You are on page 1of 16
A EDU@AGAO NA FILOSOFIA DE SOCRATES Diuine fose de Silea ¢ Dedre Angele Lagni 6crates nasceu em Atenas por volta de 469 a.C. ¢ foi con- denado 4 morte na mesma cidade em 399 a.C., sob a acu- sagao de que seu pensamento e sua acdo estariam corrom- pendo a juventude ateniense. Considerado por muitos filésofos como aquele que conferiu sentido a palavra ‘filosofia”, Sécrates ndo deixou qualquer obra escrita, Ficou a cargo de discipulos e contempordneos a tarefa de relatar e transmitir seu pensamento ao grande pablico. Embora Xenofonte e Arist6fanes também tivessem concorrido para essa tarefa, 0 pensamento socratico ficou mais conhecido por intermédio da obra de Platao, particularmente, pelos chamados didlogos socra- ticos. Nos didlogos, segundo Pessanha (1987), S6crates é apresen- tado, por Platéo0, como o personagem central que transmite ou que defende as préprias idéias, tal como ocorre na Apologia de Socrates, no Criton, no Laques, no Lisis, no Carmides e no Eutrifon ou, entao, em algumas passagens do Protdgoras, do Gorgias e do Ion. E séo denominados de socriticos porque nio apenas reproduzem suas idéias, como também sao aporéticos, isto €, ao conceituar as virtudes (como a coragem, a amizade, entre outras) nado as definem de modo conclusivo, deixando a questao em aberto, tal como indi- cado por Socrates. 19 20 INTRODUGAO A FILOSOFIA DA EDUCAGAO. Além desse alerta, vale lembrar também que varias sao as lei- turas realizadas sobre Platéo ao longo dos séculos. Optaremos, ent4o, por seguir parcialmente a interpretagdo plat6nica de Sécrates desenvolvida por Jaeger, bem como a sua interpretacao acerca do proprio Platao — a ser apresentada no capitulo seguinte —, porque nela os fil6sofos gregos sao vistos a partir da perspectiva da culmi- nancia da Paidéia' grega, na qual a politica surge como nticleo do pensamento. Sécrates entre os Sofistas E possivel dizer que a grande questo que orientara o /abor filo- s6fico dos sofistas e de Sécrates € de como e, principalmente, para que educar o homem para a vida na pdlis, para a vida na cidade, portanto, para 0 convivio social harm6nico e democratico. Esta pergunta sobre como e para que educar constitui 0 eixo em torno do qual gravitara 0 pensamento filos6fico e educacional ao longo da tradi¢4o ocidental, de Platéo a Hegel. Nao seria exagero afirmar que a Pedagogia ainda vive enredada nessas questées, sobretudo as relativas ao para que educar o homem e em que sentido formé-lo, Com clas, irrompe o Humanismo, que, além de demarcar toda uma tradi¢ao: [..] significou a educacao do homem de acordo com a verda- deira forma humana, com o seu auténtico ser. [...] Ela nao brota do individual, mas da idéia. Acima do Homem como ser gregério ou como suposto eu aut6nomo, ergue-se o Homem como idéia. [...] Ora, o Homem, considerado na sua idéia, sig- nifica a imagem do Homem genérico na sua validade univer- sal € normativa. Como vimos, a essé¢ncia da educa¢ao consis- te na modclagem dos individuos pela norma da comunidade GAEGER, 2001, p. 14-15). Ao tefletir sobre a necessidade de uma nova Educaga4o cuja meta fosse a reinven¢do da pélis, S6crates ensaiou uma ruptura com um modelo de Educagdo que havia predominado até, ao menos, 0 1 Otermo grego Paidéia se aproxima do alemao Bildung. Como este tiltimo, 0 termo grego guarda 0 duplo significado de educagao-formarao ou educacao formadora: a educago que se diferen- cia da idéia de aprendizado. A Paidéia visa formar um carter (ethos), educar 2 crianca para a harmonia, a moderagio € a temperanca consigo mesma € a concordia na cidade. A Paidéia a educacao que supe determinada interpretacio do homem e da cidade ¢ tem, como objeti- vo, tomé-lo apto ao desenvolvimento do cariter virtuoso (MATOS, 1997, p. 38). é A EDUCAGAO NA FILOSOFIA DE SOCRATES © 2 século IV e que se baseava na concep¢4o aristocratica da areté, isto é, da virtude ou da exceléncia intelectual e moral, acessivel somen- te aos que tinham sangue divino. A Paidéia decorrente desse ideal aristocratico visava formar os melhores para a suprema virtude da coragem, formar o guerreiro belo e bom, perfeito de corpo e alma, plenamente preparado para os perigos da guerra e, naturalmente, para a “bela morte”, ou seja, a morte na mais tenra idade nos cam- pos de batalha. , a areté aristocratica uficiente e aceitavel, poise esta fundada nos privilégios de sangue. Para formar 0 novo cidadao, faz-se necessario uma nova Paidéia articulada a uma nova areté. Conforme afirma Jaeger: Logo se faz sentir a necessidade de uma nova Educacio que satisfizesse aos ideais do homem da pdlis [.... Seguindo as pegadas da antiga nobreza (que mantinha rigidamente o prin- cipio aristocratico da raga), a polis watou de realizar a nova areté considerando todos os cidadaos livres do Estado ate- niense como descendentes da estirpe Atica ¢ fazendo-os membros conscientes da sociedade estatal, obrigados a servir ao bem da comunidade [...]. Sua finalidade era a superagio dos privilégios da antiga Educacao para a qual a areié s6 era acessivel aos que possuissem sangue divino (os aristoi). Coisa nao dificil de alcangar para 0 pensamento racional que ia pre- valecendo, Havia somente um caminho para conseguir este fim: a formacao consciente de espirito [...] a areté politica nao podia nem devia depender do sangue nobre, mas da admis- sio do povo (démos) no Estado [...J. A idéia da Educacio consistia em usar a forca formadora do saber, a nova forca espiritual da época, e colocd-la a servico dessa tarefa [...]. Era preciso, antes de tudo, romper a estreiteza das antigas con- cepg6es, seu mitico preconceito do privilégio do sangue, ¢ colocar em seu lugar a forca espiritual e moral do saber, da sophia (2001, p. 264). INTRODUGAO A FILOSOFIA DA EDUCAGAO A palavra, como reconhecera Vernant (2000), adquire na polis im publico que devera escolher a proposta que lhe parece a mais convincente. Ha intima relacdo entre a politica e a palavra (J6gos). “A arte politica € essencialmente exercicio da linguagem, o /dgos, na ori- gem, toma consciéncia de si mesmo, de suas regras, de sua eficacia, através de sua funcdo politica” (VERNANT, 2000, p. 42). E por meio desse vinculo reciproco entre linguagem e politica que a consciéncia pensa a si mesma e, ao assim proceder, pensa também as importan- tes manifestacdes da vida social, tornado-as objeto do interesse publi- co. O interesse comum se sobrepée ao interesse privado. Submete- se ao julgamento de todo 0 conjunto de crencas, de condutas e de conhecimentos considerados inquestionaveis, que, levado 4 praca publica, estar sujeito a criticas e controvérsias. Assim podemos dizer, seguindo as indicagdes de Vernant (2000), que a partir de entéo a polémica, a discusséo e a argumentagdo farao parte do jogo politico e intelectual em Atenas. E 0 que veremos com os sofistas e Sécrates. E nesse contexto que surgem os sofistas, como uma espécie de mestres da arte da Educagdo do cidadao, por muitos considerados os fundadores da Pedagogia democritica. Fles se apresentam mais como professores de técnicas e métodos de ensinar do que propria- mente como filésofos. Nao ensinam uma doutrina. O que os sofistas tém em comum, além do ideal educativo baseado na retérica, € 0 fato de serem mestres da areté politica e buscarem alcanga-la por meio da formagao espiritual. sofista que, a principio, era considerado sabio, passa a ser visto como especialista em alguma arte. E aquele que causa espan- to, admiragao. E habil ao argumentar sobre determinado assunto, discorrendo sobre ele de forma admiravel. Apresenta os temas de maneira didatica e atraente, persuadindo os interlocutores ou ouvin- tes. Assim, segundo Chaui, [J para os sofistas, a retOrica, tekbne rbetoriké, € a ante de persuadir oferecendo os Jdgoi, isto 6, as razdes ou argumen- A EDUCACAO NA FILOSOFIA DE SOCRATES tos e definigdes de uma coisa, tendo como base nao o que a coisa seria em si mesma ou por natureza (physei), mas tal como ela nos parece € nos aparece e tal como nos sera util. Em outras palavras, a ret6rica parte de nossas opinides sobre as coisas € nos ensina a persuadir os outros de que nossa opi- nido é a melhor. A arte da persuasio opera com o pressupos- to de que as opinides (déxai) , porque sio opinides, so con- flitantes e contrdrias e, portanto, para se realizar, a persuasio precisa da dialética, isto é, do confronto de argumentos con- warios, os disséi logoi. A retorica, arte da persuasio, apdia-se na dialética, arte da discussao (2001, p. 167). Ao ter, como oficio, a arte da argumentacdo, a arte da palavra, os sofistas tornam-se importantes para a democracia ateniense. Basta lembrar que, nos tribunais, cada cidaddo assumia pessoalmente a defesa de seus direitos. Por essa razio € que o dominio da arte da ret6rica ocupa lugar de destaque em Atenas, pois dela dependeria o sucesso perante o tribunal ¢ a assembléia politica. Ao ensinar aos individuos a habilidade discursiva, ensinava-se a arte de ser cidadao. Tornou-se importante desenvolver, naqueles que podiam participar da vida pablica, a capacidade de discursar e argumentar sobre temas e problemas que afetavam o cotidiano da cidade. Desse modo, a areté a cidadania e a Educacao oferecida pelos sofistas que visam a formagdo do homem virtuoso. Portanto, os sofistas s4o os profes- sores da areté, professores da virtude. O que marca a pedagogia sofista € 0 carater agonistico, em que 0 saber est fundado na idéia de oposi¢ao e luta dos contrarios, 0 qual se aplica 4 construgdo da vida politica. E com esse espirito que os sofistas se contrapdem a idéia de que os costumes e as leis nao sao naturais, como defendiam os aristocratas, mas s40 16mos, isto é, conven¢ao, portanto, préprios de cada sociedade. Dito de outro modo, da mesma forma que a democracia, a aristocracia é uma con- vencao social e humana e nao uma instituicdo divina. Introduz-se, aqui, conforme Ribeiro, uma mudanga significativa: 4 INTRODUGAO A FILOSOFIA DA EDUCACAO, Ao se posicionar assim diante da visio aristocratica até entao pre- dominante, os sofistas criam a Paidéia, no sentido de uma idéia e de ‘uma teoria da Educacao baseadas em fundamentos racionais. Eles for- mulam, do ponto de vista te6rico, um conceito de Educagao que con- duz 4 ampliacio do dominio das ciéncias para os aspectos éticos e politicos, abrindo caminho para uma verdadeira Filosofia politica e ética, acima da ciéncia da natureza (JAEGER, 2001, p. 348). E nesse sentido que a sofistica estabelece os fundamentos da Pedagogia, a qual nao denominam de ciéncia, e sim de téchne ou arte da Educacao. E importante destacar que, com os sofistas, introduz-se na cul- tura ocidental o ideal de formac¢do, assentada no humanismo, que rompe com a visdo politica cujos fundamentos se encontravam na idéia de direitos divinos. Esse humanismo tem, como referéncia, a Educacao como um projeto consciente que nao se limita simples- mente 4 infancia, visa também ao homem adulto, fomentando uma Paidéia do homem adulto. Aquilo que antes designava somente o processo de Educacao se estendeu aos seus aspectos objetivos ¢ de contetidos, adquirindo, portanto, novo significado: a Educagio seria responsavel pela formac4o humana, por intermédio da aquisicao da cultura transmitida pelos mais velhos, da habilidade para usar a pala- vra e para convencer os cidadaos. Adquire, assim, sentido proximo ao do conceito alemao de formacao (Bildung) - que abordaremos mais adiante. E nesse momento que se chega a uma concep¢ao consciente de Educagao, marcada pela so ‘a. A sofistica representa a passagem de uma visio cosmol6gica para uma visao antropolégica, em que a busca e as explicagdes das causas dltimas do universo sao substitui- das por aquelas referentes a vida na pdlis. Mesmo assim, ela encon- tara, na Filosofia socratica, a mais ferrenha opositora. Embora adote algumas das estratégias utilizadas pelos sofistas, tais como o apreco pela disputa e pela agonistica, S6crates se recu- sa a cobrar pelos ensinamentos e, além disso, distancia-se dos pri- meiros no que tange aos resultados finais daquilo que € ensinado. Para os sofistas, interessa cultivar o espirito da disputa até que alguém venga o debate, cujo resultado se confirma na op¢ao politi- ca feita pela assembléia. O justo, o verdadeiro, o bom se definem pela escolha dos participantes ¢ nao propriamente pela confluéncia de argumentos que, expurgados até as Ultimas conseqiiéncias, vis- lumbrariam, depois de muitos esforgos, a verdade, nos termos pro- postos por Sécrates. Eis o perigo que, certamente, representava a A EDUCACAO NA FILOSOFIA DE SOCRATES 2 pratica dos sofistas, pois eram, conforme salienta Russell (2001, p. 63), “L.J homens capazes de fazer o pior parecer melhor’. Pratica esta que constituia, na visio de Sdcrates, um perigo para a demo- cracia, visto que a harmonia da polis poderia ser quebrada em fun- cdo das diferentes opinides, além da dificuldade e limites que isso representaria ao propor fundar uma moral. A figura de Sécrates tornou-se 0 eixo da historia da formagao do homem grego ¢ o maior fendmeno pedagdgico da historia do Ocidente. E 0 primeiro a perscrutar a alma humana, a fim de pene- trar no cosmos moral. O procedimento adotado para isso vem da Medicina e relacio- na-se “com a estrutura essencial do seu pensamento, com a cons- ciéncia que tem de si proprio e com o ethos de toda atuagao” (JAE- GER, 2001, p. 520). Socrates € o auténtico médico que se preocupa com 0 bem-estar fisico e espiritual daqueles com quem entabula uma conversa. Assim como 0 médico grego que pratica a anamne- se, fazendo perguntas ao paciente, de tal modo que este possa lem- brar e historiar a doenca, Sécrates € 0 filosofo médico, 0 “parteiro de idéias” que busca, pelo didlogo, conduzir 0 individuo ao auto- conhecimento. O esforgo em recordar constitui o primeiro passo para a cura e para o convencimento do paciente a aceitar a dieta e os medicamentos. Isso significava também, conforme Chaui (2002, p. 189), a maneira como 0 paciente participava da cura, fazendo-o admitir que tinha um saber sobre a prépria doenga. Mediante as perguntas feitas ao paciente, pelo médico, e pelas respostas obtidas chegava-se a um diagnéstico e a um prognéstico. Sécrates, por meio das perguntas e quest6es, ajudaria os individuos a trazer, para o plano da consciéncia, aquilo que est4 neles apenas no nivel da laténcia. Esse mesmo procedimento parece ser justificado pela Filosofia socratica, como veremos a seguir. Socrates se orienta, em toda a atividade filosofica, a partir de duas epigrafes que parecem funcionar como uma espécie de man- tra: “conhece-te a ti mesmo” e “sei que nada sei”. Depois de consul- tar o oraculo de Delfos sobre quem era 0 homem mais sabio de Atenas, Sécrates recebe a confirmagao de que ele era o homem mais sdbio entre todos. O daimon, isto é, aquele (deménio) que promo- ve a intermediagio do didlogo entre o homem e os deuses, revela- Ihe que ele é 0 mais sabio nao por deter toda a sabedoria, e sim por reconhecer que nada sabe. Dai decorre também o significado do “conhece-te a ti mesmo”, por meio do qual se explicita 0 sentido da 26 INTRODUGAO A FILOSOFIA DA EDUCAGAO, fragilidade e€ limite de todo conhecimento, 0 qual nao é um estado, mas um processo, uma busca constante. Por essa raz4o, SOcrates pratica a Filosofia como missao e tem consciéncia de que, a cada verdade descoberta, abre-se diante de nds uma nova ignorancia. O “conhece-te a ti mesmo” tem também um significado moral em que o “homem politico” deve obedecer, em suas relacdes, 4s normas de controle e modera¢gdo. Requer 0 dominio de si, em que aquilo que é da ordem da afetividade, das emogoes e das paixdes seja subme- tido 4 prudéncia raciocinada. A forma adotada por Sdcrates para implementar a priatica filos- fica difere daquela adotada pelos sofistas. Estes adotam a postura do professor de técnicas que pretende ensinar, aos discipulos, estratégias e conhecimentos que julgam necessdrios ao convivio social na pdlis. Nesse caso, 0 que interessava aos sofistas era 0 dominio de contet- dos prontos e acabados, da parte dos discipulos. Outro aspecto que diferencia Sécrates dos oponentes se refere 4 questéo da verdade. Para os sofistas, conforme salientamos anteriormente, a verdade é uma convencdo e depende somente da eficacia argumentativa, da persuasao. Nao ha a verdade almejada por Sécrates. O que existe sao opinides mais ou menos convincentes. Sécrates nao se coloca na condicdo do professor que ensina um conhecimento pronto e acabado. O que ele faz € indagar. Introduz 0 didlogo como forma de buscar a verdade. E por essa via que o filosofo faz, da Filosofia, uma pedagogia da raz4o, como condi¢do fundamental para o retorno ao interior, para a compreensdo do coti- diano de es € pensamentos. E a maneira, por ele encontrada, para desestabilizar as opinides cristalizadas. Desse modo, Sécrates apresenta-se como um pensador “que tinha o dom de abalar as cer- tezas, de introduzir a complicagao onde se buscava a simplificacao, [..] que ensinava que as verdadeiras questOes nao se esgotam nas respostas, que elas nao provém unicamente de nds, mas sao indicio de nossa freqlientacao do mundo, dos outros e do proprio ser” (MERLEAU-PONTY apud MATOS, 1997, p. 16). Sdcrates diferencia-se também dos sofistas no que diz respeito a separa¢ao entre opinido e verdade, entre aparéncia ¢ realidade, entre sensivel e inteligivel. Segundo Chaui (2002, p. 188), Sécrates “visa alcangar algo muito preciso: passar da multiplicidade de opinides contrarias, da multiplicidade de aparéncias opostas, da multiplicidade de percepgées divergentes a unidade de idéia”. Pelo didlogo, ele faz com que cada um veja que aquilo que julgava ser a idéia da coisa A EDUCAGAO NA FILOSOFIA DE SOCRATES 27 era apenas um simulacro. Os exemplos que evidenciam os elemen- tos inerentes 4 Pedagogia socratica estdio nos Didlogos, de Platao. Nos Didlogos, Socrates educa em praca publica todos que dele se aproximam. Educa colocando obstaculos 4s opinides daqueles que o procuram e os convidando 4 revisao dialética das idéias con- tidas na alma. Do escravo aos governantes, todos teriam uma alma e uma faculdade racional a ser perscrutada e examinada, por inter- médio do didlogo interior. E o que se exemplifica no Ménon, de Platéo, quando, dirigindo perguntas a um escravo, demonstra que este também é capaz de desenvolver o teorema de Pitagoras, como se as verdades matemiticas j4 estivessem inscritas na alma e na natu- reza humana, bastando apenas encontra-las. Procedimento seme- lIhante ocorre quando Socrates aparece em outro didlogo platénico, no Laques, conversando com cidadaos livres sobre o que seria a cora- gem, extraindo, do didlogo travado, a esséncia dessa idéia. Os dia- logos socraticos nos fornecem, assim, a resposta sobre a origem da no¢ao de verdade, proveniente dos juizos que fazemos sobre a coisa e, principalmente, sobre os valores humanos a conduzir nossa vida. A dificuldade para chegar 4 verdade se deve ao envolvimento de cada um com o mundo exterior, que dita preconceitos e que enreda a todos nas teias dos valores e dos costumes consagrados na vida pablica. Dai SOcrates buscar, com a Pedagogia, deslocar a aten- cao do mundo exterior para a contempla¢ao interior. Para Jaeger, [..] o tema do didlogo socratico é a vontade de chegar com outros homens a uma inteligéncia, que todos devem acatar, sobre um assunto que para todos encerra um valor infinito: o dos valores supremos da vida. Para alcancar este resultado, SOcrates parte sempre daquilo que o interlocutor ou os homens de modo geral aceitam (2001, p. 562). Desse modo, o didlogo socratico € 0 método do /égos para chegar a uma conduta reta, isto é, os conceitos que designariam 0 que somos como seres humanos e os valores nos quais sustentariamos a nossa a¢ao para a virtude. E é esse mesmo método que Sécrates uti- liza para educar aqueles que o interpelam nos locais ptblicos, sem se importar com a casta da sociedade ateniense da qual provinham. Detalhando um pouco mais, esse método consiste no seguinte: num primeiro momento, Socrates convida o interlocutor a filosofar 26 INTRODUGAO A FILOSOFIA DA EDUCAGAO sobre um tema de ocasido. A seguir, comenta as respostas Ou opi- nides dadas sobre a referida tematica, colocando, sobre elas, mais perguntas. Por esse procedimento, Sécrates evidencia, para o inter- locutor, que as suas respostas esto amarradas aos preconceitos, as opinides correntes, portanto, distantes da definigio almejada. Aqui se define a ironia socratica, como instrumento que refuta e destréi a solidez dos argumentos apresentados pelo interlocutor. O fato de nao se ter resposta definitiva para as quest6es que aquecem o deba- te é um aspecto fundamental da Filosofia socratica, que instiga os interlocutores a rever posicdes e a aprimorar conhecimentos. Para Socrates, o filosofar est4 condicionado as boas perguntas ¢, a todo momento, ele nos mostra a importancia de saber fazé-las. Feita essa demoli¢éo, que nem sempre agradava aqueles com quem debatia, Sécrates vai sugerindo novos caminhos ao interlocu- tor até que se chegue a definicdo procurada. A essa definig&o deu- se 0 nome de maiéutica: “a arte de dar nascimento as idéias”. Aquele que se entregar ao exercicio do método, que se dispuser ao processo de construcao da razio, poderd atingir a refutagdo de todo o saber aparente e de qualquer virtude imagindria. E, pela dia- lética, entéo, o homem chegaria a um profundo conhecimento de si € ao reconhecimento dos pr6prios limites de seu saber, recusando o que € aparente e imagindrio para se langar na busca do que € e do que deveria ser o belo, o justo e 0 verdadeiro. Mais do que ser sind- nimo de uma arte (tékbne) alheia 4 ciéncia, tal método estaria fun- dado na ciéncia do belo, do justo e do verdadeiro, em que consiste a propria Filosofia socratica. Essa ciéncia nao seria dada por uma sabedoria heter6noma, na qual os discipulos se embeberiam, mas por uma sabedoria que eles buscam, aspiram, desejam, mesmo que saibam que nunca sera plenamente estabelecida em si € por si mes- mos, j4 que sio homens mortais e finitos, ndo sao deuses. Eles dese- jariam a sabedoria como um produto inalcang4vel, como parte de um processo de constante confronto com essa mortalidade e finitu- de humanas, que recoloca problemas e que os impele a continuar pensando sobre si mesmos, sobre sua acao no mundo e sobre o pro- prio mundo, com o intuito de se tornarem virtuosos pela contempla- ¢ao do belo, do justo e do verdadeiro. A Filosofia, assim, seria o desejo de sabedoria que nao se con- cebe pela confluéncia de argumentos nem pela convengao estabele- A EDUCAGAO NA FILOSOFIA DE SOCRATES - 2 . cida na vida publica; e sim pela busca que faria com que o homem reorientasse sua conduta, pelo cuidado de si, pelo cultivo da propria alma e pela aspiracdo a virtude, tentando romper os preconceitos e a escravizacao pelos apetites, na direcdo da vida reta e de uma polis justa. Ainda que nao preconceba o que seria esta justica, como o fara o discipulo Platéo, S6crates nao deixou de concorrer para sua elaboracdo, postulando e vivendo uma concep¢a4o de formagao da virtude e de Educagao Politica, mesmo que isso lhe tenha custado a propria vida. A Concepcao de Areté e de Educagao Politica Socratica no Interltidio de sua Morte Na realidade, a Filosofia que Sécrates professou em vida nao é um simples processo teérico de pensamento, mas funcionou como um convite ao pensar e uma forma de reeducagado do pensar. A Filosofia socratica possui um sentido educativo por exceléncia, tanto quanto sua concep¢ao de Educac¢ao esta baseada num méto- do filos6fico e numa filosofia. Mesmo quando se encontra diante da morte, Sdcrates insiste na reeducagdo do pensar e em manter o sentido educativo de sua filosofia, interrogando os préprios jui- zes que o condenaram a tomar a cicuta (ver figura 1). Figura 1 The Death of Socrates, de Jacques-Louis David, 1787 Fonte: Dominio publico: . Na defesa que Sdcrates realiza de si mesmo perante o tribunal, descrita por Platao, confrontam-se duas visOes sobre a vida. Uma que valoriza os negécios, e outra que se preocupa com o cuidado 30 INTRODUGAO A FILOSOFIA DA EDUCAGAO da alma. Para Sécrates, a missio suprema do filésofo é cuidar da alma. Nesse ponto nos situamos na esséncia daquilo que constitui a consciéncia que Sécrates tinha da sua tarefa e da sua missdo: uma miss&io educacional, que interpreta a si propria como divi- na. [...] S6crates define mais concretamente o cuidado da alma como um cuidado através do conhecimento do valor e da ver- dade, phronesis e alétheia JAEGER, 2001, p. 528). Em Socrates, aparece este novo elemento que é o mundo inte- rior. A areté de que ele nos fala é de valor espiritual. E por essa via que se desenvolve a ética como expressao da natureza humana, que, pelos dotes racionais, torna o ethos possivel. A meta da Filosofia socratica como pedagogia da razio é a formagao da alma nesse ethos. Caminho pelo qual se chegaré 4 harmonia com a natureza do univer- so, 4 eudemonia. A novidade trazida por Sécrates esta em que o homem pode alcangar a harmonia do ser pelo dominio completo sobre si proprio, de acordo com a lei que descobriu no exame da propria alma. Conforme Jaeger, o eudemonismo autenticamente grego de Sécrates deriva desta entrega do Homem a alma, como seu dominio mais genuino e mais especifico, entrega que é uma nova forga de auto-afir- mac4o em face da crescente ameaca que a natureza exterior e © destino fazem pesar sobre a sua liberdade (2001, p. 535). Neste caso, a virtude e a felicidade deslocaram-se para o inte- rior do homem. Na volta para o interior, 0 ético torna-se o centro do problema. Reestrutura-se o vinculo entre a cultura espiritual e a cultura moral. Cabe ressaltar aqui que nao ha oposi¢do socratica 4 finalidade politica da cultura, tal como os sofistas a concebiam, em detrimento da pura formagao do carater. Segundo Jaeger: “As coisas humanas’, para as quais se orientava a sua atencao, culminavam sempre, para os gregos, no bem do conjunto social, de que dependia a vida do individuo. Um Sécrates cuja educacao nao fosse “politica” nao teria encontrado discipulos na Atenas do seu tempo. A grande novidade que Socrates trazia era buscar na personalidade, no carater moral, na medu- la da existéncia humana, em geral, e a da vida coletiva, em particular (2001, p. 540). A EDUCAGAO NA FILOSOFIA DE SOCRATES a Neste caso, a Educacao Etica se articula profundamente com a politica. Esta Educacao tem como objetivo a abstinéncia e o autodo- minio. Tal ascese visa educar o homem destinado a mandar, a gover- nar. Tema que sera recorrente em Platao. Foi gragas a Socrates que o conceito de autodominio se conver- teu numa idéia central da nossa cultura ética. Esta idéia conce- be a conduta moral como algo que brota do interior do proprio individuo e nao como a mera submissio exterior 4 lei, tal qual a exigia 0 conceito tradicional de justica JAEGER, 2001, p. 548). O que se busca, com esta Educagdo sustentada numa nova areté, € emancipar a razao da tirania da natureza animal do homem e estabilizar o império legal do espirito sobre os instintos. Da ascese socratica decorre um conceito de liberdade que, como salientamos, transfere-se para o Ambito do interior moral do ho- mem. E livre o homem que representa a antitese daquele que vive escravo dos apetites. O que interessava a S6crates nao era a inde- pendéncia com relacao as leis vigentes, e sim a eficdcia do auto- dominio. Isso representaria, em termos efetivos, a autonomia moral e o distanciamento do homem de sua natureza animal, ele- mento ameacador da vida em sociedade. O mais importante para a histéria da Paidéia, ressalta Jaeger (2001), € 0 conceito do fim da vida. E por ele que se define a mis- sao da Educacdo, que nao consistira apenas na transmissaio de conhecimentos e no desenvolvimento de capacidades, aspectos considerados meios e uma fase no processo educacional, o que se busca é a verdadeira esséncia da Educagao, cujo objetivo visava for- necer ao homem as condigées necessdrias para alcancar o fim autén- tico de sua vida. Essa meta se identifica com 0 conhecimento do bem, com a pbronesis (prudéncia), e se constitui em um projeto para a vida inteira. Dira Jaeger (2001, p. 571) que “isto faz mudar 0 concei- to de esséncia da Paidéia. A cultura em sentido socratico con- verte-se na aspiracdo a uma ordenacao filosdfica consciente da vida, que se propde cumprir o destino espiritual e moral do homem”, Socrates deseja conduzir todos os cidadaos a “virtude politica” e 4 descoberta de novos caminhos para conhecer a verdadeira essén- cia. A reconstrugao do Estado nao se efetiva pela simples implanta- ee 10 de um forte poder exterior, deveria come¢ar pela consciéncia, a2 INTRODUGAO A FILOSOFIA DA EDUCAGAO pela renovacdo da prépria alma. O que interessa a Sécrates nesse processo, que se desenvolve por meio do novo ideal de Paidéia, € atingir o pleno desenvolvimento, nos individuos, da consciéncia, do légos, como aquela que fala de um ponto de vista da universalidade. E justamente nesse momento que se da 0 conflito entre Filosofia e Estado. A investigacio volta-se sobre a natureza das “coisas huma- nas”, sobre a relagdo entre o Estado e a areté, surgindo, em face dessa questéo, como raz4o normativa. Nesse aspecto, Sécrates ante- cipa Platao colocando nas maos da Filosofia as rédeas do Estado. Inicia-se aqui a tentativa de estabelecer um ponto de equilibrio entre o poder do Estado e o papel da Filosofia que investiga a norma suprema da conduta. Como reconhecerd Arist6teles e, mais tarde, Nietzsche, S6crates cria, com sua filosofia a ciéncia, a epistéme, que visa encontrar as definigdes universais e necessarias das coisas. Esse conceito s6 podera ser alcangado pela razdo. Se Aristételes vé com bons olhos © nascimento da ciéncia que lida com definigdes universais e neces- sarias, para além da multiplicidade e definigdes parciais; Nietzsche vé, na Filosofia socratica, o inicio da decadéncia e do aprisionamen- to da vida pela idéia de verdade. Ainda que muitos autores concor- dem com esta tese, exaustivamente defendida por Nietzsche, nao nos interessa aqui aprofunda-la, e sim apenas assinalar que a vida e a morte de Sécrates atestam estreita ligagdo entre a Filosofia e a Educacdo, inaugurando uma tradig4o que sera seguida por muitos outros filosofos e educadores: a comegar por Platao. REFERENCIAS CHAU, M. Introducdo 4 historia da filosofia: dos pré-socraticos a Arist6teles. SA0 Paulo: Brasiliense, 1994. v. I. JAEGER, J. Paidéia. Trad. Artur M. Parreira. S40 Paulo: Martins Fontes, 2001. MATOS, O. F. C. Filosofia, a polifonia da razdo: filosofia e educa- ¢4o. Sao Paulo: Scipione, 1997. A EDUCAGAO NA FILOSOFIA DE SOCRATES. PESSANHA, J. A. M. Sécrates: vida e obra. Sdo Paulo: Nova Cultural, 1987. p. VII-XXII. (Col. Os Pensadores.) RIBEIRO, R. J. A democracia. Sio Paulo: Publifolha, 2001. (Folha Explica.) RUSSELL, B. Historia do pensamento ocidental. A aventura das idéias dos pré-socraticos a Wittgenstein. Trad. Laura Alves e Aurélio Rabello. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. VERNANT, J. P. As origens do pensamento grego. Trad. {sis Borges B. da Fonseca. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. EXERCICIOS I- Questées dissertativas sobre 0 contetido desenvolvido 1. Qual o papel dos sofistas na antigiiidade grega? 2. Apresente as principais caracteristicas da Educacao empreendi- da pelos sofistas. 3. No que consiste a Filosofia e a Educacdo socratica? 4, Quais as diferengas entre a maiéutica socratica e a Educacgdo empreendida pelos sofistas? O que a Educagéio socratica repre- sentou para a Paidéia de seu tempo? Il - Sugestao de atividades complementares Filme: A vida de David Gale (com Kevin Spacey, Kate Winslet € Laura Linney). Diretor: Alan Parker. Trabalho: Apos assistir a A vida de David Gale, comentar as rela- Ges entre o filme proposto e a apologia de Sécrates. COPYRIGHT © 2007 by EDITORA AVERCAMP LTDA. Av. lrai, 79 — cj. 35B — Indiandpolis 04082-000 - Sao Paulo - SP Tel./Fax.: (11) 5042-0567 Tel. (11) 5092-3645 E-mail: avercamp@torra.com.br Site: www.avercamp.com.br Impresso no Brasil Printed in Brazil Capa, Editoracgao e Fotolitos: TODOS OS DIREITOS RESERVADOS Nenhuma parte deste livro poderé ser reproduzida sejam quais forem os meios empregados sem a permissao, por escrito, da Editor. Aos infratores aplicam-se as sangdes previstas nos artigos 102, 104, 106 ¢ 107 da Lei n® 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. ERJ Composic¢ao Editorial e Artes Graficas Ltda. Preparagao de originais: Across The Universe Communications Revisao: Martim Codax — Textos e Contextos CIP-Brasil. Catalogacao na Fonte nal dos Editores de Livros, RJ Sindicato Na pisemmstns 148 Introdugao a filosofia da educagao: temas contemporaneos e histéria / Pedro Angelo Pagni, Divino José da Silva (organizadores); Claudio Roberto Brocanell... [et al.]. - Sao Paulo : Avercamp, 2007. ISBN 978-85-89311-43-4 1, Educagao, 2. Educagao - Filosofia. 3. Educagao - Histéria. |. Pagri, Pedro Angelo. Il. Silva, Divino José da, Il. Brocanelli, Claudio Roberto. 07-0698 CDD 370.1 CDU 37.01

You might also like