv supressio —_crase do“! Por fim, podemos tomar como exemplo referente ao terceiro contexto a palavra dgil, cujo plural é dgeis. Nesse caso, quando 0 alomorfe “is” é adjun- gido, ocorre, assim como nos outros dois casos, a supressao do “I”. No entanto, ao invés de ocorrer a crase, por conta do encontro do “i” final da palavra com o “i” inicial do alomorfe, 0 que ocorre é um processo de abaixamento da vo- gal “i”, do final da palavra, passando a se realizar como “ec”, Trata-se de um abaixamento, pois a vogal passa de “i” (vogal alta) para “e” (vogal média), isto é, a vogal teve seu ponto articulatério abaixado. Apés o abaixamento, ocorre também, um processo de ditongagiio, que é a formacao de um ditongo entre a ultima silaba da palavra (gi, que passa a ser ge) eo alomorfe “is”. O diagrama a seguir ilustra nossa explicagéo: 66 Ensino de Portugués e Linguistica agi > agiltis > dgitis > adgetis > Ageis J L + supressaio abaixamento. ditongagiio do“l” do“? Para finalizarmos, falta descrevermos a formagio do plural das palavras termi- nadas em “fo”. Essas palavras formam o plural de trés formas diferentes, como “cidadao > cidados”, “pio > pes” e “limo > limGes”. Laroca (2003 [1994]) afirma que a forma mais recorrente, no portugués atual, é a ultima, ou seja, 95% das palavras terminadas em “io” fazem o plural em “des”. Além disso, a autora também afirma que essa seria a tmica forma produtiva, o que quer dizer que, quando é formada uma palavra nova, terminada em “do”, o seu plural sera, invariavelmente, em “Ges”. Palavras novas nao fazem o plural de outra forma no portugués atual, de acordo com a autora. Novamente concordamos com a proposta de Laroca (2003 [1994]) para a descrig&o morfologica da flexiio de ntmero desse tipo de palavra, pois a autora leva cenit consideragaio 0 conceito de alomorfia relacionado A base. Segundo a autora, 0 item lexical terminado em ditongo “Ao” passa a utilizar uma base alomérfica com “9” no lugar desse ditongo (X-do > X-6)."* Vejamos 0 exemplo: limao > limiotes > limd+es > limées $ 4 adjungio do escolha da alomorfe “es” base alomérfica No caso de palavras como “cidadao > cidadaos”, nao ocorre nenhuma alo- morfia, nem na base, nem no morfe de plural, uma vez que é escolhida a forma basica do morfema, “-s”. Vejamos 0 diagrama: cidadao > cidadao +s > cidadaos L adjungiio do morfe “3” No tiltimo caso, o de palavras do tipo “pao > pies”, ocorre, assim como no primeiro caso descrito, a escolha de uma base alomérfica da palavra para a formagéio do plural, porém, nesse caso, a base alomérfica é terminada em “&” ¢ 0 morfe de plural escolhido ¢ “-es”. Vejamos a descricdo no diagrama: pao Morfo(légica) 67 Be pao +es Ps pa+es > Paes J J adjungdio do escolha da morfe “-es” base alomérfica A seguir, apresentamos dois quadros que sintetizam a descrig&io morfolégica da flexao nominal do portugués atual. O primeiro é referente a flexdio de género © 0 segundo é referente a flexdio de namero. Forma basica: Masculino = @ x Feminino = Alomorfias: ds, a a Bh Phe pet alomorfia da base = X-o > X-6= leio> leoa + (perda da nasalizagaio) valent&o > valentona (ressilabificagao) subtragdo = irmiao > irma ditongagdo com alterndncia vocdlica = curopeu > europeia subtragGo com alteamento = judeu > judia alterndncia vocdlica submorfémica = gostoso > gostosa alomorfe @ = o artista > a artista alternancia vocdlica morfémica = avo > avé | | Quadro 2: Flexdo de nimero Forma basica: Singular = @ x Plural = “-s” Alomorfias: alomorfe O em paroxitonas terminados em ‘'s” =o ourives > 0s ourives alternancia vocalica submorfémica = corpo > corpos “es” (foneticamente [is]) = apds consoante, exceto caso | X-1> supressio do “I” (excegdes: mal e c6nsul) Xl (i tonico) > supressao do “I” + crase X-il (i dtono) > supressio do “I” + abaixamento do “i? alomorfia da base = X-4o > X-0 + es (regra geral, produtiva) X-fo > X-A + es a 5% dos casos X-io +s 68 Ensino de Portugués e Linguistica Destacamos, neste capitulo, a necessidade de uma explicagdo a respeito dos conceitos de morfema, morfe e alomorfe, bésicos para a compreensao de uma descrigado morfolégica. Também vimos a importancia de se ter claras as caracte- risticas que distinguem os processos de flexio ¢ derivacao. Na descrigaio do processo de flexdio de género, um dos principais fatores que geram confusao para os alunos é a associagao do género gramatical com 0 sexo dos seres. Nesse sentido, a definigdo de género enquanto categoria gramatical torna-se relevante para que o aluno tenha uma boa compreensdo desse processo morfolégico. Os substantivos sao divididos em trés grupos, dependendo do com- portamento morfolégico que apresentam em relagdo ao género: a grande maioria deles apresenta género tinico, ou masculino, ou feminino; uma pequena parcela deles apresenta oposig&io de género, com uma marcacao por meio do morfe “a; ¢ também ha substantivos que apresentam oposicao de género, mas nao apresen- tam nenhum tipo de marcago, ou seja, a mesma forma é utilizada tanto para o masculino quanto para o feminino. Em relagao a flexdo de mimero, além do conhecimento da regra geral e das alomorfias, apontamos a importancia do conhecimento dos processos fonolégicos que sdo desencadeados por esse processo morfoldgico, tais como: a alternancia vocdlica; a supress4o; a crase e o abaixamento. Por fim, ¢ importante frisarmos que 0 objetivo deste capitulo nao é fazer com que o professor leve toda essa nomenclatura linguistica para a sala de aula para, depois, cobrar isso dos alunos em avaliagdes. O mais importante, em relagdo a esse contetido, é demonstrar para os alunos como esses processos funcionam, a fim de explicar que as diferentes formas de flexfo resultam de diferentes meca- nismos existentes na lingua. Notas ' O sinal “>” indica a passagem da forma de base para a forma “iransformada” (flexionada, ou derivada, ‘ou composta), ou seja, 0 resultado do processo, incluindo as fases, quando houver, para se chegar a esse resultado. Radical: morfema lexical que carrega o significado lexical bisico, primitivo, da palavra, 0 * indica que a palavra agramatical, ou seja, ndo existe na Kngua gui. 0 * indica que se trata de uma forma te6rica, que nfo ocorre na superficie, mas que est presente na estrutura profunda da lingua. 5 0%" indica a divisto das silabas. © Exemplo extraido da obra Morte e vida severina, de Joao Cabral de Melo Neto. 7 Atroca da letra “m” por “n’ no plural, é apenas uma questo ortogréfica, uma vez.que, foneticamente, 0 que ‘emos, na verdade, é uma vogal nasalizada (dlbt) € nao uma consoante nasal propriamente. Sendo assim, as palavras que, ortograficamente, terminam com “m” podem ser agrupadas junto com as palavras terminadas ein vogal, seguindo, portanto, a mesma regra de flexiio. Morfo(légica) 69 * Procuramos evitar, na medida do possivel, transcrig6es fonéticas, uma vez que o nosso intuito & que os exemplos dados neste capitulo possam ser levados para uma sala de aula de ensino médio. No caso desse exemplo em especifico, optamos por uma representagaio ortogrifica que pudesse passar a ideia das mudan- gas fonologicas que ocorrem em casos assim. No exemplo, os acentos grificos ( ’ ) esto representando, além das silabas mais fortes do conjunto, a abertura das vogais “o”, de “ro”, e “e”, de “ber”. ° Exemplo extraido de Camara Jr. (2004 [1970]. '” Este exemplo seré explicado detalhadamente mais adiante. "Ver definigao na seco “Flexaio de género™, '* Ver definigao na se¢do “Conceitos basicos: morfema, morfe, alomorfe e morfema zero” deste capitulo, '* As tnicas excegdes so as palavras mal ¢ cénsul, cujos plurais sao, respectivamente, males e consules. '* © “X" significa “item lexical terminado em”, No caso, “X-Ao” (item lexical terminado em Ao”) passa utilizar uma base alomérfiea “X-0" (item lexical terminado em 3"). Referéncias BLOOMFIELD, L. A Set of Postulates for the Science of language. Language, vol. 2, n.3, pp. 153-64. In: Joos, M (org,) Readings in Linguisties . The University of Chicago Press, 1957 [1. ed. 1926] Byper, J. Morphology: A Study of the Relation Between Meaning and Form. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 1985, Canina JR., J. M. Bstrutura da lingua portuguesa. 36. ed. Petrépolis: Vozes, 2004. [1. ed, 1970]. Kens, V. Morfemas do portugués, Sao Paulo: Atica, 1990. (Série Prineipios). ~® Lanoca, M.N. C. Manual de morfologia do portugués, 3. ed. Campinas: Pontes, 2003. [1. ed. 1994]. Rosa, M. C. Iniroduedo & morfologia. Séo Paulo: Contexto, 2000. Suva, M. C. P.de $.; Kocu, L. V. Linguistica aplicada ao portugués: morfologi ‘Sao Paulo: Cortez, 1997. \

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