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: Apéndice Cidadao, sombra e verdade em Antigona * Flora Stissekind Em Antigona, durante uma discussio com Hemon, Creonte ouve a seguinte observacao por parte do filho: “nao te creias o tinico deten- tor da verdade”. Frase que, meio solta no meio da conversa, possibilita, entretanto, a caracterizacao histérica da pega. Antigona vem a publico possivelmente em 442 a.C., mais ou me- nos na metade do século Y. E, seu sucesso parece ter sido tamanho que, segundo Aristéfanes de Bizancio, teria proporcionado a Séfocles 0 con- vite para que fosse um dos dez estrategos escolhidos para a expedicao contra Samos em 440 a.C. Sucesso que jé nos aumenta a possibilidade de, ao se falar da pega, estar-se tocando simultaneamente nos seus con- tornos histéricos. E, apreendendo a tragédia, ao mesmo tempo nas suas dimensées social ¢ literaria. Nao se trata evidentemente de procurar descobrir fatos que porventura tenham ocorrido na Atenas de 442 a.C. ou falar de fidelida- des ou nao A tradigéo. Mas, determinar sobre que pano de fundo se constréi 0 texto. Quais as referéncias comuns que permitem estabele- cer a sua ligagao com o puiblico? E que possibilitam tamanho sucesso. No caso de Antigona trata- se fundamentalmente de uma questao religiosa: 0 sepultamento dos mortos; uma questao juridico-politica: que nomos respeitar (a lei da polis, * Trabalho originalmente apresentado para 0 Curso de Teoria da Literatura I, Mestrado de Letras da PUC (segundo semestre de 1978). do sangue ou a do tirano?) ¢ um problema propriamente politico, a figura do tirano, personagem histérico do mundo grego de fins do sé- culo Vie inicio do V. Tudo permeado por uma outra questdo: com quem estd 0 poder de dizer a Verdade? Quem a detém? E voltemos a frase citada de Hemon a seu pai. Creonte, enquanto tirano, julga-se possui- dor de um saber que deve servir para toda a polis, como também exclui qualquer outra verdade. E, no castigo de suas pretensées ao final da pega, situam-se igualmente dois movimentos: a democratizagao de Ate- has, por meio da qual se permite aos cidadaos opor ao governante a sua propria verdade, ¢ a laicizago da Palavra que, da propriedade de alguns mestres, de um terreno magico-religioso, alarga-se aos limites do grupo social. No momento da tragédia Atica portanto, a passagem do pensamento mitico-religioso ao racional, da tradigéo ao pensamen- to juridico. As antigas préticas politicas, substitui o universo do cidadao. Desenrola-se portanto o espetaculo tragico tendo em vista sobretudo 0 olhar do cidadao ateniense. Sob 0 qual se delineia o conflito entre o seu passado € as novas praticas juridicas, politicas e mentais. Sob 0 olhar do cidadao, o conflito entre a religiosidade familiar e a ptiblica; entre eros e philia; a lei da polis, do sangue ou do soberano; o poder do tirano e o do cidadao. Observemos como tais oposigées funcionam em Antigona, comegando pelo conflito entre religiosidade familiar ¢ ptiblica. 1, Polis e Philia Familiar A pega inicia com um didlogo entre Antigona e Isménia. Numa praca, diante do palécio dos Labdacidas, Antigona pergunta sua irma s¢ ja soubera de alguma coisa sobre um novo édito de Creonte. A res~ posta negativa de Isménia, conta que na sepultura dos dois irmaos mortos na luta entre Argos e Tebas, Creonte pensava em depositar uni- camente Etéocles, proibindo que se enterrasse ou chorasse Polinice. Segundo o decreto palaciano, seu corpo deveria ser deixado aos abu- tres ¢ aquele que violasse a lei deveria morrer apedrejado pela popula~ cao. & em torno desse decreto que se concretiza a oposigao entre uma religiosidade e uma lei familiares ¢ os regulamentos da polis, Entre a tradigéo e a lei escrita. Entre Antigona, por um lado, e Creonte, de outro, Oposigéo que se multiplica em intimeras discussdes entre Anti gona ¢ Isménia, e 0 corifeu € Creonte. Voltemos a cena inicial onde é travada a primeira dessas discussde: Depols de avisé-la sobre a proibigho, Antigona se dirige & irma e observa; “Logo tu mostrards se, sim ou ndo, és digna de teu san gue’, Propée entdo que ambas enterrem 0 morto, Ao que se segue a discussao; onde, ao lado da proposta de enterrar o itmao ou obede cer ao decreto, opdem-se igualmente 0 respeito as leis da polis ou as leis do sangue. Ao justificar o seu projeto para Isménia, Antigona declara que “Creonte nao tem direitos sobre meus bens”. Declara-se, acima de tudo, obrigada a servir aos que estao ligados a cla pelo san gue, nao se importando portanto com as possiveis conseqiiéneias que The advirao: “Eu sei que estdo felizes comigo aqueles a quem devo servir antes de tudo”. Ou seja, os de sua familia. Entre servir a um membro de sua familia ou obedecer a uma lei de sua polis, Antigona nao vacila, Opta pelo membro da familia. Ao dever de cidada, prefe re o de irma. Isménia, por seu lado, a chama de louca, declarando-se incapaz de violar as leis da polis: “Eu nao desprezo nada, mas desobe decer as leis da cidade, nao... Eu sou incapaz”. Na discuss4o entre as duas irmas, a adocao ou nao da lei escrita, de uma nova consciéncia juridica. ‘Antigona volta & cena quando 0 pubblico j4 sabe que cumpriu seu desejo. Pelas informacées do guarda a Creonte, soube-se que ja levara adiante 0 seu projeto. Volta 4 cena trazida pelo guarda que a apresenta a Creonte como culpada. Ao ser interrogada por cle, con fessa e declara nao se ter constrangido ao violar suas leis pois néo haviam sido proclamadas por Zeus: “Eu nao acreditava, que teus éditos tivessem tanto poder que permitissem a um mortal violar as leis di vinas: leis nao escritas, mas infalfveis’. Coloca-se contra a autor! dade de Creonte, em funcao da autoridade dos deuses infernais. Mas 9 principe julga-se igualmente conhecedor dos designios divinos, E os confunde com as suas vontades. Daf toda a sua surpresa diamte do comentario do corifeu, quando souberam da desobediéncia ao decreto, de que poderia tratar-se da vontade divina. Pergunta-se Creonte: “Quando viste os deuses honrarem os celerados?”. Em sum, cola a sua a justica divina. Ao contrario de Antigona que julga estar a justica no cumprimento das obrigacdes para com aqueles aos qual se esté ligado pelos lacos de sangue, os phifloi. Sua religiosidade est pautada no lar € nos mortos. Por isso nao the dizem respeito as leis da polis: “Nao foi Zeus quem as proclamou”, Antigona pauta suas agGes nos preceitos que regem a justica dos deuses subterraneos. No Hades e na polis, so outros os preceitos. Antes da obediéncia as leis 1 patria, © dever para com o efrculo familiar, A philfa acima dos Jmol da cidade, assim traga Antfgona sua conduta, Irrompe entaéo o corifeu tomando o partido de Creonte ¢ vendo a atitude de Antigona uma semelhanga com o “cardter intratavel” 0 pai, Kidipo. No que concorda o principe, chamando a atengao para duplo crime da sobrinha: enfrentar as leis estabelecidas, exceder-se vangloriar-se de seu ato. Tenta mostrar nesse momento a sobrinha contradicao de sua atitude pois, ao honrar um dos irmaos, estaria Itrajando 0 outro. Visto serem ambos inimigos. Inicia-se wma dis- ussdo na qual Creonte, munido de um pensamento racional, procu- :delinear a contradicao prépria ao agir de Antigona. Enquanto essa, sndo a sua visdo limitada por um pensamento mitico, nao consegue er, no honrar um dos irmaos, inimigo do outro, nada que exclua o espeito a esse segundo. Num caso, Creonte dentro dos horizontes da \gica racional; no outro, Antigona com sua maneira de enxergar os i110 determinada pelos contornos do mito. De um lado o pensamen- ) racional da polis, capaz de enxergar na atitude da irma a contradi- io: “Um devastava sua patria, o outro a defendia”. De outro, o pen- imento mitico-religioso de Antigona, no qual nao hd lugar para a ontradicio: “Hades nao tem dois pesos e duas medidas”. No pensa- 1ento mitico, a verdade é uma, nao ha espaco para outras possibili- ades. Ou se cré, ou se est fora. Como faz Antigona com Isménia }esde que se mostrara temerosa a desobedecer as leis da polis é por- uc enxerga outra lei que nao a do sangue. Recusa entao que a irma enha partilhar o seu destino e ressalta a sua distancia: “Tu escolhes- » a vida, e eu, a morte”. Em Isménia lutam as duas leis. Julga a de- obediéncia da irma segundo as novas leis como loucura. E, por outro ido, coloca-se a seu lado ¢ admite até cumplicidade. Em Antigona, fio ha dividas na acao. Pauta-se nas leis nao escritas, na philfa. Seu omportamento é uno como a légica que o preside. O de Isménia, scilante de acordo com as tensdes entre 0 mito e 0 pensamento a polis. Quando vem pela iiltima vez a cena, Antigona jé esta de partida ara o local subterraneo onde seria presa até a sua morte. Dirige-se nto ao coro de cidaddos tebanos. Queixa-se de nao poder realizar 0 cul matrim6nio com Hemon e das leis de Creonte mas nao se arrepen- je do ato praticado: “Qual o decreto divino que violei?”. Vé a sua deso- ediéncia como algo inevitavel. Todas as suas tltimas falas sao voltadas os cidadaos, Multiplicam-se os vocativos: “6 cidade tebana”, “6 muros sagrados de Tebas", “cidadaos de minha patria”, Num dltimo apelo di- Hige-se a polis: “Capital dla terra tebana, cidade de meu pai e vés, deuses, hossos ancestrais, esta feito: sou arrastada”. Assume a polis como interlocutora mas ndo como ponto de orientagao. E, através de uma citacdo de Herddoto, Antigona repete o elogio & philfa feito por uma mulher que, dentre todos os parentes, prefere salvar 0 irmao. Diz Antigona: “Se eu fosse mae € se tratasse de meus filhos, ou meu mari- do estivesse morto, eu nao teria violado a lei para Ihes prestar tais hon- ras", $40 os lacos de sangue que norteiam suas decisées ¢ um compor- tamento tao sem duividas como o pensamento religioso que lhe serve de molde. 2. O tirano e a verdade Quando da discuss4o com Antigona a respeito do sepultamento de Polinice, pergunta Isménia em dado momento: “Nao prevés o terrf- vel fim que nos espera se infringimos a lei, se contrariamos aos éditos € 4 poténcia do mestre?”. Nao € s6 aos éditos da polis que teme contrariar mas principalmente ao “mestre” dessa polis: Creonte. E diz a irma ser loucura tentar levar adiante mais do que se pode agiientar. Inclina-se diante do poder de Creonte ¢ observa: “O rei € 0 rei: é preciso que obedecamos a sua ordem ¢, talvez, a outras mais cruéis ainda”. Nao éa polis a soberana mas 0 seu principe. B ao édito define como ordem sua. (© poder € do principe que emite ordens como essa € poderia ordenar coisas mais cruéis ainda, Poder que nem sequer consegue definir. Dai dizer que o rei € 0 rei, Nao diz tratar-se da vontade dos cidadaos expres sa por seu intermédio, Ou de ser o rei o representante da soberana vontade da polis. Nao, o principe € 0 principe. Poder ¢ ordens emanam de sua propria pessoa. No caso, Creonte. - © que é reafirmado logo na primeira fala de Creonte dirigida ao coro de cidadaos, depois de se ter declarado dono do poder soberano (“o poder soberano me veio as maos) e declara: “fica terminantemente proibido aos cidadaos honré-lo [Polinice] com um tamulo e choré-lo, que seu corpo fique insepulto, presa de aves ¢ c&es, tal é minha decisao”. Também Creonte declara ser sua a decisdo. Como dono de poder sobe~ rano, dé-se ao direito de dispor igualmente dos decretos que mais Ihe parecam necessdrios. Responde-Ihe o corifeu: “Tu és 0 senhor, ¢ a th compete impor os decretos que te convieram, tanto sobre os mortos: como sobre nés, os vives”. Todos 0s poderes portanto com ele. Como com Edipo que 0 antecedera no poder ¢ no destino. Nos dois, tirania e desgraga. O poder que, esquecido da polis, julga-se s6. E que se pluraliza com a democracia. Dotado de um saber que salva a cidade (“gracas a quem salvaste a cidade?”) e the fora confiado por Tirésias, Creonte julga possuf-la. Ordena e disp6e, sem se dar conta dos cidaddos. Como se a polis fosse de seu dominio exclusivo. “E a cidade nao pertence ao soberano?”, é 0 que pergunta a Hemon. Julga-se dono de uma verdade. Por isso nao procura escutar a mais ninguém. E, como detentor do saber, da or- dens, julga e resolve. Solitdrio no exercicio de sua tirania como Edipo. E, como ele, sente-se constantemente ameagado na sua posicao. Ao receber a noticia da desobediéncia as suas ordens, por exemplo, mos- tra-se temeroso diante da possibilidade de se tratar de um grupo de opositores: “Descontentes murmuram contra minhas ordens, sacodem a cabeca as ocultas, ndo querem se submeter ao jugo de uma obedién- cia leal”. Irrita-se ¢ ameaca ao guarda de puni-lo caso nao traga os culpados. A ameaca de um possfvel descontentamento vai se juntar 0 se- gundo canto do coro. Nele, depois de se clogiar a capacidade do ho- mem para aprender e elaborar suas leis sem mestre, formula-se uma ameaga velada ao “mais poderoso da cidade”. Se sua audacia atinge os limites do crime, resta aos cidadaos a possibilidade de desterré-lo. Con- tra o tirano fica 4 mao uma arma: o ostracismo. EF, 4 medida que Creonte se vai caracterizando como tal, coloca-se concomitantemente sobre sua cabeca a ameaga de uma punicao. Depois de acusada, Antigona nao se arrepende da desobediéncia e, apontando para o coro de cidadaos tebanos, diz. a Creonte que todos pensam como ela mas nao tém coragem de falar: “Todos aqueles que me escutam, ousariam me aprovar, se o temor nao Ihes fechasse a boca. Porque a realeza, entre outros privilégios, pode fazer e dizer 0 que Ihe apraz”. Cada vez mais se aproxima Creonte da figura do tirano. Discutindo com o filho Hemon sobre a condenacao da sobrinha, deixa clara as suas concepgées de poder ¢ das relacées entre soberano e cidade, Hemon relata 0 que Ihe parece ser 0 pensamento de toda a polis. O de que ao condenar Antigona estaria errado. Pergunta-lhe entao Creonte: “Cabe entao a cidade ditar minha conduta?”. A polis concede somente 0 dever de obedecer as suas ordens, Nao encara os cidadaos como capazes de Ihe trazerem alguma verdade. Ao que res- ponde Hemon: “A cidade feita para um s6 néo é uma cidade”, Ne universo da polis nado ha lugar para o tirano, para o seu dom{nio de poder ¢ da palavra, Com a democratizagio da polis, fica impossivel ¢ existéncia de um poder que nao escuta, De uma palavra-verdade qu pertence unicamente ao tirano, Multiplicam-se aqueles que the po dem opor verdades. Ao espaco solitdrio do tirano vai se opor a polis ‘Alargam-se os espacos do poder e da palavra as dimensdes do grupe de cidadaos. Define-se portanto Creonte como o tipico tirano grego do fin de século VI e inicio do V. Constantemente sob ameaga de perder 0 poder para uma mulher, para os descontentes ou estrangeiros; est4 sempre na defesa. Nao lhe importam as leis divinas ou os interesses da polls Pode substituf-los de acordo com stias vontades. Sua vontade ¢ a lei de Tebas (“Nao é para mim, por acaso, que devo governar?”) Recusarse ¢ ouvir os ecos da rebeldia da sobrinha ou os designios das leis divinas Nao escuta as ameacas do coro ou as sugestdes do filho, Isolado ¢ tind nico, exerce 0 seu poder sozinho. Nem as revelagées de Tirésias di aten¢ao. Criticava Antigona por nao observar as contradigSes de seul con portamento religioso: Creonte, por sua vez, ndo se permite ouvir nad que fuja a sua vontade. Nao escuta os parentes, os cidadaos, Tirésias oF as leis divinas. Nao critica 0 comportamento religioso de Antigona po! um respeito excessivo a familia em detrimento de seus deveres de cia da. A critica e a puni¢ao s4o frutos de uma ameaga ao seu poder sobe rano. Creonte nao esta mais ligado ao mito € as tradigées do passad como Antigona. Por isso € capaz de enxergar as contradigoes. Paulas na raz4o. Daf chamar de loucas Isménia ¢ a itm, por vé-las pre linguagem mitico-religiosa do passado. No entanto, nao adquire 0 olla do cidadao. Os seus interesses so individuais. Nao é a polis 0 que iN) porta mas sim a posse da cidade, a manutencio do poder. Tanto Creonte como Antigona representam linguagem j4 em Vi de superacao na Atenas da metade do século V. A Antigona ¢ atribuid a yoz una ¢ intemporal da religiosidade familiar. A Creonte, a fala le chada do tirano. Nos dois casos, as linguagens do passado encontram se em tensao com o universo da polis, As leis do sangue e a religiosidad: familiar opdem-se 0 pensamento juridico € a religiosidade puiblica d polis, Ao tirano e seu isolamento no poder, a democracia ¢ a necessi dade de se ouvir a voz do coro de cidadaos. Tanto um como outro sii punidos. Antigona, condenada a morte por Creonte, nao é salva entre tanto pelos deuses ¢ termina cometendo suicidio. Creonte é punido coma perda de seu filho e de sua mulher Eurfdice, chegando inclusive a lamentar o seu castigo: “esta desgraca é minha culpa”. No seu duplo castigo e na representagao de linguagens anacréni- cas, assemelham-se Antigona e Creonte. Com isso esmaecem-se os con- tornos que Ihes sfo tradicionalmente atribufdos de antagonistas, O con- flito nao se trava tanto entre ambos, mas entre eles, enquanto lingua- gens do passado, e a linguagem jurfdico-politica da cidade. Um e outro se substituem na cena trdgica. Nao s6 a desobediéncia e conseqiiente punigao de Antigona esto em jogo. Também os excessos do tirano. Ambos estao em desacordo com a nova realidade ateniense. E é na oscilacdo entre realidades em desacordo que se constr6i a tragédia, No pela afirmagao de uma nova linguagem mas pelo atrito entre passado e presente, a0 qual vao corresponder as oscilagdes de posico do coro que, indefinido, mantém-se em sintonia com as tensdes proprias 4 cons- trugao da nova linguagem. 3. Sob 0 olhar do cidadéo A cntrada do coro se dé num clima de intensa alegria, Exultam os cidadaos com a vitéria sobre Argos. E, seu primeiro canto é dirigi- do ao Sol, 4 luz que brilha com a fuga da armada inimiga: “6 sol mais belo que jamais surgiu sobre Tebas das Sete Portas, enfim nos ilumi- na, belo olhar de um dia dourado”. Do lado de Tebas, o sol, a luz. E nesse canto, 0 elogio a Creonte, também vitorioso. Sua segunda intervencao se dé depois da descoberta de que a proibicao fora violada. £ langado entéo um canto em louvor do ho- mem: “De tantas coisas maravilhosas, a grande maravilha, € 0 homem”, Dentre os elogios, louva a sua capacidade de aprender a linguagem, 0 pensamento e os costumes sem mestre: “E a linguagem e o pensa- mento Agil e as leis e os costumes ele aprendeu tudo sem mestre”. Em vez de lamentar a desobediéncia as leis de Creonte, 0 coro canta um louvor ao que 6 homem aprende sem mestre. Nao s6 pensar, usar a linguagem ou agir bem mas também a sua capacidade de lancar suas proprias leis. Bem diferente do Corifeu que serve de eco a Creonte ¢ 0 louva como mestre, 0 coro langa como contornos préprios as leis nado os da mao do mestre mas os do grupo de cidadaos. Linguagem, pen- samento € leis sio louvados como aquisigées pessoais, sem mestre. No clogio do homem, uma critica ao Mestre, Desnecessario, se S40 oy homens eapazes de, sob a justiga eterna, determinarem os seus pro prios passos. B, termina 0 canto com duas frases em tom de ameagas “Mas o mais alto na cidade, dela é desterrado, se a audacia, ao crime, o leva. Possa um tal hdspede nem em meu lar, nem em meu coracao jamais encontrar lugar”. Em suma, ao mestre desnecessario, a ameaga do desterro. J por essas primeiras intervengées do coro se pode ver que nao ha grandes simpa tias para a figura do mestre. Se o primeiro canto é de vitoria, é pela polis que se regozija. J4 0 segundo, dé glérias ao homem comum ¢ langa uma ameaga ao tirano. Sob o olhar do coro de cidadaos nado é nada simpatica a figura daquele que procura monopolizar a linguagem ¢ 0 poder. ‘A terceira intervencao se dé logo depois da condenagao de Anti gona. Narram-se os males da casa de Edipo e o triste destino daquele que tenta ultrapassar os seus limites, como Antigona. Critica-se a cla e a seu gesto de desobediéncia; e seu castigo é explicado como conseqiién cia de agdes, pensamentos ¢ palavras guiados pela imprudéncia. Também a Antigona nao é dada incondicional simpatia por parte do coro, Com sua agao desobediente aos limites da polis, é digna de uma lamentacio (“6 pobre crianga”) mas nao de defesa. Com a morte de toda a descendéncia masculina de sua familia, a fidelidade de Antigona aos seus transforma-se em culto aos mortos, em fidelidade exclusiva ao Hades. Impossivel, portanto, a ligacéo com as poténcias da vida. O coro, por sua vez, se coloca ao lado de Eros (“Eros, invencivel no combate”), enquanto Antigona volta-se para a morte (“Sou apenas uma morta, aos mortos totalmente devotada”). E, devotada aos mor tos, nao se abre para Emos. Nao passa da philfa a eros, conforme obser vou Vernant: “Antigona nao soube ouvir o apelo para desligar-se dos ‘seus’ e da philia familiar abrindo-se ao outro, para acolher Eros ¢, na unido com um estranho, por sua vez, transmitir a vida”. Dai, nao esta rem com ela, igualmente, as simpatias do coro. Nem Antigona, nem Creonte se adaptam ao novo pensamento da polis. Afastam-se ambos do comportamento do cidadao € nao po dem ser louvados por ele. As simpatias do coro ficam, portanto, com 0 proprio grupo de cidadaos do qual ¢ porta-voz. Como se pode notar na sua tiltima intervengao, depois das previsées de Tirésias, lamentando a sorte dos tebanos: “Hoje veja de que mal todo esse povo ¢ presa”, Ao contrario da maior parte das andlises que se tem feito sobre Antigona, talvez se pudesse encontrar para a peca um outro eixo que nao apenas a oposigdo entre Antigona e Creonte. Como se estes encarnassem os dois polos de uma antitese, as interpretagdes costu- mami se centrar em oposicdes de dois contrarios. Variam os contornos atribuidos ao contlito, mas a oposicao entre Antigona ¢ Creonte quase sempre delimita os rumos da anélise. Tanto faz que se denomine a esse conflito, de luta entre 0 amor e 0 édio, pathos e Estado, como John, Gassner ao analisar 0 teatro de Séfocles; ou de disputa entre o Estado e a familia, Creonte e as leis eternas, como Albin Lesky em A Tragédia Grega. Como um confronto entre Estado e consciéncia individual, acom- panhado da oposigao entre as grandes familias aristocrdticas e a polis, a moral da familia ¢ a moral da cidade; assim caracteriza Hegel, no capt- tulo da Bstética dedicado a poesia dramatica, as disputas travadas entre Antigona e Creonte. Ja Kitto, em Greek Tragedy, chama a atenc&o para um conflito entre o tirano e as “realidades tiltimas”, entre Creonte ¢ os deuses. Os elementos em oposigéo vao se revestindo de diferentes sig- nificagdes, permanecendo, contudo, como se tal oposigéo desse conta das tensdes que ocupam a cena tragica. Basta, no entanto, que se pense na distribuigéo dos personagens em cena para que 0 conflito entre Antigona e Creonte fique menos em evidéncia. Se Antfgona ocupa a cena durante grande parte da peca, depois de arrastada para 0 seu castigo, € Creonte quem passa a domi- nar as aes. Ambos ocupam a cena e funcionam como protagonistas, A peca oscila entre os dois, mas so ambos igualmente condenados pelas falas do coro de cidadaos. Diante da linguagem do excesso (a tirania ¢ 0 sangue) representa- da por Antigona e Creonte, vai se delincando na tragédia 0 elogio a sa- bedoria, a justa medida, Nao a ago que se julga a tinica possivel ou a palavra que se toma por verdade, Multiplicam-se as possibilidades de aco € as palavras. Ao espaco palaciano sucede a praca. E na praca que se espalham poder e palavra, entre os cidadaos. Nao mais o dominio de uma linguagem exclusiva como a da religiosidade familiar de Antfgona ou de uma palavra que se alirma verdade sem dar ouvidos a nenhuma outra. Nem Antigona nem a linguagem autoritaria de Creonte abrem- se ao outro. Fecham-se, E, com as praticas democraticas dominantes aa err no século V ateniense, tornam-se anacrdnicas, Ndo a “eterna” lula entre o Estado ¢ a consciéneia individual, Ou entre homem e mulher familia ¢ Estado. Mas uma bem localizada tensao de linguagens, Na tragédia afirma-se 0 outro ¢ a palavra fechada nos limites da religio: dade se substitui pelo didlogo. Linguagens em tensio. Afirma-se 0 pensamento da polis sobre um {undo povoado pelas linguagens cn via de superacio. Como Antigona se desenrola no espago da praga mas com 0 paldcio dos Labdacidas ao fundo. As linguagens nao se alit mam como verdade. Nao ha exclusio mas tensao na linguagem da tragédia dtica. No dominio do universo da polis, ao fundo as lingua gens do passado. Como uma pratica que se tornara bastante popular no tempo de Platao: tragar os limites da prépria sombra projetada na parede. Limites e sombra estao sempre em tensao. Estabclecendo-se demarcagées nao desaparece a sombra que, fora ou dentro dos lini tes, mantém-se em didlogo com eles. Como as linguagens em disputa na cena tragica. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS Detienne, Marcel. Les Maitres de Verité dans la Gréce Archaique. Maspero, Paris, 1973, 1967 Foucault, Michel. “A Verdade e as Formas Juridicas”. In Cadernos da PUC, S6 ies Letras e Artes 6/74, 1974 Gassner, John. Mestres do Teatro, vol. 1. Perspectiva, $40 Paulo, 1974. 1940 Hegel, G. W. E, Estética. Trad. Orlando Vitorino. Guimaraes Editores, Lisboa, 1964, 1837-42 Kitto, H. D. R Greek Tragedy. A literary study. Methuen & Co. London, 1973 1939 Lesky, Albin. A Tragédia Grega. Perspectiva, S40 Paulo, 1976, 1937 Sophodle. Antigone. In Théatre de Sophocle. Trad, Robert Pignarre, vol. I, Garnie! Paris, 1947.442 a.c. Vernant, Jean-Pierre ¢ Vidal-Naquet, Pierre. “Tensdes e ambigiiidades na (ra gédia grega”. In Mito e Tragédia na Grécia Antiga. Duas Cidades, Sao Paulo, 1977, 1972

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