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| edas gamas vi caitendén nada no mundo teria tomado como modelo dois ti- gos humanos to comuns e decadentes: um bohé- ‘nien e uma pequena prosticuta entorpecida pelo cool, Tampouco Courber, Manet, Renoir o teriam ‘eto, Baudelaire também nao o teria aprovado. No ‘tanto, Degas nao 0 faz por polémica social: nao julge, néo condena, nao se apieda, nao ironiza. Bas- _ ashe descobrir objetivamente a solidariedade que ane aquelas figuras agueleambiente. A descoberta do ~ tao humano, dada a capacidade de captacio de seu apatato pict6rico, € quase involuntaria (mas Degas agou em vida esse excesso de lucidez.com a solidao eaanguistia), Eis como funciona sua méquina de captagio, cis a sesmmura do forograma. Uma grande parte do qua- to € ocupada pela perspectiva enviesada, com um ‘bripco desvio em angulo agudo, das mesinhas de initmore, Entra-se no quadro por este rumo impos- 10, como se estivéssemos pessoalmente naquele café, rumna dessas mesinhas. O desvio retarda nosso en contro com os dois personagens; primeitamente, nossa atengio ¢ detida pela garrafa vazia sobre a bat Aa, seguir € remetida aos dois copos com as bel das, quase por uma associacio espontanea cle ideas No primeiro copo hé um Iiquido amarelo, em rela- | gfocom as fitas amarclas no corpete da mulher; no | segundo, um liquido vermelho-castanho, em relagio como rerno, abarba, a cor do homem. Chega-se as- sim a0 centro do tema, mas o tema nao esté no cen: | todo quadro. Os dois nao se movem, esti absortos, ‘em expresso nem gesto; contudo, aprisionados no pequeno espago entrea mesa eo encosto do soft, des- lnm numa perspectiva que a parede de espelhos, porerds, coma ainda mais incertae fugidia. Mas ¢es- se nova perspectiva que pie as figuras em foco, Na ‘maga, antes mesmo do que a doentia palidez. do ros- ‘0, impressionam certos detalhes miseriveis, quase rotescos: 0 falso luxo, totalmente profissional, dos lasos dos sapatos, dos enfeites do corpete, do cha- peuzinho periclicante; no homem, impressiona a rulgaridade corpulenta sangiiinea, a tola presun- «go. E. uma humanidade macilenta e desperdicada, urada no tempo vazio e no espaco estagnante: fria como o mérmore das mesinhas mal lavadas, surada edesbotada como 0 veludo dos sofas, opaca como os fas dos impressionistas. Degas sacrifi- do grupo seu culeo a Ingres, 0 qual por ‘CANTURODOIS ARESLIDADEEACORSAENCA. 109 espelhos embagados. Apesardo gelo da anilise, asen: sagio visual est li, itacta: nfo foi aprofundada, in- terpretada, elaborada, o significado humano estéim- plicito no dado visual. A impressio visual, porranto, nao é um limitar-se a ver, renunciando a compreen: der; é um novo modo de compreender ¢ permit compreender muitas coisas antes incompreendidas Assim Degas desfaz.a ligagio que ainda vinculava a sensagZo visual impressionista & emogao romantica. Eé cle, fundamentalmente ingresiano, que se liberta do complexo de inferioridade que 0 préprio Renoit, © préprio Cézanne experimentam frente & perfeica lucidez de Ingres. Para ele, tao sensivel a realidade do seu tempo, o clissico ja nao é beleza nem razio; & simplesmente recusa do patético em favor de uma objetividade superior: PAUL CEZANNE O ASNO E OS LADROES A CASA DO ENFORCADO EM AUVERS JOGADORES DE CARTAS O MONTE SAINTE-VICTOIRE A biografia sem acontecimentos de CEZANNE aju= daa entender sua pintura, que conclui a paribola do Impressionismo ¢ forma o eronco do qual nascem as grandes correntes da primeira metade do século xx. ‘Cézanne renunciou a ver uma vida para realizar sua obra, ou melhor, fez da obra a sua vida. Com posses suficientes para viver de seus recursos, isolou-se em sua casa na Provenga; logo remunciou também as es- porédicas estadas em Paris, mantendo apenas raros contatos com os amigos mais caros, Monet, Pissarro, Renoit. Mas também nao permitia que interferissem em sew trabalho; trabalhava incansavelmente, com método, consciente da enorme importincia do que fazia, ¢, no entanto, sempre insatisfeit. Seas vezes ocorria-the desejar o sucesso que lhe era negado, nem por isso empenhava-se minimamente em obté-lo, Nao pretendia criar obras monumentais, obras-primas; a déscoberta de pequenas verdades, que demonstravam a corregio de sua pesquisa, com: pensava-o pela labuta cotidiana. Concebeu a pineura como pesquisa pura e desinteressada, semelhante & do cientista ou do fildsofo, mesmo que diferente no método — pesquisa de uma verdade, justamente, que nio podia ser alcangada senao com aquela refle- xio ativa frente ao verdadeiro em que, para cle, con~ sistia o pintar, J4 se aproximava da morte quando o mundo percebeu a inigualivel gandeza de sua pin- tua, Formou-se sem mestres, procurando escolher, desenhando e pintando, o micleo expressivo, aestru- tura profunda das obras dos pintores do passado — principalmente italianos (Tintoretto, Caravaggio), espanhis (El Greco, Ribera, Zurbarin) —e moder- nos (Delacroix, Courbet, Daumier). Este iiltimo, talvez, mais do que os outros, no por seus contetidos sociais politicos, e sim por seu modo de construir a imagem modelando-a duramente na matétia pictd- rica. Nas diversas estadas em Paris, a partic de 1861, freqientou os pintores que posteriormente seriam chamados de impressioniscas; participou da primei- ra (1874) e rerceira exposigdo (1877), mas as obras desse periodo nfo mostrar um grande interesse pe- Jo programa renovador deles. Provavelmente tam- bbém por influéncia de Zola, seu amigo de infancia e de escola, permanece obstinadamente ligado a um romantismo agora extemporaneo, todavia exaspera- do; retira seus temas da literatura e da pineura ro- mantica (especialmente de Delacroix) trata-os com: tum impeto quase furioso, amontoando com a espa tula densas camadas de cores escuras ¢ fortemente contrastantes. Evidentemente nfo accita a pintura puramente visual de seus amigos impressionistas, quer ser um poeta, um literato; porém quer realizar essa literatura como pintor, ¢ nfo traduvindo o tema em figuras, mas construindo a imagem com os pesa~ dos maceriais da pincura. Em sua pintura nada é vengio, tudo é pesquisa. Por isso, retoma ¢ exagera o empaste encorpado de Courbet, a composigao agitada do tiltimo Dela: cfoix, os grossos contornos negros eas luzes alvas de Daumier; Manet, venerado mestre dos impressio- nistas, torce o nariz, nfo aprecia “a pintura suja’. Mesto assim, esta fase de generosa impureza, em que descarrega toda a sua bagagem romantica, c a sua prépria resisténcia inicial ao programa dos im- pressionistas sio importantes; evidentemente, 0 jo- ‘vem e arisco provencal sentia que a renovasio pre tendida deveria ser algo muito diverso de uma te volta contra o gosto académico e a conquista da - berdade de olhar © mundo sem preconceitos. Tak ver he tenha sido proveitosa, nos dois anos que par sou em Auvers-sur-Oise, a proximidade daquele pincor corajoso e meditative, aberto & pesquis. avangada mas avesso a aventuras, que era Pissarro: 3 fato é que Cézanne, quase de stibito, compreendea que do Impressionismo poderia ¢ deveria nascer um novo classicismo, néo mais fundado sobre | imitagao escolar dos antigos, ¢ sim dedicado a fer ‘mar uma imagem nova e concreta do mundo, qual, porém, no mais deveria ser buscada na reali dade exterior, mas na consciéncia, A pintura nao era literatura figurada, tampouco uma técnica capaz de transmitir a sensagio visual a0 vivo: era um modo insub: estruturas profundas do ser, uma pesquisa ontolégi- ca, uma espécie de Filosofia Nio se pode pensar a realidade serio enquantoé recebida de uma consciéncia; nao se pode pensar cconsciéncia sendo enquanto é preenchida pela real dade. Tampouco se pode conceber uma estrututy, uma ordem constitutiva da realidade e do seu devir que nfo seja a estrutura ou a ordem da consciénd: em seu constituir-se ¢ formar-se. Por isso, Cézanne ‘nunca poderi dispensar 0 modelo ou o tema, isto 2 sensagio visual (a que chamava de “petite sensation) munca colocard 0 minimo toque 1a tela seno er el de investigacaio das presenga do verdadgiro; tampouco nunca propor. abstraic, mas sempre e unicamente “compreender. Seus esforcos sfo inteiramente dedicados a manters sensagio viva durante um processo analitico de pe- quisa estrurural, que certamente é um processo 40 pensamento; durante o processo, asensacio'ndo s6it ‘mantém, como ainda torna-se mais precisa, organ za-se, revela toda a coeréncia ea complexidade desu estrutura, A operagio pictérica nao reproduz, ¢ sim § ptoduz a sensagio: no como dado para uma reflexio. posterior, mas como pensamento, consciéncia en ago. A idéia de que 0 conhecimento da realidad nao é contemplacio, porém nasce de uma vontade de tomar e se apropriar, era tipica da estética e daw teromantica, edela passou para Courber, cujo ediv mo € um ato de apoderamento, es impressionist, cada um deles empreendendo um modo préprio & reeeber, captar © até mesmo arrebatar a realidade. Apenas Cézanne supera 0 que havia de arbitririo ¢ cticamente injustificével nessa vontade de tomar e se apropria, restabelecendo um equilfbtio absoluto, ¢ -sémesmo uma identidade, entre realidade interior exterior, entre o cu eo mundo, entre o eferuar-seda consciéncia eo eférwar-seda realidade Sehé ai uma filosofia, nao é, porém, uma filoso. fia quc procede por silogismos, mas se efetua junto com a experiéncia viva e atual da realidade efetwa a pela consciéncia, O modo de fundit e estabele- ceruma identidace entre a experiéncia (a sensa¢io) eopensamento é pintura: 0 tinico que nao s6 per mite acompanhar a transformacao, como também transforma concretamente a impressio sensorial fugidia, quase inapreensivel, em pensamento con- tteto, vivido, de modo a realizar a consciéncia em ‘ua toralidade, Ele tinha consciéncia de efetuar com a pintura uma filosofia que nao podria se efe- ‘uar de outra maneira, e, numa carta de 1889, as sim justifica sew isolamenco: “Eu tinha decidido itabalhar em siléncio até o dia em que seria capaz de sustentar seoricamente minbas tentativas”, Por tanto, a tcoria devia ser posterior, derivada da obra: se pensarmos que a filosofia moderna nao é, nem ‘quer ser, senio uma reflexao sobre a experiéncia em seu realizar-se, ou mesmo o seu realizar-se & hz da cia, € impossfvel deixar de reconhecer que apincura de Cézanne (como reconheceu um filé- sof, Merleau-Ponty) contribuiu pata definir a di- mensio ontoldgica do pensamento moderno. Assim se explica como cle superou aquilo que pa- recia ser 0 catdter tipicamente francés do Impressio- aismo, como ele recuperou, pata ak’m do racionalis- mo neocléssico, certas qualidades de imediaticidade edesenvoltura cromaticas préprias da pintura fran- «zsasetecentista, ¢, quase langando uma ponte entre opsicologismo francés eo idealismo alemao, formou a base de uma cultura figurativa européia, Evidente- mente, isso nao significa que se deva ver em Cézanne a que superoU ¢ renegou a suposta superficial dade deuma arte inteiramente fundada sobre labi dade e inconsisténcia da sensacéo visual. E exatamen- to contritio: levando a sensacio visual ao nivel da consciéncia, Cézanne ampliou imensamente o hori- once da pesquisa impressionista inicial e realizou o que podemos denominar Impressionismo integral. consci oa ‘vETINO DON AREALIDADEE ACoNSCIENEMR A cata do enforcado é uma das primeitas obras im- pressionistas de Cézanne, apésa fase inicial barroco- romantica: basta compari-la com as Regatas de Mo- net, do mesmo ano, para constatar que Cézanne, apés as primeiras resistencias, jé passara decidida- ‘mente para a vanguarda. No quadro de Monet, tudo € distendido, leve, brilhante, transparente; no qua- dro de Cézanne, a composicao é densa, os volumes pesados, a cor opaca. F.ngo para alcangar maior pre- cisio descritiva: a sensagio continua a ser sensacio, io se define como nogio. No entanto, o que la se apresentava como superficie, aqui se apresenta cor mo volume; a planicie distante se interpde a fora entre a casa ¢ 0 outeiro, nem mesmo o edu se desta~ 2, mas une-se & crista das colinas. Hé uma profun- didade evidente no avango das trilhas, nos escuros profundos que fundem os volumes, todavia a pro- fundidade nao cria distancia e nada se esfuma ou se dilui, tudo se aproxima se adensa. Chama a aten- sfo a espessura da camada de cores, dtida e grumosa ‘como um reboco; mesclada a cor, a luz se torna ma- téria, nfo tem transparéncia nem brilho, apenas uma vibragao pesada, como um zumbir nos ouvi- dos. Absorvida pelos volumes, deixa poucos tragos seus na superficie: certo raleamento imprevisto do tecido cromatico, certas veladuras transparentes so- brea camada endurecida, certos flocos como que de estopa sobre ramos secos. A profundidade, portan- to, nao esté no vazio em torno das coisas, e sim den- sroda matéria da cor, ¢ nao é apenas densidade, mas estrutura quase cristalina das massas cromsticas, Ve- ‘mos, por exemplo, apenas uma parede da casa onde a luzse solidifica e forma uma camada, porém basta a cunha de sombra que a separa da construcao vizi- nha para se sentir o volume, como um cubo do qual se vé apenas um lado, ‘Mais tarde, Cézanne vied a afinar 0 empaste, pin- ‘ard com veladutas transparentes e nos tltimos anos chegard a utilizar frequentemente o meio mais disfa- no, a aquarela, Decompondo as formas em varias nesgas coloridas, estudando a amplitude e a fre cia das pinceladas de modo que a cada nota de cor corresponda uma definicfo formal precisa, cle deter- ‘mina com extrema clareza a tazio escrucural, a fun- 0 especifica de cada petite sensation num contexto de relagoes no espago. Mas o espaco jé nao é uma ‘construsio perspectiva a priori sim resultance; no 112. cAsfrUL0 DONS AREAUDADEEACONSCIENCIA ral Cézanne A cdo efi em Asser (4873}stda, 055 «0,66 m. Pais, Musée d'On- éum esqueleto constante sob as aparéncias mutaveis, éaritmica profunda e sempre variével dessa mudan- «a das aparéncias ou, mais precisamente, de sua con- tinua evariada combina¢io e constituigio, como si tema de relagées em acio, na consciéncia. ‘Numa carta de 1904, ele escreve que é preciso “ua~ taranatureza conforme o cilindro, a esfera, 0 cone, © conjunto posto em perspectiva’, ¢ pretendeu-se ver nessa frase uma antecipagao te6rica do Cubismo, movimento que inquestionavelmente descende de sua pintura, mas interpreta-a em sentido racionalis- ta, Cézanne no afirma que se devam reduzir as apa- réncias naturais a formas geométticas; ele nao se refe- reaum resultado, ¢ sim a um processo (“tratar"). ‘As formas geométricas, ab antiquo expressivas do espaco, sio instrumentos mentais com que se efetr a experiéncia do real: se uma laranja, no quadto, aproxima-se da esfera, ou uma péra do cone, nao sig nifica que a laranja seja esférica ¢ a péra cOnica, mas que o artista conseguiu especificar a relagio entre dois objetos singulares e o conjunto da realidade, 10 6; fazer com que essa laranja e essa péra scjam ume Jaranja e uma péra, € a0 mesmo tempo uma esfer¢ uum cone, isto é, formas expressivas da totalidade di espaco. Como as formas geomeétricas nao sio o expe go, porém modos através dos quais o homem penso © espago, clas nao séo idéias inatas, e sim formas his toricas; fortalecida pela sua experiéncia hiseérica, 1 consciéncia se apresta para a experiéncia do real pe sente. Porisso, Cézanne diz.que sua aspiragio é refa Pouss histor no fla iam: De ta: “A fundi introd tadas suficie mosfe dos ot ainda mativ ao en seapre Mas, a paco € tos; as cido c ados, trative nao pz G0 nic ciénciz através © pin ela é,1 sentim equiltt toralid Finica espaco certam cial da, zara.ur cia), ev didade perficie didade. perspec contem Poussin a partir do verdadeiro, isto é, reencontrar a historia na natureza, aexperigncia ref to flagrance da sensagao. E este o clasi tia mais corteto dizer a classicidade) de C Depois de falar sobre o cone ea esfera, ele acrescen- ta “A nacureza, para nés homens, esté antes na pro- fandidade do que na superficie, edaf a necessidade de inoduzir em nossas vibragbes luminosas, represen- tadas pelos vermelhos e amarelos, uma quantidade suficiente de rons azulados para dar a sensagio de ar- smosfera”. As vibragoes luminosas so as que emanam dos objetos envolvidos pela atmosferas logo, trata-se ainda da relagio objeto-espago: em seu processo for- ‘ativo, a consciéncia opera essa distingao na sensa- ‘G0 em que 0s tons quentes dos objetos iluminados seapresentam mesclados aos tons frios da atmosfera Mas,a seguir, adistingio opetaasintese, porque es- aco é a representacio global do conjunto dos obje ‘os; assim, na pintura de Cézanne, a estrutura é0 te- ido cromético resultanre da divisto das cores locais £ nos componentes quentes e frios (vermelhos-amare- lados, azulados) e de sua combinaséo no ritmo cons- ‘cutivo das pinceladas. A pintura de Cécanne,cnfim, fo parte de uma concepgao espacial « priori, o espa- go nio é uma abstragdo, é uma construc da cons- ciéncia, ou melhor, 0 construir-se da conscigncia através da experiéncia viva da realidade (a sensacio) Opintor, portanto, representa nao a realidade como sa é, nem como a vemos sob o variado impulso dos sentimentos, mas a realidade na coniciéncia ou 0 equilfbrio absoluto, finalmente alcancado, entre a twialidade do mundo ea rotalidade do eu, entre ain- finica variedade das aparéncias ea unidade formal do -consciéncia. O Impressionismo integral nao 10 um Classicismo integral. Ao dizet que a natureza, para 0 homem, esté na profundidade, Cézanne nao esté absolutamente vol- tando a concepeao perspectiva tradicional, ainda que certamente se oponha & redugéo impressionista ini- cial da profundidade & superficie. Ao pretender teali- rar a.unidade do espago (como unidade da conscién- cia), evidentemente nao podetia conceber a profuun- didade como algo além de uma superficie, nem a su- perficie como um plano que intersecciona a profun- didade. A profundidade éuna e continua, € nao uma perspectiva dianre da qual se coloca o artisea, numa concemplagao que permanece exterior a ela, como ‘COTO DOI AREALIDADEEACONSCIENCIA tum espectador no teatro. Ai nfo podee paragiio entre o espago da vida, ou do artista que pin- 13a, €0 espago do quadro. E uma exigéncia que todos ‘os artistas, a partir de Delacroix, percebem e tentam resolver de virias maneiras: ora fazendo-se envolver pela espacialidade armosférico-cromitica do quadro (Monet, Renoir, mnais tarde, Bonnard), ora levando © espaco da vida para a tela e além da tela (Degas, ‘Toulouse-Lautrec). Os primeitos se interessam aci- tna de rudo pela realidade navural, em que incluem também o social; 0s tiltimos, pela realidade humana ou social, e assim apresentam a natureza-ambiente, E ainda o problema do subjetivo e do objetivo, da alternada predominincia do impulso tomantico so- bre 0 equilibrio cléssico ou vice-versa, Em Cézanne, ‘go hi uma ruptura entre realidade incerna e exter- na: a consciéncia estd no mundo, ea mundo nacons- iéncias 0 eu no conquista o mundo e nao € por ele conquistado. Nao hé apenas un equilibrio paralelo, ha uma identidade. Por isso, seu classicismo nao 6 tum classicismo hist6rivo, esim uma classicidade pur ra como a de Fidias ou de Giotto, os tinicos grandes “clissicos”. Mas no se chega a esta sua classicidade absoluta abstraindo-se da experiéncia vivida, do pre- sente, ¢ assim ela ndo abre espaco a uma nostalgia pe- {as formas do passado, e nunca poderia ter sido alean- ada senao depois de ter realizado c esgotado a expe- cia do Romantismo, como a realizou Cézanne, com maior profundidade do que qualquer outro, no primeiro periodo de sua carreira. Mas como conciliar a atualidade de Cézanne com sua aparente indiferenga pelos problemas so ciais tipicos de sua época? Encerrado em seu esti dio, distante do mundo, ele pensa apenas na pintu- ra, nao Ihe aflora a suspeita de que seja possivel iso- lar um problema social dentro do problema geral da realidade. Um tinico quadro (em varias verses) pa- rece rogar a questo: Jogadores de cartas (1890-2). E uum cema que poderia ter sido tratado por Daumier, Courbet, Millet, e mesmo Van Gogh no periodo holandés inicial — com énfases diversas, realistas ‘ou moralistas, ressaltando 0 que nao escapa sequer a ele, isto é a compostura c a seriedade dos dois camponeses, que tém no jogo o mesmo empenho € amesma moralidade que tm no trabalho. Ao abor- dar essc tema inusual, Cézanne cercamente preten- dia prestar uma homenagem a Courbet, 2 quem 114 cAFfTMODO'S ARLALIDADREACONSCIBNCIA sempre teve na conta de mestre; seu impressionis- ‘mo integral, como ascensio in toto da realidade & consciéncia, cra também um realismo integral ‘Nao seria justo descartar a situagio expressa pelo, pintor na relagao psicolégica entre os dois jogado- res:tum deles empenhado em escolher a carta que jo- gar, 0 outro A espera. Mas é preciso observar coma se define essa sivuagio, embora a posigio ¢ os gestos das figuras sejam perfeitamente simétricos e nao ha- ja em suas faces a minima busca de uma expresso psicolégica. A imobilidade do jogador & espera é de- finida pela forma cilindsica do chapéu que se repere nna manga, pela linha reta do encosto da cadeita, pe- Jas notas brancas do cachimbo ¢ do colarinhos mes- ‘moa toalha avermelhada sobre a mesa cai a prumo ao Paul Cane: fgadorerdcras(1890-2), va,045 0,57 m Pai, Massed Orsay. Jado dele, enquanto do outro lado aponta em ang Jo, A atencéo, a mobilidade psicolégica do outro ¢ apresentada pelas cores mais claras e sensiveis’ urd palet6, do chapéu, do rosto ¢ do desenvolviment menos tigido, mais ondulado, dos tragos. O que vi) ria nfo é a caracterizacio psicolégica, ¢ sim o mod como os volumes de cor se desdobram no espago reagem a luz, A intensa passagem de tons escuroi avermelhados ¢ negro-azulados, no fundo ¢ sobre mesa, liga e compe os volumes numa unidade, e volvendo-os assim como a atmosfera, numa pas gem, envolve as érvores préximas € 0s montes dist tes, O eixo do quadro é 0 reflexo branco na garraf no recai exatamente no centro, dando assim uma geita assimetria & composigio: vé-se por intcirod grande volume cilindrico do jogador de cachimbo, € atris dele hé.um vazio, enquanto 0 volume ma to ¢ luminoso do outro jogador é cortado pela borda do quadro. A cor jd ndo é um tom cromético local gado as coisas, ¢ sim a substincia do espago pictéi co} 0 quadro € todo um tecido de notas crométicas a que 0 toque dé uma densidade e uma ditegio aurd- rnomas em relagio & forma dos objetos. Todavia, é 0 mesmo tipo de relagao que, numa paisagem, passa entre uma montanha e 0 céu, entre sol ‘uma casa e uma massa de folhagens, entre a margem pedregosa e um espelho de éguas as variagGes de den- sidade e vibragio nfo rompem a unidade do espago, io alteram sua estrutura. A substincia, a qualidade fundamental de cot, mantém-se sempre 2 mesma; Cézanne niio preenche nem recobre volumes plisti- cos com cores predeterminadas, mas constr ¢ volumes por intermédio da cot. Veja-se (para dar apenas um exemplo) como é construido 0 volume goomeétrico do jogador de cachimbo: um cilindro que termina em ogiva, no qual o cilindro obliquo do brago se insere como um tubo. £ impossivel dizer qual é a cor exata desse paleté: no hd uma cor dnica quese estenda na superficie ou que s¢ ilumine nas sa- Tigncias e se obscurega na sombra. Ha verdes, verme- Ihos, amarelos, roxos, azuis, postos com pinceladas obliquas que parecem se impelir umas as outras; propria variedade tonal determina esse aumento diminuigao, essa expanséo ¢ contragio da cor, até o ponto em que é bloqueada por outta forma colorida. ‘Num das obras mais tardias e grandiosas, a iti ma das vétias imagens do Monte Sainse- Victoire, ve- seo grau de lucider estrutural a que chegou o mestte. Lmposstvel imaginar uma sensagéo mais fresca, ime- diaca e, ao mesmo tempo, definitiva que no ponto em ques azuis ecinzas do céu invadem a montanha eaplanicie, assi nuvens. Porém, note-se como o ritmo, a freqiléncia das pinceladas largas e transparentes preenche todo © quadro, decompée a imagem num continuo face~ tamento de prismas reftingentes, ¢ como a luz, mes- mo nao chegando a tons elevados, adquire uma in- crivel intensidade de movimento, torna sensivel o dinamismo universal do espago, ou melhor, 0 dina- mismo da consciéncia que, no préprio ato de rece- ber a realidade e identificar-se com ela, converte-a em espago, E esta, sem diivida, uma das obras mais como o verde das arvores colore as “especulativas” ou “ontoldgicas’ de Cézanne, pon tuk de chegada de sua pesquisa dirigida 8 compreensio) | un global do ser e de sua estrutura vital: mas pode-se ne e gar que esta “filosofia” pura seja pura pintura? E po- der-se-ia a con nesse problema total, disposto aclemonstrar que, seo, Ver contato direto com o mundo é pensamento,o pens! ‘mento também é concaco direro com o munclo pot) no ter considerado tal ou qual problema particu de sua época, mesmo se tratando da guerra franco. | prussiana ou da Comuna? ' De qualquer maneira, Cézanne enfrentou implici | tamente o problema social, como problema cent] da época, ao definir nao s6 a funcio, mas também 7. dever do artista no mundo, e naquele tipo de munde| © “problema do quadro’, seu problema de represen) tara natureza, a sociedade ou a vida interior e secre doartista, £0 problema central da pintura’ cite ta, nio sendo sengo o problema, cada vex mais pre| mente devido’ afirmaggo do pragmatismo industiid) G4 e capitalista, referente a razio de ser eA possbilidade de acio do artista nesse tipo de sociedade. Tal proble, ma nio se resolveria com reagoes psicolégicas, sent mentais, priticas, optando por este ou aquele, repre sentando os camponeses no trabalho ott os senhores3. passcio no Bois de Boulogne. & “Tampouco com o lamento pelos belos tempos coutrora, com as vagas evas6es simbolistas ou as fags oN para os trépicos. No final de século, quando se ins i taura 0 mito do Progresso, o problema se conver em dilema: a existéncia do artista tem ou no ten)” sentido. Nao hd compromisso possivel. Hi.a solugit, negativa de Van Gogh: o arcista € rejeitado pela soce dade e recusaa, esté sozinho perante a realidade, se poder resistir ao seu impacto. Apés um vio fal nante ¢ vertical como o de fcaro, precipita-se, devs! parece, morre. Van Gogh éa iltimaexpressio dow Gent blime” romantico: de um inicio significativamengg dand semelhante ao inicio romintico de Cézanne, ele ch ¥ & ga concluséo oposta. A solugio positiva éa de Céuayy 4s € ne; € isso porque Cézanne viu na abercura impresit! P80 nista, quea Van Gogh seafigurara como o limite exw} PE" ‘mo do Romantismo, a perspectiva de umn novo cht, Na 6t aan ty oa: cismo, a premissa de uma nova dimensio da consciés Mica cia da existéncia, de uma relagio nova, nfo maiscoa Us traditéria, nao mais angustiada, entre 0 homem mundo, Perguntar sobre o lance social da nova est ‘ura espacial definida por Céranne é0 mesmo que per- suntar sobre o alcance social do novo estrururaismo atguiteténico com que os técnicos do ferroe do cimen- ‘odefiniram 0 processo pelo qual asociedade modem «constr6i sew espago, a dimensio de sua existéncia; ede- ‘emosinsstir uma vee mais sobre o paralelismo, se no sanalogia, entre os dois fendmenos, Depois de Cézanne © Van Gogh, as solugses de ‘compromisso indecisas ¢ vacilantes se tornaram aca~ démicas eindtei. A partir dai, rudo, na culturaartis- tia curoptia da primeira metade do século, gravita- tem tomo dos dois termos opostos do dilema e de ‘sia relacao dialética cada vez mais tensa: Cézanne ou Van Gogh, cléssico ou romantico, Imptessionismo cot Expressionismo. GEORGES SEURAT UM DOMINGO DE VERAO NA GRANDE JATTE PAUL SIGNAC ENTRADA DO PORTO DE MARSELHA Na segunda merade do século xix, a fisiologia ea pricologia da percepeio so objetos de intensa pes- quisa ciencffica: & importante averiguar o funciona ‘mento dos processos com que se efetua a experiéncia do real e verificar sua confiabilidade. Os estudos ex- petimentais de Helmholtz (1878) ¢ Rood (1881) de- __senvolvem as descobertas de Chevreul sobre 0 con- taste simultineo e as cores complementares que, pu- blicadas em 1839, haviam dado um fundamento cientifico ao Impressionismo. Em 1880, Sutter, estu- dando os fendmenos da visio, sustenta que aarte de- ‘eencontrar um plano de entendimento com a cién- sit, centro vital da cultura da época. Ao mesmo tem- po, um jovem pintor, SEURAT, comega a elaborar ¢ ‘sperimentar uma eoria prépria da pintura, baseada 1a tica das cores, A qual corresponde uma nova téc- nica cientificamente rigorosa. ‘Um problema central 6a divisio dos tons: como a 4 6a resuleante da combinacao de diversas cores (a lzbranca, de todas), 0 equivalente da luz na pint ‘HEIL DON AREALTMDERACONSCIENCIA rando deve ser um tom unido, nem ser obtido com a mistura das rintas, e sim resultar da aproximagio de varios pontinhos coloridos que, a certa distncia,re- compéem a unidade do tom e tornam a vibragao lu- ‘minosa. A primeira obra demonstrativa, La “baigna- dé (1884), causa impressio em outro jovem pintor, PAUL SIGNAG, que havia estudado com Monet: se de inicio o problema, para Seurat, consistia inreiramen- te na correlagao entre 0 proceso picubrico e os pro- cessos da visdo que se comprovaram cientificamente mais corretos, coma intervengao de Signac, a pesqui- sa dos dois artistas (cuja ligagio perdura até a morte prematura de Seurat) se orienta no sentido de uma retomada do programa dos impressionistas, mas ex- purgado de seus resquicios romanticos e reproposto em termos cientificos. Assim nasce o Neo-Impressio- nismo, o primeiro movimento a colocar a exigéncia da relacio arte-ciéncia, o primeiro também a que se retine um critico (F. Féngon) para o controle metodo- ldgico da operagio na poetica, Favorecido pelo cien- tificismo positivista do final do século, o movimento teve ampla difusio; a repercussio mais notével ocor- reu na Itilia, em Miléo, com o Divisionismo. Colocada a questao da relagio arte-cigncia, havia trés hipdreses: 1) 0 processo cientifico ¢ 0 processo artistico tendem para o mesmo resultado cognitivo, neste caso um dos dois é supérfluo, e trata-se de es- colher o melhor; 2) levam a resultados igualmente vlidos, mas diversos, no plano cognitivo, e neste ca- so é preciso distinguir claramente 0 que se conhece com a ciéncia eo que se conhece com aarte; 3) aarte tem uma finalidade ¢ uma fungéo totalmente dife- rentes das da ciéncia, A primeira hipétese esté excl da porque, se fosse verdadeira, a atividade que st cumbiria seria a arte. O valor da texceita hipétese se resttinge 4 conversio do problema estético, em sua passagem da drbica cognitiva para a ética (Van Gogh «, em parte, Gauguin). A segunda vale para os dois fenémenos diferentes, porém contemporineos ¢ complementares, do Neo-Impressionismo e do Sim- bolismo. O contetido da tedrica neo-impressionista € derivado da ciéncia, & qual, evidentemente, nao acrescenta nada; todavia, Seurat e seus companheiros de grupo créem que a arte também aspira (como a ciéncia) ao conhecimento objetivo, mas nao lhe cabe expetimentare verificar as proposigées da ciéncia, Arte enfrenta problemas que no podem ser re~ 118. carrer AREALIDADEEACONSCIENCIS solvidos com os métodos cicntificos normais, mas para enfrenci-los precisa renovar sua técnica. A ques- tao da técnica (0 pontilhismo) tem uma importincia fundamental; de fato, o avango dos meios cientifico- mecdnicos de representagdo (a fotografia) obriga a técnica da pintura a se qualificar como técnica de precisio (to rigorosa quanto a da pesquisa cientifi ta), renunciando a habilidadeextraordinaria, todavia ainda empirica, dos impressionistas. Um domingo de vero na Grande Jatte (1884-6), segunda grande tela de Seurat, é demonstrativa ¢ afirmativa: um programa, Seurat trabalha delibe- radamente sobre o material tematico dos impres- sionistas — um dia ensolarado de férias as mar- gens do Sena. O modo de elabori-la é cotalmente diverso — nenhuma nota captada ao vivo, nenhu- ma “sensacio” imprevista, nenhum divertimento episddico. O espago € um plano, a composisio é construfda nas horizontais e verticais, 0s corpos € suas sombras formam angulos retos, Os persona gens sfo manequins geometrizados, colocados na algia gramada como pedes sobre um tabuleiro de xadrez, em intervalos num ritmo calculado quase matematicamente, segundo a lei da proporgio du- rea, Eneende-se: sea luz nfo é natural, mas recor posta a partir de uma fSrmula cientificae, portan- to, perfeitamente “regular”, a forma assumida pe- la luz, identificando-se com as coisas, deve ser re- gular e geométrica. Por um motivo nao essencial- mente diverso — forma absoluta numa luz abso- juta —, a forma de Piero della Francesca também era geométtica. No entanto (¢ pode-se noté-lo também nas paisagens), 0 espago nao é definido por uma petspectiva euclidiana: nao sendo um va- zio, e sim uma massa de luz, ele rende a se expan- dit, a apresentar-se como um globo de substancia atomizada ¢ vibrante. Oscorpos sdlidos, neste espago-tuz, sto formas geo- étricas curvas, modiuladas pelo cilindro e pelo cones tém um desenvolvimento volumétrico ao qual nao corresponde um peso dle massa; sio compostos pela mesma poeira multicor que percorre 0 espacos nao in- rerrompem a vibragio da luz, Nao ¢, portanto, um re- torno a geometria do espaco perspective ¢& concretu- de fisica das coisas; o espago que Seurat reduz a logica geamética € 0 expaco empirico dos Impressionistas, que assim & transformado em espago teérico. 122. caverunp pois. REALIDADE ACONSCIENIA Paul Signa: Ended prt de Maratha (nite 117 1,627m. Manlhs, Musée des Beast Este novo espago tem suas proporgées, mas elas se cexprimem em relagbes de luz ¢ cor, ¢ nfo de grande- zacdistincia. Emborao “motivo” scja uma paisagem fluvial sob o sol de uma tarde de verfo, a tonalidade geral nao ¢ brilhance: a pintura nfo deve reproduzir 0 brilho da luz absoluta (que levaria a0 branco puro), € sim reencontrar a harmonia universal da luz absolu- canum nivel de menor intensidade, que permita dis- tinguiras onalidades das cores. © que Seurat realiza, portanto, € uma média proporcional cromético-In- ‘minosa, isto é, um equilibrio, uma espacialidade ou ‘uma arquitetura interna da percepcéo global, que no poderia ser descoberta por nenhuma pesquisa ientficas com efeito, Scurat se interessa nfo tanto pela fisica das cores ou pela fisiologia do olho, mas pela economia racional da visio. Neste ponto, porém, devemos nos perguntarseain- da € 0 caso de falar na ciéncia ou, de preferéncia, na ideologia de Seurat; de fato, 0 que ele nos apresentaél imagem de um mundo onde tudo — natureza soc dade—é condicionado, ou melhor, até mesmo confi gurado pela ciéncia. E, em outros termos, a imagem um ambiente moldado pela mentalidade cient tecnoldgica do homem moderno: um nivelament) entre sociedade e nacureza ao nivel da sociedade, i ‘mais da natureza. Essas pessoas em passeio dominisl também sto sérias demais; nada tém a ver com as ni dinettes de Renoit eas bailarinas de Degas. E essa natureza, onde os troncos sio ilindrioas as ramagens esféricas, onde nem um sopro de vent encrespa a 4gua do rio, também ¢ educada demi chega a dar a impressio de que 0 espetdculo de tant cordem foi uma das causas da firia desesperada cm que, logo mais, Van Gogh viria a se arrojar sobre naturera, tentar abalé-la com sua paixio. Hi, porta cerca incongruéncia deliberada e significativa: ae ahora com © macaquinho pela coleita, um homem que toca a trompa, a dama cmpertigada que pesca com a vara, para nem falar dos homens de negécios, das cartolas, das enormes crinolinas. E claro que se tmata de uma sociedade de manequins ¢ autdmatos. Falta apenas que 0 rouxinol mecinico apareca entre asfolhas, cantando enquanto durar a corda — René Chair 0 incluiré posteriormente num filme famoso, 4queserd a sitira, e no mais (como aqui) a polida iro- nia, da burguesia industrial extremamente séria, res- peitével e mais ou menos moderna. Signac desenvolve pontilhismo em texturas cro- miticas mais largas dispersas, scus quadros sio mar- chetados como mosaicos da Antigitidade tardia. Pre- tendealcangar novas gamas de timbres interpolando nota dissonantes, rompendoa linha melédica da cor Sua tendéncia, mais do que uma recomposicio ética da unidade tonal, &a de gerar na superficie pintada coxtlagées ¢ vibragdes dindmicas, que se transmitem anespectador; por isso, sua concepgao do quadro co- mo estimulo visual é uma premissa essencial dos fw CCAPTULODOIS AREALIDADEEACONSCESCA 123 ves, pata os qusis 0 quadro sera uma realidade viva ¢ auténoma, e no mais uma representacao, VINCENT VAN GOGH RETRATO DO CARTEIRO ROULIN Com Van Gos, inicia-se o drama do artista que se sentc excluido de uma sociedade que nao utiliza seu trabalho, fazendo dele um desajustado, candida- to aloucura e a0 suicidio. E nao s6 o artista: uma so- ciedade pragmatista que atribui ao trabalho a finali- dade exclusiva do lucro nao pode senao rejeitar aquele que, preocupado com a condigao o destino da humanidade, desmascara sua mé consciéncia. ‘Van Gogh ocupa um lugarao lado de Kierkegaard e Dostoievskis como estes, eles interroga, cheio de an- stistia, sobre significado da existéncia, do estar-no- mundo, Naturalmente, coloca-se ao lado dos deser- dados ¢ das vitimas: os trabalhadores explorados, os Vincent Van Gogh Earads om cipretere alr (1890) tla, 092 » 0,73 1, Octet, Rijlamuseum Ktler-Muler 124, catruwo poss axeaLoADEEACONSEINELL camponeses dos quais a indiistria tira, com a terrae 0 pio, 0 sentimento da eticidade e religiosidade do tra- balho, Nao é pintor por vocagio, mas por desespero, ‘Tentara se inserir na ordem social e fora rejeitado; de: dicara-se 20 apostolado religioso, tornando-se pastor € missiondrio entre os mineitos de Borinages no en- tanto, a igreja oficial, soliddria com os patroes, expul- sara-o, Revolta-se aos trinta anos, ¢ sua revolta a pintura: paga-la-4 com o manicémio co suicidio. Num primeiro momento, na Holanda, aborda frontalmente o problema social; inspirando-se em Daumiere Millet, descreve em tons sombri tia € 0 desespero dos camponeses. So quadros quase monocromsticos, escuros: uma polémica vontade de fealdade deforma as figuras. A industrializagio que prospera nas cidades trouxe a miséria aos campos, acabando por privi-los néo s6 da alegria de viver, co- mo também da luz ¢ das cores, Entao decide seguir para Paris, onde jé estivera em 1875, como emproga- do da loja de gravuras Goupil. Retorna em 1886, contra os impressionistas, torna-se amigo de Toulou- se-Lautrec; abandona os temas sociais, passa das variagies em negro ¢ castanho para um cromatismo amisé. violento. Muda-se para Arles (1888), ¢ em dois anos tealiza sua obra de artista; seu sonho é eriar com: Gauguin (que prudentemente recua) uma “escola do sul” que, levando as premissas do Impressionismo: suas ultimas conseqiiéncias, renovaria os préprio: fundamentos da arte. Por que ele abandona a polémica social no mo- ‘mento em que seu empenho moral se torna mais. soluto ¢ agressivo? Em contato com os movimentas franceses de ponta, ele compreendeu que a arte nio deve ser um instrumento, mas um agente da trans formagio da sociedade e, mais aquém, da experi cia que fax.0 homem do mundo, A arte deve seins tir no ativismo geral como uma forga ativa, todavi| de sinal contriio: cintilante descoberta da verdict contra a tendéncia crescente & alienagio ¢ mistifce fo, A técnica da pintura também deve mudy| ‘opor-se a técnica fazer gerado pelas forgas profundas do ser: 0 fuse ético do homem contra o fazer mecinico da méqui na, Nao se trata mais de representar o mundo demz, neira superficial ou profunda: cada signo de Vay Gogh é um gesto com que enfienta a realidacle pan recnica da indistria, como un Vincent Va Gogh: Or gia (1889), #25, 095 00,73 m, Ameterdh Scale Musear, ‘aptar ese apropriar de seu contetido essencial, a vi- | te Aquela vida que a sociedade burguesa, com seu ‘rhalho alienante, extingue no homem, | Olmpressionismo fizeta muito. porém nao basta- _ § preparar-se para receber sensagées néo-adultera- ths da tealidade: nao se vive de sensagies, Os pré. | }f0s impressionistas, a partir de 1880, sentem a ne- @sidide de um aprofundamento — prineipalmen- | 1 Céanne, que se dedica a investigat a estrutura da _nsicio, pretendendo provar com fatos que a sensa- | Hondo é uma matéria bruta oferecida a consciéncia, ‘ma €consciéncia que, em sua plenitude, faz-se exis F fncia. Van Gogh nao acompanha Seurate Signacna ‘etativa de fundar uma nova ciéncia da percepeio tubre a autenticidade da sensagio, nem se prope a superar o carster fisico da vista no espiritualismo da _ ido. A pesquisa cognitiva, ao classicismo toral, ele ‘poe sua pesquisa ética, seu romantismo extremado: ferisso, sea pintura de Cézanne se encontra nas raf | do Cubismo, como proposta de uma nova estru- Fam de percepeio, a pintura de Van Gogh, par sua | Seencontra-se nas rafzes do Expressionismo, como F poposta de uma arte-acao. Apergunta que assedia Van Gogh: como se dé a f felidadc, jd nao a quem a contempla para conhecé- j Hemasa quem a enfrenta vivendo-a por dentro, sen- [ tindo-a como um limite que se impée, da qual nao | fede se libercar senao tomando-a, apropriando-se tela idencficando-a com aquela “paixto da vida" | sue, 20 final, leva & morte? Nao a impressio, a sensa- Fo, acmogio, avisio, o intelecto, esim a pura. sim. ples percepgao da realidade em sua existéncia aqui ¢ ‘gora: apenas romando consciéncia e forgando o li- mite €que se chegar a rompé-lo. © que Van Gogh quer é uma pintura verdadeira até o absurdo, viva até oparoxismo, até o delirio ¢ a morte. ‘Vejamos como ele enfienta a tealidade, Pinta o re- ‘rato de um carteiro, o senhor Roulin. Vé-se que é Fam carteiro pelo uniforme azul: ‘turquesa com gales, Pela nscricéo em maicisculas no boné;o cromatismo dominance do quadro ¢ justamente o realce do ama- relo-ouro sobre o azul do tecido. Nao | sse social — Van Gogh nao retratao senhor Roulin Por ser, ou apesar de ser, um carteiro, tampouco por interessi-lo como tipo humano. E verdade que é um ‘carteiro, usa esse uniforme, tem essa barba hirsuta como restolho, com a qual contrastam a pele rosada alum inee- cartraro pos aataumpane ba conser € os olhos azuis. F uma tealidade que nao julga nem comenta: pode apenas soffé-la passivamente ou aproptiar-se dela, refuzé-la com © materiale os pro- cedimentos que percencem ao préprio oficio do pin- tor, & prépria existéncia. Na verdade, ele a constréi, modela-a com accor; vivea espessura do pano naden- sidade opaca do curquesa, a aspereza espinhosa da barba numa erigada composigao de pinceladas secas edluras, 2 transparéncia das carnes nas veladuras frias sobre 0 rosa. Néo divaga desctevendo o ambiente: 0 fundo é uma parede caiada de branco, véem-se ape~ nas os bragos ¢ o assento da cadeira de vime, apenas o canto da mesa em que se apsia 0 antebraco. Por que a mesa é esverdeada, € néo da cor da madeira? Por que os cantos sie marcados com linhas azuis? O ver- de (amarelo + azul) finde os dominantes do quadros 05 cantos so azuis como a tinica; destarte, esses acessérios necessirios também se incoxporam 20 contomo da figura ¢, ao invés de colocé-laem comu- nicaso com o espago, isolam-na, contribuem para apresenci-la como uma realidade que esté ali, nfo ode ser removida, exige ser enfientada. Antecipan- do 0 pensamento dos existencialistas, Van Gogh pa rece refletir: a realidade (0 senhor Rouilin ou o café de Ales, os trigais, os girassdis) ¢ ousma em relacio a mim, mas sem 0 outro eu nfo teria consciéncia de ser cu mesmo, eu no seria. Quanto mais o outro outro, diferente, incomunicante, tanto mais eu sou em tan to melhor descubro minha identidade, 0 sentido- nao-sentido de meu esrar-no-mundo. E tanto maiso mundo manifesta & consciéncia aterrorizada sua pr6- ria descontinuidade e fragmentariedade. A pantir disso, evidencia-se que Van Gogh aprendeu com os impressionistas tudo o que diz tespeito as in- Aluéncias recfprocasentreas cores, mas tis laches oin- teressam ndo como correspondéncias visuais, esim oo- mo relagées de forca (atracao, tensa, repulsfo) no in- terior do quadro, Em virtudle dessas relagdes e contras- tes de forcas, a imagem tendea se deformar, ase distor- erase lacerar; pela aproximacio estridente das cores, pelo desenvolvimento descontinuo dos contornos, pelo ritmo cerrado das pinceladas, que transformam o quadro numa composigio de signos animados por uma vitalidade febril e convulsa, A matéria piceérica adquire uma existéncia auténoma, exasperada, quase insuportivel 0 quadro nao represen Onze esti, entio, 0 “tragico” no retrato do cartei= Vincane Van Gogh: Rat docrtive 1888) ea, 079% 0,630 Boston, Muscum oF oRoulin? Nao na figura, que esta em pose trangii Jaesem drama; ndo nas cores, que sio sonoras, qua- sealeres.E erigico vera realidade e ver-se na realida- decom uma evidéncia tao clara e perempréria, E trd- ff reconhecer nosso limice no limite das coisas € io poder libertar-se dele. E trigico, frente & realida- 4, nio poder contempli-la, mas ter de agir, ¢ agi om paixdo e firia: lutar para impedir que sua exis- téncia domine ¢ destrua a nossa. A arte entio se tor- tu (dria Pavese) o “oficio de viver”; é este oficio da vida que Van Gogh contrapde desesperadamente 20 tnbulho mecanico da indtstria, que nao é vida. A palimica inicial, portanto, néo foi abandonada, ¢ sin vada a um nivel mais profundo, onde esti em isgpnio 6 0 contetido, o objeto, a tese, mas também aesincia ea existéncia da arte. HENRI DE TOULOUSE-LAUTREC ATOALETE Apincura ¢ a gréfica de TOULOUSE-LAUTREC fo- fam comparadas 3 narrativa de Maupassant, compos- ainteiamente de golpes de luz e esbogos corrantes, Tats alm das preferéncias teméticas (Toulouse é 0 fintor de Montmartre e de sua vida artificial e bri- thane: 0s cabarés, 0 teatro de variedades, o citco, os boris), ele tem o propésito efetivo de executar uma Fguraio rdpida, dictl, intensamente significativa e @municatva, semelhante néo s6 externa, mas tam- bm estrururalmente & expressio lingiistica, Com sua reporagem concisa e dotada de naturalidade, 0 que pretende é nao tanto representar a realidade sob osalhos, esim caprar 0 que, ultrapassando a pura sen- ‘9a visual, atua como estimulo psicolégico. Em vex pineura, ele prefere o meio mais rapido do dese- ao; utiliza de bom grado a litografia e o pastel, que tinsmitem a imediaticidade do bosquejo, e mesmo pinando transforma a pincelada impressionista em penettante trago colorido. Tal como Van Gogh (com quem privou em 1886), Toulouse estuda asestampas jiponesas, porém com uma finalidade totalmente di- vrs nele, a imagem ndo se apresenta como algo inével, mas como um tema ritmico que se transmice avespectador, atua no nivel psicolégico como sol ‘aio motora, Foi o primeiro a intuir a importinci daqucle novo “género" artistico,cipicamente urbano, que éa publicidade — desenhar um cartaz ou a capa de um programa constitu‘a, para cle, um compromis- 50 tio sério quanto fazer um quadro. Entende-se: na publicidade, para suscitar uma rea- ‘40, acomunicagao é mais importante do que repre~ sentagio, Se a representagao ¢ algo que sc fixa e mos- tra, a comunicagio se insinua eatinge. Se um impres- sionista, por exemplo, Manet, representava tim cane- co de cerveja, era porque lhe interessava o dourado do liquido, o branco da espuma, os reflexos do vidro; no cartaz publicitétio, o caneco de cerveja pretende ape- nas despertar (€ nfo no observador is todos) a vontade de uma cerveja fresca. Com Toulou- se, pela primeira ver a atividade do artista ndo mais tende a se concluir num objeto acabado, o quadro, mas sedesdobra na série inincerrupta das pinturas, das gravuras, dos desenhos, no éllbum de esbogos que fo- Iheamos como se léssemos uma coletinca de poesias. E aexigéncia que Mallarmé, nos mesmos anos, coloca ara poesia: a arte nfo é mais a visdodo artista, masa quineesséncia de sua existéncia e experiéncia. Se Toulouse se interessa mais pela sociedade do lado; mas em, que pela natureza, ¢ porque ele a sente mais animada, mais propensaa se modificar sob a pressio dos impuil- s0s psicolégicos; se prvilegia o mundo eftmero e bri- Ihante do teatro de variedades, nao é porque o conside- re mais verdadiro, mas porque sua artifcialidade os- tensiva econsciente lhe parece significativa da arificia- lidade essencial da sociedade de sua época. Mimi, bai- larinas e prostirutas, com o ritmo truncado c exaspeta- do de sua danga, sto 0s corifeus da comédie humaine. A toalete é um quadro no sentido tradicional do termo; nele, porém, cada signo, seja grifico seja ctomitico, vale nfo por si, mas por sua capacidade de transmitir uma energia que logo se comunica a todo 0 espaco, Impossivel isolar uma bela cor, um belo arabesco linear em sua composigdo densa e ani- mada. O espaco no € profundidade nem tela de projeao: é um plano fugidio, movedigo, onde, 20 invés de permanecer, as figuras e coisas deslizam. A luz nao bate sobre superficies coloridas dando-lhes brilho ou vibragao: ela passa pelos filaments de cor ‘como a energia elétrica pelos fios do circuito. A cor, desintegrando-se nos tragos breves ¢ incisivos, ad- quire em movimento 0 que perde em intensidade; 2 divisdo do tom (em que Seurat procurava uma uni-

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