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@) Louis Dumont homo aequalis génese e plenitude da ideologia econémica araaugio José Leonardo Nascimento Revisio Técnica antonio Penalves Rocha capitulo 1 a _|um estudo compa- rativo da ideologia moderna e do lugar que nela ocupa 0 pensamento econémico [isto consiste a tragédia do espirito moderno que “resolvew o enigma do universo’, mas, apenas para substituilo pelo enigma dele mesmo. Alexandre Koyré (Etudes newtoniennes, p43) Ease endo ¢ determinado, em sua orientacio, pelo em preendimento mais vasto do qual ele faz parte. A idéia geral de um estudo comparado da ideologie moderna brotou do meu tra- 3 ntendo 0 atual como tiéncia natural do anterior, mas do ponto de vista académico ha ‘uma grande distincia entre a antropologia € a pesquisa que per- tence, 2 primeira vista, a0 que se denomina freqiientemente his- t6ria das idéias. Nao € fora de propésito, por conseguinte, justi- ficar ou ao menos descrever esta passagem, esta transiclo, e ca- racterizar, 20 mesmo tempo, © empreendimento no interior do qual este livro representa somente 0 primeito capitulo. ‘A transigio parecer imediatamente menos inverossimil se considerarmos, de um lado, que as idéias © os valores constituem um aspect importante da vida social, ¢, do outro, que a antropo- logia social € essenciaimente comparativa, mesmo quando expl 13) tamente nio 0 seja, (Dumont, 1964 A, p.15-16), Durante aproxima- damente vinte anos, estive ocupadio em aplicar os métodos da an- twopologia social ao estudo de uma soviedade de tipo complexo, ligada a uma das grandes civilizagdes do mundo, a sociedade da {ndia ov, para definila segundo 0 traco principal da sua morfolo- gia, a sociedade de castas. Ocorre que esta sociedade aparece, do ponto de vista dos valores, em contradicad evidente com 0 tipo moderno de sociedade. Isto & pelo menos o que pode ser extra 4o, no final das contas, de um estudo que intnulei Homo bierar- cbicus, com a finalidade de ressatar dois aspectos: primeiro, que as verdadeiras variecaces de homens que podem ser distinguidas no interior da espécie sao variedades sociais e, em seguida, que & variedade correspondente & sociedade de castas € caracterizada, cessencialmente, por sua submissio a hieranguia como valor supre- mo, exatamente 0 oposto do igualitarismo que reina, como um dos valores cardeais, em nossas sociedades de tipo moderno. Porém, este contraste hierarquia/igualdade, embora seja visivel, € apenas uma parte da questio, Existe um outro, subja- ccente 20 primeiro e de aplicagdo mais geral: a grande majoria das sociedades valoriza, em primeiro lugar, a orem, portanto, a con formidade de cada elemento 20 seu papel no conjunto, & socie- dade como um todo; chamo esta orientagao geral dos valores de “holismo", um palavra pouco divulgada em francés, mas muito comrente em inglés. Outras sociedades, como a nossa, valorizam, em primeiro lugar, 0 ser humano individual: a nosso ver, cada ho- mem € uma encamagao da humanidade inteira ¢, como tal, é igual a qualquer outro ¢ livre. EF 0 que chamo de “individualis- mo". Na concep¢io holista, as necessidades do homem, como tai, so ignoradas ou subordinadas, enquanto a concepsio individua- lista, ao contrétio, ignora ou subordina as necessidades da socie dade, Ocorre que entre as grandes civilizagtes que o mundo co- nheceu, predominov 0 tipo holista de sociedade, Tem-se a im- presstio que esta tenha sido a regra, com a Unica excegto da nos- 2 civilizagao moderna e de seu tipo individualist de sociedade. Que relacio existe entre o contraste holismo/individualismo 0 contraste hierarquia/igualdade? No plano légico, o holismo im pilica na hierarquia e o individualismo ra iguakdade, mas, na reali dade, nem todas as sociedades holistas acentuam a hierarquia no ‘mesmo gra, nem as sociedades individualisas a igualdade. Pode- “ uum estudo comparativo da ideologia modems se perceber 4 razao deste fato, De um lado, o individualismo nfo implica somente a igualdade, mas também a libercade, ¢ nem sem: pre bf convergéncia entre a igualdade e a liberdade, e a combina- ‘980 entre ambas varia de uma sociedade de tipo individualist 2 outra, Do outro lado, de forma bastante semelhante, amide a hie rarquia aparece intimamente combinada com outros elementos. De corcio com a minha andlise, a cultura da fndia € caracterizacla pelo fendmeno provavelmente Gnico de uma disjuncdo radical entre hhierarquia e poder, gracas a qual a hierarquia aparece de forma pura, exclusiva e sem mistura, Em suma, a India ocupa, por sua reafirmacao da hierarquia, © ponto extremo das sociedades holis- tas. Da mesma forma, a Franga da Revolulo situava-se, segundo “Tocqueville, em relacao 2 Inglaterra e aos Estados Unidos, no poor {0 extremo das sociedades individualistas, dando énfase & igualda- de em detrimento ca liberdade. £ possvel que esta simmetia entre dois exitemos tena sensibilizado partcularmente um pesquisador frances, face & hiererquia indiana! ¥ preciso insist: trata-se de valores socials gerats, englo- bantes, que devem ser distinguidos claramente da simples presen- a de um waco ou de uma idéia num plano ou noutro da socie- dade. Em um sentido mais amplo, igualdade e hierarquia estao necessariamente combinados, de um forma ou de outra, em todo sistema social. Por exemplo, toda gradacto de status implica a igualdade ao menos nesta telac2o ~ no interior de cada um de- les (Talcott Parsons, 1953, n. I, cf. HH. (Homo hierarcbicus ), 1967, p.322). & igualdade pode, assim, se encontrar valorizada no interior de cemos limites sem que ela implique individualismo. Na ‘Grecia antiga, os cidadaos eram iguals, sendo dado & poltsc des- taque fundamental dos valores, e Aristteles no considerava a es cravidao contréria 8 razdo. Passa-se provavelmente 0 mesmo, mu- tatis mutandis, com @ civillzagao islamica, como um crtico aten- to e expert parece confirmar para as sociedales do Oriente-Médio. (Yalan, 1969, p.125)? tee em cnemcemmieatn Introdugdo © indivicualismo, tal como foi definido, faz-se acompanhar de um ou dois aspecios de grande importincia que estardo em evidéncia mais frente ¢ que seria Gil introduzi-ios imediatamen- te, Na miaioria das sociedades, em primeiro hugar nas civilizagbes superiores ou, como direi com freqUénca, nas sociedades trad- cionais, as relagdes entre os homens si0 mais importantes, mais atamente valorzadas, do que as relagbes entre os homens ¢ 8 coisas, Esta prioridade ¢ invertida no tipo modemo de sociedade onde as relagdes entre os homens s20, 20 contrario, subordinadas as relagdes entre 0s homens-e as coisas. Como veremos, Marx ja havia dito isto 2 sua maneiri Estreitamente ligada a esta inversi0 de prioridade, encontramos na sociedade moderna uma nova ‘ualisme do ponto de vista dos valores dtimos ou, 30 comdrio, que toda sociedade panicle pertencente a esse complexo de civliacio ‘erd classficads como hoists na condisio que transportemos a énfase dos valores dldmoe ou escitursi para os paincipios que podem ser abs- teaidos da cociedade no seu funcionamento, mas entio uma sociedad teuropeia ~ digamos do século XIX ~ poderiaincuirse na mesma class. feaglo. De fato, por exigdncias de rigor metodoldgico, eu devera tr tes- taco minha generalizacio hipotéica neste css0 evidentemente dif Como seria mito difel para tm nlo especklista~ e assim enconto um desculpa, se & que existe alguma ~ devido, em grande pare, 2 impor a das varagoes no lnteror do complex, sobre © qual Clifford Geen Apresentou um caso extrem no Alam Observed (Geertz, 1968). onsite ‘indo # insufiiéncia dos meus conhecimentos, nao gostart de deixar 3 Jmpressio de que minha afiemagio seja definiiva na etapa sual, devo contentarme com trés observagbes. Primeiramente, a andlise que me proponho a realizar da ideologia moderma nao depende da universaid ‘de do holismo nas socledades complenas nZ0 moderns: ¢ suliente que fo tipo exisa para que © contcirio poss ser estubciecido e utils ‘estencin posivel Ge um treet tipo complicara sem divida a ques- tao, ver de forma incisiva,e menciono no texto que o esforgo atu re presenta somente 0 comeco de tum estudo comparado. Em segundo ho sar, 0 cas0 fica muito menos problematic se teansporamos a coaside- raglo sobre o Gio trago do “individualismo”, segundo a maneira como © uchnimos aqui, para o complexo moderno de euracteres que mencior fhe mais Jonge no temo, Em ceteelto higar,inenrogans-se, com freq Ge, sobre os caminhos diferentes tellhados por civikzagbes que se dese Yolveram sob a égide de duas religides relativamente mito proximas ‘uma da ovtns: 0 Cristanismo ¢ © Isl. © contrastetaver fosse benef ‘dada se o stuéssemos sobre os pressuposios que esbogumos neste tex to. Em todo caso, do ponto de vista adotado aqui, um comparagio se- Imelhante 2 gue apliquet & India, comecundo por uma investigasa0 de ‘Campo e contingando com um estudo comparado do desenvolvimento roderno com a evlizasao islamic, devera se maserar fecunda, 16 ' ‘um estudo comparativo da ideologia modema concepgio da riqueza, Nas sociedades tradicionais em geral, a t= (queza imobiliiia ¢ claramente distinta da riqueza mobiliéia; os bens de raiz sto uma coisa; 08 bens méveis e 0 dinheiro, outra (0s direitos sobre a tera estio, com efeito, imbricados na organi- zagio social: os direitos superiores sobre a terra acompanham 0 poder sobre os homens, Estes direitos, esta espécie de “riqueza”, 440 implicar relagdes entre os homens, S40 intrinsecamente supe- riores & riqueza mobiliéia, desprezada como simples relagto com coisas. Encontra-se ainda af um aspecto que Marx claramente per- cebeu. Ele assinala o cariter excepcional, na antighidade em par- ticular, das pequenas sociedades de comerciantes em que a rique- 2a havia atingido um estatuto autonome: ‘A riqueza s6 aparece como um fim em si mesma entre alguas po- vos mercadores... que vivem nos poros do mundo axtigo como 0s judeus na sociedade medieval (Grundtisse, p.387, sobre as for- imacbes pre-capkalisas: mesma Kdéla: Capita, 1, cup. 1, sobre 0 fetiebiseio da mercador, ‘Com os modemnos, produziu-se uma revoluglo neste ponto: ‘© winculo entre « riqueza imobiliéia e © poder sobre as homens foi rompido, ¢ a riqueza mobiléria adquiriu plena autonomia, nao ‘apenas em si mesma, mas como a forma superior da riquezs em {geral, xo mesmo tempo em que a riqueza imobiliésa torna-se urna Forma inferior, menos perfeita; em resumo, assistiu-se a emergén- cia de uma categoria autonome relativamente unificada da rique- za. Ea pari de ento que uma clara distinglo pode ser fita en- tre 0 que chamamos de “politica” e o que denominames “econd- ‘mico". Disting2o que as sociedades tradicionais iio conheciam. Como lembrou recentemente um historiador da economia, 1no Ocidente modemno “o soberano (the ruler) abandonou, volun- tariamenre ou no, 0 direito ou o habito de dispor sem outros procedimentos da riqueza de seus siditos" (Landes, 1969, p.16). De fato, esta € uma condiga0 necessdria que nos € muito fami- liar (f. HLH, p 364-385), “Tocamos aqui na fore demonstragio de Karl Polanyi sobre © cariter excepcional da era moderr ia histéria da humanida- de. (The Great Transformation, 19574). Q “liberaismo’, que do- minou o século XIX € a8 primeiras décadas do XX, essencial- ‘mente a doutrina do papel sacrossanto do mercado ¢ de seus iT concomitantes, repousa sobre uma inovagao sein precedente: separagao radical dos aspectos econémicos.do tecido social ¢ da sua construcio num dominio autonomo. Limito-me, em suma, a propor tm ponto de vista um pouco mais amplo sobre esta tese fundamental, largamente aceita hoje em dia, ao mesmo tempo que elaboro uma construgio te6rica sobre uma velha tradicao sociolégica. Com efelto, © contraste holismo/individualismo, tal como foi desenvolvido em meu estudo sem imitagio direta ou consciente,* caminha na mesma direcdo da distinglo de Maine enire estaruto € contrato e da de Tonnies entre Gemeinschaft © Gesellschaft Simplesmente, 2 hierarquia dos valores é desta vez colocada no primeiro plano, o que, creio, toma o contraste mais preciso € mais dtl 20 meu propésito. Nao é, ademais, clic fa- zer remontar mais alto a origem desta disting2o. Ténnies mesmo a exprimiu sob uma outra forma, opondo a vontade essencial ou ‘espontinea (wesenwille) a vontade arbitrétia ou refletida (Kier- wille) (971, p6 etc). A expresso guarda um sabor hegeliano nio apenas devido a colocagio da Enfase sobre a vontade (que recorda, mais proximo a Tonnies, Schopenhauer, e que é, aids, fem geral, alemao) mas igualmente em seu conteédo geral: 0 jo- vem Hegel estava preocupado com o contraste entre a partcips- «io espontinea do antigo cidadio grego na vida da cidade € 0 isolamento que resulta para o individuo cristao de sua conquis- ta da cubjetividade e da liberdade. F Rousseau jé escrevia no Contrato social que 0 cristio € mau cidadio, propondo, como conseqiiéncia, uma religiio civil. Veremos aqui que se 2 distin- nao € analiticamente utilizada por Marx € porque ele @ con siderou como um trago patol6gico que seria eliminado pela re- 7 Retoro some un tendénciaanteiomerteatezaa, A propésto dos ‘scolsicos Seupeter metnona C95, p 6) a escola universal de K Fram e ©, Span, epuece antec 0 presen exo: Nao steno que is categoria unresaendvidualisas eum despo- ‘dis de tlds para utes ins que nao os meus, Imporantesapee- tor co pensamen econdonco,paniciirmente 0 aspeor ticorch- loser, poem ues, ser deskos sas deses lor (oj bem tid 784, 0). imo conch ua eiola de pesameta quando enone! pass fem cra Schumpeter (Arba, 950) Hu renga een, pus tna perspecva € puanente deca, anal, compara, 0 Jor rea ene normative, (fas aslo, ss80 70 yolusio proletiria, De maneira que também ele oferece, afinal, tum testemunho de tal contradicho. Estamos separados das sociedaces tradicionais pelo que ‘ghamo de revolugio moderna, uma revolupdo nos walores que, 20 {que parece, foi engendrada 20 longo dos séculos no Ocidente cristo. Este fato constitui o eixo de toda comparacao das civili- zagBes. © que foi mais freqlientemente tentado até 0 presente, Gm matéria de comparaglo, estava centrado no caso modemo: por que esta ou aquela das grandes civilizagBes nfo desenvolvew a cléncia da natuteza, ou a tecnologia, ou © capitalismo, como a nossa? E preciso inverter a_questio: como e por que foi engen- Grado este desenvolvimento tnico @ que chamamos moderno? A tarefa comparativa central consiste em dar conta do tipo moder no a partir do tipo tradicional. £ por esta razo que a maior par- te de nosso voeabulirio modemo revela-se inadequado os fins ‘comparativos, ¢ 0 modelo comparativo fundamental deve ser 020 modemo. (Num plano diferente nao seria por esta razto que as Formas elementares so relativamente to importantes na obra de Durkheim?) Esta visdo da comparacdo parecerd, sem duvida, dis- ccutivel num primeiro momento, ¢ antes de defendé-la € de ilus- tnivla, fuzse necessério um minimo de precisdes, CChamo de “ideologia” 0 conjunto das idéias e dos valores co- runs em uma sociedade. Como existe no mundo modemo um conjunto de ideias e de valores que € comum a intimeras socied- des, paises ou nagoes, falaremos de uma ‘ideologia moderna” em ‘coniraposigio com 2 ideologia de tal sociedade tradicional (comes: pondente, recordemo-nos, a uma civilizaclo superion, Estamos ‘aqui diante do caso em que diferentes sociedades fazer pas ‘uma “civiizaglo" comum, como afirmava genericamente Mauss a propésito deste fenémend “internacional” ou inter-societro, isis {indo sobre seu cariter fundamentaimente social (Mauss, 1930, 86 ‘5, cf, Dumont, 1964b, p.92). Porém, a “ideotogia moderna” & mais restita do que a “civiizago moderna” no sentido que the deu ‘Mauss, Em geral, a "ideologia” € muito semelhante aguilo que a an- tropologia americana chama de “cultura” por oposicho a “socieda- de", mas com uma importante diferenga. Com efeito, para depreen- der a significaclo comparativa da ideologia, ¢ essencial incorporar ‘08 172608 socais no ideol6gicos que, na concepg2o americana, ca riam na “sociedade", logo fora da analise da “cultura’. Tudo isto € Jo introduezo gui dito para efeitos de lembranga, pois neste trabalho no chega- remos a esta complexidade (cf. 1967, § 22, 118), Uma distincao formulada anteriormente (1965, p.25; 1967, § 3) representa um papel central neste estudo, e € preciso repro: uzi-a. Designamos correntemente pela expressio “homem indi- Vidual"(ou 0 “individuo") duas coisas extremamente diferentes que € necessério distigui: 2 o sii enn alam, do penne, dvr Imo repens depts hata cons Cas em todas as sociedades; i Do sr won dependente, sutromn eas essence (© to Socal al como se ton eet de doh ns Seok made co mem edn soe Um esforgo seré realizado para distinguir os dois sentidos do termo, seja 20 escrever 0 “Individuo” no sentido moral, seja 420 utilizar uma outra expresso para o primeiro sentido,'0 senti- do empirico, como 0 "homem particular’, 0 “agente humano par- ticular”, etc. Mas, em razao mesmo da sua necessidade a distin- Gio 6 com Feqhéncia a pritica, muito dif de ser expressa revemente na linguagem corrente. Por isto mesmo, a “iniidulsn™ deve designay,excusvamente a valteag slobal acima definida correspondente ao segundo sentido, a0 In- dividuo, mas no estou seguro de ter evitado 0 uso degradado do termo que 0 aproxima do sentido corrente, vago. ‘Voltemos agora & oposigio entre ideologia moderna ¢ ideo- logia tadicional, Pode-se dizer que 0 contraste € arbitrério? Nao existe, por exemplo, entre as ideologias da Pranga ¢ da Alernanha modesnas tanta distincia quanto entre as ideologias wadicionais a India e da China? Ou ainda, a China nfo difere da {ndia tanto quanto a India de nés? Ha certamente uma diferenga entre o caso ‘moderno ¢ o caso tradicional, H4 evidencias que, desde, digamos, © século XVI, a Inglaterra, a Franca, 2 Alemanba, entre outras na- ses, ‘possuem uma ideotogia comum, Isto ndo exchii, absoluta- mente, as diferengas nacionais e, no interior da cada pais, as dlife- +engas sociais, regionals, ete. Ao contratio, a propria tentativa de esbogar 0 que as nagdes manifestam de comum revela, de pron- to, suas divergéncias. Ito niio impede, entietanto, que toda con- figuragao nacional possa ser tomada como uma variante da ideo- logia geral. é. veremos, p. 25) —e tum estudo comparativo da ideclogia modems Naguilo que concerne & india ¢ & China, deixando de lado a diversidade intema que € um outro problema, € possivel que ‘elas apresentem diferengas ideol6gicas profundas entre si, Porém, ‘comparadas 4 n6s, elas sto semelhantes: as ideologias tradicionais indiana, chinese, japonesa so holistas, enquanto a nossa ¢ indi- vidualista. Que sejam holistas de diferentes maneiras nio alters. seguinte fato: a tarefa ce descrever comparativamente estas socie- dades seria faciltada se nosso quadro de referencia, inceiramente {mpregnado pelo individualism, pudesse ser substitutdo por um outro, construfdo a partir destas mesmas sociedades. Cada {que trizemos & luz uma idiossincrasia da mentalidade moderna tornamos um pouco mais possfvel a comparacio universal. Em suma, a revolugzo dos valores da qual brotou a ideo- logia moderna representa 0 problema central da comparacio dus sociedades, seja para descrever e compreender as sociedades tradicionais ou civilizagdes superiores ~ e também as sociedades reputadas mais simples, ou culturas arcaicas que sto ainda 0 ob- jeto mais habitual da antropologia seja para situar a nossa pré- pria sociedade em relaclo &s outras. Ambas as tarefas sto de competéncia da antropologia ¢, de fato, a duas fundem-se ‘numa tnica, pols, se pudéssemos desenvolver uma vis2o antro- ppolégica ds nossa propria sociedade, a compreensio das outras rios seria grandemente faclitada, pois disporiamos de um qua~ do de referéncia, de um sistema de coordenadas que nao seria mais tomado da nossa mentalidade particular ~ e excepcional -, mas que seria verdadeiramente universal (cf. meu artigo 19752). Pretendo, sob o risco de ser repetitivo, lembrar a perspec- tiva geral na qual se insere o presente ensaio, Fle é e permane- ce limitado, nao ha como esquecer disso, na medida em que uma 36 ideologia tradicional, a da India, Ihe serve de base, qualquer {que seia a generalizacdo que proponho (da bierarquia a0 holis- ‘mo, etc). Seria até mesmo provavel que ensaios de compara semelhantes, partindo da China, do Isido, ou da Grécia antiga, iluminariam, por sua vez, certos aspectos da nossa ideologia, que este, baseaclo na fndia, deixaria na sombra, mesmo que se por suposicio fosse completo ¢ perfeit. Isto no que se refere 20 aspecto antropologico. Ha, por outro lado, um aspecto em certa medida indigena, no sentido em {que nossa pesquisa nao é inteiramente inoportuna ou inatual, do ponto de vista intemo, 2 prépria ideologia modems. Falou-se aie introdugdo ‘multo, hé alguns anos, de “fim da ideologia”. Sé me for permit do tomar emprestado, além de tanios outros, um termo de Tho- mas Kuhn, diria que assistimos, sobretudo, a uma crise do para- digma ideologico modemo? £ certo que a tendéncia a enxergar «rises em todos 0s lugares € um traco saliente da ideologia mo- derma, ¢ se ha crise, ela nao data de ontem; em unt sentido am- plo, esta crise ¢ mais ou menos consubstancial ao sistema, até 0 onto em que haveria mesmo entre nds aqueles que encontta- slam neste fato umm motivo de orgulho. Ao que parece, a crise do aradigma no séeulo XX conheceu recentemente uma intensifica- 80 ou, sobretudo, uma generalizacio, No plano das aisciplinas eniditas, tem-se a impressio que 0 homem modemno, enclausurado sobre si mesmo ¢ burlado, talvez, pelo sentimento de sua superioridade, demonstra alguma dificul- Ge para assumit ses propos problemas. Ete fio € partir nte visivel na reflexAo politica, £ surpreendente, por exemplo, descobsr que a necessidae de defini a magio de uma mancia ‘comparada nao tenha sido muito sentida. A nag30 (modema) € ge ralmente definida no interior das condigdes histéricas modernas, tomadas implicitamente como evidentes ou universais. Nenhum ‘esforgo foi feito para defini-la especificamente por comparacio com as sociedades ou agrupamentos politicos nao modernos, ape- sar de, em nossos dias, serem numerosas as sociedades tradicio- nais que se acredita estarem em via de se tomar nagoest Geraimente, a teoria politica continua a se identficar com uma teoria do “poder’, ou seja, a tomar um problema menor pelo problema fundamental, que se encontra na relagio entre 0 “po- der’, os valores ou a ideologia. Com efeito, 2 panic do #0 fem que ha um esvaziamento da hierarquia, a subordinagio deve set explicada como 0 resultado mecanico da interacio entre in- dividuos, e a autoridade se degrada em “poder, em “influencia", te. Esquece-se que tudo isto se produz apenas sobre uma base ideol6gica definida, 0 individualismo: a especulacto politica en- Clausurou-se, sem se dar conta, entre os muros da ideologia mo- ema, E a historia recente nos forneceu , contudo, uma demons- 3. adtamerte and TK eng os demo sein gigas Dinan fea edaom pe 1 mca ers revo 3 nd, Naval # comune" 1967, ap€ndice D. semis ce um estudo comparativo da ideologia moderna tragao formidavel da inconsisténcia desta concepeao com a ten- tativa desastrosa dos nazistas de fundar o poder exclusivamente sobre si mesmos. Nao ereio que 0 paralelismo seia gratuit. Enquanto © pensamento politico esmera-se neste impasse, ‘8 problemas que sobrecaregam @ histéria clos dltimos dois sécu- Jos raramente slo objeto dé uma reflexdo seria. AS guerras, cres- ‘a8 diduras e 0s totalitaismos ~ in ‘luindo suas técnicas de sujeigio e de aniquilamento do homem ~ 580 implicagées necessivias, acompanhamentos inevitaveis da de- ‘mocracia moderna’ Tocqueville tinha razio quando assinalou as .digdes determinadas e os limites precisos da realizacao do prin- ‘democritico? Qu ainda: 0 movimento Intemacionalista dos trabalhadores europeus fol incapaz. de trar as ligdes da sua dupla cderrota em 1914 e 1933? A teoria socialista marxista, em cuja reno- vagao e salvagio tantos esforcos se dedicam aqui e acoté, perten ce, deste ponto de vist, 20 passedo. E por qué? Noss0s flésofos 120 6 negligenciam estas questbes, como também negligenciam ‘em grande medida as ciéncias sociais, pelo menos na Franga. No geral, 2 reflexdo aprofundada sobre 0 mundo moderno, to inten- sa na primeira metade do século XIX, parece terse adormecido nos bragos de conformismos partdérios ou se deradado em pro- testos inarticulados. Apesar de a Europa ter sofrido mais tervel ciifermidade, o apocalipse hilerista espera ainda, apés trinta anos, ser verdadeiramente debelado no pensamento. Uma das razdes desta impoténcia geral deverse, sem di- vida, ao fato de que alo se pode mover uma massa do interior: faz-se necessirio, para isso, um ponto de apoio do exterior. A ci vilizago moderna tem, precisamente, a vantagem Gnica de pos- suit uma informagdo relativamente abundante sobre inémeras outras civilizagdes e culturas: a comparacao, este € 0 ponto de apoio: “vermos a n6s mesmos em perspectiva’, como este antro- pélogo exemplar ~ nosso saudoso Sir Edward Evans ~ propunha, tornou-se uma necessidade. Podemos, de inicio, dar uma idéia do tipo de renovacao ‘que 2 comparacio permite. Se existe, afora todas as diferencas, ou através destes mesmas diferencas, uma certa constincia das sociedades bumanas, se de ouira parte, a ideologia modema € ‘comparativamente 10 excepcional quanto afirmamos, logo, & instaurago desta ideologia, sem precedente, deve ter tido conse- ‘quéncias involuntérias igualmente sem precedente, Isto € verii- 28, introduga0 cado de maneira fatual sob a forma de fenémenos que contradi- zem 0s Valores admitidos e que, por esta razio, escapam, em sua esséncia, 2 percepsao intelectual ingénua, no comparativa, ‘Se, tendo encontrado na fndia holismo e hierarquia, procu- ramos 0 que fizeram deles uma “civilzacdo”, um conjunto de 50- Giedades, que valoriza 0 oposto do individuo e da igualdade, 0 que acharemos? Acharemos, por exemplo, um residuo de hierérquia sob «forma de desigualdades sociais, e como a hierarquia propriamen- te dita € um tabu ou algo impensével entre nés, designamos este residuo com uma expressio que evoca a natureza inanimada ¢ que ‘raduz, portanto, nossa incompreensio do fendmeno: falamos de “estratficacao social”, Mas isto nao € tudo, porque echaremos tam- bbém, por exemplo, que numa das sociedades em questio a abo io da escravidio produziu, em algumas décadas, 0 aparecimento do racismo. Talvez seja este 0 exemplo mais frisante das conse- qhéncias involuntérias do igualitarismo. Tratei, em outro lugar, des- 1a questio, e faco referencia a ela aqui, de passagem. (cf. 1967, Apéndice A). Devo, entretanto, acrescentar uma observagio, Pri= eiro, nao sustento, como alguns pretenderam, que 2 hierarquia vale mais do que a igualdade, ou, no caso presente, que a escravi- ‘dio — uma matéria, diga-se, nao puramente hierdrquica ~ seja me- Ihor que © racismo. Afirmo apenas que fatos deste genero indicam que @ ideologia tem, apenas dentro de certos limites, 0 poder de sransformar a sociedade, e que o desconhecimento estes limites produz 0 contrrio da intensio original. ‘Tomemos um segundo exemplo, o de um outro fendme- no indesefivel e, sem davida, presente no nosso universo moder- ‘no: 0 totalitarismo. Refietiremos sobre caso do nazismo, sem a reocupasio de precisar se seria possivel ou no falar de totall- tarismo em outros casos. Uma difculdade, e das maiores, na compreensio do totalitarismo, nasce da tendéncia espontinea de 0 considerarmos como uma forma de holismo: 2 palavra mesma remete & totalidade social, ¢ 2 sua oposicdo & democracia tende 4 ser concebida imediatamente como “reac20”, como um retorno a0 passadio. Estas sio nogbas vulgares, que 0s estucos rigorosos prescindem, pois reconhecem que o totalitarismo nao representa ‘uma concepgi tradicional, ingénua da sociedade como um todo € que, portanto, nao é um holismo, Pela coacao radical que exer ce sobre 8 individuos, 0 toralitarismo aparenta voltar-se contra 0 individuatismo no sentido corrente do termo, De sorte que sua lum estudo comparativo da ideotoga moderna andlise pane de uma contradiclo. Para solucioné-la, ¢ preciso lembrar que © totalitarismo est dentro do mundo modemo, da ideotogia moderna. Nossa hip6tese € que o totalitatismo resulta a tentativa de subordinar o individualismo ao primado da socte- dade como totalidade, numa soctedade em que 0 iridividuatismo cestd profundamente enraizado e predomiina. Ele combina, sem © saber, valores opostos; a contradigio 2 qual nos referimos ha pouco vige em seu interior. Ver dai a énfase desmesurada e fe- oz dada 8 totalidade social; vem daf também a violéncia e seu culto, nao tanto porque faz-se necessirio obter a submissio {quando a subordinacao ~ que exige 0 acordo geral dos cidaclaos Sobre valores fundamentais ~ € impossivel, mas porque a violén- cia habita os promotores do movimento, dilacerados entre as duas tendéncias contraditérias, € condenados a tentarem colocar fa violencia no lugar do valor? Mas, cabe pergunar, em vista do contigio da vicléncia nos tempos atuais, esta gente nao teria sido bem sucedida de alguma rmaneira? © totalitarsmo nao teria inoculado seu virus na opini20 ‘mundial? Mesmo considerando os inGimeros vinculos mantidos cenire @ violencia contemporinea e a ideologia modema, aqul 53 podemos fazer uma alusto sucinta a ela, E verossimil, qualquer ‘que seja & reprovagio que encontre na opinito este ou aquele ato particular de violencia, que o desenvolvimento contemporé- ‘neo nao ocorreu independentemente de um enfraquecimento da condenagio da violéncia privada em geral na consciencia co- 5 Este parigrato resume, de fto, um estudo ch ideologia hideriana. AS iscussdes erudias sobi em get! ef Semenvae de fala de urna penepectva comparativa, A escolns do nazis: ino conesponde 1 preocupagio de captarmos todo o Fendmeno prest- ‘igo na ua dimensio mais aguda, A formula aparece, em principio, ge= neralizével. O estudo da U. B.S. . esi fora de meu tance, mas pare ce que a hipdtese (em itilico) deveria softer alguma modificagio, no fo que diz respelto ao individuasmo, bem presente no fundamento de

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