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CESARE MOLINARI HISTORIA DO TEATRO TITULO ORIGINAL Storia del Teatro © 1972, 1982, Arnoldo Mondadori Editore, Milano © 1996, Gius.Laterza & Figli TRADUCAO Sandra Escobar REVISAO Luis Milheiro DESIGN DE CAPA FBA DEPOSITO LEGAL N° 305648/10 Biblioteca Nacional de Portugal - Catalogacaéo na Publicagaéo MOLINARI, Cesare Histéria do teatro. - (Arte & comunicagao ; 94) ISBN 978-972-44-1558-1 CDU 792 PAGINAGAO, IMPRESSAO E ACABAMENTO Pentaedro, Lda. para EDICOES 70, LDA. Fevereiro de 2010 ISBN: 978-972-44-1558-1 Direitos reservados para todos os paises de Lingua Portuguesa por Edigdes 70 EDICOES 70, LDA. Rua Luciano Cordeiro 123, 1° Esq. 1069-157 Lisboa, Portugal Telfs. 213 190 240 — Fax. 213 190 249 e-mail: geral@edicoes70.pt Esta obra esta protegida pela lei. Nao pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocépia e xerocdpia, sem prévia autorizagdo do Editor. Qualquer transgressio a lei dos Direitos de Autor sera passivel de procedimento judicial. 6 Os espectaculos romanos E conhecida a anedota, certamente verdadeira uma vez que é contada pelo préprio Teréncio, de que o ptblico romano abandonou por duas vezes o teatro onde estava a ter lugar a representagéo de Hecyra, hoje considerada a obra-prima de Teréncio. A primeira vez, os espectadores foram embora para | /verem um equilibrista, a segunda vez para assistirem a lutas | de gladiadores. Esta anedota foi sempre interpretada como uma clara indicacao do pouco interesse cultural do ptiblico romano, que preferia as manifestagdes desportivas aos requintados dia- logos do poeta caro a Cipiio. E seguramente esse o seu signi- ficado, mas existe ainda um outro, ou melhor, uma outra ex- plicagao. Teréncio, como antes dele Plauto e, no ambito da tragédia, Livio Andronico, construfra as suas comédias alterando-lhes o enredo (que habitualmente narra os amores de um jovem difi- cultados pelo velho pai ou por um outro obstaculo, removido gracas a astticia de um servo ou ao reconhecimento — agnicao — da verdadeira origem da rapariga amada), as personagens (jovens enamorados, mogas raptadas, meretrizes, alcoviteiras, parasitas, velhos sébios, ou demasiado severos, ou mais estroi- nas do que os jovens) e inclusive 0 modelo e a construcd4o dos exemplos gregos, nio da comédia de Arist6fanes mas da comé- dia burguesa e romantica de Menandro. De idéntico modo, Livio Andronico e todos os que depois dele escreveram tragédias em latim até Seneca, salvo raras excepcdes, retomaram os temas geralmente tratados pelos grandes tragediégrafos gregos. Tudo isto, bem entendido, nao afecta em nada a originali- dade estética e os contetidos dos autores romanos, em particu- lar de Plauto, nem diminui o nivel dos espectaéculos romanos, que modificaram profundamente as formas de representacao do grecismo, porém, serve para definir o diferente significado e fungiio que o teatro teve em Roma. O ptblico ateniense, ao assistir 4s representagdes tragicas, presenciava a reelaboracdo e a reinterpretagado de mitos e de histdrias que constitufam o nticleo central da sua cultura: nesta cultura autéctone e plenamente partilhada pelo povo, 0 teatro foi um instrumento importantissimo no século v a. C., prova- velmente o principal instrumento de desenvolvimento e de continuidade, bem como de conservaca4o. Em Roma, a situagao é, de certo modo, oposta. O teatro torna-se um instrumento para analisar e assimilar uma cultura substancialmente estranha 4 tradigdo indigena de forma a adequa- | -la As novas exigéncias sociais e politicas. E claro que s6 um publico restrito podia viver a génese deste trabalho de assimi- | lacgdo: 4 maior parte da populacg&o eram-lhe dados resultados | ~ que essa 6 podia aceitar ou rejeitar. E em Roma que nasce 0 | | classicismo, entendido como referéncia constante de um patri- ménio de formas, de imagens e de contetidos antigos e estran- | geiros, considerado ideal e possuido por uma categoria restrita | de pessoas. A consequéncia que dai advém é uma nitida divisao | entre uma cultura de classes privilegiadas, que pode até ser | oferecida ao vasto publico que nao participa na sua elaboracio, | e.uma cultura popular, as vezes um subproduto da primeira (¢, | neste caso, € mais oportuno defini-la como popular), que apesar | de desenvolver uma tematica prépria é sempre considerada vulgar e inferior. S6 a intervalos, nos momentos de maior can- sago da produgao oficial, esta segunda cultura vem imponente- | 4 mente 4 ribalta e se coloca como alternativa: ndo se baseando | | numa efectiva mudanga da estrutura social, permanece um fac- | \ to episddico e sem continuidade. O teatro romano 6é, talvez, 0 primeiro, mas certamente 0 mais claro exemplo desta situagéo que se perpetua até aos nos- sos dias, constituindo a tara profunda da cultura ocidental. A produgao literaria aristocratica podia dirigir-se unicamen- te ao seu ptiblico, ao invés, a producdo teatral devia de algum i 68 OS ESPECTACULOS ROMANOS modo contar com um publico mais vasto. Para conquistar a simpatia podiam seguir-se duas vias: inserir no contexto neo- -helénico temas e motivos da cultura popular — e foi a via se- guida por Plauto, que vivifica as suas personagens com violen- tas énfases de satira, 0 italum acetum (*) pelo qual era famoso, e com a variedade métrica do canto popular — ou encontrar argumentos e ideias que, pelo seu cardcter, fossem capazes de estimular 0 arrebatamento ou outras sensagées faceis. Sempre se considerou que a tragédia é a forma dramatica que gozou de menos simpatia no teatro romano. Mas talvez nao seja totalmente verdade, quanto mais nao seja porque a scaenae frons parece ter sido construida principalmente em funcdo des- sa. Com efeito, apds as tentativas de Livio Andronico, de Névio e de Acio no perfodo republicano (séculos m-1 a. C.), cuja pro- ducio alids desapareceu completamente, muito poucos exemplos a recordam, até que Seneca comegou a reelaborar, nos seus tenebrosos e violentos dramas escritos por volta de 50 d. C. durante o reinado de Nero, os temas classicos da tragédia gre- ga (a excepcao de Octdvia, de resto de atribuigdéo dtibia, que tratava de um episédio da histéria romana). Partindo de modelos helénicos, desde os tempos da Repti- blica que a mascara tragica devia ser de grandes dimensGes: caracterizava-se pela alta peruca de caracdis que cafam sobre a testa e as temporas, emoldurando o rosto; a barba, também ela moldada pelos caracdis, das personagens masculinas. As- sim, a dimensdo da mAscara era posteriormente aumentada e suscitava a sensagao de majestosa opuléncia. A boca escanca- rada e o furo redondo dos olhos conferiam, aquele rosto im6- vel, uma expresso de dolorosa admiragdo, cuja rigidez, na ampliada extensdo das feigdes, devia seguramente resultar em algo alucinante. Porém, nao era sé o rosto que ganhava di- mens6es maiores do que o natural: os coturnos dos Gregos (*) «Vinagre romano» que em sentido figurativo significa espirito satfrico romano. (N. T.). 69 HISTORIA DO TEATRO nao se mantiveram como um calgado rico para os Romanos, tornaram-se antes 0 meio para aumentar ao maximo a estatu- ra da personagem, que devia parecer real e majestosa, sobre- -humana. Podemos bem imaginar como estes semideuses se apresentavam e se moviam no palco dos teatros do periodo augustiniano: as trés portas e a colunata da scaenae frons apoiavam-se num pedestal, pelo que o actor tinha de descer alguns degraus para chegar ao palco. Mas algumas personagens principais, ao entrarem pela porta real, detinham-se demora- damente no seu limiar e, entéo, toda a imensa colunata nao era mais do que a digna moldura da sua majestade. Depois, uma vez no palco, a forma de se moverem e gesticularem deveria ser lenta e solene e as explosdes de dor e de cédlera como que contidas pelo papel imposto. Tudo isso, a longo prazo, devia ser bastante aborrecido. E, entao, a dimensdo comegou a tornar-se sumptuosidade, a per- sonagem foi assumindo um aspecto cada vez mais imponente, chegando mesmo a tornar-se terrivel. As manifestagdes de dor e de célera ultrapassaram os limites do decorum, da dignidade solene, tornaram-se atrozes e desenfreadas, assustadoras naque- |les seres desmesurados. Séneca j4 havia transposto para o pal- | co esses episddios violentos, assassinios e suicidios, que na tragédia grega eram apenas narrados pelo nuncio. A encenagao a ele posterior teve de esforcar-se ao maximo no sentido de tornar os episddios cada vez mais cruéis para agradar ao gosto do macabro, e macabras e disformes eram, desde a sua primei- ra aparigdo, as personagens, cujas figuras confinam com 0 grotesco. Elas faziam rir as pessoas ou repugnavam-nas, como Luciano, a quem devemos esta descrigao do actor tragico do Império tardio: «Que espectéculo repugnante e terrivel é aque- le de um homem ataviado de modo a que a estatura fique des- proporcionada, em cima de grandes socas e com uma mascara que ultrapassa a altura da cabega e cuja boca esté escancarada num grande bocejo, como se quisesse comer os espectadores. Para nao falar dos chumagos do peito e do ventre, que lhe con- ferem uma corpuléncia artificial e disforme.» 70 OS ESPECTACULOS R Assim, a tragédia, de eleita forma ideal, passa a um entre- tenimento grotesco para o povo inculto na provincia, capaz até de desmaiar de medo perante aqueles fantoches horrendos. Todavia, na época de Augusto, da tragédia deriva um novo género de espectaculo que, alids, acaba por se i lentificar com ela. Trata-se da antomima: um coro ou um cantor cantavam | OS _passos mais belos de conhecidas tragédias, enquanto um | tinico actor, com uma mascara de trés rostos, interpretava todas | as personagens, representando com um intenso e variado ges- \ ticular os seus voltiveis sentimentos. A atencdo deixa de estar centrada nos contetidos e na forma, se por forma entendermos a concretizacao da fantasia em imagem, passando a concentrar- -se no virtuosismo deste saber fazer-se compreender, desta que se podera definir como tradug4o literal da linguagem verbal para linguagem gestual. A comédia teve uma histéria menos agitada. As aventuras amorosas complicadas por disfarces, trocas de pessoas e reco- nhecimentos, os truques de servos argutos, que constitufam intricadas tramas de forma a satisfazer os desejos dos seus patrées, enganando velhos e estroinas, talvez nao fossem arre- batadoras — e prova disso é o fracasso de Teréncio — mas, como eram sempre iguais e diferentes, também nao se tornavam abor- recidas. Por isso, a comédia, quer na sua forma literdria, quer na sua encenagaéo, permanece sensivelmente inalterada, pelo menos, até ao advento do Império. As mascaras, as perucas e os trajes tinham como fungao dar uma representac4o nao pessoal, mas sim tipica das personagens: expressfo do rosto, a sua cor, o penteado e a coloragao dos ca- belos, a barba, a forma do traje, eram sinais através dos quais 0 espectador percebia imediatamente se a personagem que entrara em cena era um servo ou um parasita, um sacerdote ou um es- troina. A personagem nominalmente central era o jovem, cuja Satisfagao dos seus desejos era geralmente o mote do drama; o jovem usava uma mdscara de tracos delicados, sem qualquer tipo de deformagio cémica. O mesmo se pode dizer também das jovens. Contudo, as duas personagens entre as quais efectivamen- = HISTORIA DO TEATRO te se dava o confronto, o velho e o servo, tinham tragos bastante pronunciados. O servo tinha uma grande boca afunilada, atray¢s da qual se podia vislumbrar 0 rosto do actor, numa grande riso. ta, meio irénica, meio amedrontada. O velho nao tinha uma ex. pressio muito diferente, mas distinguia-se pela peruca e pela barba brancas, elegantemente penteadas. O servo fazia uma série de gestos praticamente infinita, embora sempre_caracterizada pelas suas qualidades predominantes, a esperteza e pavidez, tan- to que mais tarde se sentiu necessidade de tirar a rigidez ambigua a4 sua mascara, dando-Ihe uma com dupla expressao que mudava consoante o lado a partir do qual era vista. O braco direito cé- mico do servo era o parasita: usava uma peruca vermelha, desar- ranjada, e uma mascara que indicava a sua fome insaciavel. O papel do parasita no perfodo imperial teve uma fortissima evolugao pelas possibilidades cOmicas que oferecia com a sua continua procura de convites para almogar, e a mascara acaba por ser uma imagem quase animalesca da voracidade. Face a esta producao erudita de origem grega, a producio popular pode resumir-se em trés géneros principais: a atelana, 0 fescenino e o mimo. Os primeiros dois sao de origem italio- ta e, portanto, mais préximos da tradi¢4o autdéctone romana. A atelana era um jogo de personagens fixas — Dossenus, Pappus e outros — de mascaras, isto €é, com um caracter pessoal préprio, sempre invaridvel através de infinitas e breves aventuras. Na €poca imperial, a atelana teve uma revivescéncia douta e agra- dou As classes altas. O fescenino teve uma vida mais breve, sobretudo por causa da sua tematica politica e da propensio a introduzir elementos de sdtira pessoal. O mimo, de origens gregas, prosperou principalmente nas col6nias helénicas do Sul da Itdlia, e a este se dedicaram alguns poetas com certo valor (Herondas, Epicarmo). Todavia, 0 mimo romano tem a ver com 0 grego mais pelo nome e esquema formal abstracto do que pela substancia do seu voltivel contetido con- creto. Caracteristicas do mimo foram a temdatica extremamente vulgar, quotidiana, requintadamente citadina_e a_presenca de | ' ~actores que representavam de rosto descoberto, sem mascara. 72 OS ESPECTACULOS ROMANOS Com base nestas premissas, 0 mimo torna-se a forma teatral, por exceléncia, do povo romano: nas personagens plebeias, a\ massa do publico reflectia-se a si prépria, no actor sem mdsca-| ra, os Romanos descobriam a sua vocacio para o realismo re- | presentativo e 0 seu gosto pela subtileza arguta da expressao/ mimica, cujos termos podiam também ser forcados em sentido caricatural e grotesco sem prejuizo da realidade, pois as fron- teiras entre actor e personagem iam-se tornando cada vez mais incertas. Apoés o breve sucesso do mimo literério, a fragil trama destas representagdes acabou por constituir uma simples mol- dura que dava ideias para uma série de curtas cenas cémicas, sob as quais muitas vezes se ocultava o veneno da polémica politica; por fim, o mimo transformou-se, provavelmente, num espectéculo de variedades, incluindo cangées, dangas e strip- teases, mas dominado sempre pela figura do actor-personagem, tanto é que mimo e actor acabaram por se tornar sinénimos. E provavel que, no perfodo da decadéncia, o mimo fosse a Gnica forma de espectdculo ainda vital, na medida em que, em- bora‘de forma corrompida e deformada, condensava em si, se nao a cultura, pelo menos o gosto de um povo que parece ter deixado a sua marca indelével na histéria do Ocidente. No en- tanto, €é s6 a marca do Senado romano. Mas o facto talvez mais importante do ponto de vista hist6rico é que, em Roma, também 0 teatro oficial, com base no qual se constréi a prépria ideia de teatro, comeca a fazer parte, por assim dizer, do dia-a-dia da vida. Jé nao associado a dimensao da festividade religiosa, nem ao debate civil e politico, transforma-se institucionalmente em_ | divertimento ou, como se | diria “hoje, numa forma de. lazer: en- tendido mais como circensis do que como instrumento de cul- tura e, enquanto tal, é oferecido 4 plebe da mesma forma que los j jogos desportivos e as lutas de gladiadores. Mantém, mais precisamente, um cardcter festivo, no entanto, nfo se trata de festas religiosas, mas sim de festas oferecidas ao povo, dos Magistrados pelos edis. De resto, os dias festivos, j4 numerosos, acabaram por se tornar ainda mais numerosos do que os dias 73 HISTORIA DO TEATRO Uteis. Nao causa certamente surpresa que tudo isso tenha tig, como consequéncia um particular posicionamento social qo actor, mais préximo do gladiador e da prostituta que do poeta Os actores atenienses eram igualmente profissionais, porém, \ 0 seu profissionalismo era visto como uma fungao do Estado e ] do culto. Em Roma, os actores eram escravos ou homens livres. '’ exerciam uma profissao necessdria, mas degradada, tanto que 9 homem livre perde a sua condigao e a sua dignidade justamen. te no momento em que se exibe como actor. Num certo sentido, | 9 actor romano é abrangido pelo desprezo generalizado que | atinge o trabalho, actividade, por defini¢ao, propria dos escravos, \| mas com a agravante de que este trabalho consiste na exibicdo \ de si proprio. Contudo, precisamente nessa situagao, nasce a || admiracéio pelas particulares habilidades dos actores, um para- doxo frequente: se a classe, no seu conjunto, € desprezada, 0 | actor individualmente é, pelo contrario, estimado e elogiado, | Réscio foi amigo de Cicero e acolhido nos circulos intelectuais, Comega, portanto, j4 na Roma republicana, a longa histéria da marginalizac4o social dos actores que contrasta com o fascinio ‘ de uma profissao proibida. Enquanto, para o teatro grego, me limitei a tomar em con- sideragao o periodo historicamente mais relevante, aquele em que floresceram os grandes autores que eram também, convém nao esquecer, ensaiadores e, pelo menos nos primeiros tempos, actores, no que toca o teatro romano tentei uma improvavel sintese de pelo menos trés séculos de histéria. Porque, nao obstante o grande nimero de testemunhos literdrios, o teatro romano permanece, paradoxalmente, um objecto muito mais misterioso do que o grego, quer porque os proprios testemunhos sdo muitas vezes contraditérios e obscuros, quer porque é difi- cil identificar pontos de viragem significativos — com excep¢i0 daquele marcado pelo advento do Império, quando a pantomima parece esgotar praticamente todas as formas de espectaculo «dramatico» ou, pelo menos, de espectaculo publico. Existem outras contradi¢des nos factos. Referimos anterior mente que as primeiras memorias de edificios teatrais remonta™ 14 OS ESPECTACULOS ROMANOS a 55 a. C., cerca de um século depois da morte de Teréncio, precedido por uma longa série de autores como Livio Andro- nico, Pactivio, Enio, Cecilio e Plauto. Por conseguinte, onde poderiam ent&o ser representados os seus dramas, recordando ,que, j4 no século m1 a. C., os dias dedicados aos jogos cénicos \\eram pelo menos cinquenta e cinco (tendo-se tornado inclusive \\mais de cem no Império)? Florence Dupont (autora de um belissimo ensaio sobre o teatro romano, um daqueles livros sempre validos ainda que historicamente discutiveis) sustenta que na época de Plauto e de Teréncio o teatro era um nao-lugar: a accao ter-se-A desen- rolado num pulpitum colocado diante de uma scaenae frons que se erguia solitariamente num espago aberto, sem que a drea reservada aos espectadores fosse, de alguma forma, delimitada ou, muito menos, dotada de assentos previamente predispostos. Cavea da cavus: 0 espago do ptblico é um vazio. Nem ao grande teatro de Marco Scauro, todo de materiais preciosos, correspondia um edificio, apenas bancadas provis6rias, imedia- tamente desmontaveis. No entanto, como vimos, nos poucos anos que se seguiram, o teatro tornou-se quase um edificio simbdlico da civilizagdo romana na qual adquiriu uma perfeita coeréncia estrutural. Nao podemos acreditar que esta auséncia de estruturas permanentes, ou, em todo o caso, globais, se devesse, nos séculos me m1 a. C., a reduzida intensidade da dimensi4o es- pectacular. Sabemos, alids, com certeza, que a miuisica e a danca desempenhavam um papel talvez mesmo preponderante: quer as tragédias, quer as comédias articulavam-se em diver- { bia e cantica, sendo estes tiltimos executados por um cantor, enquanto, ao som do préprio flautista, o actor executava uma | danga mimica. \ Segue-se a questo das mascaras. Dupont defende que foram usadas muito raramente no teatro romano: nas atelanas, enquan- to foram representadas por homens livres, e num curto periodo apés a morte de Réscio até a afirmacgfo do mimo que, por de- finigao, representa de rosto coberto. As mascaras terao sido, ao 75 HISTORIA DO TEATRO invés, apandgio das ceriménias ftinebres, onde eram usadas 3s centenas para representarem os antepassados do defunto. Ora, sucede algo estranho, que, quanto a mim, contradiz esta hipé- tese embora nao de forma cabal. A escultura romana é riquis- sima em mdscaras marmoreas que parecem ter uma fungio ornamental. E nao s6 em mascaras tragicas, ou que representam rostos nobres, mas também em mdascaras cémicas, nomeada- mente mascaras de servos. Tal poderia advir do gosto de rodear- -se de um ficticio manto teatral, como sucede com os frescos pompeanos que representam cenas teatrais. Todavia, este gosto s6 pode derivar de um teatro: nao do romano, onde as mascaras nao terao tido uso; mas sim do grego, no entanto, a estatudria grega nado guardou mascaras decorativas, ao passo que as mas- caras marmé6reas romanas, ou pelo menos as tragicas, tém tracos definitivamente latinos. Por fim, a questéo do repertorio. Da dramaturgia grega restam-nos obras de quatro autores, dos quais trés tragedidgra- fos, que remontam ao século v a. C.. Sabemos que nos dois séculos sucessivos, a produg&o dramatica continuou e que, pelo menos a comédia, sofreu uma profunda mudanga estrutural, testemunhada pelo quinto autor que sobreviveu de forma nao de todo fragmentdria: Menandro. Mas sabemos ainda que, des- de 0 século iv a. C., as obras de Esquilo, S6focles e Euripides foram consideradas «classicas» e varias vezes interpretadas. No que respeita ao teatro latino, encontramo-nos na estranha situagdo de possuir um numero relativamente elevado de comé- dias de dois autores, entre os séculos me m a. C., e tragédias de um autor da época de Nero. Importa questionarmo-nos se, ¢ em que medida, Plauto e Teréncio, que se apresentavam como «tradutores», foram considerados cldssicos e interpretados du- rante os séculos 1 e 1 a. C., quer dizer até ao advento de Au- gusto. Ou, senio, qual foi o repertério do teatro dramitico, pois é certo que, na época de Cicero, eram representadas comédias e tragédias, pois o proprio Cicero, amigo de Réscio, sustenta que o orador ideal devia ter a voz da tragédia e a vivacidade mimica e gestual do comediante — indicagdo preciosa, entre 716 OS ESPECTACULOS ROMANOS outras coisas, para compreender em que sentido os dois géneros de espectaculo diferiam um do outro. Seja como for, tudo isso permite fixar certas periodizagdes aproximativas: de 354 a. C., quando foram instituidos os ludis caenici, a cerca de 240, com o advento de Livio Andronico, o teatro romano consistia essencialmente em dangas e em farsas de origem osca ou etrusca; dos tempos de Livio Andronico a agonia da Republica, as representacdes de tragédias e comédias acrescentam-se, frequentemente em forma de exodia, as atelanas e, mais tarde, os mimos. Comédias, tragédias atelanas e mimos sao representados, até 55 a. C., em teatros provis6rios, embora, _ por vezes, com cenarios arquitectonicamente majestosos; com | Augusto e, sobretudo, com Nero, a comédia é substituida pelo \mimo e a tragédia pela pantomima. Todavia, para concluir, importa ainda acrescentar que a tragédia literaria sobrevive nas recitationes privadas. Defendeu- -se muitas vezes que as tragédias de Séneca destinavam-se a leitura e néo ao teatro. Ha um fundo de verdade neste lugar- -comum, uma vez que aquelas tragédias nao se destinavam aos teatros piblicos. Porém, as representacdes que tinham lugar nas casas dos ricos e dos nobres nao eram simples leituras, antes auténticos espectaculos, em que talvez o elemento verbal pre- valecesse sobre os elementos visuais. Os textos nado eram ne- cessariamente dramaticos: as Bucélicas de Virgilio e os Tristia de Ovidio podiam ser representados como o eram as tragédias de Séneca. Contudo, representar nao quer dizer ler e os grandes mondlogos dos furiosos senequianos eram, provavelmente, propostos num estilo completamente diferente daquele utilizado pela poesia bucélica e nao elegfaca. 77

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